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OS eP ULE reueTe SCC ee eee CETTE eo tae ert neo R Leta eke rents Edigéo de texto RS eer cee ect) Marcelo Daixao Capa rs a ron Escola Politécnica de Saiide Joaquim Vendncio Biblioteca Emilia Bustamante ba oc CROC aU Caminhos da politecnia: 3 SOS uO eR CRC UC CROC ay NEURAL Cen Bao ce Tenet en occ Be ROR es SAU cee ISBN: 978-85-98768-83-0 1, Educacdo Profissionalizante, 2. Politecnia, 3. Choque Teérico. I. Escola Politécnica de Satide Joaquim Venancio. II. Titulo. CDD 370.113 eo eae R CURR Cece area] PSR OR CU cn ce a) See sain aber Dor wn programa de transigéo para a educagéo: em defesa da concepcdo marxista de formagdo politécnica José Rodrigues’ Slpresentacao! Em 1989, simultaneamente entrei em contato com a discussio teérica sobre a educago politécnica e a experiéncia, ao mesmo tempo incipiente e vigorosa, da Escola Politécnica de Saude Joaquim Venancio (EPSJV). © encontro se deu no Programa de Pés-graduagéo em Educagio da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde eu iniciava 0 curso de mestrado. Naquele tempo-espago de formagao académica, fui introduzido no debate tedrico pelo professor Gaudéncio Frigotto, assim como conheci meus colegas discentes André Malhao e Bianca Antunes Cortes, ento coordenadores, com Jiilio César Franga Lima - que conheci um pouco mais adiante -, do nascente curso técnico de segundo grau da EPSJV. Tal encontro me conduziu por dois percursos complementares. De um lado, tive o privilégio de, por cerca de cinco anos, integrar 0 quadro docente do curso técnico da EPSIV, ministrando a disciplina de Matematica, além de participar de outras indimeras e desafiantes atividades. De outro, deixei de lado minha intengao de desenvolver uma pesquisa sobre a nascente area de educag4o matematica e mergulhei nas Aguas profundas e agitadas do debate brasileiro sobre a educagdo politéenica, Os caminhos da vida me fizeram deixar o cotidiano da EPSIV a medida que o ingresso no corpo docente da Faculdade de Educagao da UFF eas atividades discentes no curso de Doutorado em Educagao na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foram tomando todo o meu tempo, Debates atuais para uma educagéo emancipadora | 357 * Professor da Faculdade de Educagao da Universidade Federal Fluminense, membro do Niicleo Interdiseiplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx ¢0 ‘Marxismo (NIEP-Marx- UFF), pesquisador do Conselio Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnolégico (CNP) e ex-professor de matematica da EPSIV. " Agradeso a Kénia Miranda pela leitura atenta e por todas as criticas formuladas, Obviamente, sou responsivel por todos os equivocos que tenham permanecido. Porém, desde que deixei os quadros da EPSIV, os lagos nao se partiram. De fato, tenho participado de diversas atividades, tais como bancas de mestrado e de concurso publico, ¢, nos dltimos cinco anos, tenho lecionado e orientado no curso de especializago Trabalho, Educagao e Movimentos Sociais. Portanto, é com grande alegria e nao sem certo tremor que aceitei o honroso convite de escrever um ensaio em homenagem ao 30° aniversdrio da Escola Politécnica de Satide Joaquim Venancio. Sinteticamente, este ensaio tem a pretensdo de defender a ideia da neces- sidade urgente de elaboragdo de um programa de transigdo para a educagto tomando 0 pensamento pedagogico de Karl Marx como seu micleo central. Para aproximar-me de tal intengo, o texto esté dividido em quatro partes. “A educagao ea sociedade de classes atual” apresenta e discute a perspectiva burguesa de educagao sintetizada na finalidade social (con)formagiio do cidadao produtivo, Em “A educagao politécnica no debate brasileiro” procuro recuperar os prineipais aspectos desse debate nos anos 1980-1990, mostrando também alguns de seus limites. J4 “A educagdo segundo Karl Marx” parte do classico estudo de Mario Manacorda e procura apresentar 0 percurso e os principais aspectos do pensamento pedagdgico marxiano que da combate a perspectiva burguesa de educagao. Finalmente, “Por um programa de transigao para a educagao” pretende resgatar a nogao trotskista de programa de transigiio e aplicé-lo 4 educagao, tomando-se o pensamento marxiano como o seu centro. Fl educagao e a sociedade de classes atual O fenémeno educativo sempre existiu, sempre existird— pelo menos, enquanto houver humanidade, Muito antes de florescerem as sociedades divididas em classes sociais, havia homens educando homens.’ A educacdo esta presente mesmo antes da invengao da escrita, nas chamadas sociedades primevas ou originais,* que viviam e ainda vivem em comunismo primitivo. Coletivamente atuando sobre a natureza, (re)conhecendo-a, testando-a, adaptando-a as proprias necessidades, interesses e desejos, cada ser humano, assim como toda a humanidade, simultaneamente transforma-se, humaniza-se. O ho- mem ¢ 0 préprio trabalho, 358 | Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Dolitéenica de Saside Joaquin Vendncio ‘Como nao hé, na espécie humana, nada parecido com o que se convencionou chamar de instinto nos outros animais, o saber sobre a produgao da vida precisa, € sempre precisard, ser transmitido aqueles que ainda nao o sabem. Ou seja, o saber sobre essa aco coletiva, chamada trabalho, ¢ seus resultados nao so automatica- mente transmissiveis. E, portanto, imperioso que mais ou menos se organize um modo de realizar a transmissao dos saberes sobre a vida, sobre o trabalho, ‘As sociedades em comunismo primitivo, embora comportassem algum grau de diferenciagio no trabalho, notadamente aquela que se convencionou designar de divisto sexual do trabalho,’ de fato, nao possuiam divisdo social do trabalho. Em outras palavras, 0 trabalho nao era dividido entre as classes (ou grupos) sociais a partir da posse dos meios e instrumentos de produgdo, Todos trabalhavam e 0 produto coletivo do trabalho era dividido igualmente entre todos. De forma andloga, a educagio era igualmente de responsabilidade coletiva, sem a materializagao de um espaco especifico no qual acontecia a educagao. Em outras palavras, as sociedades primevas nao precisavam da escola. Até o surgimento de um novo modo de produgdo, 0 ideal pedagégico de adaptar a crianga aos interesses, necessidades ¢ fantasias da comunidade res- pondeu, sem maiores problemas, a realidade das sociedades sem classes, cujos fins derivam da estrutura mais ou menos homogénea do ambiente social — portanto, identificando-se com os interesses comuns do grupo ~ ¢, assim, se realizava igualitariamente em todos os seus membros de forma espontanea e integral (Miranda, 2011, p. 314; Ponce, 1996, p. 21). E com a mudanga no modo de produgao e, portanto, com a andloga alteragao da forma de apropriagao do excedente social (agora significativo) que a educacio passa a ser controlada por uma determinada classe (ou grupo) social (Miranda, 2011, p. 315). Uma parte, diminuta ¢ verdade, da sociedade passa a ter tempo disponivel para dedicar-se ao pensar, a sistematizar os saberes que emergiram da pritica coletiva do trabalho e da cultura e a controlar o que efetivamente produz a riqueza social. A ampla maioria da populagdo, portanto, continua utilizando boa parte de seu tempo no sé para produzir a sua subsisténcia, mas também a existéncia de seus opressores. Nesse sentido, como jé apontaram Marx e Engels (2007, p. 47), aquela classe que detém os meios de produgdo material também detém os meios de produgio Debates atuais para wma educagdo enancipadona | 350 espiritual e, por consequéncia, os meios com os quais se transmite o saber social sobre a produgao da vida. Com isso, a educagao se divide: passa a ser orientada por duas vertentes distintas. De um lado, a educagao comunitéria e nao formalizada segue existindo, transmitindo, entre outros saberes, 0 saber fazer sobre a produgao material da existéncia, além de, obviamente, os costumes comunitarios, também chamados de cultura (ou ainda cultura-ideologia). Eno trabalho conereto que se educa para ele, De outro lado, surge a educago formal, a escola - em alguma medida muito parecida com a que existe ainda hoje De tudo 0 que foi dito até agora, deve-se concluir que hé uma intima e inextrincavel relagdo entre trabalho-humanidade-educagio ou, mais sintetica- mente, trabalho-educagao. E, portanto, o trabalho é 0 principio educativo.