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CAPITULO 2 CINCO PARABOLAS ste ensaio fol escrito para uma série de palestras, Philosophy in its Context [A Filosofia em seu Contexto}, dadas ao longo de um ano na Johns Hopkins University, em Baltimore, no periodo de 1982-1983. As palestras, organizadas por Richard Rorty, Jerry Schneewind e Quentin Skinner, deveriam ter um tom ligeiramente subversiva, ¢ deixar ns filésofos mais consci- entes da cfervescéntia que estava, na época, acontecendo entre os escritores de histéria, a fim de nos ajudara repensar como fazer a historia da filosofja. Mi- nha contribuicgo foi apresentada pela primeira vez na Universidade de Bielefeld, Alemanha, onde eu estava trabalhando com o “grupo die pr robalsilicade” lidera- do por Lorenz Kriiger (ver Kriiger e Daston, 1987). Dai as referéncias, na primeira parabola, a Dresrlen — na entao ainda existente Republica Democratica Alea. Meu entusiasmo por Brecht, na segunda parabola, ficou ainda maior depuis de cu ter visto varias de suas pecas na Berlim Oriental A abordagem da historia da filosofia em termos de uma troca de cortes- pondéncia entre amigos pode me irritar tanto quanto a qualquer um. Alguns poucos herdis sdo escalhidos como correspundentes além dos mares do tem po, herdis cujas palavras deve ser lidas como se fossem obra de criangas bri- Ihantes, mas desvalidas, em um campo de refugiados, profundamente instrutivas, mas precisando de firme carregan. Odeio Isso, mas minha primeira parabola, “A Familia Verde", expressa exatamente tal mensagem anti-histérica. Descartes (por exemplo) estd vivo, ou pelo menos é o que digo. Minha segu nda parabola é um antidota instantaneo, E chamada de “O Paradoxo de Brecht", €€ construfda em torno du fatu de que Brecht, ao ler Descartes, n3o conseguiu elated. TaN HACKING: evitar exclamar que Descartes vivia em um mundo completamente diferente do nosso (ou, pelo menos, do dele). Minha terceira pardbola, “Palayras Demais", é autoflagelante, E sobre uma concepgao bem radical de como a historia do conhecimento determina a natureza dos problemas filosdticos. J4 tive essa concepedo. Eu a repito aqui para repudiar a visao idealista ¢ verbalista da filosofia da qual ela surgiu. As duas dltimas paraholas, "Refazendo o Mundo” e “Inventando Pes- soas”, sAo uma vez mais complementares e antitéticas. Resumindlo, a despeito de tudo © que aprendi com T. 5. Kuhn, acho que hé um modo importante como a histéria nao é importante para a filosofia das ciéncias naturais, ao mes- mo tempo em que ela é importante para a filnsafia de pelos menos algumas das cincias humanas. Essa sera, das minhas ideias, a mais dificil de explicar, mas, pelo menos para aqueles que preferem teses a parabolas, ha uma tese ali, Sob certos aspectos, é uma velha castanha, mas tostada, espero, sobre novos carvoes. Pardbolas podem ser enganosas. Todas as minhas cinco envolvem dife- rentes relagGes entre a filosofia ¢ seu passa. A primeira € um lembrete de que leituras anacrénicas ce antigos textos candénicos podem ser de valor fundae mental por seus prdprios méritos. A segunda nos recorda que esses mesmos textos podem nos lembrar como estamos distanciadas de nosso passado, A ter- ceira, que € bem autacritica, é sabre 0 usu exayerades da histdria para a andlises de dificuldades filoséficas. A quaita e a quinta discutem, respectivamente, os usos da histéria na fitosofia das ciéncias naturais e nas ciéncias socials @ huma- ‘nas, A quarta recotre mais aT. $. Kuhn, ea quinta a Michel Foucault. A familia verde Hé pouco tempo visitei a cidlade-fénix de Dresden, que, além de suas colecées de arte europea, é 0 lar de uma mostra notavel de porcelana chinesa. Temos uma divida para com @ homem a quem todos na saxénia conhecem como Augusto, o Forte, embora tecnicamente ele seja Augusto Il (1670-1733), antigo rei da Polénia, ¢ Frederico Augusto |, eleitor da Sax6nia, Ele 6 menos aci- mirado por sua habilidade como politico e guerreiro do que por suas generosas colegées de arte, sua forga prodigiosa-e (em alguns circulos) par ter produzido © maior némero de filhos.do registro histérico, Augusto comprava qualquer porcelana de boa qualidade em que podia pdr as mans. Seus objetas sdo de 43, ‘CINCO PARABOLAS: Ambito limitado, oriundos principalmente do perioda K’ang Hsi, 1662-1722, Em 1717, ele construiu um pequeno paldcio para suas porcelanas, e, na mesmo ano, trocou com Frederico Guilherme I da Prassia um excelente regimento de soldados de cavalaria por 151 vasos, ainda conhecidos como Dragonenvasen, Embora ele de fato empunhasse sua espada, sem muita eficdcia, ele nao era nada prussiano. Augusta, o Forte, principalmente fazia amor, nao a guerra. Fle investiu seu dinheiro de pesquisa e desenvolvimento nao em canhées, mas na quimica, tendo financiado a redescoberta do antigo segreda chinés de manu- fatura de porcelana, de forma que Meissen na Sax6nia se tornou a primeira fa- brica de porcelana da Europa, (Isso era de interesse comercial tanto quanto estético, porque naquela época a porcelana era a principal commodity manu- faturada importada para a Europa.) Pouco entendo de porcelana, Conto sem qualquer alegagao de discer- nimento que em Dresden meus olhos foram atrafdos especialmente para o Lra- batho no estilo conhecido como “A familia verde". Novas técnicas de esmaltar foram desenvolvidas em uma das grandes regies exportadaras. Os resultados foram atordoantemente lindas. Nao destaco as pecas de Augusto. o Forte, como 0 ponto mais alto da arte chinesa, Trabalhos ligeiramente posteriores s40 frequentemente mais estimados no Qcidente, e bem sei que trabalhos bem anteriores tém uma graga e simplicidade que maye o espfite mais profunda- mente, Uso a familia verde mais como uma parabola de gostos que se alteram e valores que perduram, Augusto, o Forte, pade ter amado suas parcelanias aa ponto de cons- truir um palacio para elas, mas sua colegdo foi desprezada por connaisseurs posteriores por nao ter mais valor do qué uma colegao de bonceas. Por um sé- culo ela definhou em um sétéo apinhado, onde em dias nublados mal dava para discernir as formas cle algumas das pegas maiores. Uma pessoa em parti- cular guardava esses tesouros obscuros, o dr. Gustav Klemm, e ele tracou pegas em duplicata com autros curadores empoeirados para expandir o que iria se tornar a colegao mais nobre desse tipo de trabalho na Europa. Foi s6 no final do século dezenove que ela foi trazida de volta 4 luz. Af ela saiu em campo para pasmar ¢ deliciar néo apenas vs eruditos como (amber os passantes como eu. Durante a Segunda Grande Guerra, as porcelanas voltaram para os sét40s novamente, e sobreviveram ao bombardeio de Dresden. Depois, todas as cole- des de Dresden foram para Moscou para serem cuidadas e protegidlas, Voltaram em 1958 e foram alojadas nas nobres salas reconstruidas do Palacio Zwinger. E possivel usar essa aventura para contar duas histérias opostas. Po- de-se dizer: aqui temos Uma tipica historia de riqueza, anseio, mudancas de gosto, destruicgdo, sobrevivéncia. Foi so uma sequéncia de acidentes que criou o negécio de expartagao de objetos apropriados a uma certa mania europeia ell a Tan HACKING. por abjetos chineses por volta de 1700, e depois colocan alguns exemplares ca- racteristicos sob um mesmo teto generoso, abservau-os sair do gasto do publi- co, testemunhou um renascimento, uma tempestade de fogo ¢ uma volta. E fato meramente historico que Leibniz (por exemplo) tinha um fraco por obras chinesas, pois essa era a moda em sua €poca, Da mesma forma, eu, mais igno- rante, fico embasbacado com elas, condicionado pelas tendéticias atuais, Nao coube a Wolff, Kant ou Hegel, no entanto, admird-las. Resumindo, houve pe- riodos de admiragae e épocas quando essas pogas foram desprazadas, delxa- das sem luz, desamadas. Sera assim novamente, ndo apenas na Europa, mas também na terra em que foram manufaturatias. Em alguns anos serdo conde- nacas como exempto de subserviéncia 4 burguesia da Europa e de suas coloni- as (a familia verde fai um grande sucesso entre as familias de monocuitores na Indonésia). Em autros, \rao sair das saos chineses e ser investidas de uma aura totalmente diferente, E evidente que nao ha um valor intrinseco a esse ma- terial, ele sobe e desce na escala da admiragao humana wo sabor dos ventos. Os relativistas raramente declaram sua posigao de modo tao crasso, mas isso é mais ou menos o que pensam. Ninguém