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Q fio dak pola wc uN fi Ch PAUG*QC* OWik/nuo JL, <1: CmveU* , éd. Summu* Introducao Este texto foi destinado inicialmente aos alunos do 4° ano de Psicologia da Universidade Catdtica de Santos, Nessa altura to curso so travados os primeiros embates com a diversidade de eseolas de psicoterapia. Procurei contribuir para o aumento da escassa biblio- grafia sobre psicoterapia existencial disponivel em portugués, es- crevendo este volume. © cariter introdutério da exposigao toma seu contetido aces- sivel tanto para o aluno ¢ para o profissional da area, como para o leigo interessado na matéria Ao discorter sobre psicoterapia existencial usei diversas pa- lavras que também fazem parte do vocabulério de outras aborda gens da psicologia. Para evitar mal-entendidés, alguns: termos de uso frequente precisam ser esclarecidos. Mas & conveniente avi- sar ao leitor ndo-especializado que ele pode compreender perlei tamente 0 texto dispensando a leitura da discussdo sobre termi- nologia, Usei_ indiferentemente as palavras “paciente” e “cliente” (e por vezes “sujeito”) para indicar a pessoa que procura um psico- terapeuta e com ele se engaja no processo psicoteripico'. HA ert ticas a essa designagdo. Apesar disso, resolvi manté-la, para evi- tar neologismos desnecessarios. ‘As palavras “psicoterapia”, “terapia” ¢, algumas vezes, “trax tamento”, também foram usadas sem distingdo, A altemancia de uuso visi unicamente tomar 0 texto_néo- aplica a “psicoterapeuta” e “terapeuta” Mais delicado & 0 emprego das palavras “significado” e tido”. Inicialmente € preciso deixar claro que “significado” ndo foi usado na acepedo conferida pela lingitistica? e pela psicanéli- se lacaniana’. Se algum formalismo ¢ necessério, prefiro defin Jo como “nicleo idéntico na multiplicidade de vivéncias indivi- duais". No corer do texto’ a compreensio do termo iré adqui- rindo maior leveza ¢ flexibilidade. “Sentido ” € aqui uma ampliagio de “significado ”, privile - giando adimensdo temporal, tomando a“multiplicidade de vi- véncias individuais” como histéria do individuo . Mas sentido vai ser também aquilo de mais abrangente sobre o que o homem se pergunta —o “sentido da vida”. A palavra seré usada dos dois modos,, que freqiientemente se aproximam e se fundem’, Uma discussio mais pormenorizada. sobre terminologia cabe na finalidade deste volume. Para tanto remetémos o leitor a bibliografia, petitive. O mesmo se 14 Define -se Psicoterapia? Quem se aproxima deste texto e passa a folhed-lo, ceitamer te jé possui algum tipo de compreensdo do tema a ser desenvolvi- do, Claro ou escuro, amplo ou estreito, hi uni espaco para a pa- lavra “psicoterapia” no universo do Ieitor, agora envolvido no projeto de ampliar o significado do termo. A sua compreensio anterior de “psicoterapia” poder ser revista, confirmada, con- trariada, estendida. Se nada disso acontecer, que decepedo! Nao valeu a pena ter lido 0 texto. Esse pré-entendimento da questo, em seu caminhar para um conceito de contomos mais delineados, serve-se de uma série de palavras para atingir seus objetivos. E através da linguagem que © autor pode proporcionar ao leitor uma incursio pelo universo de seu tema, F € pela linguagem que terapeuta e paciente se enga- jam na psicoterapia, AS palavras, se no forem vazias, terdo como fungdo trazer 4 presenga daquele que as escuta (ou 1é) aquilo de que falam. As sim fizeram sempre os contadores de historias, assim escutamos ‘em crianga os contos fantésticos na fala dos adultos. Um texto sobre psicoterapia precisa recuperar essa voz, esse som anterior & mera exposigdo técnica. Assim poder se aproxi- mar de seu objetivo impossivel — mostrar 0 processo terapéutico sem vivé-lo na pritica, ‘Quanto a palavra “existencial”, vamos deixé-la para o final do livro. Afinal, os