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AS GERACGES DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS DA EFETIVIDADE George Sarmento* Resumo: © presente artigo analisa a evolugdo dos direitos humanos no cenério Internacional e no sistema juridico brasileiro. A partir da idéie de geracdes € possivel pereeber 0 proceso legisiativo permanente e inesgotdvel de tas direitos na vida institucional das nacdes demacraticas. Defende a idéia de que a sociedade deve avangar no plano da liberdace, igualdade e salidariedade. Por fim sustenta que a Gignidade humana e a melhoria da qualidade de vida ds populagso depende do nivel de efetividade dos direites e garantias fundamental. 1. INTRODUCGAO Os direitos humanos s&o faculdades de agir ou poderes de exigir atribuidos ao individuo para assegurar a dignidade humana nas dimensdes da liberdade, igualdade e solidariedade, Nascem na ordem juridica supraestatal e sao recepcionados nos paises que se comprometeram a asseguré-los e garanti-los em suas Constituices. No constitucionalismo contempordneo, eles est&o prescritos no direito internacional e nas Cartas Politicas. A pessoa humana é sempre o sujeito de direito: o titular da vantagem prevista na norma juridica. A expresso direitos humanos refere-se aos direitos positivados no ordenamento supraestatal - tratados, convengées, pactos, declaracées. Quando esses direitos so constitucionalizados passam a chamar-se direitos fundamentais Os primeiros direitos humanos surgiram da luta contra a opressao € a tirania impostas a0 povo pelos governos despsticos de orientacao absolutista. A partir da Revolugo Francesa passaram a integrar as Constituigdes republicanas e monarquistas, através de longos catélogos de prerrogativas individuais ~ As chamadas liberdades publicas e os direitos politicos. Com a fim da 18 Guerra Mundial, o liberalismo classico entra em colapso por causa do aprofundamento das desigualdades sociais * Doutor em Direito PUblico/UFPE, Professor do Programa de Pés-Graduacéio em Direito/UFAL, Coordenador do Laboratério de Direitos Humanos da Universidade Federal de Alagoas. Promotor de Justiga. decorrentes do capitalismo selvagem, que sé beneficiava os detentores do capital e dos meios de produgdo em detrimento da classe trabalhadora. Na esteira doutrindria do Welfare State, os direitos sociais econdémicos culturais também foram constitucionalizados. Os anos 60 foram marcados pela luta contra a degradacéo ambiental, 0 preconceito e a intolerancia. Também inspiraram movimentos sociais organizados que reivindicavam o reconhecimento de interesses especificos, como fizeram os ambientalistas, consumidores, mulheres, minorias étnicas, religiosas e sexuais. Como se pode ver, 0 processo de construcio dos direitos fundamentais avanga com o fluxo das necessidades humanas basicas na dimens&o espaco-tempo. A sua evolugdo nos remete & idéia de “geragdes de direitos", metéfora desprovida de pretensio cientifica, mas que busca situar as categorias de direitos humanos no contexto histérico em que nasceram. 2, TEORIA DAS GERAGOES DOS DIREITOS HUMANOS A teoria das geragdes tem como paradigma a evoluco histérica dos direitos humanos na ordem juridica supraestatal e nas Constituicées dos Estados contempordineos. Preconiza que 0 processo de criacio de direitos humanos é continuo e inesgotével. Os defensores dessa teoria vinculam cada etapa civilizatéria a valores relevantes para a vida social. Sob a inspiracdo de determinado elemento axioldgico, surgem direitos com o mesmo perfil. Os direitos humanos nao sao estanques ou incomunicéveis, mas complementares € conexos: integram-se uns aos outros para realizar 0 ideal de dignidade humana. O vocébulo “geragéo” nos remete a ideia de direitos sob a mesma inspirag&o axiolégica, que surgem em dado espaco temporal e continuam a se reproduzir de acordo com as etapas evolutivas da civilizagdo. Podemos esquematizar as geracées de direitos humanos da seguinte forma: a) 1? Geragao - liberdades publicas e direitos politicos; b) 22 geragao - direitos sociais, econémicos € culturais; c) 3? geragio - direitos difusos, coletivos e individuals homogéneos; d) 42 geracao - direitos da bioética e direito da informatica; 2.1, Direitos Humanos de 1° Geragéo A 12 geracao dos direitos humanos tem na /iberdade o elemento axiolégico preponderante. A Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidad&o, proclamada em 1789, é o seu marco histérico, Nessa categoria, encontram-se as liberdades puiblicas e os direitos politicos. As liberdades publicas, também denominadas direitos civis ou direitos individuais, so prerrogativas que protegem a integridade fisica, psiquica e moral das inger€ncias ilegitimas, do abuso de poder ou qualquer outra