pretende que a conclusdo “nao hé um valor intrinseco a esse material” sepue-se dos acomecimentas des- critos em meu exemplo, mas eu gostaria de enfaticamente fazer, em oposi a essa conclusda, uma afirmacao ligeitamente mais empirica que 6, acredito; sustentada pelos fatos histéricos. Afirmo que nao importa que idades das trevas tenhamos de , Contanto que os s6taos salvem para nds um ntimero adequado Ue ilens da familia verde, haverd yetagdes que & pedescul au, Ela ind repeti= damente revelar-se, expor-se. Nao preciso que me lembrem que a porcelana 36 ird revelar-se sob certas condigdes de riqueza, orgulho ¢ excentricidades hu- manas (tal como a pratica bizarra de cruzar fronteiras desagradaveis para vagar por uma estranha Institui¢de que chamamas cle muse.) Nao defendo um valor intrinseco & familia verde a ser encontrado no céu, mas apenas um valor essencialmente humana, um mintscula exempio de um feixe inerentemente humano de yalores, alguns dos quais se manifestam mais fortemente em uma época, outros em oulra 6poca, Grandes realizagoes criadas por seres humanos tém uma estranha persisf@ncia que contrasta com a moda. A maior parte da lixo que criamos nao tem tal valor. Uma experiéncia su- ficientemente ampla das calegdes europeias privadas mais antigas - onde os ob- jetos so mantidos mais por razées de piedade histérica do que de gosto garante-nos que ser colocaco em um museu é quase irrelevante para o mérito. A colegdo de Augusto é especial, como sua sistematica sobrevivéncia © renasci- mento testemunham. O que isso tem.a ver com filosafia?_ A ressurgéncia do historicismo na filosofia traz consigo seu préprio relativismo. Richard Rorty capturou-o em scu CONF IRWAGAO, REFUTAGAO E REVOLUGOES CIENTIFICAS poderoso livro Philosophy and the Mirror of Nature (1979). Eu estava felizmente inoculado contra essa mensagem. Pouco antas desse livro aparecer, eu dava um curso apresentando aos alunos da faculdade os fildsofos contemporaneos da familia verde e de Augusto, o Forte. Meu herdi era Leibniz, e como de cos- tume minha plateia |angava-me olhares de allicao. Mas depois da Ultima aula, alguns estudantus reuniram-se € comegaram com o conyencional “Nossa, que grande curso”. As observagdes seguintes foram mais instrutivas: “Tambhém, com todos aqueles grandes livros, quer dizer, Descartes... era inevitavel...” Eles adoravam Descartes ¢ suas Meditagdes. Acontece que dou aulas terriveis sobre Descartes, 4 que vou resmun- gando dizendo que nao consigo entendé-lo muito bem. Nao faz diferenga. Descartes fala diretamente a esses javens, que sabem tao pouco a respeito de Descartes e sua 6poca quanto eu sei a respeito da familia verde esua época, Mas da mesma forma como a familia verde revelou-se para mim, diretamente, Descartes revela-se, exibe-se para eles. Minha lista de leituras tinha a mesma funcdo que a galeria : € a porcelana oua prdpria leitura, ndo a galeria ou as sa- las de aula, que fazem a exibigio. O valur de Descartes para esses alunos completamente anacranico, fora do tempo. Metade parte do pressuposta.de que Descartes ¢ Sartre eram contemporaneos, ambos sendo franceses, escar- tes, ainda mais do que Sartre, consegue falar diretamente a eles. O historicis- ma, mesmo o de Rory, esquece-se disso, Um neétito precisa de comida, depois de espaco, de tempo, de livros e depois de incentivo para ler, e frequentemente isso nao basta, pois assim camo no caso da familia verde, Descartes terd seus altos e baixos. Em Londres, ha 150 anos, Espinosa estava na moda e Descartes era ignorado, Nenhum dos dois desce muito bem tanto em Dresden quanta em Cantao hoje. Os dois sera muito lidos por [4 no futuro, se as condigdes fisicas e humanas permitirem, ou pelo menos é 0 que eu digo. Quanto a nosso ambiente mais imediato, qualquer um das dezenas de milhares de cursos serviria de galeria para Descartes expor-se. Poderia ser mi- nha tentativa desajeitada de localizar Descartes na problematica de sua época; poderia ser a rejeigao por parte de Rory da episiemologia; ou poderia ser qualquer um dos Curses paddy no estilo de correspondentes artistosus através dos mares do tempo. Nao apresento defesa para minha conviccdo, apenas convido a experiéncia. Imito G. £. Moore levantando sua mao petante uma Plateia de céticos embotadas. A maioria de nds esta embotada demais até para lembrar-se de como Descartes falou a nds no inicio, Esse 6 6 propdsito de mi- nha parabola. Dei, de meu prdprio passado recente, um paralelo exatamente daquela fala inicial. Convido 0s leitores a inventarem ou recordarem seu proprio paralelo pessoal. Mas, se vocé opde resisténcia, deixe-me destacar mais uma EEE tan HACKING vez: Hegel dominou a formagao de Dewey, talvez ade Peirce, e também a dos parvenus Moore @ Russell que acabaram cam ele em uns pouicos anos. Hegel, no entanto, foi ha muito deixado de lado por aqueles que léem e trabalham em inglés, No entanto, sé preciso mencionar Charles Taylor (cujas exposigdes tém muita relagdo com a nova pratica angléfona de ler Hegel) para lembrar que Hegel est de volta. O francéfone sofria, um pouco antes, ainda maiores impedimentos quando tentava ler Hegel, até que Jean Hipolyte forneceu a ga~ leria na qual Hegel iria novamente expor-se. Mas mesmo Michel Foucault, em- bora ele possa ser visto em letra de forma-coma o negador da substancialidade “do texto”, estava disposto em canversas a acimitir cam regozija, quando lhe pediam sua reagdo 4 Fenomenologia do Espirito, que cla é um beau livre. E de fato é, Isso é 0 que basta para um escritor como Hegel falar diretamente, mais uma vez, primero ads franceses @ mais tarde a nds, depois de décadas de es- quecimento. O paradoxo de Brecht Tendo dito algo de sabio cm sentido convencjonal, devo pelo menos registrar a sabedoria contearia. De fato acho muito dificil entender Descartes, mesmo depois de ler os comentérios, predecessores e textos mais arcanos do mesmo perioda, Quanto mais eu fago um sentico consistente dele, mais ele parece-me habitar um universo alienigena. isso é estranha, pois ele dev forma aos textos filosdficos franceses e continua a fornecer um dle seus modelos co- minantes. Nao vou aqui discutir meus problemas usando escr(iputos pedantes. Au invés disso, you mostrar algumas anutagoes de Bertuld Brecht du inicio de 1932, quando também ele andava lendo Descartes com consternagao. Brecht é Util porque sua reagdo 6 muito direta. "Este homem deve viver em outra época, em um mundo diferente clo meu!” (Brecht 1967, Vill, 691), Ele nao estd preocupado com sutilezas. Sua reclamacao € um robusta espanto com a proposigae central de Descartes. Como poderia ser 0 pensamento mi- nha garantia de minha existéncia? O que eufaco & o que me assegura da minha existéncia: mas nda qualquer fazer. E 0 fazer com propésito, especialmente aqueles atos que fazem parte do trabalho que realiao. Brecht é escritor. Seu ofi- cio € escrever. Ele esté bem ciente do papel na sua frente. Mas ndo é essa cons- ciéncia que (a maneira de Moore) 0 deixa certo de sua existéncia, Ele quer escrever sobre o papel, e 0 faz. Ele tem 0 papel com suas inscrigdes, ele faz alte- ragGes. Disso ele ndo pode ter dovida. Ele acrescenta, urn tanto ironicamente, 47 Cinco PaRANoLAS que, para saber qualquer coisa sobre a exist€ncia do papel sem manipula-lo, seria muito dificil. E notério que Brecht escreve a partir de uma ideologia. Seu proximo comentario € intitulado “Apresentagdo do Capitalisme como uma Forma de Existéncia que Obriga a Muito Pensar e Exige Muitas Virtudles.” E na praxis e nao na teoria que ele e seu ser sao constituidos, Implicitamente se voltando para Berkeley, ele comenta que uma pessoa pode muito bem duvidar se uma Arvore que esté IS longe existe ou nao, Mas seria um pouco problemitico, se nao existissem drvores ou coisas assim, pois entao estariamas mortos por falta de oxigénio. £ssa verdade pode ser canhecida teoricamente, mas ¢ a interagao pratica com as arvores que est4 no cere dessa certeza. Alguns acharao que @ Brecht quem vive em outro mundo, um mundo menos familiar do que 0 de Descartes. Vocé pode discordar da ideologia apa- rentemente simplaria de Brecht e ainda assim sentir o mesma pasmo com aquele famoso enunciado cartesian. Nao estou dizendo que © pirronismo é impensdvel. As pessoas realizam operacdes intelectuais que as levam a enun- ciados céticos, e depois realizam oulras operacdes cuja forma serve para |i- vra-las do ceticismo, Nao tenho