® ‘Na escola, essa nova instituigao social, certo tipo de saber, mais ou menos ela- borado teoricamente, assume o seu centro, Nessa historicamente nova forma de educar, mesmo que o saber preserve sua finalidade pratica, em tltima instdncia, ele é elaborado e transmitido através de um meio altamente simbélico: a escrita Assim, nas sociedades de classe pré-capitalistas, a educagao escolar/formal/ escrita emerge como privilégio das classes dominantes. A escola passa a cultivar e transmitir, agora, um saber-privilégio que diz respeito imediatamente as classes que detém a posse sobre os meios e instrumentos de produgao, Em outras palavras, a educagao de atividade comunitaria converte-se em uma educacao distintiva de classe social, isto é, uma educagio de classe. Sinteticamente, tem-se, de um lado, a escola e, de outro lado, a escola da vida e do trabalho. Aquela destinada aos filhos (geralmente do género masculino) da classe dominante, enquanto esta voltada para o restante amplamente majoritério da populago dominada, que produz diariamente o sustento de todos. Enfim, desde a sua origem, a educagdo escolar sempre foi atravessada por um corte de classe? A transiggo da manufatura para a grande industria trouxe consigo a necessidade da ampliagdo da educago escolar® como um dos pilares de sustentago do desenvolvimento das forgas produtivas, ¢, em decorréncia, de sustentagao do modo de produgao capitalista. Marx (2013, cap. 13) mostra claramente a mu- danga operada no pensamento ocidental. Se a cigncia grega classica era funda- mentalmente contemplativa, a Revolugao Industrial inglesa, iniciada em torno de 360 | Caminhos da poltecnia: 30 anos da Escola Volittenicn de Sade Joaquin ‘Vendncio 1780, representou a transformagao dos saberes sistematizados (mais ou menos integrados no que entao se chamava de filosofia) em ciéncia moderna." A partir desse momento histérico, operou-se uma transformacao no saber que de poténcia espiritual converteu-se em ato material, ou seja, a ciéncia moderna emergiu como forga produtiva no e para o modo de produgao capitalista. Entdo, diante do papel central da ciéncia moderna no desenvolvimento das forcas produtivas, passou a ser imprescindivel a sua ampla socializagao. Ora, como realizar a socializagao desse saber altamente sistematizado que vai paulatinamente sendo extraido da pritica social coletiva e se autonomizando? A escola foi a resposta & questo, posto que jé era o lugar social da transmissao do saber sistematizado (formalizado) (Saviani, 2008). Contudo, a necessidade de expansao intrinseca ao desenvolvimento das forgas produtivas sob modo de produgao capitalista nao é isenta de contradigéo, Com efeito, Saviani, abordando aquele momento de profunda e rapida transformacao histérica, explicita a contradigao fundamental da educagao sob 0 modo de produsao capitalista: Na sociedade capitalista, a ciéncia é incorporada ao trabalho produtivo, convertendo-se em poténcia material. O conhecimento se converte em forga produtiva e, portanto, em meio de produgao. Assim, a contradigao do capitalismo atravessa também a questao relativa ao conhecimento: se essa sociedade ¢ baseada na pro- priedade privada dos meios de produgo e se a ciéncia, como conhecimento, é um meio de produgao, deveria ser propriedade privada da classe dominante. No entanto, os trabalhadores nao podem ser expropriados de forma absoluta dos conhecimentos, porque, sem conhecimento, eles nao podem produzir e, se eles nao trabalham, nao acrescentam valor ao capital. Desse modo, a sociedade capitalista desenvolveu mecanismos através dos quais procura expropriar 0 conhecimento dos trabalhadores € sistematizar, elaborar esses conhecimentos, e devolvé-los na forma parcelada, (Saviani, 2003, p. 137) Como nos lembra Manacorda (1989) ao analisar a educagao, ao longo de toda a sua historia a humanidade vem sendo atravessada pela dualidade estrutural sustentada pelos sistemas educativos. Utilizando a linguagem de Gramsci (2000), podemos afirmar que, nas sociedades fundadas no modo de produsdo capita- lista, a escola se apresenta bifurcada em duas instituigdes: uma para formar dirigentes, outra para formar os dirigidos.* ‘Debates atuais para wna educagao emancipadora | 300 Grosso modo, pode-se afirmar que, do ponto de vista da burguesia, caberiam ao sistema escolar duas fungdes simultancas, De um lado, a escola buscaria a conformacdo politica, cultural e ideolégica (ou seja, espiritual, como diria Marx) dos educandos, segundo a norma vigente, & qual podemos denominar cidadania.” De outro, a escola caberia simultaneamente a formagao para o trabalho sob a forma dominante, isto € capitalista, portanto, a formagao do produtor (mediato ou imediato) de mais-valor. Em uma formulagao sintética, sob 0 modo de produgao capitalista, caberia ao sistema educacional a (conformagao do cidadao produtivo." Nesse sentido, a burguesia, desde sua chegada ao poder politico, vem lutando para efetivamente reduzir a educagao a perspectiva da (coniformagio do cidadao _produtivo ~e, apenas sob essa forma, potencialmente estendida a toda a populagao, nao por beneplacito do Estado ou de filantropos, bem ou mal intencionados, mas por necessidade intrinseca ao modo de produgao capitalista, Com Marx (2013), entendemos que 0 modo de produgao capitalista se estabelece a partir da chamada /ei do valor, que pode ser definida resumidamente através da formula DM9M'>D' Ouseja, dinheiro (D)—ou capital, para ser mais preciso - & convertido em mercadorias (M) que, por sua vez, sao transformadas — mediante o trabalho - em novas mercadorias (M') que, ento, so reconvertidas, no mercado, em mais dinheiro (D'). Ou seja, a sociedade capitalista ¢ aquela que se estrutura com base no valor que se autovaloriza expansivamente (capital), por meio da apropriacao privada de trabalho nao pago (mais-valor) extraido da classe trabalhadora. Portanto, o modo de produgao capitalista é, necessariamente, um processo— inclusive espacial, social etc, — autoexpansivo. Ou o capital esta em permanente expansdo ou esta em crise. Para fugir da crise que lhe é inerente, 0 capitalis- mo precisa diuturnamente alcangar e subordinar espagos que ainda nao estao formal ou realmente sob 0 seu dominio. Com efeito, para Miranda (2011), sob © neoliberalismo, a educagao escolar é o nico direito social que efetivamente se expande, mas obviamente sob o signo da contradigao."* Além disso, a classe trabalhadora vem efetivamente lutando pelo acesso ao saber socialmente 302 | Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Politécnica de Saide Joaquim Vendneio produzido e distribuido pela escola, em todos os seus niveis, contribuindo para a expansao da escolarizagao." Embora a escola nao produza mercadorias, as relagGes sociais capitalistas, e sua 16 -a organizativa, estenderam-se a essa instituigao, de uma forma peculiar (Miranda, 2011, p. 317). Ha um permanente movimento do capital em busca de transformar a educagio em mercadoria,!” de (conJformar trabalhadores em cidadaos produtivos, de expropriar © conhecimento daqueles que conduzem o processo educativo, os professores, de distribuir de forma parcelada e pragmatica o saber produzido pela humanidade. E precisamente na contraposicao, na luta de classes, inclusive tedrica, que se inserem as formulagées pedagégicas de Marx, Gramsci, Lenin, Pistrak, dentre tantos outros."