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RECONSTRUCAO DO DASSADO J6rn Riisen = a qi Teoria da Historia II: Oe os principios da pesquisa historica EDITORA ati | ee ns ee el al FUNDACAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor ‘Timothy Martin Mulholland Vice-Reitor Edgar Nobuo Mariya L i] UnB Diretor Henryk Siewierski Diretor-Executivo Alexandre Lima Conselho Editorial Beatriz de Freitas Salles Dione Oliveira Moura Henryk Siewierski Jader Soares Marinho Filho Lia Zanotta Machado Maria José Moreira Serra da Silva Paulo César Coelho Abrantes Ricardo Silveira Bernardes Suzete Venturelli Jorn Risen Reconstrucao do passado Teoria da Hist6ria II: os principios da pesquisa histérica Tradugdo Asta-Rose Alcaide Revisdo técnica Estevao de Rezende Martins UnB Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervistio editorial Sonja Cavalcanti - Acompanhamento editorial Teresa Cristina Brandio- Preparagio de originais e revisto Fernando M. das Neves - Ivanise Oliveira de Brito . Editoragdo eletrinica Iwanise Oliveira de Brito - Capa Tvanise Oliveira de Brito, Rejane de Meneses e Sonja Cavalcanti . indice Elmano Rodrigues Pinheiro . Acompanhamento grifico Copyright © 1986 by Vandenhoock & Ruprecht Copyright © 1007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Tela original: Rekonstruktion der Vergangenteit: Grundbatige einer Historik I: Die Prinzipien der historischen Forschung Impresso no Brasil Colegio Teoria da historia, de Jorn Rusen: Volume I - Razao histérica (publicado em 2001) Volume II - Recanstrugie do passado Volume Ik - Historia viva Direitos exclusivos para esta edicd Editora Universidade de Brasilia SCS Quadra 2, Bloco C, n* 78, Ed. OK, 1¢ andar 70302-907 - Brasilia-DF Tels (61) 3035 4211 Fax: (61) 3035 4223 wwweditora.unb.be direcaogeditora.unb.br wwwliveariauniversidade.unbbr Tados os dircitus reservados, Nenhuma parte desta publicagao poderd ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacao por escrito da Editora. Ficha catalografica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia Riisen, Jorn R951 Reconstrugao do passado / Jorn Risen; tradugio de Asta-Rose Alcaide.— Brasilia : Editora Universidade de Brasilia, 2007. 188 p. (Teoria da Histéria, 2) ISBN: 978-85-230-0942-7 L, Historiografia. 2. Pesquisa hist6rica. 1. Alcaide, Asta-Rose. II. Titulo. IH]. Série. CDU 930.1 Para Jan-Eicke, Peer Achim, Tom-Arne Sumario Prericto, 9 IntRopucéo A CONSTRUCAO DA CIENCIA DA HISTORIA NA PESQUISA HIsTORICA, 11 Capituto 1 SISTEMATICA ~ ESTRUTURAS E FUNGOES DAS THOMAS HISTORICAS, 23 Explicagdes e o uso de teorias na ciéncia da historia, 26 A explicagdo nomolégica e o problema das leis histéricas, 28 A explicago intencional ¢ o problema das articulagdes hermenéuticas de sentido, 35 A explicacao narrativa e o problema dos construtos narrativos tedricos, 43 A passagem para o todo: da teoria “da” historia, 55 Fungées das teorias histéricas, 75 Conceitos histéricos, 91 CapiruLo 2 METODOLOGIA — AS REGRAS DA PESQUISA ausrOrica, 101 A unidade do método histérico, 104 As operagées processuais, 118 Heuristica, 118 Critica, 123 Interpretacao, 127 As operacdes substanciais, 133 8 Jorn Risen Hermenéutica, 136 Analitica, 145 Dialética, 154 HOoRIZONTES A PLENITUDE DA PESQUISA NA HISTORIOGRAFIA, 169 Bistrocrarta, 173 invice, 183 seven ea NR Prefacio A segunda parte de Teoria da Histéria vem a lume mais tarde do que originalmente previsto, e nfio esgota tudo o que pertence ao dmbito de uma teoria sistematica da historia. Para ndo incorrer no risco de um atraso ainda maior, preferi publicar a parte que se refere 4 pesquisa histérica em um volume separado. Os problemas especificos da historiografia ¢ a fungdo pratica do saber histérico cientifico seréo tratados em um terceiro volume. Razdo histérica, na maioria dos casos, foi comentado por cole- gas cuja opinidio me encorajou a continuar o trabalho e cuja critica me enriqueceu. Agradego, sobretudo, a Karl Acham, Ulrich Herr- mann, Gangolf Hubinger, Karl Ernst Jeismann e Thomas Kombich- ter, a Georg Iggers, F. A. van Jaarveld, Jiirgen Kocka, Wolfgang Kittler, Estevao de Rezende Martins, Maria Beatriz Nizza da Silva e Irmgard Wagner, cujas questées ¢ objegdes muito me instigaram. Minha gratidiio vai também a meus colaboradores de Bochum, Horst Walter Blanke ¢ Friedrich Jaeger, pelo interesse critico que mostraram, pelo desafio de suas expectativas quanto ao andamento do meu trabalho e por seus bons conselhos na reviséo do manus- crito. Devo um agradecimento muito especial a Ursula Jansen e Christel Schmidt pelo trabalho rapido, responsavel e incans4vel em transformar pensamentos desordenados em textos legiveis (pelo menos, assim 0 espero). Nio teria sido possivel produzir este pequeno volume sem a ‘boa vontade de minha esposa, que manteve disponivel para mim o espaco necessério, no cotidiano familiar, para o trabalho de 0 con- ceber e escrever. 10 Jorn Rasen Dedico este livro aos meus filhos, como legitimes represen- tantes do futuro, para quem o passado deve ser reconstruido histo- Ticamente; com sua autonomia, eles sio boas testemunhas de que o futuro vai trazer mais oportunidades do que se poderia esperar historicamente. Introducgaéo A construcao da ciéncia da historia na pesquisa histérica Certa res est, nerinem posse historian recte scribere, qui non sit bonus Logicus’ Bartholomaus Keckermann’ O primeiro volume da trilogia Zeoria da Histdéria tratou das pretensdes de racionalidade formmuladas pela historia como ciéncia. Nele, foi meu objetivo realgar o carater fundamental dessas preten- sdes, seu significado na vida humana pratica. Quis apresentar os fundamentos da ciéncia histérica na perspectiva das operagSes con- cretas da consciéncia histérica. Fundamentos s6 tém valor efetive quando se pode construir sobre eles algo de consistente. Esta cons- trugdo ser analisada, nos dois capitulos que seguem, como produto da pesquisa histérica. Conforme demonstrei no primeiro volume, Razde histérica,* © objeto de uma teoria da histéria é a matriz disciplinar da ciéncia da hist6ria. Essa matriz se constitui das caréncias de orientagao, das *N.do § referéncias a obta Razdo histérica (1° volume da trilogia Teoria da Historia so feitas 96 em algarismo romano, seguido do atimero arabico para pa- gina (ver, por exemplo, a nota 8 desta Introdugdo (1, 32 ss., que significa: Razdo histérica, pagina 32 ¢ seguintes)). 1 “Uma coisa é certa: ninguém pode escrever a histéria corretamente se no for um bom légico” (Nota do revisor técnico) ? B. Keckermann, Opera omnia, Genebra 1614, v. 2, p. 1314, citado por Menke- Glickert, Die Geschichtsschreibung der Reformation und Gegenreformation. Borodin and die Begrindung der Geschichtsmethodologie durch Bartholoméus Keckermann. Osterwick (Harz), 1912, p. 126. 12 Jorn Rusen perspectivas orientadoras da experiéncia do passado, dos procedi- Mentos metédicos da pesquisa empirica, das formas de apresenta- do e das fungdes de orientagdo existencial. Minhas reflexdes sobre a “razfio histérica” concentraram-se basicamente nas caréncias de otientagdo. Com isso, quis demonstrar em que consistem, quando constituem o pensamento histérico como fator importante para a vida pratica, e como elas so apresentadas e realizadas mediante um pensamento histérico cientifico. Os demais fatores ainda serio analisados em separado. Essa andlise seré feita, a seguir, com dois deles: as perspectivas orientadoras com relag&o ao passado e os procedimentos metédicos da pesquisa empirica. Antes de comegar, no entanto, quero expor como se apresenta o vinculo prdprio desses dois fatores com os demais. © pensamento histérico torna-se especificamente cientifico quando segue os principios da metodizag4o, quando submete a re- gras todas as operagbes da consciéncia hist6rica, cujas pretensdes de validade se baseiam nos argumentos das narrativas, nas quais tais fundamentos so ampliados sistematicamente. A razdo, tal como reivindicada pela historia como ciéncia, fundamenta-se nesse principio da metodizacao. H com base nos principios que tomam o pensamento hist6rico racional, isto é, que definem seu carater argu- mentativo-fundante, que a histéria se constréi como especialidade. Como conceber essa construc4o? Se é o principio da metodizagao que transforma o pensamento histérico em ciéncia, cabe perguntar apenas como se faz valer esse principio nos diversos fatores da ma- triz disciplinar. Obtém-se, assim, uma idéia da construgo da hist6- ria como ciéncia espocializada. E precisamente isso que tenciono mostrar a seguir. Nao é nada simples reconstituir, em pormenor, como o principio da metodiza- go se insere na matriz disciplinar, porque os fatores que compdem a matriz nfio aparecem apenas na ciéncia da histéria, mas sdo deter- minantes de tedo o pensamento histérico. De resto, ha quem con- clua, a partir disso, ser desnecessdrio falar em paradigma ou matriz disciplinar da ciéncia da histéria, j4 que nao se conseguiria alcangar qualquer conhecimento inequivoco acerca da construg3o da ciéncia Reconstrugdo do passado 13 da historia ¢ de seu desenvolvimento histérico.’ Prefiro argumentar em sentido exatamente oposto, perguntando: como se da a formagao desses fatores determinantes do pensamento histérico, se s4o eles mesmos que determinam uma forma precisa do pensamento histd- Tico — a cientifica? Como se constituem, de forma especificamente cientifica, esses fatores da matriz disciplinar? Com tal pergunta é possivel lancar um olhar mais agucado sobre a especificidade da ciéncia da histéria do que quando se parte de qualquer padrio fixo de cientificidade (como, por exemplo, do prine{pio metédico da cri- tica das fontes), deixando com isso de levar em consideragio a rela- ¢ao complexa que a ciéncia da histéria, como construto intelectual peculiar (mais precisamente: como um processo intelectual especifi- co), mantém com a vida humana pratica. Minha questio esta, portanto, na investigacdo do modo pelo qual se constituem os fatores da matriz disciplinar, quando a histéria é tratada como ciéncia, Essa constituicdo se dé quando os varios fatores se orientam pelo principio da metodizacao do pensamento hist6rico e da ampliacao sistematica do cardter argumentativo de sua fundamentagao. Em outras palavras: a construgdo da ciéncia da his- téria compreende-se como a impregnagao de sua matriz pelo prin- cipio da metodizagao. Nao é no porqué da definigaio do pensamento histérico por interesses, iddias, métodos ¢ formas que est4 o ponto de partida de sua interpretacdo especificamente cientifica, mas sim no como isso acontece. Metodizacao significa sistematizacio e ampliagdo dos fundamentos que garantem a verdade. Somente quando esse ponto de vista 6 adotado para os diversos fatores da matriz disciplinar é que estes se transfor- mam em estrutura de uma matriz disciplinar. Pode-se recorrer também 3 Recentemente, K. Repgen, Kann man von einem Paradigmawechsel in der Geschichtswissenschaft sprechen? In: Leidinger (Ed.}, Theoriedebatte und Geschichtsunterricht (8), p. 29-77.* *N. do E.: A exemple desta nota, os titulos que aparecem neste ou no primeiro volume so citados com o nome do editor, titulo abreviado ¢ o numero, entre parénteses, da parte numerada da bibliografia. 14 Jorn Risen A conhecida definic3o' de Th. S. Kuhn: a metodiza¢ao do pensamento histérico em geral significa dar forma de paradigma aos fundamentos da ciéncia da historia. Afirmo assim que os fatores essenciais de todo pensamento histérico se transformam em matriz disciplinar e assumem, tanto para si quanto para seu contexto sistematico, novas fonnas. Como referido antes, todo pensamento histérico possui perspec- tivas orientadoras implicitas, nas quais estiio incorporadas caréncias de orientagiio no tempo. Encontram-se também implicitos em todo pensamento histérico procedimentos para garantir empiricamente as assercdes histdricas, Naturalmente, todo pensamento histérico enuncia-se por expressdes orais, literérias, metaféricas ou de outras formas. Afinal, todo pensamento histérico exerce, por certo, fungdes de orientagdo no tempo. Esses momentos nem sempre se apresen- tam, contudo, como fatores diversificados da narragiio histérica, e na realidade nem sempre sio pensados como fatores em si ou em seu conjunto. Quando a histéria se constitui como ciéncia, porém, é diferente. Os diversos tatores diferenciam-se e articulam-se em contextos sistematicos. Ao mesmo tempo, sua diferenciag&o e seus contextos sistematicos tornam-se pensaveis e discutiveis em novas bases. Temos entdo a teoria da historia como atividade de fundamen- tacdo cientifica especifica do pensamento histdrico. “Dar forma de paradigma” significa, pois, construir uma matriz disciplinar que € refletida ¢ explicada mediante uma teoria da histé- ria. F por esse processo que, nos fundamentos da ciéncia hist6rica, o principio da metodizagio se diferencia. “Dar forma de paradigma” pode ser descrito como o procedimento pelo qual o método se inse- re, como principio de cientificidade, na gramdtica do pensamento histérico. As regras de argumentagdo que fundamentam a cientifici- dade do pensamento histérico cristalizam-se nos diversos principios essenciais especializados, nas fungdes do pensamento histérico e em seu contexto sistematico, formando assim uma matriz disciplinar. Esse processo de formagao pode ser descrito come a racionalizagdo do pensamento histérico com vistas 4 constituigae especifica da his- téria como ciéncia. 4 Th. S. Kuhn, Die Siruktur wissenschaftlicher Revolutionen, Frankfurt, 1967. Reconstrugae do passado 18 Ao esbogar esse processo de forma abreviada ¢ esquematizada, nO que seguc, nao tenho a intengao de tratar da historia cientffica concreta, mas de construir uma estrutura abstrata da constituigao da histéria como ciéncia e como forma de racionalizacdo. Para mim, trata-se da “Idgica” do pensamento histérico que define a constru- ¢4o da historia como especialidade. Resta a pergunta se ¢ como o processo histérico, do qual resultou a histéria como ciéncia, pode ser interpretado teoricamente & luz de uma ldgica que utilize essa descric¢do estrutural.> O que significa transformar em ciéneia o pensamento histérico como forma de racionalizagio dos seus prin- cipios? 1. E possivel falar de um processo de racionalizacdo em sentido mais restrito, tendo em vista a caréncia de orientapdo pratica da vida humana, mediante o pensamento histérico: as caréncias de orientacao passam a ser racionalizadas pelos interesses cogni- tivos, As caréncias humanas de se orientar em mci as modifica- des temporais de si ¢ de seu mundo, nas quais tem de se afirmar e marcar posi¢ao, dirigem-se 4 razdo. Elas se referem 4 capaci- dade dos individuos em interago de regular sua comunicagdo segundo as regras de uma argumentagao metédica, discursiva € orientada para 0 consenso. 2. Pode-se falar de um processo de teorizagdo com respeito as ex- periéncias do passado, no qual estas aparecem como histéria sig- nificativa: as idéias, como perspectivas orientadoras das expe- riéncias do passado, s@o teorizadas como quadro de referéncia da interpretagao histérica. Os pontos de vista — que decidem o * Dados das fontes ¢ primeiras avaliagdes encontram-se na documentagao de H. W. Blanke/D. Fleischer/J. Risen, Historik als akademische Praxis: Eine Doku- mentation der geschichtstheoretischen Vorlesung an deutschsprachigen Univer- sitéten von 1750-1900. In: Dilthey-Jahrbuck fiir Philosophie und Geschichte der Geisteswissenschafien 1, 1983, p. 182-255, No percurso evolutivo do pensamen- to hist6rico do Iluminismo até 0 Historicismo, tentei demonstrar empiricamente ‘© processo de paradigmatizacao: J, Risen, Von der Aufklarung zum Historisrms. Idealtypische Perspektiven cines Strukturswandels, In: H. W. Blanke/J, Risen (Ed.), Yon der Aufklérung zum Historismus. Zum Strukturwandel des historischen Denkens. Paderborn, 1984, p. 15-57. 