forma de arbitrariedade estatal. Atuam na dimensdo individual e protegem a autonomia da pessoa humana. S80, portanto, faculdades de agir que implicam o dever de abstencao, sobretudo do Estado. Entre os direitos dessa categoria estado a liberdade de expressdo, a presuncdo de inocéncia, a inviolabilidade de domictlio, a protecdo a vida privada, a liberdade de locomocdo, os direitos da pessoa privada de liberdade, o devido proceso legal etc. Todos possuem um ponto de confluéncia: a tutela da pessoa humana em sua dimensao individual. Os direitos politicos, por sua vez, asseguram a participacdo popular na administracéo do Estado. O nticleo dos direitos politicos & composto pelo direito de votar (jus suffragi), pelo direito de ser votado (jus honorum), pelo direito de ocupar cargos, empregos ou funcées puiblicas (jus ad officium) e pelo direito de neles permanecer (jus in officio). Consiste ainda no controle dos atos administrativos através de propositura de aco popular e do direito de filiagéo @ partidos politicos, Qual a diferenca entre direitos humanos e direitos politicos? Os direitos humanos tutelam todas as pessoas fisicas independentemente de nacionalidade, etnia, idade, religiéo ou condig&0 financeira. Os direitos 3 politicos restringem-se ao exercicio da cidadania: S&o direitos de participag&io. Enquanto os primeiros asseguram a dignidade ao homem, os segundos restringem-se aos eleitores, garantindo-Ihes a prerrogativa de participar da vida politico-institucional de seu pais. As liberdades plblicas, por exemplo, protegem o individuo do arbitrio. Caracterizam-se por exigir conduta nao interventiva do Estado. Valorizam 0 ser humano em sua individualidade. Quando falamos em liberdade de expressdo, referimo-nos & faculdade individual de emissao do pensamento sem censura ou proibicso do Estado. Assim, toda pessoa humana tem a prerrogativa de manifestar publicamente suas idéias politicas, filoséficas, artisticas, cientificas e comunicativas sem submeter-se & censura. Outro exemplo. Ao reconhecer a liberdade de consciéncia, a Constituigéo assegurou a todos nao sé a faculdade de escolher livremente sua religiéo, mas também de optar por ser ateu ou agnéstico, sem ser molestado ou discriminado por suas conviccées. As liberdades ptiblicas podem conter comandos direcionados ao legislador ordindrio para proteger o individuo da intervengao de terceiros e, até mesmo, do Estado. A Constituiggo de 1988 veda determinadas praticas como a tortura, os tratamentos desumanos e degradantes infligidos as pessoas privadas de liberdade. Proibe as penas de morte, de cardter perpétuo, de trabalhos forcados, de banimento ou cruéis. Também determina a criago de leis que criminalizem o racismo e a aco de grupos armados, civis e militares. Por fim, estabelece que o tréfico ilicito de entorpecentes, 0 terrorismo e os crimes hediondos sdo inafiangdveis e insuscetiveis de graga ou anistia. As liberdades piiblicas foram positivadas nos textos constitucionais com a miss&o precipua de proteger o homem do despotismo estatal. Na contemporaneidade, porém, assumem uma nova fungSo: a proteco contra terceiros. Significa dizer que elas podem ser invocadas contra os particulares, pessoas fisicas ou juridicas. E 0 que acontece quando ingressamos com um pedido de direito de resposta ou aco de Indenizacdo contra 0 érgo de imprensa que atentou contra nossa honra ou vida privada. Portanto, possuem eficdcia vertical quando 0 destinatario for o Estado; ou eficdcia horizontal, quando forem os particulares (Ongs, empresas, érgaos de imprensa, pessoas fisicas etc.). JA os direitos politicos disciplinam o proceso eleitoral, a filiag3o partidaria, 0 exercicio do voto, o alistamento eleitoral, os casos de inelegibilidade e a alternancia de poder. So direitos da cidadania, uma vez que seus titulares devem ser eleitores ou terem capacidade eleitoral. As criangas, por exemplo, sdo titulares de direitos humanos, mas nao de direitos politicos. Ndo exercem cidadania plena, embora sejam sujeitos de direitos individuais, sociais, econémicos e culturais. Est&o impossibilitados de participar das eleiges ou serem autores em ac&o popular. Sua cidadania, portanto, é parcial ja que a fruigo de direitos esta limitada & sua faixa etdria. 