* SL educagao politécnica no debate brasileiro” AA origem do debate Na década de 1980, o cenario educacional brasileiro foi palco de forte debate, em cujo centro se encontrava a discussio acerca da reestruturagao do sistema educacional brasileiro erigido durante o regime ditatorial empresarial-militar pelo golpe de Estado de 1° de abril de 1964, Na verdade, toda a cena politica brasileira, inclusive 0 campo da saiide publica, passava por um importante processo de contestagao do passado recente ¢, ao mesmo tempo, de luta pela instauragio de priticas visando a reconstrugao da democracia, ainda que de carter burgués. E nesse contexto histérico que (re)nasceu no cenario educacional brasileiro, o debate, trazido por Dermeval Saviani, da concepgao de educagao politécnica, Esta seco busca dar conta fundamentalmente de dois aspectos. Em primeiro lugar, sera tragado um breve panorama do debate brasileiro sobre a politecnia; em segundo lugar, serdo abordados os limites e as perspectivas do debate. Debates atuais para wma educasdo enancipadona | 363 Na década de 1980, como mencionamos anteriormente, diversos atores sociais buscavam acertar contas com a histéria recente do pais, que ainda estava se reencontrando com praticas democraticas formais reconquistadas. Se, para os economistas burgueses, aquela década foi “perdida”, os educadores e os movi- mentos sociais no a encaram da mesma forma, Com efeito, os educadores, organizados em diversos sujeitos coletivos,”® tinham como preocupagGes centrais, de um lado, o debate sobre o significado social e politico da educagao, particularmente a questdo da escola publica, e, de outro lado, problemas que podem ser sintetizados na chamada “questo salarial” do magistério (Saviani, 1995, p. 53). Marco no movimento de redemocratizagao foram as cinco Conferéncias Brasileiras de Educagao (CBEs) que contribuiram para a resisténcia As politicas educacionais emanadas do Estado autoritario em ocaso, As CBEs reforgaram a construgao dos canais de participagao democritica e discutiram e elaboraram diretrizes para politicas educacionais voltadas para a maioria da populacao, Com esse movimento, preparavam-se os educadores para produzir uma nova perspectiva e elaborar uma nova proposta de estrutura e funcionamento para 0 ensino brasileiro, a serem apresentadas durante os debates da almejada Assembleia Nacional Constituinte, que selaria o fim da (desjordem estabelecida em 1964. Dermeval Saviani, depois das polémicas causadas a partir do livro Escola ¢ democracia (Saviani, 1986), no qual buscava, de um lado, escapar ao dilema do reprodutivismo, e, de outro, esbogar as linhas mestras para uma pedagogia histérico- critica, também acaba por desencadear o debate brasileiro sobre a politecnia. A partir de sua atuagio no Programa de Pés-graduacao em Educagao na Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo (PUC-SP), no inicio da década de 1980, Saviani levou aos novos pesquisadores em educagao os pensamentos pedagégicos de Marx e Gramsci. Em 1984, coube a Gaudéncio Frigotto (1989) produzir o primeiro texto no qual é abordada explicitamente, mesmo que perifericamente, a concepsio de formagao politéenica. A partir do trabalho inaugural de Frigotto, outros se seguiram, tais como os de Lucilia Machado (1989, 364, | Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Politécnica de Saiide Joaquim Vendncio 1991a e 1991b), Acacia Kuenzer (1988 e 1991), do préprio Frigotto (1991a e 1991b), além dos produzidos por Saviani (1989 e 2003). Dimensées da politecnia No Brasil, o debate da concepgao de educagao politéenica foi caleado fundamentalmente na contribuigo teérica dos autores supracitados.* Nessa perspectiva, 0 conceito de politecnia pode ser captado com base na confluéncia de trés eixos fundamentais: dimensio infraestrutural, dimensio utépica e dimensao pedagégica.® A dimensdo infraestrutural da concepeao politécnica de educagao agrega 08 aspectos relacionados ao mundo do trabalho, especi jcamente os processos de trabalho sob a organizasao capitalista de produgdo, e consequentemente a questdo da qualificagao profissional. Apesar dessa discuss4o nao ser recente, ela adquiriu & época um destaque como resultado dos impactos sobre os processos de trabalho provocados pelas chamadas novas tecnologias, notadamente de base microeletronica, face mais imediata do padrao de acumulago flexivel que emergia no Brasil. Na verdade, a discussao sobre a qualificagao profissional a partir das novas formas de organizacao do processo de trabalho tornou-se o ponto focal do debate da educacto politécnica, Para os autores, as mudangas operadas na base técnica do trabalho simultaneamente propiciariam e demandariam uma qualificagdo profissional de novo tipo, a qual, por sua vez, langaria as bases materiais da politecnia, ‘A questo poderia ser formulada nos seguintes termos: como, ¢ em que medida, as novas tecnologias vém “implicando” na politecnia? Em outras palavras, em que medida as mudangas nos processos de trabalho estariam contribuindo para a efetivacao de uma concepsao de formagao politécnica? Dada a simplificagio das tarefas laborais, mediadas cada vez mais por “maquinas inteligentes” e pela uniformizagao dos processos de trabalho, 0 traba- Ihador teria nao apenas a possibilidade de atuar em todas as etapas do processo de trabalho, como também isso Ihe seria demandado. Ou seja, o desenvolvimento atual dos meios e instrumentos de produgio demandaria a polivaléncia do trabalhador, Nesses termos, as mudangas tecnolégicas contempordneas nao s6 dispensariam a, Debates atuais para uma educasdo enancipadona | 305 © trabalhador formado pelo estreito padrao taylorista-fordista, como a sua manu- tengo traria entraves ao proprio desenvolvimento da produgao capitalista Assim, a concepcao de educagao politécnica, principalmente em sua dimensao infraestrutural, define-se mediante a luta pela liberdade no trabalho, na medida em que busca métodos de reconstrugao da identificago do trabalhador com 0 produto de seu trabalho, pela mediag4o de uma compreensio totalizante do processo de trabalho. Essa compreensao totalizante por parte do trabalhador abriria caminho para uma atuagdo mais ampla, propiciada pela polivaléncia no processo de produsio da existéncia. Em suma, o que a concepsio politécnica de educagao propée, por intermédio de sua dimensio infraestrutural, é a identificagao de estratégias de formagao humana, a partir dos modernos processos de trabalho, que apontem para uma reapropriaao do dominio do trabalho. A segunda dimensao do debate brasileiro sobre a educagdo politécnica — a dimensdo utépica — nao visa mostrar que a politecnia seria um ideal irrealizavel, uma proposta historicamente extemporanea; busca, sim, expor a profunda relagao entre essa concep¢ao de formagiio humana e um projeto de construgao de uma sociedade socialista, portanto, ainda ndo presente. Seria 0 projeto utépico-revolucionario de uma nova sociedade que, por um lado, possibilitaria uma unidade teérico- politica 4 concepgao politécnica de educagao, e, por outro lado, impediria a sua naturalizacdo. Em outras palavras, ao se dar énfase a dimensio infraestrutural, isto é, 4s mudangas contemporaneas nos processos de trabalho a partir da entio chamada nova Revolugdo Industrial, poder-se-ia chegar ao equivoco de se entender que a formagao politécnica é o caminho natural demandado pelo modo de produgao capitalista. Ao contrario, a politeenia precisa representar uma profunda ruptura com © projeto de qualificago profissional , fundamentalmente, com 0 projeto de formacao humana postos pela sociedade burguesa. Ou seja, a concepcao de edu- cagao politécnica pressupde uma visio social de mundo radicalmente distinta daquela hegemonicamente colocada nas sociedades existentes. Partindo-se de uma apreensio das mudangas ocorridas no mundo do trabalho, mediada por uma visio social que rompe com as visdes burguesas de homem, sociedade e trabalho, a concepgao politécnica de educagdo acaba por confluir & dimenséo pedagégica. 