16 Jorn Risen que das modificagdes do homem ¢ de seu mundo vai ser apro- priado cognitivamente como histéria — nao continuam imanentes ac processo de tornar presentes pela narrativa os acontecimentos histéricos do passado, mas sao explicitados e, por isso, passiveis de discuss4o, controle e aplicagio metdédica, 3. E possivel, tendo em vista as regras que o pensamento hist6- Tico segue quando incorpora as experiéncias do passado nos Propésitos que o orientam, falar de wm processo de metodizacao. As garantias de validade de historias sio metodizadas como um sistema de regras da pesquisa empirica. Nao se trata da metodi- za¢o como principio de cientificidade, que diz respeito aos fun- damentos do pensamento histérico ¢ aos fatores determinantes da formago de sentido, mas do sistema especial de regras que vale para a averiguagdo e interpretagao de contetido de histérias, isto é, do “método histérico” em sentido estrito: o canon de re- gras de pesquisa que a ciéncia histérica reconhece como deter- minante para si ¢ com o qual fundamenta sua especializagav. 4. E dificil encontrar um conceito caracteristico para 0 que acon- tece com as formas da apresentagao do conhecimento histérico, quando este conhecimento se transforma em ciéncia. De inicio, a apresentagao ganha novas formas discursivas, especificamen- te cientificas, ¢ perde com isso as possibilidades de expresso literaria, j4 que essa expressaio nao é compativel com as garan- tias cientificas de validade des sentengas hist6ricas. Assim, por exemplo, Ranke se posicionou contra as “formulas poéticas” da historiografia de Guicciardini.® Poder-se-ia falar de um processo de anti-retérica, se por retdrica se entender uma estratégia de apresentagao cuja plausibilidade aos olhos de seus destinatérios esta nfo no discurso racional de uma argumentacio cientifica, mas no intento de conferir 4 apresentagao uma forma (apenas) literariamente atrativa. As formas de apresentacdo sao trans- Sormadas em veiculos de uma argumentacéo histérica discursi- va. Nao se quer dizer com isso, todavia, que a cientificidade da * L. v. Ranke, Zur Krisik neuerer Geschichtsschreiber (Obras completas, 33), Leipzig, 1874, p. 19 ss. Reconstrugao do passado 17 historiografia perca seu encanto literdrio, embora a ocorréncia de um estilo algo seco e de alguns barbarismos técnicos pareca indicar 0 contrério. E preciso realizar um processo de reestrutu- ta¢do de outro tipo. A historiografia nao produz mais o brilho (as vezes ofuscante) da efetivacio do processo histérico por meio do ato da fata; ela nfo apresenta mais a histéria na forma de wna mimesis reprodutora de um fato concreto, renunciando aos tecursos lingitisticos de imaginagées ficticias de efeito empatico. Ela desfaz a aparéncia agradavel da historia, que se apresenta como um quadro alegérico objetivo, ¢ faz aparecer dentro desse quadro alegérico os tragos de um trabalho metédico de reconhe- cimento. Ela renuncia aos meios retoricos, que sé servem para persuadir seus destinatarios, e se contenta com os meios de argu- mentacfio para convencer os outros. Em resumo: a historiografia dé forma ao conhecimento histérico para que este possa apelar 4 capacidade de raciocinar daqueles a quem sc destina ou por quem € utilizado. Isso nav quer dizer que a histria como ciéncia passe a ser sem graca e aborrecida, ou que nado possua mais valor lite- rario. Ao contrario: a evidéncia nao cria restrigdes 4 arte de um discurso oral sensato. A narrativa histérica realiza 4 sua maneira a separagdo entre a verdade e a beleza, que desde o fim da arte se tornou seu tema.’ Ela tem assim a oportunidade de trazer a luz uma verdade livre da magia da arte, mas com uma beleza propria (intelectual e compreensivel). 5. Pode-se falar, em relagdo as fungdes da orientagdo existencial na vida humana pratica, de uma humanizacéio ideolégico-critica. A fixagdo coercitiva da orientagdo do tempo e a formagao da iden- tidade mediante a lembranga histérica sdo diluidas pela ideologia ¢ pela critica. A identidade histérica ¢, ademais, remetida ao cri- tério de humanidade que abrange o reconhecimento miituo. A de- finigdo das fungdes da critica da ideologia leva a equivocos por causa das implicagdes politicas dessa expressio, ¢ com razio a categoria Aumanidade, como critério para a identidade histérica, 7 Cf. J, Risen, Asrhetik und Geschichte. Geschichtstheoretische Untersuchungen zum Begrindungszusammenkang von Kunst, Gesellschafi und Wissenschaft, Stutigart ,1976, p. 30 ss. 18 Jom Risen gera a desconfianca de que se trataria de uma evocagdo vazia de conteudo, Essa desconfianca desaparece, porém, ao se pensar no efeito libertador que é produzido quando se introduz o principio da argumentagio discursiva orientada pelo consenso nas narra- tivas préprias ou de terceiros. Essas narrativas sao identificadas historicamente ¢ ocorrem (ou ocorreram) — forposamente ~ na vida pratica dos homens. Hiananidade, aqui, quer dizer 0 pres- suposto regulativo de uma faculdade raciona! prépria ao género humano nos processos de formagiio da identidade historica. Essa qualidade da espécie possibilita a regulagdo pacifica e consensual das relagdes conflituosas entre identidades hist6ricas particulares. Na medida em que se trata da fungdo de formacao de identidade dos agentes, pode-se qualificar o processo de racionalizagao do pensamento histérico também de humanizagdo. No ceme da ar- gumentagiio especificamente cientifica esti a convicgio de todos, cuja identidade histérica esté em causa, que uma mesma razio thes é comum, tornando-os assim aptos a reconhecer a alteridade do outro na singularidade de si mesmo. 6. As consideragdes a seguir tratam em pormenor de dois desses cince processos de racionalizagao na construcdo da histéria como ciéncia: a teorizagdo € a metodizagado. Sdo eles que constituem a pesquisa histérica como a forma de conhecer, especificamente cientifica, do pensamento histérico. Gostaria de mostrar, ao mes- mo tempo, a interdependéncia desses dois fatores, ¢ desmontar com isso © preconceito de que a pesquisa em si jd esta suficiente- mente constituida por suas regras metédicas — como se o quadro tedrico de teferéncias do trabalho empirico com as fontes desem- penhasse um papel apenas subordinado ou mesmo nenhum. Resta ainda a questao de saber como a teoria da historia deve tratar o processo que, na pesquisa histérica, constrdi a ciéncia espe- cializada. Um compéndio que reunisse todos os pontos de vista que tém vez na pesquisa histérica seria enorme, ¢ sua utilidade duvidosa, a menos que se reduzisse a uma espécie de relatério do que foi ou é usual na pesquisa. Dadas as controvérsias constantes acerca daqui- lo de que se nutre o conhecimento histérico pratico, a tentativa de Reconstrucao do passado 19 ordena-lo sistematicamente recorreu a estratégia de restringir-se ao minimo denominador comum aos especialistas, como a tinica solu- go (meta-)teérica satisfatéria. Na falta de competéncia profissional em todos os diversos campos da ciéncia especializada, restou aos tedricos apenas resignar-se a escrever sé sobre o que, afinal, nio € objeto de controvérsia no discurso dos especialistas. Com isso, a teoria da historia s6 poderia, no melhor dos casos, assumir uma fungao cientifico-propedéutica, desistindo das outras fungdes para quais também ¢ acionada: a fung&o de fundamentagao teérica da pesquisa, a fungio de racionalizag&o pragmatica do texto da nar- rativa histérica e a funcdo de orientar didaticamente a formagao da historia. Com essa perda de fungées, a teoria da historia, que se considera o cénon para qualquer trabalho especializado das es- tratégias de pesquisa da ciéncia histdrica, obstruiria 0 progresso do conhecimento. Como, por falta de competéncia direta quanto aos fatos sobre os quais reflete, ela teria de se limitar ao comprovado, consagrado ¢ habitual, inevitavelmente desviaria seu olhar para 0 desenvolvimento promissor da ciéncia especializada, cuja necessi- dade e oportunidade proclama, sempre que insiste na viabilidade racional do pensamento histérico. Por outro lado, seria igualmente precdrio se a teoria da historia ficasse confinada 4 averiguagdo dos fundamentos gerais e abstratos da ciéncia, e deixasse para os especialistas sua conversio profissio- nal cm ciéncia histérica. Porém, como a competéncia profissional esta inevitavelmente ligada a especializagao, a visio dos especia- listas da construgao de sua propria especialidade nao é zo ipso a mais agucada. A consciéncia da interdependéncia entre o geral e o singular, da conex4o entre a reflexdo metatedrica ¢ 0 conhecimento pratico se perderia demasiado facilmente se, no trabalho de pesqui- sa, fosse tracada uma linha diviséria rigida entre os tedricos como especialistas do geral e os praticos como especialistas do particular. E, acima de tudo, essa interagdo que da sentido a divisiio do trabalho € mostra serem teoria € pratica os dois lados da mesma atividade tacional do pensamento histérico. ® Cf I, p. 38 ss. [ed, bras.]