problemas com isso. Nao estou recomendando aqueles argumentas linguisticos de umas duas geragées atras que usavam “casos piatadigmaticos”, nos quais se alegava niio ser possivel usar coerentemente 0 inglés para expressar problemas céticos. Brecht direcio- na-me para uma preasupagio mais central. Como poderia alguém na maior seriedade tornar a existéncia dependente do pensamento? Como poderia al- guém livrar-se de uma divida verdadeira por meio de uma-cadeia de reflexdes que culmina com “mesmo quando dluvido, cu penso, e quando pens, ev sou?” O passo para a res cagitans parece-me transparente quando comparado com ayuele primero pensamenta, Curiosarmnente, Hintikka (1982) fez um mo- vimento hermenéutico quase. brechtiano quando afirmou que o cogito deve ser ouvido como um enunciado performativo no sentido de J. L, Austin, Passo entender isso no que seria antes uma circunstancia bem especial de fala (e Aus- tin sempre atentava para as circunstancias!). Um orador modemp, cujo oficio é falar, pode falar para provar que cle existe. Todos ja conkecemos pessoas a quem sarcasticamente descrevemos exatamente nesses termas. Mas isso pao € © que Descartes pretendia, rem sao os leitores de Hintikka geralmente con- vencidos pela interpretacao “performativa” do cogito. Nao estou chamando a atencaa para conceitos de Descartes que fo- ram transmutades (“Substancia”) ou que morreram (“realitatis objetivae”, um termo bem traduzido por Anscombe e Geach (Descartes 1964) como “realida- de representative”), Podemos, com jpuita dificuldade, recorstiuir esses con ceitos. Brecht esta protestando contra algo no préprio cerne de Descartes. 48. TaN HACKING. Nenhum ser do meu tempo, afirma Brecht, pode levar a sério a frase basica cartesiana. Concordo. Eu disse também em minha primeira parabola que geracio apés geragao adora as Meditations ¢ sente-se em cusa com o texto, Acredito que esse é um paradoxo sobre a histéria e a filosofia que nao tem solucao, “Da para fazer historia melhor do que isso” — “os alunas sao enganacos pelo estilo de prosa cartesiano, eles sé pensam que entendem esentem empatia com ele” - esses so apenas exemplos de conversa reconfortante que nao conseguem apreender a seriedade da reagao brechtiana ou que nao conseguem apreen- der a seriedade dos alunos a quem Descartes fala diretamente, Nao ¢ preciso, naturalmente, usar Brecht para dizer isso, Eu achei dtil lembrar a nds mesmos que, enquanto nds, filésofos, fazemos rodeios, um outsider alerta e inquisitivo pode imediatamente acertar em cheio © que é ininteligivel em Descartes. Palavras demais Brecht conecta o surgimento do capitalismo com dois vicios gemeos: virtudes demais, pensamento demais. Esses nao 80 nossos vicios. Nosso pro- blema é palavras demais: confianga excessiva nas palavras como se elas fossem a quintesséncia, a substincia da filosofia, Talvez o Philosophy and the Mirror of Nature de Richard Rorty, com sua doutrina central de “conversagao”, aparecga algum dia como uma filasafia 10 linguistica Quanto a analise que emanou de Oxford uma ou duas geragGes atrds, Para recordar como ela era, é melhor pen- sar em rotinas ay inves de penser na acasiynal inypiragdu de um mestie como. Austin. Lemos em um ||vro sabre a ética de Kant, por exemplo, que “Uma dlis- cuss4o que se restringe estritamente aos limites da ética nao teria qualquer pro- pésito além claquele de analisar ¢ esclarecer nosso pensamento moral ¢ os termos que tsamos para expressar esse pensamento”, O autor, A.R. C, Dun- can (1957, 12), entdo cita a definigao de Henry Sidgwick tirada da pagina 1 do classico Methods of Ethics (1874) [Métodos da Etical: “o estudo do que é certo ou do que deve ser, até onde isso depencle dos atos voluntarios das individu- os". Duncan diz que ele Sidgwick tém a mesma concepcao de ética, Ai de Sidgwick, ai de Kant, que achavam que estavam estudando o que é certo ou o que deveria ser! Poderiamos falar aqui de antalha linguistic, um antalho que permite que a pessoa copie uma frase da pagina 1 de Sidgwick sem ser capaz de lela. Gustav Bergmann escreveu subre a “viratla linguistica” na filusufia, urna ex- pressao evocativa que Rorty usou como titulo de uma antologia do periodo. 49 Cinco paninonas Como a notavel coletanea de Rorty mostra, a virada linguistica foi convincente, e, em retrospecto, parece ter sido convincente demais. Ha, de qualquer modo, antolhos lingu(sticos mais sutis do que aqueles que nos fazer ler Kant como se cle fosse um fildsofo da linguagem. Pata evitar grosseria, vou dar um tranco no meu préprio antalho. Ele aparece em um \ivro. como The Emergence of Probability [A Emergéncia da Probabilidade] e em uma palestra solene dada na Academia Britanica sobre Leibniz, Descartes ¢ a filosofis da matemiatica, re- impressa no capitulo 13. Eu tinha estado lendo Foucault, mas, significativamen- te, tinha estado lendo principalmente Les Mots et les Chases (1970) [As Palavras as Coisas], uma obra que nao tanto enfatiza mots em detrimenta de choses quanto faz uma afinmagay enérgica sobre come as palavias impoem una or dem as coisas. E facil enunciar uma série de premissas que levam a minha virada his- -linguistica, A maioria delas parecerd lugar-comum até que sejam reuni- das, Outrora elas representavam minha metodologia. Eu as enunciei como tal em uma palestra de despedida no Clube de Ciéncias Morais da Universidade de Cambridge na primavera de 1974. A palestra foi intitulada One Way to do Philosophy [Um Modo de Fazer Filosofia]. aoe oe 1 —Um tipo de filosofia trata de problemas. Essa pode nao ser uma ver- dade eterna. A ideia de que a filosofia (talvez toda ela!) tenta resolver proble- mas pode ter se cristalizacdo am inglés sé em 1910. No inverno daquele ano, G. E. Moore deu umas palestras abertas ao publica em Londres com o titulo de Some Main Problems of Philosophy [Alguns dos Principais Problemas da Filoso- fia.]. Essas palestras, dadas no Morley College de Londres "no inverne de 1910", foram publicadas camo Moore (1953), Durante os anos de 1909 e 1910, William James quase terminou seu tiltimo livro, Some Problems of Philosophy (1917) [Alguns Problemas dla Filosotia], que inclui uma lista de 21 problemas, E Bertrand Russell publicou o que tem sido jninterruptamente até hoje um best-selfer, The Problems of Philasophy (1912) [Os Problemas da Filosofia), pas- sando alegremente do modesto alguns de seus predecessores para 0 majestoso artigo definido: “Os” problemas. 2~Os problemas flioscficos sao conceituais. Eles surgem de iatos sobre conceitos e de confusdo conceitual. 3—Uma explicagao verbal dos conceltos, Um conceito nao 6 uma enti- dade nao-linguistica abstrata apreendida por nossas mentes. Ele deve ser en- tendido em termos das palavras que usamos para expressd-lo, 6 dos contoxtos Nos quais usamas essas palavras, Tan HACKING 4 — Palavras em seus lugares. Um conceito nao passa de uma palavra, ou palavras, nos lugares nos quais ela é usada. Assim que tenhamos considera do as frases nas quais a palavra é Usada, ¢ os atos realizados enunciando as fra- ses, e as condigdes de acerto ou autoridade para se enunciar essas frases, € assim por diante, teremios exauridu u que existe para set dito sobre o conceito, Uma versao estrita diria que teremos exauride o conceite, quando tivermos considerado (per impossibile) todas as enunciagGes especificas reais das palae vras correspondentes. Umia versdo menos estrita nos permitiria contemplar cir cunstancias nas quais a palavra poderia set usada, mas na verdade ndo 6. O rigor inclina-me na direcao da versao estrita, mas a versao imprecisa 6 mais po- pular. 5 - Conteitos.¢ palayras nao sao idénticos, Isso & porque, além da ambi- guidade sincrdnica, as mesmas palavras podem, através Ue vdrios tipos de alte- racdo, vir a expressar diferentes conceitas, Mas Os conceitos nao devem ser multiplicados além do necessério, A evidéncia para diferenca entre conccitos & dada pela diferenca entre lugares: a palavra é usada por diferentes classes de pessuas para fazer coisas diferentes. Ainda admiro uma teoria de como fazer isso, teoria qué nao @ pensada com frequéncia nessa relagio: a Semantic Analysis [Andlise Semantical de Paul Ziff (1969). Em patidade, devemos admitir que em épocas diferentes um mesmo conceito pode ser expresso por diferen- tes palavras em uma mesma comunidade, Uma inclinacie ziffiana deixa-rne mais cauteloso a esse respeito do que & maioria; levo a sério. 