366 | Caminhos da poltecnia: 30 anos da Escola Volittenicn de Saide Joaquin ‘Dendncio Como caminhar para uma progressiva, e necessaria, explicitagao da organizagao do trabalho pedagdgico de uma escola que se paute numa orientagéo politécnica sem recair em imperativos categéricos mais ou menos abstratos? De um lado, faz-se necessario 0 continuo estudo da materialidade social da qual a educagao & parte integrante, em particular dos sempre renovados processos de trabalho. De outro lado, ¢ preciso ressaltar que nenhum estudo ou pesquisa poderd substituir a prixis educativa desenvolvida a partir do horizonte da politecnia. Isto é, a construgdo de uma concepeao de educagao politécnica precisa necessariamente estar embasada em priticas pedagégicas concretas, as quais, por sua vez, devem estar ancoradas nas reflexes tedricas sobre o papel e a natureza da educagao na sociedade capitalista.” Feitas tais consideragdes gerais, podem-se destacar, no quadro da produgao tedrica brasileira, alguns aspectos norteadores da organizagao do ensino de carater politécnico, Dentre eles, assinala-se, em primeiro lugar, a perspectiva que propée a politecnia como proposta ligada ao ensino médio, posto que ele est situado entre 0 ensino fundamental — no qual o trabalho determina 0 curriculo escolar de forma implicita, pois a profissionalizag4o nao constitui um objetivo especifico —e a formagao de nivel superior - em que 0 trabalho e a profissionalizagéo compéem a finalidade explicita, Um segundo aspecto, complementar ao primeiro, é a forma pela qual se dard a explicitagao do trabalho. Nesse ponto existem certas tens6es explicitas, em que alguns autores defendem uma formagao basica para o trabalho moderno, sem © carater dado pelas habilitacdes profissionais.** Ou seja, a formacao politécnica no teria o objetivo de preparar técnicos de nivel médio, mas formar “‘cidadaos” capazes de compreender a totalidade e os fundamentos cientificos e técnicos do mundo do trabalho, ficando aptos, assim, a intervir nessa realidade sociotéenica, Ja outros autores entendem que a formago de técnicos nao é um objetivo excludente & concepsdo de politecnia. Para esses iiltimos, é possivel conciliar a formagao de técnicos de nivel médio competentes técnica e politicamente para atuarem em seu universo laboral, ¢ além dele, Um terceiro grupo de autores busca o que seria o ponto de equilibrio entre essas duas vertentes, pretendendo uma escola politécnica em dois momentos: Debates atuais para wna educagdo emancipadora | 307 a primeira etapa daria conta daquela formagao necesséria a uma compreensio totalizante do fenémeno e do fato do trabalho, enquanto a profissionalizagao em sentido estrito seria coneretizada numa segunda etapa (para uns no préprio nivel médio; para outros, no chamado pés-secundario), Em que pesem essas diferencas, por vezes artificialmente ampliadas, o que sobressai com majoritéria concordancia entre os pesquisadores é a natureza dessa “explicitacao” ou profissionalizacao. E consenso que a formagao politécnica busca romper, de um lado, com a profissionalizagao estreita e, de outro, com a educagao geral e propedéutica livresca e descolada do mundo do trabalho. O que se mostrava tendencial naquele debate, portanto, era a defesa de uma formagao que desse conta dos fundamentos técnicos, cientificos e também gestionarios comuns ao trabalho moderno. Além disso, propunha-se uma formagao que, partindo desse niicleo, nao transformasse as (distintas) areas do conhecimento em instrumentos pragmaticos, supostamente a servigo da profissionalizagao. Ou seja, propunha-se uma formago que tomasse esses diversos campos cientificos como suporte para uma compreensao da totalidade dos processos de trabalho nos quais os educandos estariam sendo introduzidos. Os limites do debate Como ja foi apontado, é precisamente num contexto de debate politico educacional que se torna piiblica, em abril de 1988, a proposta para uma Lei de Diretrizes e Bases da Educagao Nacional claborada por Saviani e, em seguida, em dezembro de 1988, convertida em projeto de lei pelo deputado Octavio Elisio.” Muito sinteticamente, para Saviani: Politecnia significa, aqui, especializagio como dominio dos fundamentos das diferentes técnicas utilizadas na produgao moderna. Nessa perspectiva, a educagao de segundo grau tratara de se concentrar nas modalidades fundamentais que dao base a multiplicidade de processos e técnicas de produgio existentes. (Saviani, 1997, p. 39) Portanto, é a partir da luta coletiva em prol da transformagao da educagao brasileira, via elaborago de uma nova LDB, que o significante politecnia efetiva- 368 | Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Dolitécnica de Saside Joaquim Venancio mente entra na cena pedagégica brasileira, principalmente porque o Férum Nacional em Defesa da Escola Publica” tomou para si a defesa do projeto Elisio, da lavra de Saviani, insisto. No primeiro esbogo de um projeto de LDB, realizado por Saviani, podia-se ler: Art. 35 A educaco escolar de 2° grau [..] tem por objetivo geral propiciar aos adolescentes a formagao politécnica necessaria & compreensao tedrica ¢ pratica dos fundamentos cientificos das miiltiplas técnicas utilizadas no proceso produtivo. (Saviani, 1988a, p. 20)" Apésanos de debates, marchas e contramarchas, anova LDB foi promulgada em dezembro de 1996 (lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996). Saviani (1997), analisando o texto da nova LDB no que tange ao ensino médio, afirma: Essa ideia de politecnia, que havia orientado a elaboracao da proposta preliminar por mim apresentada, foi se desca- racterizando ao longo do processo restando dela, na lei, apenas 0 inciso IV do artigo 35 que proclama como finalidade do ensino médio “a compreensao dos fundamentos cientifico-tecnolégicos dos processos produtivos..”” reiterado pelo inciso I do pard- grafo primeiro do artigo 36: “dominio dos principios cientificos e tecnolégicos que presidem a produgio moderna’. (Saviani, 1997, p. 213) Prosseguindo, o autor entende que “esse desfecho era previsivel”, visto que: A curto prazo, teriamos que caminhar bastante antes de poder viabilizé-la. Ha certas mudangas sociais que necessitam ser desenvolvidas no ambito politico e econémico para que uma proposta como essa possa se viabilizar. (Saviani, 1997, p. 213) E conelui 0 autor: Passados mais de dez anos, se por um lado 0 avango tecnolégico vem evidenciando a relevancia dessa discussao, por outro lado as condigées politicas traduzidas nos mencionados conflitos, disputas e jogo de interesses tornaram a situagéo ainda mais adversa. E esse quadro esta refletido no texto da nova LDB. (Saviani, 1997, p. 214) Debates atuais para wma educagao emancipadora | 30Q Assim, embora subsistam rastros simbélicos da nogao de politecnia na lei n? 9,394/1996, como quando trata do ensino médio, apresenta como sua quarta finalidade “a compreensdo dos fundamentos cientifico-tecnolégicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a pratica, no ensino de cada disciplina’’ de fato, a proposta de Saviani foi derrotada pelas forgas conservadoras. Com efeito, esta inscrito na LDB, quase que literalmente, que a finalidade da educagao brasileira & a (conyformagio do cidadiao produtivo. Asin; Art. 2°. A educagao, dever da familia e do Estado, inspirada nos principios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercicio da cidadania e sua qualificagao para o trabalho, (Brasil. Lei n? 9,394/1996; grifos meus) E ainda: Art, 35. O ensino médio, etapa final da educagao basica, com duragdo minima de trés anos, teré como finalidades: Ll Il a preparagdo basica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condigdes de ocupacao ou aperfeigoamento posteriores; Na verdade, a partir de 1989, o Brasil ingressou numa conjuntura politica bastante diversa e adversa a defesa da nogao de educagao politécnica. Com efeito, as eleigdes de Fernando Collor para a presidéncia e, em seguida, a de Fernando Henrique Cardoso marcaram o ingresso das politicas neoliberais. Logo apés a promulgagao da nova LDB, o