. Jom Risen Uma teoria da histéria que busque analisar a construgaéo da ciéncia da historia baseada em principios gerais que definam a na- tureza cientifica do pensamento histérico, tera de singrar 0 mar do pensamento histérico ao longo de um percurso que ndo deixa de ser perigoso: entre a Cila da generalidade abstrata de principios de um lado e o Caribde de determinagdes detalhadas do processo do conhe- cimento histérico de outro. O que significa isso na pratica para a teoria da histéria? Ela nao pode elaborar o viés especializado da matriz disciplinar, de seus diversos fatores e de sua articulagdo sistemdtica até o nivel em que © conhecimento histérico é imediatamente produzido, ou seja: nio pode voltar, a cada passo, a todos os pormenores do universo da es- pecializacao. Ela teria de permanecer em um nivel médio de abstra- ¢4o, entre os principios abrangentes que se referem a matriz discipli- nar em geral e sua realizacao no nivel das solucSes espectficas dos problemas historicos. A teoria da histéria teria de se limitar a abordar preferentementc as detcrminagécs formais da pritica de pesquisa ¢ deixar a especificag4o do contetido para os especialistas. Dessa for- ma, nao poderd desenvolver sistemas completos de referéncia para a interpretagdo hist6rica (por exemplo, uma teoria refinada sobre a modernizagéo ou uma periodizagdo praticamente completa), mas sim descrever os elementos formais, a estru(ura, o alcance ¢ os limi- tes de tais teorias. As formulagdes concretas dessas teorias sé podem funcionar como exemplos, sem ser o fim, mas apenas o meio da reflexio tedrica. Uma teoria da histéria sistematicamente ordenada, quando disserta sobre o que & o método histérico, tampouco pode apresentar uma tecnologia de pesquisa aprimorada que elenca todas as areas da pesquisa historica. Em vez disso, ela se contenta com a discussao do método histérico, a exemplo da pergunta se ¢ como se diferenciam as varias operagées da pesquisa historica que aparece em todos os processos de pesquisa, etc. A teoria da histéria certamente também se relaciona, desde o nivel médio de abstragéio em que opera, com o estégio presente da ciéncia da histéria. De que maneira? Mediante uma mescla costu- meira de apreensaio empirica do fato e de abordagem normativa do potencial racional. Nao se trata, conforme ja foi dito, de apresentar 40 do passado 2 ou prescrever fatores dominantes atuais da ciéncia da historia da forma o mais completa possivel. Pelo contrario, tendo em vista a pretensiio fundamental de racionalidade do pensamento histérico no processo de sua transformagdo em ciéncia, importa-lhe dar a conhe- cer os padrées assim alcangados. Pode-se afirmar igualmente que a teoria da histéria se esforga por “fixar” tais padrées, ao caracteriza- Jos como téo fundamentais, que a questo de se saber se ha “algo por tras deles” significaria abandonar as pretensées de racionalidade com que se apresentam. Ao mesmo tempo, impée-se acentuar que a formagic cientifica do pensamento histérico, nos padrdes racionais da matriz discipli- har, ndo pode nem deve ser cristalizada ou fixada em um c4non de Tegras dogmaticas. Justamente por causa da distancia relativa que a teoria da historia mantém, desde o seu nivel médio de abstragao, com respeito ao debate atual na ciéncia da historia, surge a possibi- lidade de assinalar tendéncias abrangentes que afetam o futuro de stu desenvolvimento cientificu. O perigo de errar ndo ¢ agravado pelo fato de nao se tratar de preceitos (aos quais, em caso de duvida, ninguém se ateria), mas sim, de preservar a dindmica do processo de transformagio da histéria em ciéncia como um meio de evitar que ocorram fixa¢des falsas na consciéncia de seus sujeilos. Capitulo 1 Sistematica - estruturas e funcgdes das teorias histéricas Mal encontrara a minha verdade, logo tornei a perdé-la, Ao encontrar meus princlpios, porém, adveio-me tudo 0 que procurava. Montesquieu! Pode parecer paradoxal, a primeira vista, que uma teoria da histéria, ao esquematizar a construcio da ciéncia da historia de acordo com os fundamentos da metodizag&o do pensamento hist tico, comece nao com uma metodologia, mas com uma sistemati- ca. Indubitavelmente, a historia como ciéncia se constitui e desfaz em funcado da pesquisa hist6rica, e esta, em fungdo de seus méto- dos. “Teorias” que nao se relacionem (metateoricamente) com a propria ciéncia da histéria, mas sim (objetiva e teoricamente) com o campo da experiéncia histérica, s6 exercem um papel na ciéncia da histéria na medida em que se relacionarem de forma produtiva com a pratica da pesquisa. Seu papel e sua relevancia dependem da regulagado metédica da pesquisa empirica. Por isso, na matriz dis- ciplinar desenvolvida de forma especificamente cientifica, o fator método é também um elemento decisivo para o fator teoria. Cabe a este ultimo a responsabilidade de fomecer o significado constituti- yo da organizacao cientifica do processo de conhecimento histérico, preparando-o para a pesquisa. Nao seria melhor, ent&o, estabelecer primeiro as regras da pesquisa e depois discutir o papel da teoria? Um tal procedimente corresponderia aos avangos tradicionais da teoria da histéria” e, assim, ao que os historiadores tanto defenderam, " Montesquieu, Vom Geist der Gesetze. Ed. v. K. Weigand, Stuttgart, 1965, p. 91. ? Assim, por exemuplo, a de Droysen, que faz seguir a “Metodologia” a “Sistemati- ca”, ou mais precisamente 0 ‘Lehrbuch der historischen Methode’ de Bembeim, que no tem nenhum capitulo dedicado A sistemitica. 2a Jorn Risen outrora como hoje, como evidente: o passo em diregao as fontes, que a ciéncia da histéria da na forma de uma pesquisa regulada metodi- camente ¢ organizada em termos de divisio de trabalho, transfor- mando assim o pensamento histérico em ciéncia. Naturalmente, sio relevantes para essa evidéncia tradicional as perguntas e suposigdes com que os historiadores abordam o material colhido nas fontes, para dele extrair conhecimentos histéricos garantidos pela mcto- dologia. A ssa operagio intelectual, que antecede o trabalho com o material das fontes, ¢ atribuido um valor provisério, “meramen- te” propedéutico ou “meramente” heuristico. O dominio da ciéncia esta onde o acervo das fontes é apreendido sistematicamente. Nesse caso, “teorias” sé desempenhariam um papel, quando muito, aces- sério. Se e até que ponto existem construtos tedricos na pesquisa histérica, depende dos métodos que os historiadores empregam para extrair das fontes as informacées sobre o passado. Assim, pata citar um exemplo extremo, as teorias fisicas sobre os valores médios de tempo na decomposi¢ao de determinados Atomos de axigénio sia um meio que ajuda a datar achados pré-hist6ricos ou dos primérdios da historia, mas certamente nio s4o fatores construtivos do conheci- mento da pré-histéria ou dos primérdios da histéria. Essa evidéncia tradicional da ciéncia da historia se justifica tan- to mais por ficar a cargo dos fundamentos da metodizacao do pensa- mento histérico. A questao é apenas saber se isto acontece de forma satisfatoria. Esta questao recebe uma resposta negativa, se houver obrigagdo de entender a teorizagdo do pensamento histérico como um modo determinado de sua metodizacdo, E isso que tentei tornar plausivel nas reflexdes sobre