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Cot Debts : Digi por. Gund | | mircea eliade MITO E REALIDADE Equipe de realizado - Tradugia: Pola Civell: Revis80: Geraldo Ger- “Tilo do orginal ings Myth and Realty Copyright © 1962 by Harper& Row, Publishers, nc. New York, NY. 3 edgto Dirt eserves em lingua ponuguess [EDITORA PERSPECTIVAS. A, ‘A, Briaésiro Luis Antaio, 1025 (1401-000 So Paulo - SP Brasil, “Telefon: (01) #85-8588, Fax: (011) 885.5878 1998 Il 0 m Vv. Vv ML vil vu Ix. SUMARIO A Estrutura dos Mitos a Prestigio Mégico das “Origens" 25 Mitos ¢ Ritos de Renovacdo .... a Escatologia e Cosmogonia . 8 © Tempo pode ser Dominado n Mitologia, Ontologia, Historia... 85 Mitologia da Meméria e do Esquecimento 103 Grandeza e Decadéncia dos Mitos 123, Sobrevivéncias ¢ Camuflagem dos Mitos 141 Apéndice I. Os Mitos ¢ os Contos de Fadas 167 Apéndice Ul. Bibliografia Bésica 7 5 1 A ESTRUTURA DOS MITOS A importincia do“ mito vivo” HA mais de meio séeulo, os erudites ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta. sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, 0 mito na acepgio usual do termo, i. ., como “fabula”, “invengo”, “'fiegao”, eles o accitaram tal qual era reaicas, onde 0 mito Jemais, extremamente preciosa por seu cardter sagrado. ‘exemplar e significativo, Mas esse novo valor semantico conferide 20 vocdbulo “mito” torna o seu emprego na 7 Jinguagem um tanto equtvoco. De fato, ‘empregada tanto no sentido de “‘ficqso” ‘como no sentido — familiar sobretudo aos etnélogos, sociblogos¢ histotiadores de religioes — de “‘tradigio s fgrada, revelacio primordial, modelo exemplar”. Insistiremos mais adiante (cf. capftulos VIII e 1X) na hhistéria dos diferentes significados de que se revestiu 0 termo “mito” no mundo antigo ¢ cristao. Todos sabem ue, desde os tempos de Xenofanes (cerca de 565-470) — {ue foi o primeiro a criticar e rejeitar as expresses “mi tol6gicas” da divindade utilizadas por Homero e Hesfodo — 0s gregos foram despojando progressivamente 0 ‘mythos de todo valor religioso e metafisico. Em contra ‘posigdo ao logos, assim como, posteriormente, & historia, © mythos acabou por denotar tudo “o que nao pode existir realmente”. O judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da “falsidade” on “ilusio” tudo o que nao {osse justficado ou validado por um dos dois Testamen- tos. Nio € nesse sentido — o mais usual na linguagem contemporinea — que entendemos 0 “mito”. Mais precisamente, no ¢ 0 estidio mental ou o momento histérico em que o mito se tornow uma “fioyao" que nos interessa. Nossa pesquisa terd por objeto, em primeiro lugar, as sociedades onde o mito € — ou foi, até recen- temente — “vivo” no sentido de que fornece os modelos para conduta humana, conferindo, por isso mesmo, sig- Aificagao e valor 3 existéncia. Compreender a estrutura © 1 fungaio dos mitos nas sociedades tradicionais nao signi fica apenas elucidar uma etapa na hist6ria do pensamento hhumano, mas também compreender melhor uma cate- goria dos nossos contemporineos. Para nos limitarmos a um exemplo, 0 dos cargo cults a Oceania, seria dificil interpretar toda essa série de ati vidades insblitas sem nos referirmos & sua justificagao pelos mitos. Esses cultos proféticos © milenaristas roclamam a iminéncia de uma era fabulosa de abundin- Cine beatitude, Os indfgenas voltarao a ser os senhores de suas ithas e nio mais trabalharao, pois os mortos retor- nario em magnificos navios carregados de mercadorias, iguais as cargas prodigiosas que os Brancos recebem em seus portos, Eis por que a maoria désses cargo cults exi- fe, por um lado, a destruicio dos animais ¢ utensflios Esses cantosrituais genealogicos sao compostos pelos bbardos quando a princesa ests grévida, e comunicades ‘as dangarinos de hula, que devem aprendé-los de cor. Os dancarinos, homens ¢ mulheres, dangam e recitam 0 canto ininterruptamente, até 0 nascimento da erianga. E ‘como se o desenvolvimento embriolégico do futuro chefe fosse acompanhado de uma recapitulacao da cosmogoni da histéria do mundo e da historia da tribo. Por ocasiao dda gestacao de um chefe, o Mundo é simbolicamente "re- feito”. A recapitulagao, através dos cantos e da danga, é simullaneamente uma fememoragao e uma reatualizagao Fitual dos eventos miticos essenciais ocorridos desde a Criacio. Encontramos concepsdes ¢ rituals andlogos nas po- pulacoes primitivas da India, Entre os Santali, por exemplo, o guru recita 0 mito cosmogénico em beneficio de cada individuo, mas somente por duas vezes: da primeira, “quando um Santal adquire plenos direitos sociais.... Nessa ocasiio, o guru recita a historia da humanidade desde a criag’o do mundo, © termina contando 0 nascimento daquele para o qual esté sendo realizado o rito”. A mesma cerim@nia € repetida durante © servigo funerdrio, mas 0 guru desta vez transfere ti tualmente a alma do falecido para o outro Mundo *. Entre os Gonds e os Baigas, por ocasiio dos rituais em honra de Dharti Mata e de Thakur Deo, osacerdote recita © mito cosmoginico € relembra a0 auditério o papel importante que sua tribo desempenhou na criagao do Mundo *. Quando os feiticeitos Munda expulsam os ‘aus espiritos, recitam as cangdes mitologicas dos Assur. (0 Thid, pg, 48. “O renascienta ditto da luz 0 so que anualmente tornado sul pars rvicar fra servem M0 apenas Sino selon, mas tanibm comm Imagens eemplares Jo mascmento map co mcomo como res dctermasts nu perpen dT {eA como Wakes anes et mp oc Sa reve Str seo Ss gua que o vets prisons Ga east & ‘sca vompe a ole ue ina pioncs no ode sun mae ¢ Siete para para sa para ormundo 0 exteniment Ui pas i a a) 0 Boing “Les antl” Joural Aig, 1892, pgs. 88 (SV, Elvin. The Beige (Londes, 193%) pg. 308: W. Koppers. Die Bhi in Zontralndion (Wiens. 1948) pig, 22. 7 Ora, os Assur inauguraram uma nova época tanto para os deuses e os espfritos, como para os seres humanos; por isso, a historia de suas faganhas pode ser considerada como fazendo parte de um mito cosmogénico » Entre os Bhils, a situagao ¢ ligeiramente diferente. Apenas um de seus cantos mégicos curativas tem 0 card- ter de mito cosmogdnico; ¢ O Canto do Senhor. Na reali- dade, entretanto, os cantos, em sua maioria, sio mitos de origem. O Canto de Kasumor Damor. por exemplo, a0 ual se atribui a cura de todas as enfermidades, conta as rmigragoes do grupo bhil Damor do Gujerat para o sul da India central ’. E 0 mito, portanto, da instalagao terri torial do grupo, em outros termos, a histéria de um novo comeco. replica da eriagio do Mundo, Outros cantos mé- ‘gicos revelam a origem das enfermidades *. Trata-se de rmitos ricos em aventuras, com os quais acabamos aprendendo as circunstancias em que surgiram as enfer- midades — evento que, efetivamente, modificou a es- trutura do Mundo. A fungio dos mitos nas curas No ritual de cura dos Bhils, hé um detathe par- ticularmente interessante, O mago “purifica” 0 espago a0 lado do leito do doente e desenha um mando! com farinha de milho, No interior do desenho, ele insere a casa de Isvor e Bhagwan, tracando igualmente as suas figuras. Esse desenho € mantido até a cura completa do do- ente °. © proprio termo mandof tral sua origem indiana Trata-se, evidentemente, do