contadores de historias também reservavam alguma coisa com sabor especial para coroar a narratival Construir uma definig’o objetiva parece escapar a0 nosso campo de estudo. Psicoterapia €um acontecimento onde esto en- ‘volvidas duas pessoas. Justamente por esse envolvimento , elas nao se encontram A distancia necesséria para a constituigdo da objeti- vidade. Na grande maioria dos casos no é permitida apresenga de um observador na sala onde terapeuta e cliente se encontram. © terapeuta pode, a posteriori, tentar cercar da maneira mais, formal possivel o fendmeno onde esteve como participante. Mas mncia da proximi= suas consideragdes sofrerio sempre a conseqi dade afetiva ¢ do distanciamento temporal da cena. Mesmo com essas dificuldades, alguns autores j4 tentaram formalizar definigdes desse encontro peculiar entre duas pessoas. Contam-se as dezenas as tentativas e as respectivas definigdes for- ‘muladas. Ou seja, persiste a indefinigdo, E se isto € assim nebuloso, como pode alguém aprender tal arte, e se tomar um especialista? Em primeiro lugar, por lei, necessita de um diploma univer- sitério em medicina ow psicologia. Faz, depois disso, algum cu so de especializagio, ou participa de grupos de estudo, sempre sob a orientagdo de psicoterapeutas mais experientes. Nese mesmo tempo deverd se submeter, como paciente, a uma psicoterapia, E quando estiver apto a atender os primeiros casos, vai passar por tum processo de supervisio. Aqui o principiante é orientado, nes- ses atendimentos, pot um profissional reconhecidamente compe- tente, ‘Algumas vezes essas etapas — curso, terapia, supervisio — esto organizadas conforme wma linha teérica as entende . Com freqiiéncia , os seguidores da mesma teoria se organizam em so- ciedades cientificas . O aluno percorre entio 0 seu caminho am- parado por essa instituigao. Descrevemos em linhas gerais um processo altamente com- plexo, Presume-se que num certo ponto desse percurso o futuro tcrapeuta passe a saber o que é psicoterapia. Pelo pouco j4 exposto, pode-se comegar a perceber 0 modo de transmissio de conhecimentos peculiar 4o dominio da terapia 16 psivolégica . No se trata apenas do aprendizado racional de um conjunto de leis. Muito além disso, em sua propria terapia © su- pervisio, o aprendiz imerso em todo um clima emocional , pois s6 Os préprios sistemas acolhedores do desviante mostram 0 ¢: minho de volta & normalidade instituida. O macrobidtico falaré em mudanga alimentar. O espitita talvez mencione uma sessio de desobsessio, O leitor de psicologia pensaré numa psicoterapia, Fm niveis mais restritos, a estrutura vigente se manifesta de formas por todos conhecidas, cercando as ameagas ordem estabeleci da. Uma pessoa pode até mudar de maneira radical seu modo de ser, conforme as circunsténcias com que se depara. Mas em geral a mudanga operada s6 é socialmente aceita depois de sérias resis- téncias. Quem jé ndo enfrentou de um amigo uma expresso en- tre a estranheza © a repreensio, acompanhada da pergunta: “Ué, ‘© que aconteceu com voce? Esta tio diferente!” A familia © os grupos de pressio préximos ao individuo — amigos, colegas de escola e de trabalho, por exemplo — tém di- versas téenicas para induzir 0 mutante ao conformismo. Uma con- timuada expressio de desagrado por parte das pessoas queridas pode ter um poder de persuasio maior que um interrogatério po- licial. Frente a reagdes assim, muitas possiveis modificagdes de altitude perante a vida so abortadas no inicio, E neste contexto de indugdo ao conformismo que a psicote- rapia muitas vezes & acusada de ajustar 0 individuo as normas vi gentes, No entanto, através do relato do caso de Jodo, € possivel ter outra visio do que se passa. A psicoterapia pretende ser, mu ma_formulago ideal, ‘um hiato decisive no continuum das cren- {gas_€ presses sociais. Por esta