os fundamentos da ciéncia da histéria.? Por essa razdo ja nao interessa mais se ou quando elementos do pen- samento histérico, em forma de teoria, so importantes ou nfo, mas apenas identificar, descrever e analisar a natureza e a peculiaridade desses clementos, nos quais a estrutura cientifica cspecifica dos pro- cessos cognitivos da ciéncia da histéria se manifestam. Sem divida, essa estrutura é manifesta na regulacdo metédica da pesquisa histérica. Olhando-se mais atentamente, contudo, o fator “método” da matriz disciplinar da formagfio da ciéncia especializada, > CEL ple ss, [ed. bras.] Reconstrugao do passado 25 como acontece na autocompreensao tradicional de muitos pesquisa- dores, nao é possivel ignorar o fato de que a regulagao metédica da pesquisa histérica depende das determinagées prévias sobre 0 que deve ser elaborado como “histéria” a partir do material das fontes. Os pontos de vista do pensamento histérico, que pdem questées ¢ servem dc suposigdes na abordagem das fontes, ndo s40 extrinsecos aele mas alcangam-lhe o ceme da regulagdo metédica: que métodos vém a ser empregados na pesquisa depende de que conhecimentos se quer obter com ela, e isso é decidido pelos pontos de vista que 0 pesquisador aplica 4 matéria. O conhecimento histérico no é cons- truido apenas com informagées das fontes, mas as informacées das fontes s6 so incorporadas nas conexdes que d4o o sentido a historia com a ajuda do modelo de interpretagao, que por sua vez nao ¢ en- contrado nas fontes. Gostaria de dar conta dessa dependéncia do desenvolvimento metodoldégico dos modelos de interpretagao da experiéncia histdri- ca, em que a “tuetudulugia” € prevedida por uma “sistcudtiva”. Por esse meio, deve ser enfatizado 0 principio da metodizagao do pen- samento histérico na medida em que ele, por assim dizer, encontra ocaminho da pesquisa. Os modelos de interpretaciio, que o historia- dor aplica as fontes para fazé-las fluir ¢ para revelar o contetido dos fatos, devem ser discutidos 4 base da configurag4o de suas teorias, a forma pela qual correspondem aos principios da metodizago do pensamento histérico. O que significa a teorizagao dos modelos de interpretagdo na construgao da estrutura especializada da ciéncia da histéria? Para poder responder a essa pergunta sao indispensaveis reflexdes que se refiram 4 especificidade dos construtos tedricos no processo de conhecimento histérico. Trata-se das perguntas, amiude discutidas, se e como se pode entender teorias histéricas como um conhecimen- to legitimo quanto ao fluxo da histéria. A pergunta sobre a teoria coloca-se, 4 luz da nova teoria analitica da ciéncia, também como pergunta quanto ao potencial explicativo de uma ciéncia que, tendo em vista o modelo das ciéncias naturais exatas, ¢ identificade pela sua capacidade de produzir conhecimentos legitimos. Por isso, que- ro tratar em seguida, detalhadamente, do problema da “explicagao e da teoria na ciéncia da histéria’”. De mais a mais, dirigiremos nosso olhar para a funcao reguladora e organizadora dos elementos teéri- cos no processo do conhecimento histérico. No que segue, esses ele- mentos serio caracterizados em trés passos, do geral (teorias que se referem ao Ambito do conhecimento histérico como um todo) para o particular (teorias hist6ricas parciais ou “teorias de aleance médio”) € para o singular (conceitos histéricos). Explicagées ¢ 0 uso de teorias na ciéncia da historia O status ¢ a fungao das teorias histéricas sdo até hoje contro- vertidos. Uma das razées mais importantes da controvérsia € que se qualificam os construtos teéricos do conhecimento cientifico, com o modelo de algumas ciéncias naturais, como conhecimentos legi- timos (nomolégicos), e que se atribui a esses conhecimentos - de acordo com tal modelo — uma fung&o esclarecedora que nfo é bem vista em termos de ditar a medida para a racionalidade cientifica. Fala-se de explicagdo “racional” ou “cientifica” quando se refere ao papel e ao significado das leis na explicagao de fatos‘ e se supde com isso, no préprio enunciado, que sé é racional e cientifica a ex- plicagao que recorra a leis. Para a ciéncia da histéria isso significa que sua racionalidade e, com ela, sua qualidade de ciéncia esto em jogo na seguinte questao: se e até que ponto estaria ela em condigées de fornecer uma explicagao racional, ou seja, se ou até que ponto trabalha com o conhecimento de leis. Aqui est4 um problema fundamental da teoria da histéria: pode aciéncia da histéria corresponder a essa exigéncia de racionalizagao ou nao? Existem leis para a histéria ou nao? Tem a ciéncia da histé- ria capacidade de reconhecer essas leis ou nfo? A ciéncia da histéria dificitmente pode evitar essas questdes. E indiscutivel que a capa- cidade de algumas ciéncias para conhecer leis seja uma das razées para 0 sucesso e o prestigio do pensamento cientifico em si mesmo, até porque seu saber nomoldgico pode ser tecnicamente util. “Assim, por exemplo, em W. Stegmilller, Probleme und Resuitate des Wissenschcafistheorie und analytischen Philosophie, v. 1: Wissenschafiliche Erklarung and Begrindung, Berlim/Heidelberg, 1969, p. 72 ss. Reconstrugae do passado 27 Nunca faltaram, assim, na ciéncia da histéria, tentativas de ele- va-la ao “padrao de ciéncia”, atribuindo-lhe ¢ cobrando-lhe a ca- pacidade de reconhecer as conexées legaliformes das modificagdes temporais passadas do homem e de seu mundo. Um padrao dessa ordem vinha entao a ser vinculado 4 esperanga de controlar, com a ajuda da ciéncia da histéria, as modificagdes temporais atuais do mundo dos homens, da mesma forma que a natureza € controlada pelo conhecimento nomoldgico das ciéncias. O positivismo e 0 marxismo s40 exemplos conhecidos de dou- trinas que atribuem ao conhecimento histérico uma estrutura no- moldgica ~ isto 6, a descoberta ou a utilizagao explicativa de leis histéricas. Aciéncia da historia nunca ficou muito satisfeita com esse modo de alcangar o padrao cientifico, porque seus trabalhos de pesquisa esto obviamente estruturados de forma bem diferente das pesquisas daquelas ciéncias que produzem conhecimentos nomolégicos e sua aplicaydo técniva. Ela udu conseguiu harmonizar a teoria que iden- tifica a qualidade cientifica 4 capacidade de produzir conhecimento nomoldégico, com sua pratica propria de conhecimento, na qual as leis tém um papel meramente secundario. Em seguida, tendo em vista a ciéncia da historia, gostaria de criticar 0 monopélio do processo de explicagéo nomoldgica com base em uma racionalidade cientifica calcada nas ciéncias naturais. Gostaria de mostrar que, embora a ciéncia da histéria no contrarie 0 critério de racionalizagao de que se trata aqui, este nao ¢ suficiente- mente adequado para tomar reconhecivel a racionalidade propria do pensamento histérico em sua expressdo especificamente cientifica (Segdo a). Gostaria de debater, em seguida, um outro modo de ex- plicacdo, referente as agdes das pessoas humanas ¢ que, por isso, ¢ considerado freqtientemente como um modo adequado 4 ciéncia da hist6ria: ou seja, aquele que explica as agdes por meio da indicacéo das razdes em que se fundamentam. Nesse modo de explicagao, as leis nado tém um papel constitutivo; com ele, a ciéncia da histéria fica livre da pressdo de se adaptar as ciéncias que usam o processo nomolégico (Segdo b). Mas também esse processo de explicacao nao representa suficientemente 0 modo préprio de explicagao do 28 Jorn Rasen pensamento histérico, tampouce servindo para demonstrar 0 status ea funcdo das teorias histéricas. Em um terceiro momento da minha argumentag4o, qualificarei de forma especifica o modo de explicar caracteristicamente histérico, que analisa um possivel papel das teo- tias e ao mesmo tempo debate o que se entende por “leis histéricas” de maneira que isso faga sentido (Se¢do c). A explicagdo nomolégica e 0 problema das leis histéricas O esquema de explicagao que eu gostaria de analisar em seguida, em vista de seu significado para a ciéncia da historia, € mencionado, na bibliografia especializada em teoria da ciéncia, como esquema de explicago racional ou cientifica.