0 Modern Enghsh Usage [Uso do Inglis Maderno] de Fowler (1926, 591) € sua afirmagao de queo inglés britanico s6 conhece um sindnimo exato, “furze" @ “gorse”. Mesmo hoje, quando descubro que a palavra “determinismo” principio em alemao por volta de 1788, e que seu uso em termos de causas eficientes em ves de mo- tivos predeterminantes principiou em todas as linguas europeias por volta de 1060, estou inclinado a dizer que um novo conceite é intraduzido cony esse uso dessa palavra (Hacking 1983b). 6 ~ Revolucdes, Rupturas, mutagdes, rompimentos epistemoldgicos, cortes~escolha a metéfora que quiser—ocotrem em corpos de conhecimenty. Tipicamente, um conceito, uma categoria ou modo de classificar pode nao so- breviver intacto a uma revolugio. Mesmo que preservemos a mesma palavra, ela pode expressar um novo conceito que substitui o.anbgo. Nao precisamos aqui sucumbir aos excessos de incomensurabilidade. Nao precisamos supor que os falantes pés-revolugao tenham problemas para entender as falantes pré-revolugdo que se aferram aos velhos habites, Mas o que realmente se se- gue disso, mais a premissa anterior, é que conceitos podem ter inicios e fins. 7 — Conceitos problematicos. Pelo menos uma importante classe de confusdes conceituais surge com cunceitos que passarain a eaislir cunt um 51 CINCO PaRABOLAS rompimento relativamente abrupto. H4 um modo trivial em que isso pode ocorrer, simplesmente porque as pessoas nao tiveram tempo de elaborar bem as coisas, 8 — Problemas persistentes, Ha também o cliché menos trivial de que alguns problemas filos6ficos persistem por toda a vida de um conceito, Alguns problemas séo imemoriais, mas outros sd0 especificos e datados, e podemos até achar que alguns morreram tao efetivarnente ¢ hd tanto tempo que nem toda a ressuscitagao hermenéutica artificial do mundo ira trazé-los de volta a vida. Conhecemos também o fenémena estapida do mesmo embrulho de ar- gumentos sendo apresentado de novo ¢ de nova de geragae em geragaa. Ago- ta estamos préximos do fim de nossa jornada e passamos para a pura especulacdo de que o problema surge por causa do que quer que tenha torna- do esse conceito possivel, £ como se um conceito problemitico tivesse uma consciéncia infeliz. 9 ~ “Esta consciéncia infeliz, internamente dilacerada, ja que sua natu- reza essencialmente contraditoria é para ela uma consciéncia tinica, deve con- tinuamente ter presente em uma consciéncia também a outra; e assim & impelida para fora de cada um sucessivamente exatamente no momento em que imagina que alcangou com sucesso uma unidade pacifica com a outra,” (Hegel, 1977, 126) O item (9) nao é uma premissa, mas um projeto euja Influéncia tem sido ampla. Marx e Freud sao os gigantes gerados por Hegel, mas 03 filésofos também conhecem o modelo, Na filosofia analitica, ele esta tao forlemente bi- gado a terapia quanto em Freud. Os terapeutas mais persistentes foram os ana- listas lingufsticos que achavam que, uma vez removidas as confusdes linguisticas, os problemas filosdticos iriam desaparecer, E entao houve os ana- listas nao-linguisticos, dentre os quais John Wisdom é 0 mais notavel, que fize- ram comparacées explicitas com a psicoterapia. Wittgenstein teve alguma influéncia sobre a formagda das ideias de Wisdom, mas encontra menos “tera~ pia” mencionada na obra do proprio Wittgenstein do que muitos outros Icito- res encontram, O projeto hegeliano, qualquer que seja sua procedéncia, leva até minha premissa final. E a mais improvavel de todas. 10 - Conceitos tam memérias. au, pelo menos, nds, em Nossos.préprios padrdes verbais, inconscjentemente |mitamos a filogenia de nossos conceitos. Alguns de nossos problemas filoséficos a respeito de conceitos si0 0 resultado da histéria deles. Nossas perplexidades surgem nao daquela parte deliberada de nossa histéria da qual nos lembramos, mas daquela da qual nos esquece= mos. Um conceito torna-se possivel em um momento. Ele & passibititade por um arranjo diferente de ideias anteriores que entraram em colapsa ou explodi- ram. Um problema filosofico é criado pelas incoeréncias entre 0 estado anterior TAN HACKING € 0 posterior. Os conceitos lembram-se disso, mas nds nao: atormentamo-nos com problemas cternamente {ou pelo tempo de vida do conccito), porque nfo entendemos que a fonte do problema é a falta de coeréncia entre 0 conceito e aquele arranjo anterior de ideias que tornou © conceite possivel. O modelo terapdutico nos ensinaria que deveriamos solucionar ou re- solver nossos problemas assumindo as pré-hist6rias deles. Eu me dissocio com- pletamente desse modelo, Ele é estranho A narrativa da consciéncia infeliz, Uns 25 anos atras um psiquiatra noruegués eclético comentou comiga que Freud era maravilhoso em explicar os fendmjenos mentais, de [apsos, passande pelos sonhos, e até as neuroses. As explicagées eram em geral espléndidas, as melhores do mercado, embora no que tange a curar as pessoas, Freud nao seja nem particularmente bom, nem mau. A observagao sobre a cura tem seus en- fadonhos partidariosa favor ¢ contra. A observagao sobre a explicagao foi para mim estimulante. Em parte par causa de minha formacae positivista, nao era para eu acreditar em explicagdes que nao tivessem suas predicoes correspon- dentes. Agora eU podia admitit que as explicagdes dadas por Freud € pelos freudianos para 0 processo de ocultar o contedido latente dos sonhos da mente consciente e de muito Comportamento estranhe eram simplesmente maravi- thosas. Mas nao conte com a cura. Essa premissa negativa (nao espere terapia) conclui a base para meu modelo de explicagao de (alguns) problemas filosdficos, Era preciso entender a pré-hist6ria dos conceitos problematicos 2 0 que os tornava possiveis para po- der compreender a natureza dos problemas filosdficas. Os problemas seriam explicados, Isso nao precisa ter qualquer efeito sobre se os problemas continu- am incomodando, As pessoas que procuram por solugdes de problemas filos6- ficos ndo vae conseguir qualquer ajuda com as explicagdes deles. Por outro lado, uma explicacao do conceito “problema filoséfico” (de acordo com a premissa [1], um conceito datado ne sentido da premissa (5) iria, espero, deixar a pessoa menos confortavel com a prapria ideia de resolver pro- blemas filosdficos Posso caricaturar essas premissas como uma pitada disso e uma pitada daquilo, mas antes de chegarmos ao derradeiro final, elas eram os Iugares-co- muns de uma formagao perfeitamente convencional em filosotia analitica. Mes- mo no final, onde havia mais historicizagdo do que a analise filosdfica tradicional desejava, as ideias extras nao cram exatamente novidade. Por que nao gosto mais dessas premissas? Em primeiro lugar, nao por causa da énfase delas na linguagem ou no passado. Pelo contrdrio, é por causa, como muitos poderiam ter me advertido, da premissa inicial. O negécia era “resolver” problemas filosoficos. A despeito da valente tentativa de fazer isso com relagao ao raciocinio provavel, e um flerte ainda mais breve com essa 53 CINCO PARABOLAS abordagem na filosofia da matemitica, eu nao estava fazendo isso. Mas nao ha- via eu tido sucesso na tarefa de explicar a existéncia ¢ a persisténcia dos proble- mas? Bem, ninguém gosta das explicaces tanto quanto eu; boa adverténcial Ainda gosio das explicagdes, mas agora me dou conta de que estava fa- zendo outra coisa, pelo menos nos dois casos com os quais comecei, a proba- bilidade e a matematica, Eu estava embarcando naquilo que ne capitulo 1 eu chamo de metaepistemologia historica. Eu estava lambérn comegandy a pen sar naquilo que nos capitulos 12 € 13 eu chamo de estilos de raciocinio. Uma vez que vocé comeca a suspeitar da primeira premissa, que a fila- sofia trata de problemas, nada mais do resta é muito estavel. De uma certa mta- neira, no entanto, a8 premissas Sao aterrarioramente estavels, [A que fazem parte do gambito idealista que é tao difundido na filosofia ocidental. A tilosofia diz res- peito a problemas, os problemas surgem de palawias, as solucdes devem ser em termos de palavres, © segue-se o filusufar, Ocasionalymente alguém yane, Um exemplo € C. S. Peirce, 0 Ginico habil expetimentador em nosso canone, que, vendo 0 que os verbalistas haviam feito com sua palavra “pragmatismo”, ganiu ic’ ¢ inventou a palavra “pragmaticismo”. O pragmatismo é nominalista € idea- lista, ambos, mas o pragmatismo do Peirce, camo ele rabuipentamente afirmava, totalmente realista, Embora tenha concepgdes