mandala. desenho complexo que tem uma importante fungao nos ritostantrios indo- tibetanos. Mas o mandala € antes de tudo uma imago inundi: cle representa simultaneamente 0 Cosmo em miniatura e 0 pantedo. Sua construgio equivale a uma rectiagio mégiea do mundo. Por conseguinte, quando 0 feiticeiro Bhil desenha 0 mandol a0 pé do leito de um doente, repete a cosmogonia, embora os cantosrtuas que enfoa no aludam expressamente a0 mito cosmogénico. A (6) W. Koppers, Die Bhi, pig. 22: J. Hotinan © A. van Ernelen Enciclopedia Mundarca, vo It (Patna, 1930, pig. 738 ‘OYE Jungblut "Magic Songs ofthe Bil of Snabua State" Iter: navn ale Aron fr Ethnageaphie. ol XLINT 0983) pi 8. (8) Thi pigs 38 239 (9) Jungblot pfs. § 8 agio. tem, certamente, um objetivo. terapéutico. earrtdo sinbalcumente em cootenportnes da Cr sd do Mundo, 0 doente mergulha na plenitude primordial; deixa-se penetrar pelas forcas_gigantescas ue, in illo tempore, tornaram possiel a Criagio. A esse respeito ¢ interessante relembrar que, entre os Navajo, 0 mito cosmogénico, seguido do mitoda saida dos primeiros homens do seio da Terra, é recitado sobretudo por ocasiao das curas ou durante a iniciaglo de um xama. “Todas as cerim@nias sio centralizadas ao redor de um paciente, Hatrali (aquele sobre o qual se canta), que pode set um doente ou simplesmente um enfermo mental como, por exemplo, um sujeito assustado por um sonho, ow alguém que necessita de uma ceriménia apenas para aprendé-la no curso de sua iniciagio 4 capacidade de oficiar aquele canto, pois um medicine-man nio pode efe- tuar uma ceriménia de cura enquanto ele mesmo nao se submetew a ceriménia” ® A ceriménia inclui igualmente 1 execugao de desenhos complexos sobre a areia, que simbolizam as diferentes etapas da Criagao e a historia tmitiea dos deuses, dos ancestrais e da humanidade. Esses . [esse exemplo, trata-se de um ritual em que os mitos ccosmoghnicos e de origem sao recitados em beneficio de uum Gnieo individuo, como no caso dos curandeiros. Mas © “retorno a origem’", que permite reviver 0 tempo em que as coisas se manifestaram pela primeira vez, constitul tuma experiéncia de importancia capital para as socieda- des arcaicas. Discutiremos essa experiéncia por diversas vezes, nas paginas seguintes. Citaremos, aqui, contudo, um exemplo de reeitagao solene dos mitos cosmog6nicos ¢ de origem nas festividades coletivas da iha Sumba. Por casio de acontecimentos importantes para a comunida- de — uma colheita abundante, a morte de um membro eminente, ec. — constré-se uma casa cerimonial (mara- pu) € 08 narradores, nessa oportunidade, contam a his {Gia da Criagio e dos Ancestrais. “Por ocasiao de todos esses acontecimentos, os narradores evocam com veners- sao 0 “comego”, isto &, 0 momento em que se formaram 0s prineipios da propria cultura, e que ¢ preciso preservar como o mais valioso dos bens. Um dos aspectos mais no- tveis da cerim@nia € essa recitagao, que na realidade se presenta como uma troea de perguntas e respostas entre dois individuos até certo ponto homélogos, pois sao es: colhidos de dois elas unidos por lagos de parentesco ex6- gamos. Assim, nesse instante capital, os dois recitantes O3)CE Le Moehe de FEterne Retour, cap Ie passim 6 representam todos os membros do grupo, inchsive os tnortos © que faz com que reltayao do mito tial (Gue € preci, ao mesmo tere, representar como um mito cosmogonice), benefice ao grupo intero” ™ Em suma,trata-se de rituals eoletivos de uma perio- dicidde regular, incluindo aconstrugdo de uma casa de altos © a ravtao solene dot mitos de origem de ex {rutura cosmogénica, O beneficaro & a comunidade inte, inluingo o vor or morte. Por ocasno da rea: tualizagao dos mites, «com tla reencontra as suas fort tualizagao cultual de um mito cosmoginico ¢ encontrada fem multas sociedades tradicionais. Discutimos esse as- pecto em Le Mythe de lEternel Retour, ¢ a cle retor- haremos no proximo capitulo; efetivamente, 0 enredo iitico-ritual da renovagio peribdica do Mundo pode re- ‘elar-nos uma das fungoes predominantes do mito, tanto nas culturas arcaicas como nas primeira civlizagdes do Oriente. Prestigio dos “ primérdios” Os exemplos citados permitem uma melhor com- preensio das relagies entre o mito cosmogénico os mites de origem. Antes de mais nada, temos o fatode que o mito de origem inicia, em numerosos casos, por um esbogo cosmogénico: o mito recorda brevemente os momentos essenciais da Criagdo do Mundo, para contar a seguir a sgencalogia da familia teal, ou a histbria tribal. ou @ histéria da origem das enfermidades ¢ dos remédios, © assim por diante ® . Em todos esses casos, os mitos de ori- (24).C. T, Berting. Notes on Myth and Ritual in Southeast Asia (aia, 195, pgs 4 (25) 0 coatume se conserra mesmo nas culturas eeluids que conbecem a ercrta, §. No Kramer obsena a proptsto dos textos ‘Simerianos que “Os povtas sumerianos qeralmente comecam 08 245 Infos ou posts Epes com tina eosagso cormoligics que nao tm “so dieta com 0 conjunto dn obra Os segulnts cinco verses fram ‘ttaldor ds ifrodugse8"Gilgamesh Enki eo Tnfero "Depols que o ctu foi desunide da terra DDepois que a terra fo separads do ctu Depois gue @ nome do homer foi designado Depo que (o deus da ct) An arebatow oe, Depoisqveo deus do snl arebatou aera (S.N Kramer, Prom the Tablets of Sumer, Indian Hils, Coloado, 198. pig. 77. De modo andloga. na Idade Média, muitos crnisas omecavam sas Histeias lexi Com a Cris do Modo. 7 gem prolongam ¢ completam 0 mito cosmoginico. Quanto a fungao ritual de certos mitos de origem (por excmplo, nas curas ou, como entre os Osage, de mitos destinados a introduzir o recém-nascido na sacralidade do Mundo e da sociedade), tem-se a impressio de que o seu “poder” provém, em parte, do fato de conterem os rudimentos de uma cosmogonia. Essa impressio € confirmada pelo fato de, em algumas culturas (na Polinésia, por exemplo) 0 mito cosmogénico, além de ter tum valor terapeutico intrinseco, constituirigualmente 0 ‘modelo exemplar de todos os tipos de “eriago” e “ago” 0 fato de os mitos de origem dependerem do mito cosmoginico é methor compreendido quando se considera gue, em ambos os casos, existe um “comego”. Ora, 0 “comego” absoluto € a Criagao do Mundo. Nao se trata, evidentemente, de uma simples curiosidade tebrica, Nao basta conhecer a “origem”, € preciso reintegrar 0 momento em que tal ou tal ecisa foi criada. Ora, iss0 se ‘raduz. num “voltar atrds” até a recuperagio do Tempo origina, fort, sagrado, E, conforme jf vimos ¢ tor- naremos a ver ainda mais claramente a. se Tecuperagio do Tempo primordial, indispenstvel para assegurar a renovac2o total do Cosmo, da vida e da sociedade, ¢ obtida sobretudo através da reatualizagio do “comego absoluto”, isto é, da Criagao do Mundo. © professor Rafaele Pettazzoni argumentou, recentemente, que 0 mito cosmogGnico deveria ser consi derado uma variante do mito de origem. “O resultado € ue 0 mito da criagao faz parte da mesma natureza a que pertence 0 mito de origem.... Nossa andlise permitiu-nos arrancar o mito da criagio de seu espléndido isolamento, Ele deixa de ser um hapax genomenon para ocupar 0 seu lugar numa classe numerosa de fatos andlogos, os mitos de origem”” *, Pelas razies expostas, parece-nos dificil concordar com esse ponto de vista. Um novo estado de coisas implica sempre um estado precedente, ¢ este, em altima instancia, € 0 Mundo. E a partir dessa “totalida- de" inicil que se desenvolvem as modificagbes ulteriores, © meio cbsmico em que se vive, por mais limitado que possa ser, constitui 0 “Mundo”; sua “origem” e sua “historia” precedem qualquer outra historia individual. A (26) R, Petarzom. Essays om the History of Religions, (Leiter, 1980) page. 25. 