razio, a atmosfera do consultério & chamada de “permissiva”. Um microcosmo social_acolhedor dos novos sentidos que o paciente pode imprimir & sua existéncia, on- de ele aprende a criar seus proprios eixos de referencia. Essa visio, no entanto, corre 0 risco de parecer ingénua. As sim como 0 cliente, o terapeuta pertence a grupos que tém suas proptias marcas ideolégicas. E com tim agravante: 0 terapeuta aprendeu psicopatologia! Esse fato merece um capitulo a part. 34 Psicopatologia e Cura Do mesmo modo que seu paciente, o terapeuta nasceu e cres- ceu falado ¢ falando em meio a um turbilhdo de palavras, devida- mente articuladas em significagdes peculiares a um meio cultural. Enquanto Jodo tentava se livrar de seus tormentos estudando os fenémenos psiquicos em livros de qualidade duvidosa, 0 terapeuta — sabe-se lé por qué! — resolveu estudar psicologia numa facul- dade. E recebeu dos professores uma outra teia de palavras, tradi cionalmente reservadas para descrever o estado psicolégico dos ou- tos, especialmente quando esses “outros” sio neurdticos ou psi- céticos, palavras estas origindrias do vocabulério técnico, mas ho- {je apropriadas pelo linguajar comum. ‘Quando um grupo social (no caso, 08 profissionais de satide mental) erige um vocabuldrio especifico para se referir a um con- Junto de fenémenos (no caso as “doengas mentais”), corre 0 ris« ‘co de pensar que, com essa operagio verbal, passa a deter a “ver- dade” sobre esses fendmenos. Muito jé foi escrito sobre o tema®. 58 Ao deserever 0 caso de Jodo, estivemos trabalhando com um conceito de verdade incompativel com 0 modo tradicional de en- carar a psicopatologia. Por outro lado, a utilidade © mesmo a ni cessidade de trabalhar com a patologia, na pritica do atendimen- to psicoterapico, leva-nos a tentar uma formulagéo do problema de modo condizente com nosso enfoque terapéutico. Jodo ndo apresenta nenhuma patologia grave. Para as con- sideragdes que se seguem, temos de deixi-lo um pouco de lado, Voltaremos a cle mais adiante. Comecemos nossa indagagdo por um quadro freqiiente na pri- tica psicoterdpica: 2 (QpIRESHG Com o progresso da bioguimica, sabemos hoje que @gtniasNarogasMeminuminereitoncomprovadomia -melhora do estado psiquico do paciente depressivo®’. Por melho- ra, neste caso, entendemos uma série de mudangas passiveis de observagio: 0 cliente passa a ter maior motivagio para a acio, volta as atividades produtivas que praticava antes, relata uma me- Thora em seu estado subjetivo (“sente-se melhor, mais bem dis posto”). Sabemos ainda que & possivel distinguir, por sinais diag- “nésticos, uma depressio de cunho predominantemente end6ge- no (ou seja, efeito de um distirbio bioquimico) de uma depres- so com causas principalmente exdgenas, também chamada de-_ Os dois tipos de afecgao costumam reagir bem as drogas an- tidepressivas. Porém administré-las a casos de depressio reativa pode desmotivar 0 cliente @ procurar ou a continuar uma psicot rapia, pelo relative bem-estar que o remédio proporciona. Assim, acaba por privar 0 paciente de uma experiéncia mais rica e abran- gente do que tomar uma pilula, Por outro lado — ¢ este aspecto & freglientemente negligen- ciado por alguns psicoterapeutas —, na maioria das vezes, nio & possivel criar © Ambito da cura em casos de depressfio enddgena sem tratamento medicamentoso. E mesmo com 0 auxilio quimi- co, a remissio desse quadro ndo € tarefa fécil. De maneira até mais dramética, essa formulagdo vale para os estados classicamente descritos como esquizofrénicos, e ainda para outras configuragées mérbidas. ‘Achamos necesséria esta digressdo para que nio se atribua 4 psicoterapia um poder curativo absoluto, sem o recurso a ou- tras formas de tratamento. 