sobre como as palavras tm sig- nificados, o pragmaticismo nao reduz.a filosofia a palavras. F nem Ludwik Fleck, Lav sensfvel a estilos de raciocinio, puis 0 experimentador nao pode se dar ao luxo de idealismo nem de sua forma awal de verbalismo, Uma tarefa jnstrutiva para um autor mais critico do que eu seria averipuar se toda revolucdo pis-co- pernicana honrada por Kuhn nao foi acionada por trabalho feito em laboratéria: agées, nao pensamentos; manipulagio, nao pensamentos, Desnudei uma sequéncia de premissas que leva a um modo de fazer fi- losofia historicamente. Internamente, dentro dessa sequéncia de pardbolas, ela tem pelo menos um papel adicional, Sugere para mim que uma metodolo- gia bem articulada pode conduzira um trabalho interessante para o qual ame- todologia 6 em grande parte irrelevante. Refazendo o mundo Ninguém de sua geracao tem tido um impacto mais dramatico sobre a filosofia da ciéncia do que T. S, Kuhn. Qualquer discussda da relagao entre his- téria € filosofia da ciéncia ird comegar com The Structure of Scientific Revaluti- ons (1962) IA Estrutura das Revolugées Cientificas|. [550 € estranho, jA que cle 54 TaN HACKING: escreveu inteiramente sobre a ciéncia natural, na verdade, sabre as ciéncias fi- sicas. H4 uma opiniao consagrada pelo tempo de que a historia é importante para 0 proprio conteddo das cléncias humanas, enquanto nao faz muita dife- renga para as ciéncias naturais. Se Kuhn tivesse conseguida historicizar nosso entendimento da ciéncia natural, sua faganha teria sido revoluciondria, Quero mostrar por que ele ndo conseguiu, € dar mais uma mexida na velha idéia a respeito de uma diferenca entre ciéncia natural e social, [sso nao éde forma al- guma uma criticaa Kuhn. Acredite que a totalidade da obra desu historiador o coloca entre os principais filésofos do século vinte. Os filésofos geralmente sao sensfveis apenas a Structure, Sua obra sobre experimentos, medidas &a segun- da revolugao cientifica (todas publicados em The Essential Tension, 1977 IA Tensio Essenciall) sao de importncia comparivel. Seu ultimo liveo de histéria = sobre Max Planck e a primeira teoria quantica (1976) - descreve exatamente 0 tipo de revolugao de que Structure trata, e 6 uma realizagao notavel, Mas € possivel aprender com Kuhn da maneita mais profunca possivel, e ainda assim sustentar que hd um sentido em que ele nao foi bem sucedida, e que nao po- deria ter sido bern sucedido, em historicizar a cifncia natural, Minha distinggo emerge no nivel de uma das disputas filosdficas mais antigas. Ela diz respeito ao nominalismo, A versio mais extrema do nominalis- mo diz que inventamos as categorise que ugamos para descrever o mundo. Essa é uma doutrina extremamente misteriosa, ¢ talvez esse seja 0 motivo de ela quase nunca, assim como 0 solipsismo, ser defendida. O problema é que nao conseguimas entender por que c mundo sé adapta tao bem a nossos siste- mas de nomear, Nao deveria haver no mundo alguns tipos naturals em que mos- sas categorias inventadias se prendesseni? issa nao refuta onominalisma estrito? Eu sustento que Kuhn promoveu de modo importante a causa nomina- lista av dar algurna explicagéo de come pelo menos un grupy inporiane de “nossas” categorias passou a existir no curse das revalugses cientificas. Exisle uma construcao de novos sistemas de classificagao que anda junto de certos in- teresses em descrever o mundo, interesses intimamente relacionadas cam as “anomalias” nas quais uma cornunidade se cancentra em tempos de “crise”, AO mesmo tempo, isso nao pode nos fevar a um nominalismo muita estrito, pois ‘as anomalias “realmente” tm de parecer serem tesolvicias para que uma realiza- Gao revolucionatia seja reconhecida. A remocao da anomalia nunca ésuficiente, ensinou Kuhn, porque varios tipos cle candigaes sociais sia necessatios para que uma revolucSo "pegue”. Mas a realidade tem de percorrer uma parte do camiz nho — mais do que um nominalismo mais estrito, extremo, permitiria. O contraste que estabeleco com as Ciéncias sociais € o seguinte, Na ciéncia natural, nossa invengao de categorias nao muda “realmente” @ modo como 0 mundo funciona. Muito embora criemos novos fendmenos que nao ‘CINCO PARANOLAS existiam antes de nossos empreendimentos cientificos, nés 0 fazemos apenas com a permissio do mundo (ou pelo menos é © que achamos). Mas no caso dos fendmenos sociais, podemos gerar tipos de pessoas e tipos de agdes na medida em que imaginamos navas classificagGes € categorias, Minha afirma- cdo é que “inventamos pessoas” em um sentido mais forte do que “inventa- mos” o mundo. A diferenga estd relacionada com a antiga questao do nominalismo. Esta relacionada também com a histéria, porque os objetos das ciéncias sociais - pessoas e grupos de pessoas - sido constituidos por um pro- cesso histrico, enquarito as objetus das ciéncias naturais, aparelhagens expe- rimentais particulares, s30 criados no decorrer do tempo mas, em um certo sentido, nao sao constituidos historicamente. Deve estar claro que estou tateando em busca de uma distingao com- plexa entre ciéncia social eciéncia natural. Talvez eu deva fazer uma adverién- cia contra a distingao mais superficial de todas, £ curioso, ¢ até cémico, que as ciéncias fisicas tenhiam prestaclo pouca atengao a Kuhn. Jornalistas especializa- dos nas ciéncias pode) agora encher seus artigos com a palayra “paradigmia”, mas essa ndo é uma palayta que represente qualquer papel na reflexdo a res- peito da pesquisa séria, E exatamente 6 oposto.o que ocorre nas ciénciassocia— is e psicoldgicas. A Structure de Kubn mal tinha sido impressa, quando, em seus discursos anuais, os presidentes da American Psychological Association [Sociedade Americana de Psicologia) e da American Sociological Association [Sociedade Americana de Sociclogia} reconheceram a necessidade que ti- nham de paradigmas. Sempre me pareceu que Kuhn era muito mais claro a respeito do uso que fazia de sua palavra famosa do que a maioria de seus Ieito- res, inclusive os presidentes de associagGes acadlémicas. Quando diga que em certo sentido Kuhn nao fai bern sucedido em historicizar a ciéncia fisica, naa € porque sua terminologia foi mais do que uma moda passageira nas ciéncias so- ciais. Muito pelo contrdrio: pode ser que o impacto de Kuhn nas ciéncias sociais seja um sinal da falta de entendimento delas a respeito delas mesmas. Primeiro vamos recordar a rage filosdfica ao livre de Kulin. Ele fei acusado de minar escandalosamente a racionalidade. A “ciéncia normal” nao parecia ter qualquer uma das virtucles. que uma geragao anterior de positivistas atribufa a ciéncia. Pior ainda, a mudanca revoluciondria nao era cumulativa, & nem ocorria porque hayia uma boa razao para que a mudanga fosse feita, evi- déncia sélida para a nova ciéncia pos-revalucionaria. Parte do grémio filosdfi- co defendeu seus consolidacios direitos, e afirmou solenemente que a historia nunca poderia nos cnsinar coisa alguma sobre a racionalidade cientifica, O his- toriador poderia expor alguns eventos da histéria da ciéncia, mas era o filésofo que sempre seria solicitado a dizer se esses eventos seriam ou nao ration Jan Hackins Assim a primeira onda de reacées filos6ficas foi quanto a questao da ra- cionalidade, e as pessoas ainda discutem a contribuigao de Kuhn, se 6. que ela existe, para a metadologia da ciéncia, Ele mesma ficou um pouca desconcer- tado com essa recepgao, coma fica claro em sla palestra de 1973 “Objetivity, Value Judgment, and Theary Choice” (Kuhn 19774) [Objetividade, Juizo de Va- lor e Escolha de Teoria]. Afinal, ele era um adepto dos valores tradicionais — as teorias deviam ser precisas, consistentes, de Ambito amplo, sim ples e fecundas em novas descobertas. Ele insistia em que: esses desiderata nda eram em geral decisivos. Alem do mais, os pesos relativas dados a essas consideragdes varkim de um grupo de pesquisa a outro, de disciptina a disciplina, e de uma epoca a outra da ciéncia. Finalmente, o cardter francamente brusca e desordenado da pesquisa cientifica € confuso demais para que exista qualquer algoritmo siste- miatico. Kuhn, no entanta, ndo era um irracionalista menosprezando esses va- lores do senso comum, ¢ acredite que o boato de uma “crise de racionatidade” provocada por Kuhn foi exagerado, Outro tema de Kuhn foi menos discutido, a principio, do que a racio- nalidade: um anti-realismo, uma forte tentagaa, parece, para o iclealismo. Nao apenas