3 8 idéia mitica da “origem” esth imbricada no mistério da “eriagao”. Uma coisa tem uma “origem” porque foi eria~ 4a, isto 6, porque um poder se manifestou claramente no Mundo, porgue um acontecimento se verficou. Em suma, 4 origem de uma coisa corresponde & criapdo dessa coisa. ‘A prova de que o mito cosmogdnico nao & uma simples variante da espécie constituida pelo mito de ori- {gem estd em que as cosmogonias, como acabamos de ver, Servem de modelo para todos 0s tipos de “‘criagdes”. Os exemplos que analisaremos no. proximo capitulo refor- gardo, a nosso ver, essa conclusio, 9 IIL. MITOS E RITOS DE RENOVAGAO Entronizagio e cosmogonia ‘A.M. Hocart observou que, em Fidji, a ceriménia de centronizagio do rei denominada creation of the world. fashioning the land ou creating the earth }. Quando da ascensio de um soberano, a cosmogonia era simbolicamente repetida. A concepgao é bastante difun- ida entre os povos agricultores. Segundo uma interpreta io recente, a sagragio do rei indiano, rajasiya, inclula luma recriagao do Universo. E, efetivamente, as diferentes fases do ritual levavam a efeito sucessivamente a regressio o futuro soberano ao estado embriondrio, sua gestagao ()LeMythe de FEtemel Retour, pas. 8055. 4a ‘de um ano e seu renascimento mistico como Cosmocrator, identificado simultaneamente com Prajapati (o Deus. Tudo) e com 0 Cosmo. © periodo embriondrio do _ futuro. soberano correspondia ao processo de maturagao do Universo e é muito provavel que estivesse originalmente relacionado & maturacao das colheitas, A segunda fase do ritual leva a feito a formagio do novo corpo ‘divino” do soberano. A terceira fase do rajasiiya € consttulda de uma série de ri- tos, eujo simbotismo cosmogénico 6 amplamente frisado pelos textos. O rei ergue os bragos: ele simboliza a eleva- Gao do axis mundi. Ao receber a ungao, o rei permanece de pé sobre otrono, com os bragos erguidos: ele encarna 0 cio esmico fixado no umbigo da Terra — isto 6,0 trono, © Centro do Mundo — e tocando o Céu. A aspersio associa-se as Aguas que descem do Céu, ao longo do axis ‘mundi — isto €, 0 Rei —a fim de fertiizar a Terra Na época hist6rica, 0 rajasiva s6 era praticado duas veres: a primeira, para sagrar 0 rei, ¢ a segunda para assegurar-Ihe a soberania universal. Nos tempos proto. historicos. entretanto, 0 raasiiva era provavelmente anual sendo celebrado para regenerar 0 Cosmo. Era o que ocorria no Egito. A coroagio de um novo fara6, escreve Frankfort, ‘pode ser considerada a cviagao de uma nova época, apbs uma perigosa interrupgio da hharmonia entre a sociedade € a natureza, uma situacao, portanto, que faz parte da natureza da criagio do uni- verso, Isso € bem ilustrado por um texto contendo uma 'maldicao aos inimigos do rei, que s4o comparados a Ap6. fis, a serpente das trevas que destruida por R& 20 al- sotecer. Mas a comparagao tem um curioso adendo: “Eles serao iguais 4 serpente Ap6fis ao alvorecer do Ano Novo". A especificagao "ao alvorecer do Ano Novo" s6 pode ser explicada no sentido de uma intensificagio: a serpente € derrotada a cada nascer do sol, mas o Ano No- vo celebra a criagao e a renovagao diurna, bem como a abertura do novo ciclo anual” > Vemos assim por meio de qual mecanismo 0 enredo cosmogénico do Ano Novo pode ser integrado na sagragiio de um rei: os dois sistemas rituais perseguem o mesmo fim: a renovagio e6smica. “Mas a renovatio efetuada por 2M, Blade, Mepharophtes 1 FAndragsme (Bai, 1952), pgs, Wi CDM Frankton, Kingship ond she Gods (Chicago, 1949, pg. 150, 2 ocasido da sagracio de um rei teve considersveis conse , essa raridade talvez se deva a0 fato de os etnblogos nio terem formulado essa pergunta em suas pesquisas. Algumas vezs é diffi determinar se 0 mito concerne a uma catéstrofe passada ou futura. Se- undo E. H. Man, os Andamaneses acreditam que, ap6s 0 Fim do Mundo, surgira uma nova humanidade, que vi- veri em condigdes paradisiacas: no haverd. mais en Termidades, nem vethice nem morte. Os mortos ressus- citario apés a catéstrofe. Mas, segundo A. Radeliffe Brown, Man teria combinado diversas verses, colhidas de informantes diferentes. Efetivamente, —prossegue Brown, trata-se de um mito que relata o Fim'e a recriagdo do Mundo; o mito, entretanto,refere-se ao passado e nao a0 futuro, Mas como, segundo a observagao de Lehmann, 4 lingua andamanesa nao possuio tempo futuro » nao é {écil decidir se se trata de um evento passado ou futuro. (s mais raros dentre os mitos primitivos sobre o Fim so 0s que nao apresentam indicagies_precisas con- cerentes & eventual recriagdo do Mundo. Assim, na erenga dos Kai da Nova Guiné, o Criador. Malengfung, apts haver criado 0 Cosmo e o homem,retirou-se para.o onto mais extremo do Mundo, o horizonte, e adormeceu. “Todas as vezes que ele se vira em seu sono, a Terra es- tremece. Um dia, porém, cle se erguera de seu leito € desteuiréo Céu, que se absterd sobre a Terra e pors termo ‘toda a vida °. Em Namolut, uma das ilhas Carolinas fi registrada a crenga de que 0 Criador um dia destruira a hhumanidade por eausa de seus pecados. Mas os deuses continuarao a existir — o que implica a possibilidade de tama nova eriagio ®. Em Aurepik, outra itha das Carolinas, € 0 fiho do Criador 0 responsivel pela ca- tistrofe. Quando ele perceber que 0 chefe de uma itha nao (FR. Lebmann, “Weltuntergang und Wellerneverung. im Gtauben seritloser Volker", Zeachrit fr Ethnologie. vol. LXXI (4) Toe pg. 112 (5) Richard Turn, Die Eingeboronen Australiens und der Siadseingen {Tabingen, 1937, pe 26-27, sepund C. Keyser, Aus dem Leben der Katteate (emt Neuhaus, Deutsch New Guinea. 19 pigs 154 se “ol F Re Lehmann. op. cit, pg. 107 55 mais se ocupa de seus siitos, submergiré a itha por meio ‘deum ciclone ”. Também aqui nao & certo que se trate de ‘um Fim definitivo: aidéia de uma punigao dos “pecados” implica geralmente a criagio ulterior de uma nova ‘humanidade. : ‘Mais dificeis de interpretar slo as crencas dos Negri- tos da Peninsula de Malaca. Eles sabem que, um dia, Karei pord termo a0 Mundo, porque os homens na respeitam mais os seus preceitos. Assim, quando hé uma tempestade, os Negros procuram evitar a eatistrofe me- diante oferendas expiatbrias de sangue *. A catéstrofe seré universal, sem distingao entre pecadores e nao-peca- dores, ¢ nao ser& seguida, ao que parece, de uma Nova Criagio. Eis por que os Negritos chamam Karei de "“o mau", ¢ 0 Ple-Sakai véem nele 0 adversério que thes “roubou 0 Paraiso” >. Um exemplo particularmente notivel_ € 0 dos Guaranis do Mato Grosso. Sabendo que a Terra seria destruida pelo fogo e pela gua, eles partiram em busca da'“Terra sem Males”, espécie de Paraiso Terrestre situa- do além do Oceano, Essas longas migragoes, inspiradas pelos pajés e efetuadas sob sua diresio, tiveram inicio no steulo XIX e prosseguiram até 1912. Algumas tribos acre- ditavam que a catéstrofe seria seguida de uma renovagio do Mundo e do regresso dos mortos. Outras tribos aguardavam ¢ desejavam o Fim definitive do Mundo Nimuendaju escreveu em 1912: ‘*Nao somente os Guaranis, mas toda # natureza esté velha e cansada de vi ver. Mais de uma vez 0s pajés, quando se encontravam em sonhos com Nanderuvuvu, ouviram a Terra implorar: “J4 devorei muitos cadéveres, estou farta e exaurida, Pai, faz ‘com_que isso tenha fim! A gua, por seu turno, suplica a0 Criador que lhe conceda 0 repouso e a afaste de toda agitagdo, assim como as Arvores. ...