governo de Fernando Henrique Cardoso retirou do Congresso Nacional seu anteprojeto de lei, que regulamentaria os artigos sobre educagao profi promulgada. Ao invés do debate democratico, 0 Executive optou por impor a regulamentagao por meio do decreto n° 2.208, de 17 de abril de 1997, contra o qual diversos setores dos educadores se levantaram. A politecnia foi derrotada. Em 23 de julho de 2004, agora sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), com o decreto n° 5.154, a histéria se repetiu: mais uma vez, em nome do ional _contidos na recente lei educacional 370 | Caminhos da plitecia: 30 anos da Escola Wolitenica de Saide Joaquim Vouincio “possivel”, do “vidvel”, a nogao de politecnia seguiu expurgada das normas legais que ordenam a educagao brasileira.” Resta saber por quanto tempo ainda a discussdo sobre a politecnia permanecera 4 margem do debate politico-pedagégico brasileiro.” Fl educagao segundo Karl Marx JA se tornou praticamente um truismo afirmar que Marx nunca escreveu nada sobre educagao. Contudo, isso ndo significa que Marx nao refletiu consistentemente sobre a educagao na sociedade burguesa, tampouco que suas andlises e proposigdes nesse campo sejam fragmentérias. Ao contrario, 0 pouco que Marx escreveu sobre educagio € consistente, coerente ao longo do tempo ¢ firmemente ancorado no conjunto do materialismo histérico, criado por ele e Engels. Nesta secao, apresentaremos sinteticamente, a partir do que Manacorda (2010) recolheu da obra de Marx e Engels, 0 que o pedagogo italiano denominou de pedagogia marxiana. Os trés momentos da pedagogia marxiana Ao longo de nada menos que trés décadas, podem ser recolhidas passagens presentes, em textos importantes do pensamento marxiano, que s4o explicita e especificamente pedagégicas, sem se tornarem um compéndio de uma pedagogia abstrata, Com efeito, a pedagogia marxiana foi apresentada em trés momentos marcados pela necessidade de elaboracao de trés programas politicos 1) A elaboragao do Manifesto comunista, por demanda da Liga Comunista, vésperas da Revolugao de 1848; 2) As chamadas Instrugées aos delegados do Conselho Geral Provisério ao I Congreso da Associagéo Internacional dos Trabathadores, coetaneo da redagao de O capital, entre 1866 e 1867; 3) As glosas ao programa de unificagao, na cidade de Gotha, de dois partidos operdrios alemaes, em 1875. Debates atuas para uma edvcasdo enancipadora | 371 Como ser demonstrado, em nenhuma dessas ocasides Marx pretendeu ela- borar um programa de salvagao da educag’o sob 0 modo de produgao capitalista, tampouco um plano de sociedade socialista. ‘No que concerne ao primeiro momento, é preciso, na verdade, considerarem- se dois textos, redigidos entre 1847 e 1848, com o mesmo propésito: a apresentagao piblica, sob a forma de manifesto, da Liga Comunista, sediada em Londres. A primeira versio do Manifesto Comunista surgiu da pena de Engels, sob a forma de um catecismo, isto é, um texto com 25 perguntas e respostas. Em resposta a pergunta 18, Que curso de desenvolvimento fomard essa revolugio?, Engels apresentou doze principais medidas democraticas que deveriam ser tomadas pelo Estado sob o controle dos trabalhadores, dentre elas: educagao de todas as criangas, a partir do momento em que podem prescindir dos cuidados maternos, em estabelecimentos nacionais e a expensas do Estado; e combinar a educagao e o trabalho fabril (Engels, 2006). ‘Na perspectiva de Manacorda, podem-se facilmente perceber duas propo- sigdes combinadas, sendo a primeira delas de caréter eminentemente demo- cratico, isto é, iluminista-jacobino: educagao universal, piblica e gratuita. Nessa perspectiva, Engels, contudo, introduz uma proposigao tipicamente socialista e que marcaré toda a pedagogia marxiana: a unido educago—trabalho fabril. A bem da verdade, tal proposigdo nao foi inventada por Engels, mas pelo socialista utépico ¢ burgués industrial Robert Owen. Cabe destacar ainda que tais proposigdes esto marcadas por um duplo e simultdneo carater, Trata-se de medida de um lado, imediata e, de outro, futura. Como destaca Manacorda (2010, p. 41), énecessério articulara proposigao 18, pelo menos, resposta A pergunta 20: Quais so as consequéncias da aboligéo final da propriedade privada? Nessa passagem, o raciocinio de Engels pode ser resumido a seguir. A grande indistria, assim como a agricultura, libertas das amarras da propriedade privada sofrerio um gigantesco desenvolvimento, o qual disponi- bilizard A sociedade uma massa de produtos suficiente para satisfazer as necessidades de todos. Assim, a diviso de classes, nascida da divisdo do trabalho, se tornard supérflua e mesmo impossivel, pois ndo mais serdo necessdrias pessoas 372 | Caminhos da politeenia: 30 anos da Escola Dolitcnica de Saude Joaquim Vendncio condenadas a uma tnica atividade laboral. E a superagao da divisdo de classes que abriré caminho para que todos possam se desenvolver omnilateralmente A divisdo do trabalho, minada jé hoje pelas maquinas, que faz. de um camponés, do outro sapateiro, do terceiro operdrio fabril, do quarto especulador de bolsa, desapareceré, portanto, totalmente. A educagao permitiré aos jovens passar rapidamente por todo © sistema de producao; colocé-los-a em condigées de passar sucessivamente de um ramo de produco para outro, conforme o proporcionem as necessidades da sociedade ou as suas préprias inclinagées. Retirarlhes-d, portanto, 0 canicter unilateral que a actual diviséo do trabalho imp@e a cada um deles. Deste modo, a sociedade organizada numa base comunista dar aos seus membros oportunidade de porem em acco, integralmente, as suas aptidées integralmente [omnilateralmente] desenvolvidas. Com isso, porém, desaparecerdo também necessariamente as diversas classes. De tal maneira que, por um lado, a sociedade organizada numa base comunista é incompativel com a existéncia de classes €, por outro lado, a edificagao dessa sociedade fornece ela propria ‘05 meios para suprimir essas diferencas de classes. (Engels, 2006; grifos meus) Conelui, entao, Engels: A associago geral de todos os membros da sociedade para a exploracao comum e planificada das forcas de produgao, a expansio da produg&o num grau tal que satisfaga as necessidades de todos, a liquidagao da situacao em que as necessidades de uns sdo satisfeitas & custa dos outros, a aniquilacdo total das classes € dos seus antagonismos, 0 desenvolvimento integral [omnilateral] das capacidades de todos os membros da sociedade por meio da eliminagao da divisdo do trabalho até agora vigente, por meio da educacao industrial, por meio da troca de actividades, por meio da participacdo de todos nos prazeres criados por todos, por meio da fusdo da cidade e do campo — eis os resultados principais da abolicao da propriedade privada. (Engels, 2006; grifos meus) Estas duas proposigdes retinem a esséncia da pedagogia engelsiana/ marxiana: educagao universal, publica e gratuita, unido educagio-trabalho com a finalidade de contribuir para a formagao omnilateral dos jovens, tornando-os Debates atuais para una educagio emancipadora | 37: “disponiveis para alternar sua atividade, de modo a satisfazer tanto as exigéncias da sociedade quanto as suas inclinagdes pessoais” (Manacorda, 2010, p. 42), no contexto de grande desenvolvimento das forgas produtivas, libertadas do cativeiro ilateral dos da propriedade privada, Em outras palavras, o desenvolvimento om: individuos nao ser fruto exclusivo de uma forma especifica de educagao, embora essa tenha um relevante papel a cumprir. Na versao definitiva do Manifesto comunista, redigida entre novembro de 1847 e janeiro de 1848, Marx explicitou aquelas “medidas que, do ponto de vista econémico, parecerdo insuficientes e insustentaveis, mas que no desenrolar do movimento ultrapassario a si mesmas e serdo indispensaveis para transformar radicalmente todo o modo de produgao” (Marx e Engels, 2002, p. 58). A décima e ‘iltima medida firmada por Marx é: 10, Educagao piiblica e gratuita a todas ; aboligiio do trabalho das criangas nas fibricas, tal como & praticado hoje ‘Combinacao da educagao com a produgdo material etc. (Marx € Engels, 2002, p. 58; grifos meus) as criang: E, concluindo a sesao I do Manifesto, pode-se ler: Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes € antagonismos de classes, surge uma associagdo na qual o livre desenvolvimento de cada um & a condi¢ao para o livre desenvolvimento de todos. (Marx e Engels, 2002, p. 59) Observe-se que a versio de Marx nao é, de fato, essencialmente distinta daquela oriunda de Engels.