> Considero essa definigi0 como problematica, porque sugere que as demais formas de explicagio néo sao racionais nem cicntificas. A racionalidade especificamente vicntifica é identificada, sem hesilayao, a maneira de proceder de cerlas ciéncias, em especial aquela que trabalha com teorias em for- ma de leis universais. Pode ser que a representagdo da “cientifici- dade” como equivalente ao modelo das ciéncias naturais seja uma idcia preconcebida muito difundida. Assim como a idéia de que as assim chamadas “ciéncias do espirito” devessem proceder, afinal, da mesma forma que as rigorosas ciéncias naturais (vale dizer: sendo tecnicamente to aplicdveis quanto estas), Nem por isso deixa de ser uma pretensdo inadequada, que nao faz justica as particularida- des de certas ciéncias.* Prefiro optar pela definicao mais cautelosa e (sobretudo) mais pluralista, de “explicaco nomolégica”: ela admite basicamente outros modelos de interpretagdo ¢ néo atrela a raciona- lidade especificamente cientifica a um modelo unico. 5 A literatura sobre a logica da explicag&o nomologica é imensa. G. Patzig fez um breve e instrutivo resumo: Erklirung, in: E. Braun/H, Rademacher (Ed), Wissenschafistheoretisches Lexikon. Graz, 1978, p. 162-169. * E sintomético que Patzig (nota 5) nao dedique nenhuma palavra as outras for- mas de explicago e, quanto a encontrar modos de explicar préprios as ciéncias sociais, afirmar que isso s6 se “explica” pela ignordincia epistemoldgica ("ja que muitos cientistas sociais nfo compreenderam direito o que ¢ realmente uma ex- plicago cientifica”, p. 168) BigHiese Reconstrucao do passado 29 Explicagdes dessa natureza se deixam caracterizar pelo seguin- te esquema.’ Dever ser esclarecido o fato E (explanandum). O que ele esclarece (expianans), consiste de duas partes: de um ou va- rios fatos A (A!, A’,...A"} — estes fatos explicativos séio chamados de dados antecedentes, condigdes genéricas ou condicées iniciais; coloquialmente fala-se de “causas” ou de uma ou mais leis G (G', G?,...G") demonstrando que, cada vez que se trata de fatos da cate- goria A, dao-se os fatos da categoria E . Desse expianans segue sem divida (no caso das leis de validade geral, necessariamente, e, no caso de uma regularidade estatistica, com certa verossimilhanga) o explanandum. Por esse esquema fica claro que o conhecimento nomolégico nao é apenas utilizado para a explicagao que procura um fato para encontrar outro, que possa explicar um encadeamento peculiar de uma articulagao legitima. Com esse mesmo esquema também se pode caracterizar a estrutura de um prognéstico baseado ne conhe- cimento nomolégico. Basta partir dos dados antecedentes e das leis; 0 explanandum revela-se entio como algo que é possivel predizer. No caso da explicagio, o explanandum é conhecido ¢ os dados an- tecedentes cxplicativos sic encontrados com ajuda do conhecimen- to nomoldégico. No caso de uma prognose, os dados antecedentes sao conhecidos e deve-se procurar com ajuda dos mesmos conhe- cimentos nomoldgicos os fatos que necessdria ou provavelmente resultem deles, (segundo Hempel) (I) A é 0 fato. (2) Sempre que se trata de A, também acontece B. (3) B acontece. (1) = Condigao inicial ou marginal (“causa”) (2)=Lei @)=CEfeito”) Explanandum | ” OFC. G, Hempel, Explanation in science and in history (9); do mesmo autor The function of general laws in history (9). 30 Jorn Rasen Um exemplo classico desse esquema € o do modelo que afirma romper-sé um cabo quando nete se pendurar um peso. No caso da explicagdo, trata-se de um encadeamento legitimo do fato do cabo rompido (explanandum), com os dados antecedentes que explicam por que tal cabo se rompcu. Nessc caso, 0 explanans consiste dos dados antecedentes: do fato de que se pendurou no cabo um peso de 2 kg, e da lei que afirma que cabos daquele tipo se rompem sem- pre que tém de suportar um peso superior a I kg. (No caso de um prognéstico, trata-se de encontrar o encadeamento legitimo do fato, de que o cabo foi sobrecarregado com um peso de 2 kg, com 0 ex- planandum, que neste caso se deveria chamar de praedicendum, ¢ que leva ao prognéstico de que o cabo vai mesmo se romper. Este encadeamento que, em vez de explanans agora se deve chamar de praedicens, consiste no fato de ter sido pendurado no cabo um peso de 2 kg, ¢ da lei segundo a qual um cabo nessas condi¢ées sempre se rompe quando tem de suportar um peso maior do que | kg.) Nao resta divida de que tais explicagdes também tém um papel na ciéncia da histéria. Tomemos um exemplo (naturalmente muito simplificado) que mostra o esforgo de usar uma lei para esclarecer um fato e que os historiadores utilizam muitas vezes: a saber, o fato de que o poder aquisitivo das moedas sofre queda. Ao se deparar com um fato semelhante, em que constata que o poder aquisitivo de uma determinada moeda esta caindo, o historiador pode explicar o fato pelos dados antecedentes de uma deteriorac4o da moeda (antes da queda do poder aquisitivo aconteceu depreciagdo da moeda) e da lei de Gresham. Esta lei afirma que, quando se da depreciagao da moeda, as moedas depreciadas nfo saem de circulagio, e por isso o poder aquisitivo da moeda corrente cai.“ O fato a ser esclarecido quanto ao poder aquisitivo depreciado é como se fosse a conclusio dessas duas premissas. Os historiadores que usam esse tipo de ar- gumento aplicam o conhecimento nomoldgico para a explicagao de fatos histéricos. *Tomada estritamente, a lei de Gresham diz apenas que com a deterioragiio de moedas, as moedas ndo-deterioradas (“boas”) desaparecem de circulagaio. Ela po- deria set complementada com uma segunda lei, que diria que o poder de compra das moedas deterioradas ¢ inferior ao das moedas “boas”. Reconstrucao do passado 31 Em geral, as explicagdes que sdo apresentadas na histéria como ciéncia, com ajuda do conhecimento nomoldgico, sao muito mais complexas do que o exemplo citado acima. Basta deitar um olhar na bibliografia de hist6éria econémica, para ficar convencido de que a ciéncia da histéria trabalha inteiramente com um conhccimento complexe ¢ baseado em leis que, por seu grau de universalidade, merecem a denomina¢ao de “teoria”. Assim, sao estabelecidas co- nexées legitimas entre as situagdes dos fatos da vida pratica humana (por exemplo, entre colheitas desastrosas e uma queda na renda dos trabalhadores urbanos na Idade Média) que servem para esclarecer © acontecimento documentado, a cada vez, tanto pela fonte como em termos de tempo e espaco. A pergunta é apenas quanto ao status que tais teorias tém em relacao a ciéncia da historia: trata-se de uma formulagao que recorre a leis especificamente histéricas? A pergunta quanto ao status depende da correlagao entre as tco- Tias utilizadas nomolegicamente na ciéncia da historia ¢ os fatos que devern ser conhecidos historicamente como “historia”. Essa cor- respondéncia é caracterizada por uma tensdo particular: as teorias empregadas nomologicamente pelos historiadores orientam-se pelas modificagées temporais no passado do homem e de scu mundo, mas nao de forma a explicar singularmente cada caso de mudanca exa- minado. Nao servem para deduzir este caso dos antecedentes, mas sim para, por meio destes, explicar determinados elementos do caso a0 articuld-los com outros. Othando-se mais de perto as teorias nomolégicas utilizadas, é possivel verificar que, por elas, nao se explicam justamente aqueles fenémenos que contam como especificamente histéricos. Os fend- menos do passado humano sao especificamente histéricos quando se trata de sua qualidade temporal, de seu valor no decorrer de um tempo considerado importante em termos de sentido e de significa- do. E exatamente dessa qualidade temporal, que os fatos do passado ganham a luz de uma representagéo abrangente da continuidade, que as teorias nomoldgicas prescindem. Na lei de Gresham, por exemple, trata-se das mudangas na circulacao dos valores em geral. Ela encobre o valor que tem 0 papel, no tempo, desempenhado pe- las