¢ a natureza intei- wn (7 tid pig. 117 (CEM. Blade, Trait d Histoire des Religions, pg 4 {VFR Lehmann op ct. pig 107 UO)CLE, Schaden, "Der Paradiesmstos im Leben dee Guarani Indianer, StademJahrbuck S30 Paulo 1985), vl Il pg. 151 35 Withelm Koppers. “Prophediamus und Messianismus als vlkerdu . Em suma, esses mitos do Fim do Mundo, implicando mais ou menos elaramente a tecriagao de um novo Uni- verso, exprimem a mesma idéia arcaica ¢ extremamente difundida da “degradagao” progressive do Cosmo, re- querendo sua destruigao e sua recriagio peribdicas. Desses mitos de uma catéstrofe final, que ser4 a0 mesmo tempo o sinal anunciador da iminente recriago do Mundo, € que surgiram © se desenvolveram os mo: vimentos proféticos e milenaristas das sociedades primi. tivas contemporaneas. Retornaremos a esses milenarismos primitives, pois, juntamente com 0 i jem as Gnicas. re- valotizacoes positivas modernas do mito do Fim do Mundo. Antes, porém, lembraremos rapidamente qual era lugar ocupado pelo mito do Fim do Mundo nas rel sides mais complexas, (7 H.B. Alexander, North American Mythology pg. 60 (08) Thi, php. 200; of tid, page 209.300, bibilogrt sente tos miter dluvianos norte-amercanos. (U9) Wid, pag. 222 (20) rid. pag 225. bros mitorsuamercanosconcernenes 80 Fim do Mundo plo fogo ou pela gua P. Ehrenreich. Die Mythen tind Legenden des Sidamerhanichen Unser Beri. 1903 ple 3031. Sobre as wads sulamericanas relatives, 4 renovagio. do ‘Mano ape a eatetrofe. ct Claude Levi Straues. no Bulletin of the Bureau of Amencan Evhnology, vol CXL 3 pigs 347 (Baca 149 (Mhambiguarh 58 0 fim do mundo nas religides orientais Segundo todas as probabilidades, a doutrina da estruigao do mundo (praleya) j6 era conhecida. nos tempos védicos cf. Atharva Veda, X, 8, 39-40). A confla- gracao universal (ragnarob, seguida de uma nova ctiagao, faz parte da mitologia germanica. Esses fatos parecem indiear que os indo-europeus nao ignoravam © mito do Fim do Mundo, Recentemente, Stig Wikander indicou a existincia de um mito germénico sobre a batalha esca toldgica, similar em todos os pontos as deserigoes pparalelas indianas ¢ iranianas. Mas, a partir dos Brahmanas *' e, especialmente nos Purdnas, os indianos desenvolveram laboriosamente a doutrina dos quatro yrugas, a8 quatro Tdades do Mundo. © essencial dessa teoria € ctiagdo ¢ a destruigao ciclica do Mundo —e a renga na "perfeigao do principio". Como os budistas e os jainas tém as mesmas idéias, podese concluir que a doutrina da eterna cfiagio e destruigao do Universo uma idéia pan-indiana. ‘Como j& discutimos esse problema em Le Mythe de reveme! Retour, nao 0 fetomaremos aqui. Lem- bbraremos apenas que "o ciclo completo termina com uma ssolugao”, um prafaya, que se repete de maneira mais radical (mahdpralaya, a “grande dissolugio") no fim do milésimo cielo" 2. Segundo o Mahabharata e os, Purdnas 2, 0 horizonte se inflamars, sete ou doze sis aparecerio' no firmamento e dessecardo os mares, {Gueimario a Terra, O fogo Samvartaka (o Fogo do incén- dio césmico) destruia o Universo inter. A seguir, uma cchuva diluviana eaird incessantemente durante doze anos, 4 Terra sera submersa e a humanidade destruida (Vishnu Purina, 24, 25). No Oceano, sentado sobre a serpente cbsmica Cesha, Vishnu dorme mergulhado no sono logue (Vishnu Purina, VI, 4, 1-11). E entao, tudo recomeraré novamente — ad infinitum. ‘Quanto a0 mito da “perfeigio do prinefpio”, ele & facilmente reeonhecido na pureza,intligénca, beatitude (21) Osnomer dos quatro sugas aparece pela primeta ver no Ai. taro Brahmans. Vil 4 {22 ‘Le Mythe de '€cemel Retour, ps, 170. Cf. tambéen Images Symbols (Pari. 1952) pgs. 80 se (GCL Emil Abeggr Der Mesaygloube On Indien und Fram Berlin, 1928) pop. 4 n* 2 9 longevidade da vida humana durante 0 Aria yuga, @ primeira idade. No curso dos yugas subseqientes,assste- se auma deterioracao progressiva tanto da inteligéncia © ‘da moral do homem, como de suas dimensoes corporais ¢ de sua longevidade. jainismo exprime a perfeigao do Principio e a decadéncia ulterior, em termos extravaga tes. Segundo Hemacandra, o homem, no infcio,tinha uma estatura de seis milhas e sua vida durava cem mil purvas (uma purva equivale a 8 400 000 anos). No final da ciclo, porém, sua vida néo ultrapassa os cem anos Wacobi, em Ere, 1, 202). Os budistas também insistem no prodigioso encuriamento da vida humana: 80,000 anos e até mais (duragao “incomensurivel”, segundo algumas tradicoes) ‘no inicio do ciclo, e apenas dez.anos no final A doutrina indiana das idades do Mundo, isto 6, a cterna criacao, deterioracao, aniquilamento e recriagio do Universo, embra até certo ponto a concepeao primiti- va da renovacao anual do Mundo, mas com importantes diferengas. Na teoria indiana, o homem no desempenha qualquer papel na recriagao periédica do Mundo; no fundo, 0 homem nao deseja essa recriagio eterna, ele procura a evasio do ciclo césmico *. Alem do mais, 0, prdprios deuses parecem nao ser verdadeiros criadores; les sio antes os instrumentos por meio dos quais se opera ‘© processo césmico. Vemos, portanto, que para a India ‘ao hd um Fim radical do Mundo propriamente dito; hé apenas intervalos mais ou menos longos entre a ani quilagao de um Universo ¢ o aparecimento de outro. O “Fim” s6 tem sentido no que conceme 4 condigio humana; 0 homem pode deter 0 processo da. trans- ‘migragio. pelo qual se vé cegamente arrastado © mito da perfeigio do principio esté claramente testificado na Mesopotamia, entre os judeus ¢ os gregos. ‘Segundo as tradigdes babildnicas. os oito ou dez reisante- diluvianos reinaram entre 10.800 e 72.000 anos; em contraste, os reis das primeiras dinastias pés-diluvianas rio ultrapassaram os 1.200 anos ®. Acrescentemos que (24 Audimos evieotement, is elites religions © Moses, que buscam uma "Tberacao™ das Huse ¢ dos sotimentos. Masa reigiao ar indiana acct valorisasexiténcla no Mundo. opel (25) W. F. Albright, *Prinitvism in Ancient Western Asia" em Arthur ©. Lovejoy ¢ Georges Boss, Primitvum and Related [deat in Anguiry Balimore. 