2.2. Direitos humanos de 2? Geracao Os direitos de 2@ geragéo emanam da concepcao tedrica de Estado do Bem-Estar Social, que comegou a ganhar corpo apés o término da 12 Guerra Mundial. Caracterizam-se por serem poderes de exigir prestacées estatais positivas que assegurem a todos igualdade de oportunidades. Nas Constituigdes contemporaneas, eles se subdividem nas seguintes categorias: direitos sociais, direitos econédmicos e direitos culturais (DESC). A 28 geracao produziu direitos que obrigam a intervenco do poder plblico para assegurar condicées bdsicas de satide, educacSo, habitac&o, transporte, trabalho, lazer etc., através de politicas publicas e acées afirmativas eficientes e inclusivas. Do ponto de vista seméntico as liberdades se inserem na categoria “direitos de...", representada por prerrogativas individuais, enquanto a segunda gerac3o é composta por “direitos &...”, pois implicam o poder de exigir do Estado o cumprimento de prestagées positivas que garantam a todos o acesso aos bens da vida imprescindiveis a uma vida digna. Muitos foram os textos precursores dos direitos sociais, econémicos ¢ culturais. Entre eles, a Constituicéo Francesa de 1848, a Constituiggo Mexicana de 1917, a Declaraco Russa dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado (1918) e o Tratado de Versailles, de 1919, Mas foi a Constituicéo alemé de 1919, mais conhecida como Constituigéo de Weimar, que primeiro os sistematizou, criando um catélogo de direitos que exerceu forte influéncia sobre os paises democraticos. A 28 geracao caracteriza-se pela existéncia de um conjunto de direitos fundamentais que conferem aos seus titulares 0 poder de exigir do Estado prestacdes positivas relativas ao bem-estar do individuo e da sociedade. Impdem 2o Estado verdadeiras obrigagdes de fazer, como a criag&o de vagas nas escolas publicas de ensino fundamental, a construgo de creches para abrigar os filhos de mulheres trabalhadoras, 0 aumento do numero de leitos nos hospitais publicos, distribuicfo de medicamentos especiais etc. S80, portanto, direitos a agdes positivas, pois obrigam o Estado a promover um conjunto de medidas administrativas e legislativas que assegurem as condigdes basicas para uma vida digna (minimo existencial), a partir das quais cada individuo possa se desenvolver de acordo com seus talentos e aspiragées. Além disso, caracterizam-se por serem direitos fundamentais prestacionais, pois se dirigem ao Estado, impondo-lhe um conjunto de obrigagdes que se materializam na produgGo de leis, execucdo de politicas publicas, programas sociais e aces afirmativas. Dessa forma, os direitos de 28 geracéo sé se concretizam mediante a interveng&o do Estado para garantir a todos o acesso as prestacdes civilizatérias basicas, aos bens da vida essenciais & sobrevivéncia e a servicos ptiblicos de boa qualidade. Esto expressos em normas constitucionais cogentes; obrigam o poder publico @ cumprir determinadas obrigages sob pena de sancées - mandamentos, obrigagées de fazer, indenizagdes etc. Além disso, os direitos sociais, econdmicos e culturais so justicidveis: podem ser exigidos em juizo através de acées individuais ou coletivas. Num esquema n&o exaustivo dos DESC contemplados na Constituic&o Federal, podemos configuré-los assim: a) Direitos Sociais: educacéo, satide, trabalho, moradia, lazer seguranca, previdéncia social, assisténcia aos desamparados, protegéo a maternidade e a infancia (CF, art. 6°), b) Direitos Econé: fung&o social da propriedade, livre concorréncia, defesa do os: valorizacdo do trabalho, livre iniciativa, consumidor, redugao das desigualdades regionais e sociais etc (CF, art. 170). °) Direitos Culturais: acesso as fontes da cultura nacional, valorizagao e difuséo das manifestagées culturais, protecio as culturas populares, indigenas e afro-brasileiras; protecdo ao patriménio cultural brasileiro, que séo os bens de natureza material e imaterial portadores de referéncia & identidade, & acéo, & meméria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (CF, arts. 215 e 216). Uma das discussées mais recorrentes no Ambito do Constitucionalismo brasileiro refere-se a efetivacdo dos direitos sociais. O cumprimento das prestagées estatais esté condicionado ao uso racional dos recursos plblicos em todos os niveis federativos. Os governos sao obrigados a lidar com a escassez de verbas para atender as demandas setoriais, cada vez mais complexas e onerosas. Muitas vezes séo obrigados a fazer escolhas tragicas diante das necessidades concretas. Optar entre construir uma escola ou um hospital num contexto de extrema pobreza é um exemplo dos dilemas enfrentados todos os dias pelos gestores piblicos. © Judiciério é frequentemente provocado para solucionar litigios dessa natureza. Geralmente Estados e Municipios se defendem alegando a inexist@ncia de recursos financeiros para arcar com tantas prestacées reivindicadas pela sociedade civil. Constroem um discurso bem articulado baseado em argumentos como a reserva do possivel (auséncia de dotacgo orcamentéria), impossibilidade de controle judicial sobre a discricionariedade do Chefe do Executivo e violagéo do principio da separacao dos poderes. © Judiciario tem exercido importante funco