sdo asrevolucdes “mudancas na visiode mundo“ —uma afirmagaa nao muito ousada, mas Kuhn € “tentada" a dizer que, depois de uma revolugdo, “vive-se em um mundo diferente". Uns vinte anos depois da livro ser publica do (um periodo durante p qual Kuhn completou seu monumental estudo do inicio da quantizagdo), cle yoltou a esse tema. As pessoas realmente véem o mundo de modo diferente: que melhor prova do que o fato de que o dese- nham de mocio diferente! Ele ilustrau isso com os primeiras desenhos das bate- rias elétricas de Alessandro Volta (Kutin 1987). Quando os examinamos de perto, temos vontade de dizer que as baterias nar pndiam ter sido feilas da- quele modo, pois simplesmente nao funcionariam. A célula voltaica, devo acrescentar, nao ¢ uma invengao menor, mas ume cay ferranentas fundamen- tais de toda a ciéncia. Ela passou a existirem 1800, caineidinda com o renasci- mento da tearia ondulatéria da luz, da radiagao infravermetha, e de muito mais que nao tinha qualquer lugar imediata na Fisica newtoniana, A invengao de Volta foi fundamental porque fomecia uma corrente estaciondria de eletri- cidade, e, partanto, afetava a bussola magnética, Pottanto, criou uma nova era, a do eletromagnetismo. A “tentacao de falar em viver em um mundo diferente” sugere que Kuhn é um idealista, alguém que sustenta, de alguma forma, que a mente 2 suas ideias determinam a estrutura de nossa mundo. Nao acho que ele seja ide- alista, e € importante que pensemos nao na dicotomia realismo-nominalismo pds-kantiana, mas na distingdo mais antiga, escoldstica, entre realismo e nomi- nalismo. Kuhn ndo esté entre aqueles que contestarn 4 existéncia absoluta das saan UREN SESE ‘CINCO PARABOLAS entidades cientificas ou fendmenos, nem entre aqueles que poem em divida as condigées de verdade das propesicées tedricas. Em yer disso, cle acredita que as classificag6es, as calegorias e as possiveis descriches que usamos sdo de nossa propria lavra. Mas ao invés de deixar isso como um mistério a respeito de como as categorias hurnanas passam a existir, ele torna a criagao ¢ 0 ajustamento dos esquemas de classificagdo partes de sua definigao de revolugao. O que caracteriza as revolucées 6, portanto, a muclanga em varias das categorias taxondimicas que sao pré-requisitos da descrigao cientifica e da pe- neralizagao. Essa mudanga, alémdisso, € um ajuste no apenas dos critérios re- levantes para a categorizacio, como também do modo coms os objetos e as situagdes sao distribuidos entre as categorias preexistentes (Kuhn 1987, 20). Eu interpreto isso como uma espécie de nominalismo, eo chamo de nominalismo revolucionatio, porque as lransicdes em sistemas de categorias ocorrem durante esses rompimentos revoluciondrias cam © pasado cujas es- truturas Kuhn se propde a descrever. (Minha prdpria glosa posterior sobre a identificagdo feita por Kuhn de. revolugao e mudanga taxendinica € dada em Hacking 1993a). Esse nominalismo também @, ohviamente, um nominalismo historici- zado, porque da um relato histérico (ou serd apenas uma metafara histérica?) da génese e transformagaa de sistemas de nomear, Tem também o grande va- lor de ser local e nao global, pots, embora Kuhn inclua grandes acontecimentos entre suas revoluicées (Lavoisier, Copérnico), ele insiste. que a maioria das reyo- lugées se aplica apenas.a uma pequena comunidade de, digamos, uma cente- na de pesquisadores importantes. O nominalismo revoluciondrio de Kuhn encoraja histérias de mudanga de categoria, mas pode parecer que as objetos das ciéncias, embora descritos por sistemas cambiantes de categorias, nao sao eles mesmos constituidos histo- ricamente. Mas quais sau os abjetos? Dentre eles estau incluidas as células val- taicas, por exemplo? Estao entre eles fendmenos como a deflexdo de uma apulha magnética por uma corrente elétrica estacionaria, our os dispositives mais engenhosos de Faraday, 0 gerador elétrico e o dinamo elétrico? Esses ndo sao itens eternos no inventério do universo, mas passaram a existir em momen- 10s muito espectficos, E também nao me contento em dizer que as invengdes so datadas, enquanto os fendmenos e leis da natureza que eles empregam sao eternos. Uma das piinicipais atividades do experimentador nas ciéncias fisi- cas é literalmente criar fendmenos que nao existiam antes (Hacking 1983a, cap 16). Além do mais, a malor parte da ciéncia fisica (erm oposigao a astronomia) relaciona-se com fendmenos que ndo existiam até que-as pessoas fizessem com que passassem a existir. O que as fisicas vém desde os anos 1870 chamando de “efeitos” (efeito fotoelétrico, efeito Zeeman, efeito Compton, eteito Josephson) 5B Tan HACKING sa em sua maior parte fenémenos que nao existiam, pelo menos em estado puro, em parte alguma da natureza intocada, e no entanto é possivel argumen- tar que eles sao aquilo de que trata a fisica, ou do que a fisica passou a tratar. Ha casos (de varius tipus) que permitem que se afirine que os préprios objetos da ciéncia fisica nao sa0 meramente recategorizacos € rearranjados, como diz Kuhn, mas passaram a existir par meio da engenhosidade humana. Se eu for a esse extremo, nao estard a distingéo que proponho entre ciéncia humana é natural arruinada? Nao sera o caso de os objetos da ciéncia natural passarem a ser “historicamente constituidos”? Nao acredita, De fato, desenvolvi o retorno a uma séria consideracao da ciéncia experimental preci- samente para instigar um born numero de conclusdes realistas, anti-idealistas, antinominalistas. Afirmo, na metade “que representa” de Representing and Intervening (1983a) [Representar ¢ Intervir], que em principio nenhtm debate: no nivel da teoria ira resolver qualquer uma clessas clisputas entre realismo € antirrealismo na filosofia da ciéncia natural. Insisto, na metade “que intervm", que © reconhecimento dos fates da vida experimental e da modificagao do. mundo leva convincentemente ao realismo cientifica, Da para detectar uma fonte de minha admiragao pelo matetialisme direto de Brecht que coloca “ma- nipulagdo”, ao Invés de “pensamento”, como a fonte do realismo, Meu “realis- mo experimental”, assim como o materialismo de Brecht, nao induz ao nominalismo. Os fendmenos fisicos que so criadlos pelos seres humanos so bem resistentes a mudiangas tedricas. O exemplo dado pelo proprio Kuhn, da célula voltaica, serve-me muilo bem: Kuhn diz que Volta pensou sua invengao em analogia com a garrafa de Leyden. A descrigaa dela, dada por Volta, 6 estranha, & nda podemas dar eré. dito seus desenhos, pois cles se desenvolvem com base nas analogias erradas. Mas a coisa funcionava. A corrente realmente fluia. Depois que isso (oj feito, a fisica nunca mais olhou para tras. Da mesma forma, o efeito fotoelétrica talver tenha sido produzido pela primeira vez em 1829 por Becquerel. Varias mani- festagées fotoelétricas foram induzidas por todo o sécule dezenove. £ possivel construir um argumento kuhniano quanto ao efeite nao ter sido propriamente “descoberto” até a época de Lenard — 1902 — ou mesmo de Einstein ea teoria dos fétons — 1905. Uma vez que tinhamos a tearia, certamente fomos capazes de usar 0s fendmenos que haviamos comecada a criar, As portas automiticas em supermercados, e a (elevisdo, nao demoraram muito, Masse (como alguns tem insistido) a abordagem [otdnica precisa de uma revisao drastica ou umate- jeicdo revoluciondria, as portas de supermercado ainda continuarao a funcio- nar. Os fendmenos tém a capacidade de resistir a teorias. A fisica elementar pode dar uma explicagao completamente diferente a respeito de como eles funcionam, mas eles continuarao a funcionar. Mesmo se, citando novamente 59 (CINCO PARASOLAS Kuhn (1987), “hd um ajuste nao apenas dos critérios relevantes para a categori- zagio, como também do mado como os.abjetos e as situagées so distribufdos entre as categorias preexistentes”, os fendmenos que criamos ainda irdo existir € as invencoes funcionar. Podemus perder o interesse neles. Pocemos substi- tuf-los por fendmenos mais Gteis ou interessantes. Poderiamos perder as habili- dades necessérias para produzir um fendmena (ninguém consegue trabalhar a lato hoje como um assistente de laboratério do século dezenove conseguia, ¢ estou certo que a maioria das velhas habilidedes para polir lentes est, hoje, extinta). Sou o Ultima dos filésofos a se esquecer das mudancgas radicais na tec- nologia experimental. Ainda assim sustento que os objetos das ciéncias fisicas