* O raciocinio, em nossa perspectiva, é basicamente ‘© mesmo, com um adendo fundamental: é preciso abolir o trabalho infantil “tal como praticado hoje”. Ou seja, nao se pode confundir a proposigéo marxiana — a ser instituida sob 0 que ficou conhecido como a ditadura revolucionaria do proletariado — com aquelas proposigées oriundas de empresarios mais ou menos filantrépicos e de educadores organicos destes que, geralmente, sio marcadas, tanto no século XIX quanto no XXI, pela intengao de [..] treinar cada operério no maior niimero possivel de ramos de trabalho, de modo que, se por introdugdo de novas m4quinas ou por mudangas na divisdo do trabalho, ele vier a ser expulso 374 | Caminkos da politecia: 30 anos da Escola Politécnica de Saide Joaquin Vendncio de um oficio, possa mais facilmente achar colocagdo em outro. (Marx, “Notas sobre trabalho assalariado e capital” [1847] apud Manacorda, 2010, p. 43) (Ou seja, Marx contrapunha a sua proposta de educacao — universal, public € gratuita, em combinagao com o trabalho fabril — 4 formulagao burguesa, mesmo que esta pudesse (possa) eventualmente apoiar-se sobre os mesmos aspectos da realidade, pois, como se péde verificar, as finalidades sAo completamente antagOnicas. A educagdo burguesa, mesmo que piiblica, gratuita, universal, combinada com trabalho produtivo, objetiva a pluriprofissionalizagao, de carater unilateral, com vistas 4 manutengao ¢ aperfeigoamento da exploragao da classe trabalhadora. Em uma formulagao sintética, j& aqui trabalhada," a educagdo burguesa tem como finalidade a (con)formagao do cidadao produtivo. Jé a con- cepedo marxiana, partindo da condigao atual, ao contrario, visa a construgo da sociedade mundial sem classes, portanto, sem a divisdo social do trabalho, “na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condigo para o livre desenvolvimento de todos”, Entre 1866 € 1867, cerca de vinte anos apés as formulagdes acima apresentadas, Marx retoma e enriquece suas reflexdes e proposigdes sobre a educagdo da classe trabalhadora, sempre alicergadas na compreensao totalizante do modo de produgao capitalista. Este momento da elaboragdo marxiana pode ser sintetizado em algumas passagens das Instrugdes aos delegados do Conselho Geral Provisério da Associagio Internacional dos Trabalhadores.” Como destaca Manacorda (2010, p. 47), as passagens nas Instrugées so indissociéveis da contempordnea elaboragio de O capital, Embora a passagem seja bastante longa, julgo-a tao fundamental que a transcreverei quase que integralmente. Escreveu Marx: Nés consideramos que a tendéncia da industria moderna, em fazer cooperar as criangas ¢ os adolescentes de ambos os sexos na grande obra da produgao social como um processo legitimo € saudével, qualquer que seja a forma em que se realize sob 0 reino do capital, é simplesmente abomindvel. Em uma sociedade racional, qualquer crianca deve ser um trabalhador produtivo a partir dos nove anos, da mesma forma que um adulto em posse de todos os seus meios, ndo pode escapar Debates atuais para una educagéo emancipadora | 375 da leida natureza, segundo a qual aquele que quer comer tem de trabalhar, ‘io s6 com o seu cérebro, mas também com suas maos, (Marx e Engels, 2011, p. 83-86; grifos meus) Nessa passagem, o mestre da dialética explicita o duplo carater do trabalho (inclusive 0 infantil), simultaneamente intelectual e manual: necessdrio, legitimo, saudével e abomindvel sob a forma-mercadoria. E segue em seu raciocinio, agora voltando-se especificamente para os filhos da classe trabalhadora, estipulando respectivas jornadas de trabalho, segundo determinadas faixas etarias: Porém, por agora, vamos nos ocupar somente das criangas e dos jovens da classe operaria. Parece-nos ttil fazer uma divisio em trés categorias, que serdo tratadas de maneira diferente. A primeira compreende as criangas dos 9 aos 12 anos; a segunda, dos 13 aos 15; a terceira, dos 16 aos 17 anos. Propomos que 0 emprego da primeira categoria, em todo 0 trabalho, na fabrica ‘ou no domicilio, sea reduzide para duas horas, 0 da segunda, para quatro horas, e 0 da terceira, para seis, Para a terceira categoria deve existir uma interrupe4o de, pelo menos, uma hora para a comida e o descanso. (Marx e Engels, 2011, p. 83-86; grifos meus) Note-se que, no que tange a faixa de 9 a 12 anos, Marx recomenda a redugao da jornada de trabalho para duas horas. Sabe-se que, naquela época, era comum, criangas de menos de 9 anos de idade trabalharem por até 12 horas, em condigdes absolutamente perigosas ¢ insalubres. Em O capital, apoiando-se nos relatérios de 1865 dos inspetores fabris - na verdade, membros da burguesia inglesa aris- tocratizada — Marx (2013, especialmente cap. 13) relata as terriveis condigdes de vida dos trabalhadores. Diante dessa realidade, Marx, nas Instrugées aos delegados do Conselho Geral Provisério da Associagéo Internacional dos Trabalhadores indica: Seria otimo que as escolas elementares iniciassem a instrugao das criangas antes dos 9 anos. Porém, por agora, sé nos preocupamos com antidotos absolutamente indispensdveis para resistir aos efeitos de um sistema social que degrada o operario até 0 ponto de transformé-lo em um simples instrumento de acumulagao de capital e que fatalmente converte os pais em mercadores de cravos de seus proprios filhos. Os direitos das criangas e dos adultos terdo de ser defendidos, jd que ndo podem fazé-los eles préprios. Dai o dever da sociedade de combater em seu nome. 370 | Caminhos da politecnia: 30 anos da Escola Volitéenica de Saide Joaquin Vendncio Se a burguesia e a aristocracia descuidam-se dos deveres com os seus descendentes, isso é problema deles. A crianga que desfruta 05 privilégios dessas classes esta condenada a sofrer seus préprios prejuizos. Ocasodaclass operdria écompletamente diferente. O trabalhador individual nao atua livremente, Muitas vezes & demasiadamente ignorante para compreender o verdadeiro interesse de seu filho nas condigdes normais do desenvolvimento humano. No entanto, o setor mais culto da classe operaria compreende que o futuro de sua classe e, portanto, da humanidade, depende da formacao da classe operdria que ha de vir. Compreende, antes de tudo, que as criancas eos adolescentes terdo de ser preservados dos efeitos destrutivos do tual sistema, (Marx e Engels, 2011, p. 84; grifos meus) Cabe sublinhar que a proposta marxiana nao visa a sociedade capitalista, mas elabora sua proposta reconhecendo 0 estado atual de coisas, incluida ai a condigao educacional do proletariado, visando a transigao para o socialismo, na qual Estado definhard: Isto 86 seré possivel mediante a transforma¢ao da razo social em forga social e, nas atuais circunsténcias, s6 podemos fazé-lo através das leis gerais impostas pelo poder do Estado. Impondo tais leis, a classe operdria nao tornara mais forte o poder gover- namental. Ao contrario, faré do poder dirigido contra elas, seu agente. O proletariado conseguir entdo, com uma medida geral, © que tentaria em vao com muitos esforgos de carter individual. (Marx e Engels, 2011, p. 85) Finalmente, chegamos ao coragao da nova contribuigao de Marx ao debate educacional vinte anos apés sua primeira elaboragao: o que é educago, qual é 0 seu contetido: Partindo disto, afirmamos que a sociedade nao pode permitir que pais e patrdes empreguem, no trabalho, criangas