concretizadora dos direitos sociais na medida em que compele os gestores piiblicos a cumprir as obrigagées prescritas na Constituicio de 1988. A jurisprudéncia do Supremo Tribunal Federal tem reforgado a natureza cogente e vinculante dos direitos de 2? geracio, afastando de vez a velha concepcao de que seriam meras normas programaticas cuja observancia dependia da “boa vontade” do governante. E evidente que sua eficdcia é gradual, pois os direitos sociais esto prescritos em normas-principios - mandados de otimizacio -, aplicdveis da melhor forma possivel diante das situacées faticas e juridicas existentes. Porém, ha parametros minimos a serem observados pelo magistrado como o “minimo existencial”, que € a satisfagéo das necessidades basicas de cada ser humano. O magistrado abandonou a antiga neutralidade para assumir uma postura de total comprometimento com a concretizagaéo dos direitos fundamentais e das opgdes politicas contidas na Constituicdo. A concepgéo de controle judicial das politicas plblicas é consensual na jurisprudéncia brasileira. © Supremo Tribunal Federal jé reconheceu que a dimensdo politica da jurisdigo constitucional legitima os juizes a combater a inércia dos gestores piiblicos no cumprimento dos direitos sociais, econémicos e culturais através da aplicacéo de sancées previstas em lei*. Tal pratica n&o constitui violacéo a separacéo dos poderes, mas prerrogativa confiada ao Judiciério de tornar efetivas as opgées politicas eleitas pelo constituinte brasileiro, entre elas a erradicacéo da pobreza, a redugdo das desigualdades sociais, e a construgdo de uma sociedade livre, justa e solidéria. 2.3. eitos Humanos de 34 Geracdo Os direitos de 3@ gerag&o, também conhecidos como direitos de fraternidade, como foram batizados por Karel Vasak, ou direitos de solidariedade, como prefere Etiene-R. Mbaya, passaram a ser adotados nos textos constitucionais a partir da década de 60. Eles tém como pressuposto ? STF - 28 Turma - Ag. Reg. no Recurso Extraordindrio 410.715-5/SP - Rel. Min. Celso de Mello ~ voto proferido em 22 de novembro de 2005. a protegdo de grupos sociais vulnerdveis e também a preservacio do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A defesa desses direitos depende sempre da atuac&o pro populo do Ministério Publico ou de representantes da sociedade civil, sobretudo as organizacbes n&o-governamentais. Também pode ser exercida pelo cidadao nas aces populares. Preferimos a expressao direitos de solidariedade a direitos de fraternidade. A solidariedade implica a alianca com o “nés” sem o rompimenta do “eu”. Significa a superagéo dos interesses egoisticos por uma postura altruistica, comprometida com 0 bem comum. Traduz a responsabilidade de cada individuo pelos destinos da sociedade. £ a mais profunda manifestacéo do sentimento de pertenga. Um dever imposto a todos pela ordem constitucional. J a fraternidade tem conotacéo mais religiosa que juridica, pois a caridade se manifesta como uma virtude que eleva moralmente o individuo através da ajuda aos menos favorecidos, mas no constitui uma obrigac3o imposta pela lei. Os direitos difusos e coletivos séo a principal manifestagéo do principio da solidariedade. Sua concretizacao é responsabilidade do Estado e da sociedade. Possuem dois pontos em comum: a transindividualidade e a indivisibilidade. S80 transindividuais porque sé podem ser exigidos em ages coletivas € nao individuals, pois o seu exercicio esta condicionado a existéncia de um grupo determinado ou indeterminado de pessoas; séo indivisiveis porque néo podem ser fracionados entre os titulares. Nao ha como apartar a fatia de cada um. A satisfagio de seus mandamentos beneficia indistintamente a todos. A violado é igualmente prejudicial & totalidade do agrupamento human. No plano internacional, a terceira gerac3o abrange o direito ao desenvolvimento, 0 direito & paz, o direito de propriedade sobre o patriménio comum da humanidade, o direito de comunicago, o direito de autodeterminag&o dos povos’, o direito 4 defesa de ameaca de purificagao racial e genocidio, 0 direito a protecéo contra as manifestacdes de discriminago racial, 0 direito & protegSo em tempos de guerra ou qualquer 2 FERREIRA Filho, Manoel Gongalves. Direitos Humanos Fundamentais. Sao Paulo: Saraiva, p. 58. outro conflito armado*. No sistema juridico brasileiro, a solidariedade se desdobra em direito ambiental, direitos do consumidor, da crianca, adolescente, idosos e portadores de deficiéncia, bem como a proteg&o dos bens que integram 0 patriménio artistico, histérico, cultural, paisagistico, estético e turistico. Os direitos de terceira geragéo tém a funcio de tutelar os interesses publicos primarios, que nada mais si0 que as legitimas expectativas da