sao, em grande parte, crlados pelas pessoas, # que, depals de criadas, niio ha qualquer razao excete displicéncia para que nao continuem a existir. Sendo assim, afirmo que Kubn nas leva a urn “nominalismo revolucio- nario” que deixa 0 nominalistno menos misterioso ao descrever os processos hist6ricos por meio dos quais novas categorias e distribuigdes de objetos vie- ram a existir. Mas afirma que um passo aparentemente mais radical, a crenga literal na criagév dos fendmenos, mostra porque os olyjetos das ciéncias, em- bora tenham passado a existir em certos momentos, nado sio constituidos histo- ricamente. Sao fendmenes dai em diante, nao importa o que aconteca. Eu chamo isso de “realismo experimental”, Nunca se envergonhe de acrescentar mais uns “ismos” a nosso mundo, “ismicamente” perturhado, Eu diria que minha posicio é notavelmente seme- Ihante aquela claborada por Gaston Bachelard (1953), “racionalismo aplicado e materialismo téenico”. Nenhum outro {ilésofo ou historiador estudou com tanto afinco as realicades da vida experimental, nem houve alguém menos in- clinadlo do que ele a supor que a mente nao € importante (seu racionalismo aplicado). Cinquenta anos atras, ele estava ensinando que cortes epistemoldgi- cos ocorrem na ciéncia (por exemplo, “o efeito fotoelétrico representa uma descontinuidade absoluta na historia das ciéncias"), Ao mesmo tempo, ele acreditava em acumulacdo cientifica e em connaissance apprachée. O que acumulamos sao técnicas experimentais e estilos de raciacinio. A filosofia an- glofona da ciéncia tem debatico demais a questéu sobre seo conhecimento terico se acumula. Talvez nao. E dai? Os fendmenos e as razGes se acurnulam. Tendo entdo feita um pequeno gesto de deferéncia para cam Bache- lard, passo para un de seus descendentes espirituals, qual seja, Michel Fouca- ult. Tentarei manter em mente Lima das adverténcias clo. Addison om The Spectator. “Umas poueas regras gerais, extraidas dos autores franceses, mais al- guns modismos, vez por outra faz passar um escnitor iletracio e pesadao pelo mais formidavel e criterioso critico” (Spectator 291, sabado, z de fevereiro de 1711). TaN Haceina Inventando pessoas No final de uma resenha recente de Consequences of Pragmatism [Consequéncias do Pragmatismol, de Rorty (1982), Bernard Williams cita Rarty citando Foucault, "a existéncia da linguagom continua a brilhar cada vez mais forte no horizante". Ele entao diz que a menos que mantenhamos em mente que a ciéncia encontra mados de sairda cela das palavras, ese nao recuperarmosa percepedo de que fazer ciénciaé uma de nossas experiéncias essencials de sermos restringilus pela verdad, descobriremos que o brilho da linguagem no horizante, na verdade, é 0 do foga no qual o herdi supremamente livresca do Auto da FE de Canetti imolou-se em sua biblioteca (Williams 1990, 37). Tais jogos de metametacitagdo dao ensejo a uma pequena sapecada, mas tenho duas razées para citar Williams. A menos importante, meio que um aparte, € que o proprio Williams pode estar preso na armadilhada cela de pa- favras, O modo dé sair da cela de Williams nao ¢ ser restringica pela verdade, mas criar fenémenos, Apenas denira de uma filosofia verbalista da ciéncta do- minada pela teoria 6 que “fazer ciéncia 6 uma de nossas experiéncias essenci de sermos restringidos pela verdade”. Vamos usar como exemplo uma impor tante descoberta dos anos 1980, O evento em questio eorroborava algumas das conjecturas feitas por Fermi muitos anos antes. Fle achava que devia existir uma particula, uma particula elementar de interagaa fraca ou b6son W, que era em certo sentido © “portadar” dis correntes fracas neutras (assim como o elétron é 0 portaclor das correntes de carga comum). Porvolta de 1970. a5 pes- soas estavam tentando encontrar o W, mas ai a propria comunidade de fisica das altas energias voltou-se para o estudo de correntes fracas neutras, Ces con- sideravam © W uma mera entidade hipotética, uma ficcdo da nossa imagina- Gao. $6 no iniciv dos anos 1980, a pesquisa foi retomada, em niveis muito mais altos de energia do que Fermi havia achado necesséria, Finalmente, em janeiro de 1983, 0 CERN anuinciau que havia localizado @ W no deraimento préton-an- tipréton a 540 GeV. Hd uma complexa narrativa de historia da-ciéncia a contar sobre 0 abandono da busca do W e depois sobre sua retomacia. Certamenté houve restrigdes, mas nao “resiricdes pela verdade”. Nao suponho que exista uma teoria verdadeira da verdace, mas existe uma teoria instrutiva, qual seja, a teoria da verdade camo redundancia, que dic que “p & verdadena” nao diz mais do que p, Se algo verbal restringia os primeiros exnerimentadares, eraum 61 CINCO PaRABOLAS Pp, nao a verdade de p. O que realmente restringia os primeiros pesquisadores era a necessidade cle fontes de energias mais altas; tiveram de esperar pela ge- ragdo seguinie para criar os fendmenas que envolviam o decaimento pri- ton-antipréton que buscavam. Havia restricdes por toda a parte, mas nenbumma delas era uma restricdo pela verdade, a menos que, por ascensao semantica mdrbida, expressemas as restrigdes usando a palavra redundante “verdadeiro” A teoria da verdade como redundaneia é instrutiva may jmperfeita. Nao me refiro a seus defeitas formais, mas a0s filosdficos, Ela di a impressdo de que "é verdadeiro" é meramente redundante, mas inofensivo. Acho que real- mente convida a ascensdo semantica, & nos leva escada acima até aquela cela de palavras na qual os filésofos, ndo excluinde Williams, confinam a si mes- mos. Se existe uma teoria interessante da verdade a ser discutida neste mo- mento, ela podera ser encontrada nas préprias “sugestdes a serem mais testadas e avaliadas” de Foucault: “Verdade” é para ser entendido como um sistema de procedimentos ordenados para a prouugdo, reyulagay, distribuicao, cirulagau © operagao de declarayoes, "Verdade” esté lignda em uma relacao circular com sistemas de poder que a pro- duzem e sustentam, e com efeitos do poder que ela induz e que a estendem (Fou- cault 1980, 133). Deverfamos, se estamos filosoficamente interessados na verdade, pre- ocupar-nos com 0 mode como os enunciados passam a existir como candida- tos a serem verdadviros ou falsos, e como objetos possiveis de conhecimento. Mas mesmo aqui “verdade" é redundante, pois estamos interessados simples- mente em como os enunciados passam a existir. Isso é tudo 0 que se pode dar como aparte, E a critica de Williams a Foucault? A despeito de minhas reconsideragées sobre As Palavras e as Coisas, as observagées de Williams parecem curiosamente deslocadas. Os livros de Foucault sao em sua maior parte 4 respeito de praticas e de como elas afetam e so afetadas pelo discurso no qual as embutimos, © resultado final é menos um fascinio com as palayras do que com as pessoas e instituigdes, com o que fazemos para e com as pessoas. Ele realmente tem Uma nobre obsessao com o que considera sor opressio: 0 asil6, a prisdo, o hospital, a saicle piblica © a medicina legal. A visa que ele tinha dessas praticas pode estar totalmente er- rada. Alguns dizem que ele jf causou um dano incaleulavel as infelizes pessoas perturbadas que sdo soltas nas ruas das metrépoles americanas, porque Fouca- ult convenceu os médicos de que os doentes mentais n4o deveriam ser confi- nados. Mas uma coisa esta clara, Foucault nao ficou trancafiado em uma cela de palavras, Alérn do mais, é precisamnente seu trabalho intelectual, sua obra fi- —_&2____ Tan Hacana, los6fica, que direciona nossa aten¢ao para longe de nosso discurso e na dire- gao de nossas praticas. Nao estou negando que Foucaultseja verbal. Poucas pessoas leram um de seus primeirus liveus, sobre 0 surrvalista Raymund Roussel (Foucault, 1966). Roussel parece ser o prdprio epitame do homem na cela de palavras. Um de seus livros é How | Have Writer) Some af My Boaks [Camo Escrevi Alguns-de Meus Livros] (Roussel, 1977), Ele diz que ira Lentar encontrar uma frase tal que, ao mudar uma das letras em uma das palavras, voce modifica 0 significnde de cada uma das palavras dla frase, assim como a gramatica. Depois vocé escreve a primeira frase no inicio de seu romance e segue em frente até termmar o livro com a segunda frase. Em 1310, ele escreveu Impressions of Alrica [Impressies da Africa] (1969) e depois viajou pelo Egite para se certificar de que nada na li- vro era verdadeiro. Ele vinha de uma boa estirpe. Sua mae louca e rica fretou um iate para