1958) pig. 422 60 ‘95 babilénios conheciam igualmente 0 mito de um Paraiso primordial e haviam conservado a recordagio de uma strie de destruigbes e recriagdes (sete provavelmente) sucessivas da raga humana 2, Os judeus tinham idéias similares: a perda do Paraiso original, a reducio pro- agressiva da duragao da vida, o Dilvio que aniquilou toda ‘a humanidade, com excecao de alguns poucos privile- Biados. No Egito, o mito da “perfeigao do principio” nao esth tesificado, mas If encontramos a tradigao lendaria da fabulosa longevidade dos reis anteriores a Menes ?” Na Grévia, observamos duas tradigdes mitices distintas, mas solidérias: 1) a teoria das. idades do Mundo, compreendendo o mito da perfeigio dos primérdios ¢ 2) doutrina cicliea. Hesiodo € 0 primeiro a descrever a degeneracao progressiva da humanidade no cursodas cinco idades Trabalhos. 109-201). A primeira, a Idade de Ouro, sob 0 reinado de Cronos, foi uma espécie de Paraiso: os homens tinham vida longa, jamais en- velheciam e sua existéncia assemethavase & dos deuses. A teoria cielica aparece com Hericlit (ft. 66 22 Bywater ) que iré influenciar grandemente a doutrina est6ica do Eterno Retorno. Encontramos 0s dois temas miticos — as Idades do Mundo € 0 ciclo ininterrupto de ctiagies destruigoes — j8 associados em Empédocles. Nao hi necessidade de’ discutirmos as diferentes formas que assumiram essas teorias na Grécia, sobretudo pos. as influéncias orientais. Basta dizer que os Esticos tomaram de Herdclitoa idéia do Fim do Mundo pelo fogo (ekpyrosis! e que Platao (Timeu, 22. ©) conhecia, como alternativa, © Fim por meio do Dildvio. Esses dois ca- taclismos ritmavam, por assim dizer, 9 Grande Ano (o ‘magnus annus), Segundo um texto perdido de Aristbteles WProtrepticush, as duas catéstrofes ocorreram nos dois Solsticios: a ‘conflagratio no solsticio de verio. © 0 diluvium no solsticio de inverno. * A pocalipses Judaice-Cristaos Algumas dessas imagens apocalipticas do Fim de Mundo reaparecem nas visies escatolégicas judaico- (20) Tid. pgs 424424 (22) thi. pg 31 (2m), Reconecem se nessa catitrofes tama, 35 kas indianas teh oFim do Mundo petoFogoe ela Agua Cr tamibem 8. L.van der Warden, "DasGrosse lant um de ewige Wiedetheht Hermes ol 80 (1950) pigs 129 ol crisios. Mas o judeu-cristianismo apresenta uma inova- sao capital. O Fim do Mundo seré tinico, assim como a Cosmogonia foi dnica. O Cosmo que ressurgira apés a ca- tistrofe seth o mesmo Cosmo criado por Deus no principio dos Tempos, mas purificado, regenerado € restaurado_em sua gloria primordial. Esse Paraiso terrestre no serA mais destruido, nao ter& mais fim. ‘Tempo nao € mais o Tempo circular do Bterno Retorno, ras um Tempo linear ¢ irreversivel. Mais ainda: a esca, tologia representa igualmente o triunfo de uma Santa Histéria. Pois o Fim do Mundo revelars o valor religioso dos atos humanos, ¢ os homens serao julgados de acordo com os seus atos. Nao se trata mais de uma regenera- 20 césmica implicando igualmente a regeneragaode uma Coletividade (ow da totalidade da espécie humana). Trata- -sede um Julgamento, de uma selecao: somente os eleitos vivero em eterna beatitude. Os eleitos, os bons, serio salvos por sua fidelidade a uma Santa Historia: enfren- tando os poderes e as tentagdes deste mundo, eles per- maneceram fiéis a0 Reino celeste. Ontra diferenca das religioes cOsmicas: para o judeu- cristianismo, 0 Fim do Mundo faz parte do mistério rmessifnico. Para os judeus, a chegada do Messias, anunciaré o Fim do Mundo ¢ a restauragio do Paraiso. Para os ctistios, o Fim do Mundo precederé a segunda vinda de Cristoe o Juizo Final. Mas, tanto para uns como para outros, o triunfo da Sania Historia — manifestado pelo Fim do Mundo — implica de algum modo a res- tauragio do Paraiso, Os profetas proclamam que o Cosmo seré renovado: haverd um novo Céu e uma nova Terra. Haverd abundincia de tudo, como no Jardim do Eden ®. Os animais ferozes viverdo em paz uns com os outros “e um menino os guiard” Msaias, XI: 6). As doengas e as enfermidades desaparecerio para sempre: 0s 0x05 saltardo como cervos, os olhos dos cegos se abrizao e se desimpedirao os ouvidos dos surdos,e nao haverd mais prantos nem légrimas Usafas, XXX: 19; XXXV: 3 ss. Ezequiel, XXXIV: 16), O novo Israel seré edificado sobre © Monte Sion, porque o Paraiso se encontrava sobre uma montanha (fsafas, XXXV: 10; Salmos, XLVI: 2) (299, Amb 1X: 135 sas, XXX: 23 8; NAV" 12,75 EXE 17 EXVE: 22; Ostia 1: 10:TT 186: Zacaras, IIL 12; Eseguil, XXXIV: 14, 27, XHXVIE 9 96, 30, 38, 62 ‘Também para os cristios, a renovagio total do Cosmo € a restauragao do Paraiso sao as caracteristicas essenciais do ceschaton. No Apocalipse de Joio (XXI: 1-5) lemos: “Vi ‘um novo cfu € uma nova terra, pois © primeiro céu ¢ a primeira terra passaram, e 0 mar jé nao existe. . . Entao ‘ouvi uma grande vor vinda do trono, dizendo: E thes cenxugaré dos olhos toda lgrima, e a morte jé nao existird,j& nao haverd luto, nem pranto nem dor, porque as primeiras cousas passaram. E aquele que est assenta- do-no trono, disse: Eis que fago novas todas as cousas”” Mas essa Nova Criagio se ergueré das ruinas da primeira. O sindrome da catéstrofe final lembra as Gescrigdes indianas da destruigio do Universo. Haverd seca e fome, e os dias serdo mais curtos °°. A época ime- diatamente. precedente ao Fim seré dominada pelo ‘Anticristo, Mas o Cristo vik purifiear& o Mundo por meio do fogo. Como se exprime Efrém., 0 Sirio: “O mar bramara e depois secaré, 0 cfu ea terra serdo dissolvidos, por toda parte se estenderao o fumo e as tevas. Durante ‘quarenta dias, o Senhor enviaré o fogo sobre a terra para purificé-la da’ macula do vicio e do pecado" ® . O fogo estruidor € citado uma tinica vez no Novo Testamento, na Segunda Epistola de Pedro (III: 6-14). Mas ele consti- tui um elemento importante nos Oracula sibillyna, 0 estoicismo ¢ na literatura erista posterior. Sua origem & provavelmente iraniana 22. ‘Oreinado do Anticristo equivale, em certa medida, « uum retorno ao Caos. Por um lado, 0 Antiristo’ € apresentado sob a forma de um dragao ou de um demé= rio 3, o que lembra o antigo mito do combate entre Deus €.0 Dragao, O combate teve lugar no principio, antes da Criagao do Mundo, eseré novamente travado no Fim. Por outro lado, quando © Anticristo for considerado o falso Messias, seu reinado representaré a total subversio dos valores sociais, morais e religiosos: em outros termos, 0 retorno ao Caos. No decorrer dos séculos, o Anticristo foi identificado com diferentes figuras hist6ricas, desde Nero a0 Papa (por Lutero). £ importante sublinhar um fato: 00. W. Bousset, The Antichrist Legend (rad. inglés, Londres, 1805, pgs. 195 a0, 218 38 (Gi) Efrem o Siva cap, repreduzio por Bousset, ply 236 G2) Clie My del tere! Retour pg. 188s. (G3) Ce W, Bourse, The Antichrat Legend. pigs. 148 ss ch tambo R. Mayer. Die biblcke Vorsteung vom Weltenbrand (Bon, 1950. 