coletividade em relaca a determinado bem da vida. Esses interesses nem sempre coincidem com as pretensdes da Administracio Publica (interesses ptiblicos secundérios). Muitas vezes s&o divergentes e incompativeis. Suponhamos que o poder pubblico autorize o funcionamento de uma industria quimica, mesmo sabendo que os dejetos descartados na atmosfera e nos cursos d’égua seréo extremamente nocivos & populacao. Nessa hipdtese hd um evidente desnivelamento entre o interesse estatal (secundério) e as expectativas da coletividade (primario), Por isso, a legislacao brasileira legitima _organizagdes nfo-governamentais € instituigdes estatais (Ministério Publico, por exemplo), a propor agdes judiciais destinadas a combater esse tipo de violagao. © que distingue os direitos coletivos dos direitos difusos? Os direitos coletivos possuem um niimero determinado ou determindvel de titulares - mutuérios do Sistema Financeiro da HabitacSo, usuarios do Sistema Unico de Sade, alunos da rede estadual de ensino, adquirentes de determinado produto ou servigo. Todos os titulares possuem algo em comum: estdo ligados entre si ou com a parte contraria por uma relag3o juridica base, como o contrato de financiamento da casa prépria ou a matricula na rede estadual de ensino. Jé os direitos difusos caracterizam-se pela indeterminagio de seus titulares, E impossivel estabelecer-se o ntmero exato dos beneficiérios. Além da indeterminacao, os sujeitos de direito unem-se por circunstancias de fato. Quando uma propaganda enganosa é veiculada + MBAYA, Etienne-Richard. “Direitos Humanos como Direitos de Liberagéo” in Nomos, XIII-XIV, p.63. Cf. também o Relatério do Parlamento Europeu de 1995, intitulado Os Direitos do Homem no Mundo. 10 numa rede de televisdo, torna-se absolutamente impossivel mensurar 0 numero de pessoas que foram atingidas.; O mesmo acontece com a impossibilidade de estabelecer-se 0 numero de pessoas que irdo inalar o ar poluido de dado municipio. A tutela dos direitos de solidariedade é uma das dimensdes mais importantes da cidadania contemporanea, na medida em que promove a melhoria da qualidade de vida da populacio, assegurando-Ihe meio ambiente equilibrado, servigos puiblicos eficientes, respeito a diversidade e protego aos hiposuficientes. Dai a importancia crescente da intervengao do Ministério Publico para impor ao poder ptiblico e & sociedade civil medidas concretas que assegurem sua efetividade. 2.4. Direitos Humanos de 4? Gerag3o A 42 gerac&o dos direitos humanos ainda néo esta plenamente configurada. As opiniées dos doutrinadores séo divergentes em relagdo ao seu contetido. Muitos até discordam de sua existéncia. A polémica foge aos propésitos dessa exposicao. Apenas defendemos que ela se desenvolve em dois eixos: os direitos da bioética e os direitos da informatica. Os litigios decorrentes do avanco da biotecnologia e da engenharia genética deram origem a uma nova categoria de direitos: os direitos da bioética. O discurso juridico incorpora temas como 0 suicidio, a eutandsia, 0 aborto, o transexualismo, 0 comércio de érgaos humanos, a procriac&o artificial, a manipulagéo do cédigo genético e a clonagem de seres humanos. A essa altura, podemos perguntar: a bicética integra a juridicidade? Os espacos de atuagao da Etica e do Direito so distintos. Etica pressupie a eleic&o de valores consensualmente aceitos pela coletividade e a expectativa de que sejam respeitados espontaneamente. O Direito troduz forcga coercitiva aos valores éticos, estabelecendo normas de conduta € impondo sangies estatais aos responsaveis pelas violagées. O Estado, por sua vez, executa as condenagées mesmo que seja necessario recorrer a forca fisica, & expropriagéo de bens e a outras medidas repressivas. Portanto, a apropriag&o dos principios bioéticos pelos direitos ul fundamentais é uma forma legitima de impor aos governos, aos pesquisadores, as instituicdes cientificas e as induistrias 0 respeito a vida ea dignidade da pessoa humana. A experiéncia tem mostrado que o controle social baseado exclusivamente em principios morais é ineficaz em virtude da falta de coerco estatal. Apenas as normas juridicas séo capazes de movimentar o aparato repressivo do Estado para cumprir essa tarefa. Sem elas, ndo ha como punir os crimes contra a humanidade provocados pela manipulacéo abusiva dos conhecimentos cientificos. A necessidade de eleger um sistema de valores essenciais a sobrevivéncia da espécie humana justifica a incluséo dos postulados da bioética nos textos legais. No outro eixo dos direitos de 4? geracéo esté o direito da informatica, produto da Sociedade da Informagdo e suas complexas formas de expresso comunicativa. As relagdes intersubjetivas nascem de atividades relacionadas & informatica, telematica e telecomunicagées, bem como a transmisséo de dados através de meios eletr6nicos e interativos. 