modificagdes da moeda e, portanto, ndo serve como explicagio 32 Jorn Rusen daquilo que interessa prioritariamente aos historiadores. Estes nao se ocupam primeiro da conexdo estabelecida pelas leis da depre- ciagao da moeda com as mudangas na circulagdo do dinheiro e com o fato de o poder aquisitivo da moeda cair, para entio usar do processo cientifico de pesquisa histérica para chegar a alguma conclusdo mediante a investigagio dessa conexdo e da formula- g4o e fundamentagao das leis aplicaveis. Antes, os historiadores utilizam tais leis para a explica¢ao nomoldgica de fatos econémi- cos concretos dentro de um processo histérico (por exemplo: para uma inflagZo causada pela desvalorizacio da moeda em um perio- do determinado de tempo), mas nao para a explicagao do proprio processo. O status de tais leis, dentro do conhecimento histérico, é considerado secundario, quando se leva em conta que nele se trata da qualidade temporal de fatos, da qual o modo de explicacdo nomoldgica prescinde. O mesmo acontece com as teorias mais complexas, que s¢ refe- tem a perfodos de tempo determinados, ¢ que seriam eventualmenie as mais aptas a valer como enunciados de leis hist6ricas. A teoria das crises agrarias, por exemplo, no fim da Idade Média e no come- go da Idade Moderna,’ refere-se a fatos econdmicos especificos de uma época, sem contudo explicar essa especificidade epocal, pois a pressupde como ja explicada (ndo-nomologicamente). Isto, naturalmente, ndo quer dizer que o conhecimento nomo- légico ¢ a explicago nomolégica néo desempenhem papel algum na ciéncia da historia. Pelo contrario: no processo da cientifizagao do pensamento histérico, a utilizagao de teorias nomoldégicas au- menta. A interpretacao histérica da industrializagdo pode servir de exemplo para ambos, tanto para o status sccundario quanto para a necessidade de tais teorias. Nenhum historiador teria a idéia de de- clarar esse processo come nomoldgico, isto é, derivar a industriali- zaciio, como processo histérico, dos dados antecedentes especificos de certa época, ou de uma ou mais leis universais e abrangentes do desenvolvimento econdmico, temporalmente inespecificas. Por © P. Kriedte: Spitmittelalterliche Agrarkrise oder Kuise des Feudalismus?, Geschichte und Gesellschaft, 7, 1981, p. 42-68, exp. p. 42-45. Reconstrugdo do passado 33 outro lado, tampouco teria a idéia de renunciar, no ambito de uma explicagao historica da industrializagdo, ao conhecimento nomold- gico da economia. O conhecimento nomolégico no 6, portanto, a forma a que a teorizagdo do referencial das idéias conduz para garantir a validade do pensamento histérico. Se assim nio fosse, o trabalho de pesquisa dos historiadores se concentraria na investigac4o desse saber, ¢ ele seria (como acontece com todas as ciéncias que procedem nomo- logicamente) tanto mais coroado de éxito quanto mais universais fossem as leis descobertas. Poder-se-ia ent&o também inverter 0 co- nhecimento histérico pela prognose: quanto mais precisa e genera- lizada a formulac&o de leis da historia, tanto mais se poderia prever com precisdo o futuro e controlar a mudanga atual do homem e de seu mundo, no tempo, mediante planejamento. Decididamente nao é 0 que ocorre, conforme se aprende com um mero olhar sobre a praxis da pesquisa histérica ¢ da utilizagiio pritica dus seus sesultalus. E veade que a id¢ia de uma formula histérica universal para o mundo, de uma lei do desenvolvimento histérico da humanidade em seu todo, possui um grande atrativo como cosmovisao ¢ com isso também grande utilidade ideoldgica. Essa idéia, no entanto, é nao apenas logicamente inconsistente,!” mas também de pouca utilidade para a pratica da pesquisa: uma formula universal desse tipo nfo decifra a experiéncia histérica, mas antes deturpa sua visdo. A possibilidade de prognésticos histéricos nao é apenas contestada pelo modo com que se leva em conta, na andlise da estrutura da explicagao histérica, a pratica cognitiva da ciéncia da historia, mas também pela légica do pensamento histérico, cujos processos de constituigao de sentido deixam patente que a narrativa histérica no se regula pela formas do pensamento nomolégico. Afi- nal, nessa narrativa importam, em tltima andlise, as interpretacdes das experiéncias do tempo constituidoras de identidade e essas in- terpretagdes dependem das representagdes de continuidade que nao se exprimem em formulas de lei. ‘°Cf. H. M. Baumgartner, Narrative Struktur und Objektiviuit. Wahrheitskriterien im historischen Wissen. In: Risen (Ed.), Historische Objektivitat (7), p. 48-67, esp. p. 54s. 34 Jorn Risen O fato de nao se poder caracterizar a forma teorica tipica da ciéncia da historia mediante o esquema da explicagao nomoldgica transparece, afinal, nas préprias andlises epistemoldgicas da explica- go historica, quando se servem desse esquema. Convergiu-se assim para a conclusdo de que o conhecimento nomolégico aplicado pela ciéncia da histéria nas explicagdes histéricas aparece, na maioria dos casos, de forma reduzida (trivial, incompleta, implicita) e, em suas formas mais sofisticadas, muitas vezes ¢ importado das ciéncias nao-historicas. Identificando-se cientificidade e conhecimento no- molégico, fica claro desde logo, no caso da ciéncia da historia, que 0 emprego de tal concepeao causa prejuizo nos resultados. Costuma-se falar de meros esbogos de explicagao ou de explicacdes elipticas."! O fato de a ciéncia da hist6ria lograr reconhecimento, como ciéncia, por também empregar explicagdes nomolégicas em seu ambito, é percebido por ela como um possivel fator de obscurecimento que diminui a validade de seus resultados. Dependendy de até que ponty os historiadores assum a cou- cepcao epistemologica de 0 conhecimento nomoldgico ser 0 indica- dor da qualidade de ciéncia, tém eles de se haver com os comple- xs de inferioridade: seja por meio de recalque ou de compensagao, subentendendo regularidades legais do processo histérico que sé se tornam objeto da pesquisa histérica de forma parcial (ou de for- ma nenhuma). Nesta ultima hipétese, hd uma variante positivista ¢ outra marxista: na positivista (estou empregando o conceito do’ “positivismo” no sentido coloquial), a ciéncia da historia ou bem € incentivada a ajustar seu procedimento de pesquisa 4 obtencdo do conhecimento nomoldégico, e por esse meio finalmente guindar-se 4 categoria de ciéncia, o que nas presentes circunstancias se lhe aplica de forma muito limitada ou de forma nenhuma, ou entio ela é ime- diatamente rebaixada 4 categoria subordinada de mera fornecedora de dados para as ciéncias que recorrem ao modo nomoldégico. Na variante marxista (ortodoxa) séo-lhe prescritas normas legais exter- nas a sua especialidade, com a tarefa de sustenta-las empiricamente, " Por exemplo, B. Hempel, Explanation in science and in history, edigdo em alemio, p. 244 ss. (nota 7). Reconstrugado do passado 35 sendo proibido modificar normas legais fundamentais,'? ou cnt&o se fala da formagao de uma teoria especializada, cujos resultados sio chamados de “‘leis histéricas”. As questées relativas a seu carater nomoldégico e a sua fun¢ao de previsdo sio cuidadosamente contornadas (a afirmacio de que a histéria se pode “fazer” baseada em um conhecimento histérico capaz de previsées, é considerada pela cosmovisio marxista como um ideologema, sem que se tente enunciar qualquer prognose tes- tavel). A explicagao intencional e o problema das articulacgées hermenéuticas de sentido Aespecificidade das explicagées histéricas orientadas pela teo- ria pode ser caracterizada pelo esquema da explicagio nomolégica come ua variaute ud pusiliva, mas uecramente negativa do modo explicativo das ciéncias nao-histéricas. Da a vontade de procurar outros esquemas de explica¢gao para fazer justiga ao procedimento do pensamento histérico. Um desses esquemas oferece a alternativa de procurar a explicagao de atos praticados pela indicagao de razdes Cintengdes) que possam ter orientado esses atos. Parece adequat-se ao pensamento histérico por trés razées: para este, leis no sentido de uma explicagiio nomolégica nfo tém nenhuma importancia; no foram construidas como prognéstico mediante simetria ldgica; ¢, » Assim, por exemplo, escreve G. Brendler: “As categorias hisicas do materialis- mo histérico estiio consolidadas ¢ nio podem mais ser questionadas”. (Sobre 0 principio de parcialidade da ciéncia da historia marxista-leninista, Zeitschrift fir Geschichtswissenschaft. 