56 Em outro extremo do espectro, ericontramos profissionais de -saiide com formagdo predominantemente biolégica encarando a ‘psicoterapia como ui mero “bate-papo” sem grandes conseqiién- GAB) A estes cremos que o texto jd forneceu argumentos para uma possivel mudanga de visio®, No estado atual do conhecimento sobre tudo o que se rela- ciona com a mente — incluindo aqui a bioquimica do (GOGGLE Ao descrever o caso de Jodo percorremos essa per- versio da palavra e sugerimos alguns caminhos para escapar do estreitamento subseqiiente. Podemos fazer algo parecido num as- sunto eminentemente tedrico? Para dat uma resposta vamos voltar a Jodo. As vezes ele che- gava no consultério bastante deprimido. J4 havia ido a um médico especializado, que the receitara calmantes, endo um antidepressivo, © profissional, portanto, nfo diagnosticou uma depressdo endé= gena, Além disso 0 abatimento e a tristeza de Jodo foram sendo clara- mente relacionados a acontecimentos de sua vida, Mas, ao rever teoricamente 0 caso, 0 terapeuta organiza a seu modo as relagdes entre estado clinico e fatos vividos. Essa organizagao é uma fantasia? E possivel — esse risco ext sempre presente. O terapeuta tem até as ferramentas para se convencer de suas elocubragdes — uma rede de palavras tramando conceitos bastante sofisticados acerca das vinculagdes entre depresso © acontecimentos da vida. Chegamos, assim, a mais uma indagago: como se garantir contra 0 risco?” “A resposta € clara: no hi garantia absoluta @ priori. Mas ‘sabemos que Jodo melhorou, voltou a ser produtivo, a ter maior alegria de viver. Como jé foi sugerido antes, estabelecer uma ponte ‘entre seus soffimentos ¢ as agruras da vida mostrou-se, a poste ForieCRZIPaTATCHIEMOTAMBHORIATEURD ers possivel, apesar dos riscos, dar um passo adiante? Sera possivel (com muito cuidado!) pensar em algumas generalizagdes? Podemos supor que casos se~ melhantes melhorem com procedimentos semelhantes?” 37 iw SSWW a! ‘Nosso ponto de partida sera outro. Quando nos deparamos com a pessoa singular que & 0 pa- ciente © 0 confrontamos com a generalidade da classificagio psi- copatoligica ¢ suas regras, estamos novamente naquele ponto men- cionado no inicio do texto: a fronteira entre arte e ciéneia. Ora, no é sensato negar a utilidade das deserigées e das in- gbes de procedimento que a pritica tradicional preconiza (como vimos no caso das depresses). Tomamos entio o caminho de am- ‘pliar_o sentido da descricfo livresea, de modo a aproximar a feigo singular com que a patologia se apresenta neste cliente. Procura- mos entender como ele se relaciona com a afecgio e de que ma- neira ela se constela nos rumos da vida do individuo. O processo id ¢ familiar: recriar a psicopatologia a cada caso. Dito, agora, em outros termos: fazer uma permanente psicoterapia da psicopa- tologia. Ou ainda: criar para a psicopatologia seu ambito de cura, Jogo chegou a mencionar algumas vezes a sua depressio. Meu ptocedimento foi similar ao adotado quando ele falava da “per- da” (se bem que mencionou menos a depressio que a perda, du- ante a psicoterapia). Quando a tristeza e_a_desmotivagdo_eram expressas_num_quadro_abrangente, longe_do “senso comum”, de referencia inseridas no _desenrolar de fatos narrados com algum rolvimento, 0 momento era marcado_por_uma interveneio mi- ‘tha, Nas ocasiées em que a sessio evoluia favoravelmente, 0 es- tado psicolégico de Joio se tomava mais intenso, 0 enredo cra mais presente. Nessa atmosfera a vinculagdo do estado depressi- ‘Vo com a impoténcia em ver saidas para 0 luto era quase imedia- ta. A depressio se anunciava no lugar onde ela tem um sentido, ‘ow seja, no projeto do paciente — em especial, aqui, como arau- to das dificuldades desse projcto’?, QUCHCaninhEneHONION POS _blema foi favorivel ali onde niio se falou da depressio, mas sim do contexto de uma vida onde ela adquiria sua raziio de ser. 58

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