0 grande desafio dessa geragdo é a solug8o de litigios que envolvam o comércio virtual, a pirataria, a invasdo de privacidade, direitos autorais, propriedade industrial etc. A FUNDAMENTACAO DOS DIREITOS HUMANOS Fundamentar os direitos humanos significa buscar a justificacao racional para a sua existéncia®, E matéria que, embora se desenvolva no plano axiolégico do direito, dé 0 substrato necessario para que eles sejam reconhecidos e protegidas nos sistemas juridicos. Na Filosofia do Direito podemos encontrar muitas explicacées para o fenémeno. Os jusnaturalistas sustentam que os direitos humanos so inatos, anteriores e superiores ao direito positive. Os historicistas afirmam tratar-se de direitos varidveis e relativos a cada contexto histdrico. A fundamentagio dos direitos humanos deve ser absolutamente racional. Portanto nfo pode impregnar-se de ideologia politica, paixdes, intuicdes, emocées, preconceitos, suposicées. & um dos principais temas da filosofia do direito. 2 Os utilitaristas defendem que sua fung3o é a de produzir felicidade crescente no seio da sociedade. A fundamentag&o axioldgica mais coerente é a de que os direitos fundamentais emanam da dignidade humana, ou seja, das exigéncias consideradas imprescindiveis e inescusdveis a uma vida digna®. A nogéo de dignidade evoluiu com o tempo. Num primeiro momento tentou-se explicd-la a partir de argumentos religiosos que defendiam a origem divina do homem, criado & imagem e semelhanca de Deus. Depois a tese de que ela era inata, que integrava a esséncia do ser humano. © imperativo kantiano sustenta que a pessoa humana no pode ser utilizada como um meio, mas como um fim. O homem nasce livre e ndo pode ser usado como coisa, objeto. O principio da dignidade salvaguarda 0 homem de toda forma de escravidéo, opresséo ou degradacdo a sua integridade fisica, psiquica ou moral. Além disso, implica o dever estatal de satisfaco das necessidades basicas de cada membro da coletividade, tanto no plano individual como no coletivo. Mais do que categoria axiolégica, a dignidade da pessoa humana foi elevada & dimensao juridico-constitucional. E um dos fundamentos da Reptiblica Federativa do Brasil (CF, art. 19, III). O Estado deve estar a servigo do homem, no 0 contrario. Nessa perspectiva, o principio da dignidade ocupa a centralidade do sistema juridico, devendo ser efetivado pelo Estado. Com o objetivo de promover a crescente adaptacdo social, através da valorizacéio do homem em sua dimensdo individual e coletiva, o Direito valorou a dignidade como principio constitucional supremo, do qual ‘emanam subprincipios norteadores de direitos fundamentais, como se pode ver do esquema abaixo: ° FERNANDES, Eusebio. “El problema Del fundamento de los derechos humanos", in Anudrio de Derechos Humanos, n. 01. Madri: Instituto de Derechos Humanos, Universidad Complutense, 1982, p. 98. 13 DIGNIOADE Ie eee soupanieoaoe | | ozmocracia | | Lisenonoe | IGUALOADE | © principio da dignidade humana possui quatro dimensdes axiolégicas basicas: da liberdade brotam os direitos individuais e os direitos politicos; da igualdade, os direitos sociais, econémicos e culturais; da solidariedade, os direitos difusos e coletivos. A democracia surge com a ambiéncia institucional ideal para o florescimento de todos eles. Sob a inspiragao da dignidade humana, os direitos fundamentais n&o podem ser considerados apenas prerrogativas individuais ou coletivas. Eles também integram uma ordem de valores que orienta e justifica o Estado Democratico de Direito. Dai a afirmagdo de eles possuem duas dimensées: a subjetiva e a objetiva. Na dimensdo subjetiva os direitos fundamentais se exteriorizam como faculdades de agir ou poderes de exigir com forca normativa. Isso permite que os seus titulares possam buscar a tutela jurisdicional em caso de violagéo. Na dimens&o objetiva eles possuem dupla fung&o. De um lado, exteriorizam a vontade de integracio material: 0 desejo de coeséo da comunidade e a realizaco de objetivos comuns. De outro, séo o fundamento de validade da ordem legal constitu/da’. Assim, os direitos fundamentais no se dirigem apenas a protecio de pessoas ou grupos sociais. Eles representam a decis3o politica de coesdo do povo a partir de sua histéria, cultura e tradicdes, fortalecendo o sentimento do “réve de /'avenir partagé” - sonho do futuro compartilhado, na expressaio de Georges Burdeau. Também sao pardmetros que permitem ? SMEND, Rudolf. Constitucién y Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estidios Constitucionales, 1985, p. 232. 