fazer uma viagem a india. Quando chegou perto da costa, abril 0 seu telescépio, disse “Agora via India” e voltau para casa. Roussell suicidau-se. Isso tudo pode ser tide em um nivel como obsessao lingu(stica hiperparisiense. Mas uma caricalura, mesmo que vivida a sério, pade tambem ser lida como nos direcionando para 9 opaste exato. Qualquer que seja o sentido da fase Roussel, vamos considerar a linha principal da obra de Foucault, o manicémio, a clinica, a prisio, sexvalidade e, em geral, a mescla de conhecimento e poder. J4 abservel que Kuhn nada diz sobre as ciénicias sociais ou © conhecimento dos seres hummanos. Da mesma forma, Foucault nada diz sobre as ciéncias fisicas, Seus comentirias sobre 0 que, com certo charme, chamamos de cléncias da vida sao pringipalmente, embara nao totalmente, dirigidos an moda Coma interferimos nas vidas hiima- nas. J4 ouvi Foucault sendo criticado por ter medo das ciéacias fisicas. Vamos, a invés disso, vunsiderar a hipGtese de que ha algo de fundamental mente cor reto com essa divisdo de trabalho, Kuhn nas ciéncias fisicas e Foucault com os assuntos humanos. Vou me concentrar em apenas uma coisa, fazenclo um cantraste espe- cifico com 0 nominalismo revalucionario de Kuhn. O problema do nominalis- mo escolistico, disse eu, 6 que ficle nossa interagia com o mundo, ¢ nossa descricao da mundo, permanece um completo mstério. Podemos muito bem entender porque a palavra “lapis” distingue habilmente alguns objetos. Nés fa~ bricamos lapis; € por isso que eles existem,. Nominalismo a respeita de artefa- tos humanos nao é um problema. E a nominalismo a respeita-de-yrama, Arvores e€ estrelas que é 0 problema. Como podem nossas palavras adequa- rem-se a céu € terra sé Nao existe, antes de nés, grata, arvores e estrelas? Um numinalisimy universal ¢ estilo é um mistériv absurd, Ne entanty, © sobre as categorias que se aplicam as pessoas? CINCO PARABOLAS AS pessoas estdo vivas ou mortas, so altas ou baixas, fortes ou fracas, criativas ou diligentes, tolas ou inteligentes. Essas categorias surgem a partir da natureza das prdprias pessoas, embora estejamos nesta altura bem cientes de como a “inteligéncia” pode ser distorcida por quocientes, Mas considere as ca~ tegorias tao minuciosamente examinadas por Foucault, que envalvem loucu- ra, criminalidade e outros tipos de desvios. Considere até sua afirmativa (na qual no acredito muita) sabre 0 que era um soldado na era medieval, e aque ele se tornou com as novas instituiges de disciplina ¢ uniforme: os préprios soldados tornarar-se diferentes lipoy de pessoas. Poderus agora cunmeyar a entender um tipo diferente de nominalismo, que cu chamoe de nominalismo dindmico, Categorias de pessoas passam a existif na mesma hora em que tipos de pessoas passam a existir de modo a se encaixarem nessas categorias, e ha uma interagdo de mao dupla entre esses processos. Isso nda é exatamente sensacional, j4 que a maioria das coisas interes sante sobre nds é © que resolyemos fazer, ou tentamos nao fazer, como nos comportamos ou nos comportamos mal, Concordo com a opiniao de G. E.M Anscombe em Intention {Intengao} (1957) de que, de modo geral, a a¢do inten- clonal é acdo de acordo com uma descrigdo. Entio tem de haver descricées.. Se pudermos mostrar que as descricoes mudam, algumas aparecencto e outras sumindo, entao simplesmente ha uma alteragdo no que podemos (como uma questao de ldgica) ou nao fazer, € posstvel reler muitos dos liyros de Foucault como sendo em parte narrativas sobre a conexao entre certos lipos de descri- cao que passam a existir ou deixam de existir, e cortos tipos de pessoas que passam a existir ou deixam de existir, Eo que é mais importante, esse é um tipo de trabalho que se pode adotar. Eu estudo 0 mais enfadonho dosassuntos, es- tatistica do século dezenove. Ela vem a ser um dos aspectos do que Foucault chama de “biopolitica da populagao" que “deu origem a medidas abrangen- tes, avaliagdes estatisticas e intervengées que visam a todo o corpo social ou grupos como um todo” (Foucault 1978, 139). E que encontra eu no iniciv da grande avalanche de ntfimeras por volta de 19207 Nacla diferente das estatisti- cas de desvio, de loucura, de suicidio, de prostituicao, de vadiagem, de crimes contra a pessoa, de crimes contra a propriedade, de embriaguez, les misera~ bles. Essas vastas colegSes de dados sdo chamadas de analyse morale, Encon- tramos constantes subdivisdes € rearranjos, por exemplo, do louco, na medida em que a contagem avanca. Encontramos classificacoes de mais de 4 mil dife- rentes motivos entrecruzados para homicidia, Nao acredito que esses tipos de pessoas loucas, ou esses motivos para homicidio, em geral existissem até que passasse a haver a pratica de conta-los (Hacking 1982a). Novos modos de contar pessoas eram constantemente concebidos. Novos escaninhos eram criados nos quais as pessoas pudessem se encalxar € oa Tan Hack serem contadas. Mesmo os censos decenais nos diferentes estados espantosa- mente mostram que as categorias nas quais as pessoas se encaixam alteram-se a cada dez anos. Isso em parte se dé porque a alteragao social gera novas cate- gorias de pessoas, mas acho que as Contagens nao eram meros-relatos, Faziam parte da criagae elaborada, bem intencionada, na verdade inocente, de novos tipos de modos para as pessoas serem, @ as pessoas inocentemente “esco- Jhiam” encaixar-se nessas novas categorias. No fago a menor ideia do que tal nominalismo dindmico ird significar. Vamos, no enlanto, considerar suas imphicagdes para a historia ea filosofia das ciéncias humanas. Como o naminalismo revolucianario de Kuhn, 0 nominalis- mo dinamico de Foucault é um nominalismo historicizado, Mas ha alga funda- mentalmente diferente. A historia representa um papel essencial na constituigdo dos objetas, em que as objetos s40 pessoas @ os modos coma elas se comportamn. A despeita de minha doutrina radical sobre a criagdo experi- mental dos fendmenos, sustento a visao do senso comum de que o efeito foto- elétrico é intemporal pelo menos neste sentido: se a pessoa realmente faz certas coisas, certos fendmenos irao aparecer, Eles nunca apareceram antes do século dezenoye, Nés os fizemos. Mas 0 que aconteceu quando em meados do século vinte usamos 6 efeito fotaelétrico para abrir portas de supermerca- dos era restringidé pelo “Mundo”, As categorias eriadas por aquilo que Fou- cault chama de anatomopolitica e biopolitica, € o “aglomerado intermediario de relagdes” entre as duas politieas, sao constituidas em um cendrio essencial- mente histérico, E é em termos exatamente dessas categorias que as ciéncias humanas ousam nos descrever, Além do mais, elas trazem a vida novas catego- rias que, em parte, trazem a vida nowos tipos de pessdas. Refazemas o mundo, mas fazemos pessoas. Um pouco antes da adverténcia contra escrita pesada e imudismoe francés, coro qual (grininel a parabola quatre, Audisyn escreveu “com certeza um autor que nao aprendeu a arte de dlistinguir palavras e coisas e de pér em ordem seus pensamentos e colocd-los sab 9 prisma apropriado, quaisquer que sejam as nogdes que possa ter, ind perder-se em confusdo e obs- curidade”. Acho que nos perderemos am conlusao & obscuridade porainda al- gum tempo nas chamadas ciéncias sociais e humanas, porque nesses dominios a distincdo entre palayra e coisa é constantemente borrada. S40 precisamente 0s métados experimentais quc eu cansidero essencials para as ci@ncias fisicase que, afirmo, fazem © nominatismo revolucionario historicizado de Kuhn nao chegar a ser um nominafismo estrito. Os métodas experimentais das ciéncias humanas sda outra coisa, A falta de uma nitida distingao entre palavra e coisa est na raiz da famosa observacao final de Wittgenstein em Philosophical Inves- tigations [Investigagoes Filusdticas), de que na psicolugia (¢ areas afins) “ha mé- todos experimentais e confusao conceitual". Aqui a “arqueologia” de Foucault ——_—__. CINCO PARAWOLAS pode ainda se revelar til, ndo a fim de “expor a forma da garrafa de moscas”, mas pelo menos para apreencer as interrelacoes de poder e conheclmento. que literalmente nos constituem como seres humanos. Esse seria © mais forte: impacto da histéria sobre a filosofia, Mas até que consigamos fazer esse traba- Iho melhor, tera de continuar a ser mais uma parabola, deliberadamente aber- ta, como todas as pardbolas, a interpretacées demais.

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