6 alguns periodos histéricos particularmente tragicos foram considerados como dominados pelo Anticristo — mas sempre se conservou a esperanca de que seu teinado anunciasse ao mesmo tempo a iminente vinda do Cristo. [As catéstrofes césmicas, 0s flagelos, o terror hist6rico, 0 triunfo aparente do Mal, constituiram 0 sindrome apocaliptico # que deveria preceder 0 retorno do Cristo € © millenium, Milenarismos cristaos © ctistianismo, convertido em religiio oficial do Império Romano. condenou o milenarismo como heré- tico, embora Padres ilustres tenham professado no passa- do. Mas a Igreja aceitara a Historia, e 0 exchaton deixou dle sero evento iminente que fora durante as perseguigdes. (© Mundo, este mundo, com todos os seus pecados, injus- tigaseerueldades, continuou. Somente Deus sabia ahora do Fim do Mundo ¢ uma coisa parecia ceta: esse Fim nao estava préximo. Com 0 triunfo da Igreja, 0 Reino dos Céus jd se encontrava sobre a Terra e, em certo sentido, 0 raundo antigo j& fora destruido, No antimilenarismo oficial da Igreja, reconhece-se a primeira manifestacao da outrina do progresso. A Igreja aceitara o Mundo tal qual cra, esforgando-se por tornat a existéncia humana um pouico menos desditosa do que o fora durante as grandes ériseshistricas. A Ipreja tomava essa posigio contra 0: profetas © os vsiondrios apocalipticos de toda espéce. Alguns séeulos mas tarde, apts a irrupgao do Isl no Mediterraneo, mas sobretudo apts 0 steulo XI, res pareceram os movimentos milenaristas e escatolégicos, dirigidos desta vez contra a Igreja ou contra a hierarquia, Vérias caracteristicas comuns se destacavam nesses mo- vimentos: seus inspiradores aguardam ¢ proclamam a restauragio do Paraiso sobre a Terra, apés um periodo de provagées terriveis cataclismos. © Fim iminente do Mundo era esperado também por Lutero, Durante séculos reencontramos, por diversas vezes, a mesma idéia reli giosa: Este mundo — o Mundo da Hist6ria — ¢ injusto, abominvel, demoniaco;felizmente, ele jéesté em vias de (34) Vide iguaimente A.A. Vasile, “Medieval Kies of the End ‘heW ood: West and East Byzantion (ston, 1844), vo XVI fase. 2, 18421583, per. 362-502 64 decomposigao. as catéstrofes jd se iniciaram, este velho mundo jf comeca a fender-se de todos os lados: muito em breve ele serd aniquilado, as forcas das trevas serio de- finitivamente derrotadas, os “bons” triunfardo, © 0 Paraiso. seré recuperado. Todos os _movimentos milenaristas e escatol6gicos dio provas de otimismo. Eles reagem contra o terror da Hist6ria com uma forea que somente 0 extremo desespero pode suscitar. HA varios, séculos, porém, que as grandes ortodoxias cristis nao mais conhecem a tensao escatol6gica. A expectativa do Fim do Mundo © a iminéncia do julgamento final nao caracterizam nenhuma das grandes Igrejas eristis. milenarismo mal sobrevive em algumas recentes seitas cristas ‘A mitologia escatologica ¢ milenarista reapareceu nestes Gltimos tempos na Europa, em dots movimentos politicos totalitrios. Embora radicalmente secularizados za aparéneia, 0 nazismo ¢ 0 comunismo estio carregados de elementos escatol6gicos: eles anunciam o Fim deste mundo ¢ 0 infeio de uma era de abundancia e beatitude. Norman Cohn, o autor do mais recente livo sobre 0 milenarismo, escreve a propbsito do nacional-socialismo € do marxismo-leninismo: "'Sob a terminologia pscudo- cientifiea de que um e outro se servem, pode-se reconhecer facilmente uma fantasia cujos elementos lembram singularmente as elucubragdes j8 em curso na Europa medieval. A batalha final ¢ decisiva dos Eleitos (sejam eles a “raga ariana’” ou 0 "proletariado") contra fas hostes do mal Gejam eles os judeus ou a “burguesia" tum decreto da Providéncia, pelo qual os Eleitos serio amplamente compensados por todos os seus sofrimentos, com as alegrias do dominio total ou da comunidade total ou de ambos a0 mesmo tempo; um mundo purificado de todo mal ¢ no qual a historia ira encontrar sua consuma- cdo — els algumas antigas quimeras que ainda hoje Aacalentamos” © milenarismo entre os “primitivos” Mas € sobretudo fora do mundo ocidental que o mito do Fim do Mundo floresce hoje com considerivel vigor. 199. Norman Cohn. The Pursuit of the Milenium (Nova York. 1957), pg. 308 65 ‘Trata-se dos indmeros movimentos _nativistas€ milenaristas, dentre os quais os mais conhecidos s30 0s cargo cults da Melanésia, mas que so também encon- trados em outras regioes da Oceania, bem como nas anti sas coldnias européias da Africa. £ muito provavel que & maioria desses movimentos tenha surgido ap6s contatos mais ou menos prolongados com o eristianismo. Embora sejam quase todos antibrancos € anticristios, a maioria esses milenarismos aborigines contém elementos esca tol6gicos eristaos. Em alguns casos, os aborigines se re- voltam contra os missionérios justamente porque estes ‘ltimos nao se conduzem como verdadeiros cristaos e, por exemplo, nao acreditam na iminente vinda do Cristoe na ressurreigio dos mortos. Na Melanésia, os cargo cults assimilaram 0s mitos € os rituais do Ano Novo. Como j& vimos, as festas do Ano Novo implicam a recriacao simbélica do Mundo. Os adeptos dos ‘cargo cults” também acreditam que o Cosmo seré destruido e recri do, e que a tribo recuperaré uma espécie de Paraiso: os rmortos ressuscitardo e nfo haverd mais morte nem enter- tmidades. Mas, assim como nas escatologias indo-iraniana « judew-crista, essa nova criagao — ou recuperacao do Paraiso — seré precedida de uma série de catéstrofes cosmicas: haverd tremores de terra, chuvas de fogo, as ‘montanhas desabarao e atulharao 5 vales, os brancos ¢ os aborigines que nio aderiram ao culto serio aniquila- dos, ete. A morfologia dos milenarismos primitives € ex tremamente rice e complexa, Para a nossa finalidade, € importante assinalar os seguintes aspectos: 1) os mo- vimentos milenstistas podem ser considerados como um desenvolvimento do enredo mitico-ritual da renovagio periédica do Mundo; 2) a influéncia, direta ou indireta, da escatologia evista. parece ser quase sempre in contestavel; 3) embora atraidos pelos valores ocidentais e esejando apropriar-se tanto da religido e da educagio dos brancos como de suas riquezas e de suas armas, os adeptos dos movimentos milenaristas so anti-ocidentais: 4) esses. movimentos sio sempre suscitados por fortes personalidades religiosas do tipo profetic, e organizados ‘0x amplificados por politicos ou para fins politicos; 5) para todos esses movimentos. millenium & iminente, 0 mas ele no ser instaurado sem cataclismos c6smicos ou catistrofes histéricas « E inGtil insistir sobre © cardter politico, social € econtmico de tais movimentos:o fato é evidente, Mas sua forga, sua irradiaga0 © sua eviatividade no residem unicamente nesses fatores s6cio-econdmicos. Trata-se de movimentos religiosos. Os adeptos esperam e proclamam © Fim do Mundo a fim de aleangar methores condigoes ‘econémicas e sociais — mas sobretudo porque alimentam a esperanga de uma recriagao do Mundo e de uma tes tauracéo da beatitude humana. Eles tém fome ¢ sede de bens terrenos — mas também da imortalidade, liberdade « beatitude paradisiacas. Para cles, o Fim do Mundo possibilitaré @ instauragdo de uma existéncia humana beatifca, perfeita © sem fim. Acrescentemos que, mesmo quando nio se trata de um fim catastrofico, a idéia de uma regeneragio, de uma recriagao do Mundo, constitui o elemento essencial do movimento, O profeta ou 0 fundador do culto proclama o iminente “'retorno as origens” ¢, conseqiientemente, a recuperacio do estado “paradisiaco” inicial. Certamente, esse estado paradistaco “original” representa, em muitos casos. a imagem idealizada da situacdo cultural econimica anterior & chegada dos brancos. Esse no ¢ Ainico exemplo de uma mitificagao do “estado origindrio" dda “historia antiga” conhecida como uma Idade de Ouro. O que interessa, contudo, 20 nosso objetivo, nao € a real- dade “historica” que se chega algumas vezes a isolar © desembaragar desse exuberante florescimento de ima: gens. mas 0 fato de que o Fim de um Mundo — 0 da colonizagio — e a expectativa de um Mundo Novo it plicam um retorno as origens. A figura messidnica & ientificada com 0 Her6i cultural ou o Ancestral mitico Cujo retorno era aguardado, Sua vinda equivale a uma reatualizacao dos Tempos miticos da origem. e, portanto, a.uma recriagao do Mundo. A independéneia politica © 2 liberdade cultural proclamadas pelos movimentos milenaristas dos povos coloniais sio concebides como uma recuperagio de um estado beatifico original, Em suma, mesmo sem uma destruigao apocaliptica visivel este mundo. 