14 aferir a legitimidade do sistema juridico a partir do juizo de adequacio entre 0 direito objetivo e os valores universamente consagrados. . EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS, A populagdo tem cunhado expressdes como “cadeia é para pobre” (= © rico nunca vai preso) e “no Brasil tudo acaba em pizza” (= os corruptos ficam sempre impunes) para criticar o sistema juridico vigente. 0 senso comum costuma a confundir incidéncia da norma juridica com sua efetividade. Dai a necessidade de distinguir os conceitos. A principal funcéo das normas juridicas, 0 que as diferencia das normas pertencentes aos demais processos de adaptacao social, é a incidéncia. Uma vez vigente, a norma juridica valida incidiré sempre que houver a constituicgo de seu suporte factico. A incidéncia (eficdcia legal), que 6 infalivel, ocorre no mundo psiquico. Mais do que isso: é fato do mundo dos pensamentos, que independe da adesdo esponténea dos destinatarios ou de sua aplicagao pelo Estado. N3o se deve confundir incidéncia com atendimento & norma juridica. Cronologicamente, a incidéncia antecede o atendimento, constituindo-se até mesmo pressuposto deste. N&o se pode investigar a eficdcia social (efetividade) da norma juridica que ainda no incidiu ou que no tem condigSes de incidir. © ideal de justia consiste na perfeita simetria entre a norma juridica e o meio social, na coincidéncia entre incidéncia e observancia. Se a coincidéncia é dificil ou improvavel, se ndo ha simultaneidade entre elas, é porque nao houve atendimento espontaneo, tinica variavel desta relacdo. Incidéncia e atendimento pertencem a planos diferentes do fenémeno juridico. A incidéncia deve ser investigada como aspecto da dimenséo normativa do direito. J4 0 atendimento, que é elemento essencialmente aferivel no cotidiano e que se relaciona com a repercussio social da norma juridica que incidiu, hé de ser estudado no plano sociolégico. O socidlogo analisa a repercuss&o social de determinada norma juridica para verificar o seu grau de efetividade nas relacées intersubjetivas. 15 Neste aspecto, a investigacao sociolégica tem a miss8o de descobrir se existe ou no coincidéncia entre os comandos contidos no preceito legal e 0 que concretamente ocorre no mundo social. A norma juridica serd socialmente eficaz na medida em que a efetividade atingir niveis aceitaveis, © que significa dizer que, de maneira geral, os destinatarios aderiram a conduta nela prescrita. Nao basta que os direitos humanos estejam previstos em tratados Internacionais ou nas Constituigées. E preciso que eles sejam respeitados na realidade social, 0 que s6 é possivel se os Estados se comprometerem a garanti-los e aplicé-los nas relagdes interpessoais. E al que entra o conceito de efetividade como dimens&o socialégica do fendmeno juridico. A verificago da efetividade permite aferir os resultados concretos das normas juridicas na vida cotidiana Para que as normas juridicas sejam instrumento de adaptacéo social, é necessdrio estarem em consondncia com o seu tempo, refletirem os valores vigentes e serem reconhecidas como legitimas pela coletividade. Apenas assim elas sero verdadeiramente obedecidas, pacificando, integrando e adaptando o corpo social. A verificag3o da efetividade dos direitos fundamentais esta condicionada a trés elementos objetivos: observancia, aplicaco e existéncia de garantias processuais eficazes. Observancia significa a adeso esponténea dos destinatérios as normas de direitos fundamentais. Ocorre quando 0 mero conhecimento do texto normativo jé é suficiente para pautar a conduta sem a necessidade de intervengdo coercitiva do Estado. J4 a aplicacdo pressupde um ato de autoridade - um juiz, por exemplo - que determine o cumprimento do comando normativo violado. A observancia tem como fundamento a espontaneidade da conduta; A aplicag3o pressupde coercao estatal. As garantias processuais também s&o importantes vetores de efetividade. Enquanto os direitos fundamentais se exteriorizam como prerrogativas individuais e coletivas de proteco & dignidade humana, as garantias so os instrumentos através dos quais eles se concretizam na realidade social. S80 exemplos de direitos-garantia: habeas corpus, 16 mandado de seguranca, aco popular, aco civil publica, habeas data e mandado de injungao. Além das categorias acima descritas, 0 método constitucional desenvolveu algumas técnicas destinadas a promover a efetividade dos direitos fundamentais como a aplicabilidade imediata, a incluso no cerne irrestringivel, a forca vinculante erga omnes e a cléusula da proibigo do retrocesso, que seraa brevemente abordadas a seguir. (1) Aplicabilidade imediata. As normas juridicas de direitos fundamentais estdo aptas para incidir e serem aplicadas pelas autoridades competentes a partir da promulgacao do