a adolescentes, a menos que se combine este trabalho produtivo com a educagao. Por educagao entendemos trés coisas: 1) Educagao intelectual, 2) Educagao corporal, tal como a que se consegue com os exercicios de gindstica e militares. Debates atuais para uma educasdo enancipadora | 3 3) Educagio tecnolégica, que recolhe os principios gerais ¢ de carater cientifico de todo 0 processo de producao e, ao mesmo tempo, inicia as criangas e os adolescentes no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais. A divisio das criangas e adolescentes em trés categorias, de 9 a 18 anos, deve corresponder um curso graduado e progressive para sua educagdo intelectual, corporal e politéenica. Os gastos com tais escolas politéenicas serao parcialmente cobertos com a venda de seus préprios produtos. (Marx e Engels, 2011, p. 85; grifos meus) Em seguida, Marx explicita a finalidade de sua propositura: Esta combinagao de trabalho produtivo pago com a educagao intelectual, os exercicios corporais ea formacao politécnica elevard a classe operiria acima dos niveis das classes burguesa e aristocritica. (Marx e Engels, 2011, p. 85; grifos meus) Concluindo a sua elaboragao, Marx ainda retorna 4 questdo do trabalho infantil e adolescente: ‘Oemprego de criangas ¢ adolescentes de 9 a 18 anos em trabalhos noturnos ou em industrias, cujos efeitos sejam nocivos a satde, deve ser severamente proibido por lei. (Marx e Engels, 2011, p. 83-86; srifos meus) © trabalho define a espécie humana, campo da necessidade e da liberdade Assim, ninguém pode escapar a essa determinagao, nem mesmo as criangas e jo- vens, Todos devem trabalhar. Mas as criangas e os jovens precisam combinar necessariamente trabalho com ensino, A educacao, pata Marx, compée-se de trés aspectos distintos e articulados: a educagao intelectual, a educagiio corporal e a educagio tecnolégica formagio politéenica Observe-se que Marx nada diz sobre o que entende por educagao intelectual. Certamente sua perspectiva ndo deve discrepar muito da nogao corrente do que hoje, no Brasil, chamamos genericamente de formagio geral Com relagao educagao corporal, ainda nao muito comum em ambiente escolar naquela época, Marx explicita que se trata daquela obtida por meio da gindstica. Provavelmente, com a sua formagao classica humanistica, Marx tinha em mente a maxima grega: Mente sd em corpo sao. Porém, talvez nao seja exagerado 378 | Caminkos da politecia: 30 anos da Escola Politécnica de Saide Joaquin Vendncio afirmar que Marx também tinha em mente a preparagao fisica para a luta de classes, posto que, como se sabe, “a arma da critica nao pode substituir a critica das armas” (Marx, 2005, p. 151), Marx se estende bem mais no terceiro aspecto, em comparagio com os anteriores, inclusive variando a escolha das palavras, ora escrevendo educacao tecnolégica, ora educagdo politécnica e ainda formagao politécnica."* Trata-se de uma nova dimensao da educagdo que nao absorve, ndo se confunde coma educagao intelectual, tampouco com a corporal. Também nao se trata do que hoje geralmente denominamos de adestramento profissional ou mesmo pluriprofissionalizacao. Trata-se de uma nova dimensio para a educacdo escolar que procura recolher os principios gerais e cientificos de todo o processo de produsao e, simultaneamente, inicia os educandos na utilizagdo das ferramentas elementares dos diversos ramos industriais. Poderiamos afirmar, concordando com Manacorda (2010, p. 49, passim), que nesses poucos pardgrafos é delineado um verdadeiro programa de luta. Nesse sentido, acreditamos que hd em tais passagens o embrido de um programa de transigao para a educagao.” Certamente em O capital, Marx nao tem qualquer intengao de discutir o tema educagao, muito menos desenvolver qualquer programa de luta pedagégica, como foi esbogado nas Instrugdes aos delegados do Conselho Geral Provisério da Associagao Internacional dos Trabalhadores. Mesmo assim, pode-se encontrar na obra magna de Marx aspectos que confirmam e também iluminam os seus outros escritos, particularmente no que tange & base material da reflexo sobre a educacdo, especialmente as transformagdes no seio da produgdo industrial. Quase numa pardfrase do Manifesto Comunista (1848), Marx escreve em O capital (1867): A industria moderna jamais considera nem trata como definitiva a forma existente de um processo de produgao. Sua base téc- nica é, por isso, revoluciondria, ao passo que a de todos os modos de produgao anteriores era essencialmente conservadora. (Marx, 2013, p. 557) Eo autor segue o seu raciocinio, apresentando as consequéncias para os traba- Ihadores e as relagées sociais de produgao dessa revolugao nos meios de produgao: Debates atuais para uma educagéio ewancipadera | 379 Por meio da maquinaria, de processos quimicos e outros métodos, ela revoluciona continuamente, com a base técnica da producio, as fungGes dos trabalhadores eas combinagdes sociais do processo de trabalho, Desse modo, ela revoluciona de modo igualmente constante a divisio do trabalho no interior da sociedade e nao cessa de langar massas de capital e massas de trabalhadores de um ramo de produgdo a outro. (Marx, 2013, p. 557) Entdo, chega-se A condigdo profissional dos trabalhadores necessdria ao capita- lismo em permanente revolugao técnica e tecnoldgica, Sinteticamente, Marxescreve: ““A natureza da grande indistria condiciona, assim, a variagao do trabalho, a fluidez da fungao, a mobilidade pluriprofissional do trabalhador” (Marx, 2013, p. 557) Mas tal condigao nao é encarada sob qualquer perspectiva idilica, pois [.] ela reproduz em sua forma capitalista, a velha divisio do trabalho com suas particularidades ossificadas. Vimos como essa contradiao absoluta suprime toda tranquilidade, solidez e se- guranga na condigao de vida do trabalhador, a quem ela ameaca constantemente por privar-he, juntamente com o meio de tra- balho, de seu meio de subsisténcia; como, juntamente com sua fungao parcial, ela torna supérfluo o proprio trabalhador. (Marx, 2013, p. 557) Essa situagdo de intranquilidade, superfluidez e superfluidade imposta pelo modo de produgdo capitalista A classe trabalhadora e a cada trabalhador engloba obviamente todo 0 conjunto do tecido social: “essa contradigao desencadeia um rito sacrificial ininterrupto da classe trabalhadora, o desperdicio mais exorbitante de forcas de trabalho e as devastagdes da anarquia social. Esse é 0 aspecto negativo” (Marx, 2013, p. 557). Passagens como as citadas, e que podem ser lidas especialmente no capitulo treze, revelam como Marx “assume toda a realidade contraditéria ¢ até vé, no desenvolvimento das contradigdes, no emergir do dado negativo, antagénico, a Unica via histérica de solugao” (Manacorda, 2010, p. 126), isto &, de superagao da situagao atualmente existente. De fato, tal perspectiva pode ser vista numa longa nota de rodapé na qual Marx transcreve uma reflexao pedagogica de um tipégrafo francés que regressara de San Francisco, nos Estados Unidos, provavelmente da corrida do oure: 10 | Caminhos da poltenia: 30 anos da Escola Dalitéenica de Saide Joaquim Vendncio Jamais eu teria acreditado que seria capaz de exercer todos os oficios que pratiquei na California. Estava convencido de que, salvo a tipografia, eu nao servia para nada [..]. Certa vez, em meio a esse mundo de aventureiros, que trocam mais facilmente de profissdo do que de camisa, agi - ¢ juro que assim foi! — como 08 outros, Como a mineracdo nao se mostrou suficientemente rentavel, abandonei-a e me dirigi 4 cidade, onde trabalhei sucessivamente como tipégrafo, tethador, fundidor de chumbo ete. Depois de ter tido essa experiéncia de ser apto para todo tipo de trabalho, sinto-me menos molusco ¢ mais homem. (Corbon, A. De Penseignement professionnel. 