0 velho mundo, ¢ simbolicamente abolido e 0 Mundo paradisiaco da origem é instaurado em seu lugar, 00).CEM. Blade, Miphistphdls et TAndrogone (Pats, 1962), pigs 155 58. CRenouellement oumigue et echatlogie’ 67 0 “Fim do Mundo” na arte moderna ‘As sociedades ocidentais nada tém de comparivel a0 cotimismo demonstrado tanto pela escatologia comunista como pelos milenarismos primitivos. Ao contrério, existe hoje 0 temor, erescentemente ameagador, de um Fim catasiréfico do Mundo, ocasionado.pelas armas ter. rmonucleares, Na conscihcia dos ocidentais, esse fim serd radical e definitivo: ele nao serd seguido de uma nova Criagdo do Mundo. E-n0s impossivel empreender aqui uma’ andlise sistemética das mltiplas expressdes do temor at®mico no mundo moderno, Contudo, outros fendmenosculturais ocidentais nos parecem sigiticativos, para @ nossa pesquisa. Refiro-me sobretudo a historia da arte ocidental. Desde o inicio do s6culo, as artes plisticas, ‘bem comoa literatura e a mdsiea, passaram por transfor: rmagies tio radicals, que foi possvel falar numa “destrui- io da linguagem ‘artistiea". Comegando pela pintura, ssa “destruigao da Tinguagem” estendeu-se & poesia, a0 romance e, ultimamente, com Tonesco, ao teatro. Em alguns casos, trata-se de um verdadeiro aniquilamento do Universo artistco estabelecido. Ao contemplar algumas ‘obras recentes, ten-se a impressao de que 0 artista quis fazer tabula rasa de toda a histéria da pintura. Mais que uma desteuigdo, € uma regressio ao Caos, a uma espécie de massa confusa primordial. E, nao obstante, ante Obras, desse género, percebe-se que o artista esté 2 procura de algo que ainda nao exprimiu. Ele precisava reduzit a nada as ruinas e os escombros acumulados pelas revolugbes plisticas precedentes: precisava chegar a uma modalida- de germinal da matéria, a fim de poder recomegar a historia da arte @ partir do zero, Em muitos artistas mo- ‘© que nos interessa aqui € que, ao lado desses ritos de puberdade, caractertsticos das ‘sociedades “primit vas", também nas culturas mais complexas existem ric tuais iniciatorios comportando um regressus ad uterum. Limitando-nos de momento & india, esse motivo ¢ discer- nivel em trés tipos diferentes de ceriménias iniciat6rias Para comegar. ha ceriménia upanayama, isto €, @intro- dugao do rapaz ao seu preceptor. O motivo da gestacio € do renascimento esté aqui claramente expresso: diz-se que © preceptor transforma o rapaz num embriao, conservando-o por trés noites em seu ventre *, Aquele que ‘passou pelo upanayama é “duas vezes nascido” (dvi-ja) Existe igualmente a ceriménia diksa, imposta Aquele que se prepara para 0 sacrificio do soma, © que consiste, especificamente, no retorno ao estado fetal 6. Finalmente, oregressus ad uierum encontra-se similarmente no centro da ceriménia hiranya-garbha (lteralmente, “embriao de uro"). © recipiendario ¢ introduzido num vaso de ouro 10) Cf, por exemplo,o ritual sustealiano Kunapipi, descr, se undo RM. Bernat em Nassances marques (Pari 198), pag. 105 4 CE Noissancer mtiues, pgs 113s (8) Thid. page 11S 5 75 ‘em forma de vaca, ao sair, ¢considerado um recém-nas eido* Em todos esses casos, o regressus ad uterum € efetua- do com o objetivo de fazer com que 0 recipiendétio nasca para um novo modo de ser, ou de regeneré-lo. Do ponto de vista daestrutura, 0 retrno ao dtero corresponde a re- igressio do Universo a0 estado “cadtico” ou embrionsrio. AAs trevas_pré-natais correspondem a Noite anterior & Criagao ¢ as trevas da cabana iniciatoria, jat6rios envolvendo um retor- 0s rituais “primitivos” como os indianos — tém, evidentemente, um modelo mitico 7. Contudo, mais interessantes ainda do que os mitos relacionados aos rtos iniiat6rios de regressus ad uterum, so 0s mitos que relatam as aventuras dos Heréis ou dos rmagicos.¢ xams que realizaram o regressus em carne € «530, nao simboticamente. Em grande ndimero de mitos. so ressaltados os seguintes pontos: 1) um her6i sendo tragado por um monstro marino e emergindo vitorioso depois de evadir-se do ventre do monstro; 2) a travessia Iniciatria de uma vagina dentata ou a descida perigosa ‘numa eaverna ou greta, assemelhadas & boca ao ttero da Mie-Terra, Todas essas aventuras constituem de fato rovas iniciatérias, apos as quais 0 hersi vitorioso ad. uire um novo modo de ser *. Os mitos ¢ritos iniciatérios de regressus ad uterum colocam em evidéncia o seguinte fato: o “retorno a ori- gem” prepara um novo nascimento, mas este no repete © primeiro, o nascimento fisico. Especificamente, ha uma enascenga mistica, de ordem espiritual — em outros, termos, o acesso a uim novo modo de existéncia (compor- tando a maturidade sexual, a participacao na sacralidade na cultura; em suma, @ "abertura’” para o Espirito). A idéia fundamental € que, para se ter acesso a um modo superior de existéncia, € preciso repetir a gestarao € 0 nascimento, que si0 porém repetidos ritualmente, simbolicamente; em outros termos, as agées so aqui orientadas para os valores do Espirito e nao para os comportamentos da atividade psicofisiologica. (0 Thi, pgs. 118 ss. (0) Sobre o modelo mitiso dos ruaisincatros indianos, ef Naiszncer mosiquen pig. 117 (8) Tovds pgs. 132 76 Julgamos necessério insstir nesse ponto para no deixar a impressio de que todos 0s mitos €ritos de “retor- ‘no A origem’ se situam no mesmo plano. Certamente, 0 simbolismo € 0 mesmo, mas os contextos sio diferentes. € €.a intengao revelada pelo contexto que nos fornece, em cada caso particular, a verdadeira significagio. Como jé vimos. do prisma da estrutura € possivel homologar as trevas pré-natais ou as da cabana iniciatéria a Noite que precedeu a Criagao. Com efeito, a Noite da qual nasee 0 Sol todas as manhis simboliza o Caos primordial, e 0 nascer do Sol € uma réplica da cosmogonia. F evidente, entretanto, que esse simbolismo cosmogénico se enti {quece de valores novos no easo do nascimento do Ances- tal mitico, do naseimento fisico de cada individuo e do renascimento iniciatorio. Tudo isso ressaltar mais claramente dos exemplos que passaremos a discutir. Veremos que 0 “retorno & ori- gem” serviu de modelo a t6cnicas fisiolbgicas © psico- rmentais visando tanto a regeneragio ¢ a longevidade, como a cura e a libertagio final. 