texto constitucional, Significa dizer que no dependem de legislaco regulamentadora para produzir efeitos. A eficdcia legal tem como principal conseqiéncia o poder-dever de os juizes utilizé-las na solugo de conflitos interpessoais e movimentar o aparato estatal para impor o respeito aos seus comandos. (2) Cerne irrestringivel. Elas também integram o niicleo duro da Constituicgéo, no podendo ser objeto de emendas constitucionais destinadas a abolir os direitos fundamentais. S80 verdadeiras cldusulas pétreas que impedem a apresentagdo de propostas de emendas constitucionais que os suprima ou descaracterize 0 seu contetido essencial. Essa técnica garante a perenidade e os protege das ingeréncias ditatoriais e arbitrérias de detentores do poder politico. (3) Forga vinculante. Os direitos fundamentais possuem forca vinculante erga omnes, pois obrigam 0 Executive, 0 Legislative e o Judiciério a cumprirem suas determinagées, seja o dever de abstengao ou a prestacSo positiva. Dessa forma, as leis, as decisées judiciais e os atos administrativos so submetides a controle de constitucionalidade, podendo ser anulados quando violarem os direitos assegurados e garantidos nos textos canstitucionais. (4) Cléusula da_proi mandamento dirigido ao legislador para que néo revogue as normas igfio do retrocesso. Constitui-se no infraconstitucionais que disponham sobre o cumprimento de prestagdes relativas a direitos sociais. Ela reforca a ideia de que tais direitos obedecem 7 a um processo evolutivo continuo, imune a qualquer tipo de retrocesso. Uma vez positivados, incorporam-se ao patriménio juridico da pessoa humana nao podendo ser suprimidos pelo Estado. Por exemplo, uma lei municipal que garante merenda escolar aos alunos de ensino fundamental no pode ser revogada para satisfazer o interesse do prefeito em cancelar a prestago positiva. A revogagao sé é possivel se a municipalidade promover esquemas alternatives compensatérios como a implantacdo de “bolsa merenda”. Isto porque 0 acesso & merenda subjetivou-se, passando a integrar o patriménio individual de cada crianga matriculada, Como se pode ver, a efetividade dos direitos humanos é 0 grande desafio do constitucionalismo contemporaneo. Os paises integrantes das Nag6es Unidas assumiram 0 compromisso solene de assegurar as condicdes necessérias para que os tratados internacionais sejam respeitados em seus territorios. Mas nem todos estao dispostos a cumpri-lo integralmente. A mera normatizacao nao é suficiente. E preciso que os Estados garantam as condigdes necessérias para que eles possam concretizar-se_plenamente. Isso implica a ambiéncia democratica, independéncia de poderes, rigido controle de constitucionalidade, mecanismos limitadores do poder politico, garantias processuais especificas ¢ liberdade de imprensa A efetividade depende de mobilizacio popular, da democracia participative. O papel fiscalizador dos cidadaos e das organizagdes nao- governamentais é essencial para a concretizacéo dos direitos humanos. A sociedade civil organizada tem o dever de protagonizar movimentos em defesa das liberdades ptiblicas, dos direitos sociais, culturais e econémicos. Pode abragar causas ambientais ou a defesa de grupos vulneraveis, forcando os governos a adotar medidas para solucionar os problemas. A comunidade internacional também pode pressionar os Estados a respeitar os direitos humanos, aplicando as sangdes previstas em tratados internacionais, inclusive a intervengéo humanitéria. Por outro lado, entidades privadas como a Anistia Internacional, Médicos Sem Fronteira, Transparéncia Internacional e Jornalistas Sem Fronteiras assumem a importante misséo de denunciar as violagées aos direitos humanos perpetradas em todos os paises do Planeta. A aco politica dessas entidades 18 tem forgado os governos tomar providéncias eficazes para combater a violéncia, a pobreza, 0 genocidio e a intolerancia racial ou religiosa. Enfim, a efetividade dos direitos humanos n&o é um problema essencialmente juridico. E certo que a positivagéo nas Constituicdes e tratados internacionais foi um grande passo para a universalizacéio de principios e compromissos de fortalecimento da dignidade humana sobre todos os povos do Planeta. Mas o principal desafio ainda é 0 de concretizd- los na realidade social, sobretudo com o fortalecimento da igualdade de oportunidades e a distribuigdo equitativa das prestacées civilizatérias. Para que isso ocorra é preciso a conjuncéo de esforcos das instituicées democraticas e da sociedade civil no sentido exigi-los e incorpord-los em sua atuac&o cotidiana. Afinal a efetividade depende do incondicional exercicio da cidadania e da democracia participativa. 19

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