2. ed. Paris, 1860, p. 50, apud Marx, 2013, p. 558; grifos meus) Desse abalo constante da estrutura social promovido pelo desenvolvimento revolucionario dos meios de produgao e que langa trabalhadores de um ramo para outro do mundo do trabalho, Marx extrai as respostas necessdrias oriundas do préprio modo de produgao capitalista: Mas se agora a variacdo do trabalho impde-se apenas como lei natural avassaladora e com efeito cegamente destrutivo de uma lei natural, que se choca com obstaculos por toda parte, a grande indistria, precisamente por suas mesmas catdstrofes, converte em questi de vida ou morte a necessidade de reconhecer como lei social geral da produgio a mudanga dos trabalhos e, consequentemente, a maior ‘polivalencia possivel dos trabalhadores, fazendo, ao mesmo tempo, com que as condigdes se adaptem a aplicacao normal dessa lei. (Marx, 2013, p. 557-558; grifos meus) Enfim, a polivaléneia ¢ © pluriprofissionalismo séo simplesmente uma con- sequéncia do desenvol ento normal das forgas produtivas, que acabam por esbarrar mais ou menos violentamente contra a jaula de ferro das relagGes sociais, de produgao. Segue Marx: Ela transforma numa questo de vida ou morte a substituicao dessa realidade monstruosa, na qual uma miserével populagdo trabalhadora é mantida como reserva, pronta a satisfazer as necessidades mutaveis da exploragdo que experimenta o capital, pela disponibilidade absoluta do homem para cumprir as exigéncias varidveis do trabalho; a substituido do individuo parcial, Debates atuais para wna educagao emancipadora | 381 ‘mero portador de uma fungi social de detathe, pelo individuo plenamente desenvolvido, para o qual as diversas fungées sociais sdo modos alternantes de atividade. (Marx, 2013, p. 558; grifos meus) Trata-se quase de uma retomada de passagens célebres de A ideologia alema (1845-1846), como a que se segue: “Chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivi- duos devem apropriar-se da totalidade existente de forcas produtivas, néo apenas para chegar a autoatividade, mas simplesmente para assegurar a sua existéncia” (Marx e Engels, 2007, p. 73). ‘Um pouco mais adiante, Marx explicita 0 que entende por apropriagio da totalidade das forgas produtivas. A apropriagao dessas forgas ndo é em si mesma nada mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produgao, A apropriagao de uma totalidade de instrumentos de produgdo é, precisamente por isso, 0 desenvolvimento de uma totalidade de capacidades nos individuos. (Marx e Engels, 2007, p. 73; grifos meus) Além disso, Marx (¢ Engels) aponta(m) que sujeito social poderd efetivar tal perspectiva: Somente os proletérios atuais, inteiramente excluidos de toda autoati- vidade, estio em condig6es de impor sua autoatividade plena, nio mais limitada, que consiste na apropriagéo de uma totalidade de forgas produtivas e no decorrente desenvolvimento de uma totalidade de capacidades, (Marx e Engels, 2007, p. 73; grifos meus) Ou seja, se, por um lado, Marx consegue captar, nas contradigdes do desen- volvimento das forgas produtivas, a emergéncia da polivaléncia, do pluripro- fissionalismo, de outro, tem a perfeita clareza de que a ultrapassagem desse estagio, dessa “realidade monstruosa” nao seré obra do mero desenvolvimento capitalista. No choque com as relagGes sociais de produgdo burguesas, é preciso que a classe trabalhadora imponha A classe dominante sua perspectiva universalizante: A apropriagao é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser realizada, Ela sé pode ser realizada por meio de uma unio que, devido ao carater do proprio proletariado, pode apenas ser uma unio universal, e por meio de uma revolugdo na qual, por um lado, inhos da politecnia: 30 anos da Escola Doliténica de Saside Joaquin Vendncio sejam derrubados 0 poder do modo de produgao e de intercambio anterior e o poder da estrutura social e que, por outro, desenvolva o cardter universal e a energia do proletariado necessdria para a reali- zapdo da apropriagdo; uma revolucao na qual, além disso, o prole- tariado se despoje de tudo o que ainda restava de sua precedente posigao social. (Marx e Engels, 2007, p. 73-74; grifos meus) Ou seja, € necessria uma ago mais ou menos consciente do proletariado para a resolucdo, em um patamar superior, das contradicdes postas na sociedade burguesa. Voltando a O capital, Marx assinala as respostas educacionais burguesas as contradigées analisadas: ‘Uma fase desse processo de revolucionamento, constituida espon- taneamente com base na grande industria, é formada pelas escolas politécnicas € agrondmicas, e outra pelas écoles denseignement professionnel, em que filhos de trabalhadores recebem alguma instrugZo sobre tecnologia e manuseio pratico de diversos instrumentos de produgao. (Marx, 2013, p. 558) Ou seja, Marx capta na realidade contraditéria da grande industria, isto é, no espago de maior desenvolvimento das forcas produtivas burguesas, o surgimento de respostas “espontaneas” aquelas contradigdes, no caso, o acesso de filhos de trabalhadores a escolas de tipo politécnicas ¢ agrondmicas (educagao superior) € de tipo profissionalizante (técnicas), entdo existentes na Franga, nas quais sto transmitidos, pelo menos, alguns saberes sobre a tecnologia e 0 manejo pratico de instrumentos de produgao. Contudo, como jé foi apontado, é preciso a intervengao do proletariado para que tais respostas “espontaneas” se efetivem ¢ que, ainda mais, sejam ultrapassadas: Sealegislagao fabril, essa primeira concessio penosamente arrancada ao capital, ndo vai além de conjugar o ensino fundamental com 0 trabalho fabril, n&o resta divida de que de que a inevitavel conquista do poder politico pela classe trabalhadora garantira a0 ensino tedrico e pritico da tecnologia seu devido lugar nas escolas operirias. (Marx, 2013, p. 558; grifos meus) Debates atuais para wna educagdo emancipadora | 383 Cerca de dez anos apés O capital e quase trés décadas apés 0 Manifesto Comunista, 0 Ultimo momento da reflexio pedagégica marxiana é 0 manuscrito Glosas marginais ao programa do Partido Operirio Alemdo, de 1875, mais conhecido como Critica do Programa de Gotha (Marx, 2012). Como se sabe, em 1875, na cidade de Gotha, dois partidos operarios alemaes— a Associagéo Geral dos Trabalhadores Alemées e 0 Partido Socialdemocrata dos ‘Trabalhadores — unificaram-se sob a denominagio de Partido Operario Alemao. Apesar da concordancia com a fusao — “Cada passo do movimento real é mai: importante do que uma diizia de programas” -, ao tomar conhecimento do programa do novo partido politico, Marx, em 5 de maio de 1875, escreve uma carta a Wilhelm Bracke, na qual coloca seus comentarios & margem do programa redigido em Gotha. Ni no caso, agressivo, é bastante sentido hoje. Ignorando-se as demais graves reflexdes de Marx sobre 0 programa, cabe ir diretamente ao aspecto que aqui nos interessa de perto. se sentido, 0 texto marxiano, embora sempre denso, e, ‘elegrafico”, se é que tal adjetivo ainda faz algum “O Partido Operdrio Alemao exige, como base espiritual e moral do Estado’ 1) Educagao popular universal ¢ igual sob a incumbéncia do Estado. Escolarizagao universal obrigatoria, Instrucao gratuita.’ Sobre essa passagem, Marx comenta: Educagéo popular igual? © que se entende por essas palavras? Cri se que na sociedade atual (¢ apenas ela estd em questdo aqui) a ‘educagao possa ser igual para todas as classes? Ou se exige que as las A médica classes altas também devam ser forgadamente reduz educacao da escola puiblica, a inica compativel com as condigdes econémicas nao sé do trabalhador assalariado, mas também do camponés? (Marx, 2012, p. 45; grifos do original) Fica clara a questo apontada por Marx: a educagao na sociedade divida em classes sociais, especificamente, na sociedade burguesa é dividida e nao pode ser igual para todos. Tanto a burguesia nao renunciaré A sua prépria educagdo quanto © proletariado nao dispde de condigdes objetivas de ingressar e permanecer na escola da burguesia. 384 | Caminkos da poltecnia: 30 anos da Escola Daliéenica de Saide Joaquim Vendncio

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