16 tivemos ocasiao de assinalar que 0 mito eosmogdnico se presta a méltiplas aplicagdes, entre as quais a cura, a criagdo postica, @ introdugao da crianga na sociedade © na cultura, etc. Vimos igualmente que 0 regressus ad uterum pode set hhomologado a uma regressao ao estado cabtico que prece- dew a Criagao. Compreende-se entio por quecertas tera péuticas arcaicas utilizam 0 retorno ritual ao dtero em lugar da recitagao cerimonial do mito cosmogénico, Na India, por exemplo, a medicina tradicional opera até hoje © rejuvenescimento dos ancidos © a regeneragio dos enfermos completamente prostrados, enterrando-os numa cova com formato de dtero. £ evidente o simbolismo do “novo nascimento”. Trata-se, ademais, de um costume atestado também fora da India: 0 de enterrar os doentes, 8 fim de fazé-1os nascer do seio da Mae-Terra® ‘Também na China encontramos 0 prestigio tera- péutico do "retorno a origem”. © taofsmo atribui uma importancia considerivel a “‘respiragao_embrionSria”, Farsi. Ela consiste numa respiragao em circuito fechado, Amaneira de um feto: 0 adepto procura imitar a eircula- io sangiinea ¢ respiratGria da mae para a crianga e da rianga. para a mae. O preficio Taisi eou kiue (9 CE Trained Histoire des Religions, hs. 20, ” to basciase © € indefinidamente prolongado no mundo pelo. karma, pela temporalidade: € lei do karma que Impoe as inumerdveistransmigragdes, esse eterno relorno Aexistencia e, portanto, ao solrimento, Liberiarse da lei kirmica equivale & “cura”. Buda € 0 "rei dos médicos” sua mensagem € proclamada como uma “nova me- dicina”. £ "queimando’” até o dltimo germe de uma vida Tutura que se consegue abolir definitwamente 0 ciclo Kcérmico ¢ libertar-se do Tempo. Ora, um dos meios de “queimar” 0§ residuos karmicos consiste na técnica de “yoltaratrds” a fim de conhecer as proprias existncias anteriores. £ uma t6enica pan-indiana, Ela é encontrada nos Yoge-sitra (IIL, 18), € conhecida de todos os stbios © contemplativos contemporaneos de Buda, e ¢ praticada e recomendada pelo proprio Buda. “Trata-se de partir de um instante preciso, o mais préximo do momento presente, e de percorrero tempo ao inverso (prartoman. a contrapelo"), para chegar ad or zinem, quando a primeira exiséncia, “irrompendo”” 80 ‘mundo, desencadeou o Tempo, etornar a atingir aquele instante paradoxal além do qual o Tempo nao existia, porque ada se havia manifestado, Compreende-se 0 sentido € 0 objetivo dessa técnica: aguele que volve atrés no tempo deve necessariamente reencontrar o ponto de partida que, definitivamente, coincide com a cosmogo Reviver as vidas passadas ¢ também compreender €, até certo ponto, "queimar” 0s “pecados”, isto €, a soma dos tos realizados sob o dominio da ignovdneia e eapitaliza- dos de uma existéncia a outra pela lei do karma. Mas ha lum ponto ainda mais importante: chegando-se a0 principio dos Tempos, atinge-se 0 Nao-Tempo, o eterno presente que precedeu a experigncia temporal, inaugura- da pela primeira queda na existéncia. humana. Em ‘outros termos, a partir de um momento qualquer da existéncia temporal, pode-se chegar a exourir essa dura- ‘io ao percorté-a em sentido contro, e desembocar finalmente no Nao-Tempo, na cternidade. Isso, porém. significa transcender a condigio humana e recuperar © estado nio-condicionado que precedeu a queda no Tempo ena roda das existencias” A Hatha-yoga e algumas escolas t€ntricas utilizam 0 ‘étodo denominado “caminhar contra a corrente” (uidna (05) Thi, pigs. S152, 80 sadhana) ou processo “regressive” (ulta), para obter a inversio de todos os processos psicofisioldgicos. O “re: torno”, ‘aduzem-se, naquele que as realiza, pela aniquilaglo do Cosmo, operando, conse qiientemente, a "saida do Tempo", 0 acesso a “‘imortal dade”. Ora, na concepeao tintrica, a imortalidade s6 po- de ser obtida detendorse a manifestagao e, portanto, 0 processo de desintegrario: ¢ preciso marchar “contra a corrente” (ujina sadhana) e reencontrar a Unidade primordial, a que existia in illo tempore, antes da Cria- Gao 1*. Trata-se pois de realizar, em seu proprio se processo de reabsorgao césmica ¢ voltar a “ Shivasamhita (1, 69 ss.) propoe um exercicio espiritual bastante signifcativo: depois de haver descrito a criagao do Universo por Shiva, o texto descreve o processo inverso de reabsorea0 eésmica, tal qual deve ser vivido, ex- perimentado pelo iogue. Este vé como elemento Terra se torna “sutil” e se dissolve no elemento Agua, ¢ como @ ‘Agua se dissolve no Fogo, o Fogo no Ar, 0 Ar no Eter, etc. ‘até que tudo se reabsorve no Grande Brahman '7. 0 io- gue assiste 20 processo inverso da Criacao, ele “volta atrés” até a “origem”. Pode-se comparar esse exercicio iogue a técnica taofsta de “retornar ao ovo" € ao Grande- Um primordial. Repetimos: nio temos a intengao de situar no mesmo plano as técnicas misticas indochinesas e as terapéuticas primitivas. Trata-se de fendmenos culturais diferentes. € significativo, entretanto, constatar uma certa continuida- de de comportamento humano no que concerne 20 Tempo, através das idades e nas méltiplas culturas. Esse comportamento pode ser definido do seguinte modo: curarse da obra do Tempo, é preciso “voltar atré chegar ao “principio do Mundo". Acabamos de ver que esse “‘retorno & origem’” tem sido diversamente valoriza- do. Nas culturas arcaicas ¢ paleorientais, a repetigao do mito cosmogonico tinha como objetivo’ a aboligao do “Tempo decorridoe oreinicio de uma nova existéncia, com as forgas vitais intactas, Para os ‘‘mfsticos” chineses e hindus, 0 objetivo no consistia em recomegar uma nova existéncia aqui embaixo na terra, mas em “volver atrés” € (16) M. Eliade, Le¥oga Immortal Liber (Paris, 1954), pgs m0 5 {0 roid. pty. 272 41 reintegrar-se 20 Grande-Um primordial. Mas, nesses exemplos como em todos os outros por nés citados, 0 elemento espectfico e decisivo sempre foi o “retorno & ori- oe Recuperar 0 passado Citamos esses exemplos com o fim de confrontar dduas categorias de térnicas: I) a psicantlise e 2) os méto- dos arcaicos e orientais contendo diversos processos de ‘retorno &otigem” e visando multiplas finalidades. Nosso propésito nao foi o de discutir longamente esses proce- imentos, mas o de mostrar que o retorno existencial & origem, embora especifico da mentalidade arcaica, nao ¢ uuma conduta que se restrinja apenas a essa mentalidade. Freud elaborou uma técnica andloga, a fim de permitir a lum individu moderno recuperar'o’conte(do de certas cexperigncias “originals”. Vimos que existem diversas possibifidades de voltar atrés, mas 2s mais importantes so: 1) areintegragao répida e direta da situagao primeira quer se trate do Caos ou do estado pré-cosmog6nico, quer ‘do momento da criagao),€ 2) retorno progressivo & “ori- gem”, remontando no Tempo, a. partir do momento Presente até 0 “comego absoluto™. No primeiro caso, temos uma abolicao vertiginosa, ¢ mesmo instantinea, do Cosmo (ou do ser humano como resultado de uma certa duracio temporal) €a restauragio da situacao original (0 “Caos” ou — em nivel antropolégico — a'"semente’”, © ‘embriio"). & evidente a semelhanca entre 2 estrutura desse método e a dos enredos mitico-rituais de regressio Precipitada ao “Caos” e de reiteragao da cosmogonia. No segundo caso, 0 do retorno progressivo & origem, encontramo-nos perante uma rememoracao meticulosa ¢ exaustiva dos eventos pessoais e historicos. Certamente, também nesses casos, 0 objetivo

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