20, 1972, p. 277-301, cit. p. 290.) Na bibliografia mar- xista mnais recente encontram-se andlises ¢ argumentages muito diferenciadas, como, por exemplo, na coletinea: Kattler (Ed.), Gesellschafistheorie und ges- chichtswissenschafiliche Erklérung (9). Nessa obra, W. Wachter apresenta, em andlises muito precisas e diferenciadas, procedimentos de explicago importantes, para a ciéncia da historia ¢ seu complexo conjunto, tanto de forma abstrato-me- todolégica como em exemplos priticos. Infelizmente, ele ndo aborda o comple- xo integral da cxplicagio narrativa (W. Wachter, Historische Erkidrung, op. cit., p. 151-126). 36 Jorn Rasen nao esto interessadas em explicar os atos dos homens que ja sao “historia” no plano do conhecimento. Esse esquema tem a seguinte estrutura:'? O explanandum é 0 fato de que o agente S (um homem, um grupo de homens, um gover- no, uma na¢ao, uma camada social, etc.) realizou a ago ou um com- plexo de agées x. Esse fato é explicado mediante uma argumentagao em trés etapas. Primeiramente, constata-se que S estava resolvido a alcangar um determinado objetivo Z. Constata-se, em seguida, que S$ estava convencido de se encontrar numa situagao do tipo C. Por fim, constata-se que S estava seguro de que sé poderia aleangar 0 ob- jetivo Z se realizasse a aco x. Em conjunto essas trés constatagdes formam o explanans (ver p. 29). Tomemos o assassinato de César por Brutus para dar um exem- plo da aplicagdo desse esquema. Por que Brutus assassinou César (explanandum)? A resposta é (explanans): 1) Brutus queria salvar a Repablica. 2) Brutus estava convencido de que a Republica esta- va sendy ameagada de morte por César ¢ que ele u puderia matar. 3) Brutus estava convencido de que a Republica sé paderia ser salva se ele liquidasse César. Com essas trés asserges fica clara a razio de Brutus ter assassinado César. Esquema da explicagiio intencional (segundo Donagan) (1) S quer Z. (2) 5 avalia a sua situag&o como C. (3) § esta convencido que, em C, sé é possivel conseguir Z por meio de x. (4) S executa x. $ = sujeito da ago bjetivo da ago natureza de uma situagao (um conjunto de possibilidades de agir) X= ado Explanans Expianandum " Adoto, de forma modificada, a versio que A. Donagan desenvolveu, mediante distingdo critica com respeito ao esquema da explicagao nomoldgica, acerca da especificidade da explicagio historica (novas consideragdes sobre a teoria de Popper-Hempel (9); cf. esp. p. 203). Reconstrucdo do passado 37 Nesse esquema de explicagao, o fato a ser esclarecido nao € posto em um contexto objetivo e regrado de outros fatos (condicées antecedentes) — tal como acontece no esquema da explicacdo nomo- Igica —, mas sim em correlag&o de sentido com intengées. Salta a vista que tais explicagdes sé podem funcionar em relagao a agdes, € mesmo assim s6 quando no se vé nas acdes meros fatos no sen- tido de ocorréncias empiricamente observaveis (portanto, mais do que apenas comportamento), mas acontecimentos cujo significado é determinado por intengdes (conscientes ou inconscientes) daqueles que as executam. As acées siio vistas, por assim dizer, “de dentro para fora”, da perspectiva da intencionalidade da vida humana con- creta. Explicd-las significa reconstruir as razées motivadoras. Elas so explicadas mediante a “compreensdo”, por recurso ao conhe~ cimento das intencdes que levaram a ago. Esse conhecimento nao estd construido nomologicamente. Com o esquema da explicago intencional consegue-se quebrar o monopolio da racionalidade ¢ a exclusividade da qualidade cieuti- fica da explicagao nomoldgica. Uma explicagao de agdes mediante indicacdo das razdes determinantes respectivas é uma resposta plau- s{vel ¢ satisfatéria 4 pergunta por qué? c, portanto, uma explicagio esclarecedora, fundamentadora e, nessa medida, “racional”. Nesse procedimento, o decisive é que o recurso a uma legalidade universal ndio é necessario. E claro que isso sé vale enquanto se pretende explicar a agdo, e nao prevé-la pelo mesmo esquema. Porque, em se tratando de um Prognéstico, o passo que vai da intencao de uma aco até sua exe- cug&o teria de ser expressamente tematizado; e é sabido que as in- tengdes em forma de explanans de uma explicagio intencional nao levam necessariamente 4 ag3o. E preciso introduzir, portanto, um elemento de argumentacao a mais, quando se trata de prever uma agao. Esse elemento tem um papel importante na correlagao legitima entre as intengdes que levam 4 ago e sua efetiva execugdo. Um tal elemento, no entanto, nao é necessario quando se trata apenas da ex- Plicacao de uma agdo ja executada. As agdes ndo acontecem neces- sariamente por causa de um motivo, elas também nao sao derivadas (necessariamente)} de motivos: elas apenas podem ser explicadas 4 38 Jorn Riisen base de motivos. Assim se pode demonstrar, mediante 0 esquema de uma explicago intencional, que explicagdes plausiveis e comple- tas stio possiveis, sem serem interpretadas ao mesmo tempo como prognose. Pertence a racionalizagdo da explicagao intencional ser assimétrica em relacdo 4 estrutura da prognose. O esquema da explicagio intencional parece muito mais apro- priado para caracterizar a maneira de pensar da ciéncia da historia do que o da explicagiio nomolégica. Justamente por tratar da in- tencionalidade da ag3o do homem, o pensamento histérico fica de- sobrigado das exigéncias do conhecimento nomolégico ¢ da possi- bilidade de uma prognose. Como essa intencionalidade constitui 2 concepcSo temporal do passado da humanidade, que faz valer como “histéria” a busca do conhecimento histérico, fica claro, por meio do esquema da explicagao intencional, por que, no conhecimento historico, nao se da preferéncia ao conhecimento nomoldgico. Cha- ma-se a aten¢ao, a0 mesmo tempo, para uma particularidade do pen- samento historico que se refere 4 sua incapacidade de prognosticar: seu cardter reconstrutivo interfere na Stica com que quer justificar o carater histérico das mudangas temporais da humanidade. Ao pensa- mento histérico nao interessa obter conhecimento quanto 4 conexiio legitima entre a intengfo € a execugdo de uma ago. Prefere muito mais tornar compreensiveis as agdes no passado, cujos resultados tém importancia para as agdes no presente 4 luz de suas intengdes. S6 entdo a acdo no presente pode ser relacionada intencionalmente com a acao no passado. Em virtude da sua funcio de formar uma identidade, 0 pensa- mento histérico é referido a intencionalidade da ago do homem. Relaciona experiéncias ¢ softimentos passados do homem (exclu- sivamente com suas pressuposigdes, condigdes ¢ conseqtiéncias) com intengdes de ages do presente (e sofrimentos), e 0 que estiver ainda mais proximo, de escolher a intencionalidade da vida humana pratica como instrumento de ligagio. Agées importantes do passado sao ainda compreensiveis no presente (ou se tornam compreensiveis de novo) pelo recurso a suas intengdes. Com esse recurso, so elas explicadas ¢, por isso e a0 mesmo tempo, apresentadas em forma de pensamento no mesmo nivel das intengdes dominantes. Dessa Reconstrugao do passado 39 forma, tornam-se também evidentes aqueles que necessitam capa- citar-se para couservar na memoria o pensamento histérico (ou ao menos parte dele), para tomarem posicdo no presente e se sentirem de posse do futuro. Com o esquema da explica¢ao intencional, que é expresso por essa forma hermenéutica de pensar, é possivel definir 9 cardter da ciéneia da histéria como reconstrutivo e hermenéutico em sentido posilivo. O fato de que a explicagao intencional siga um esquema no qual as leis (no sentido de uma afirmagao geral baseada na seqiiéncia 16- gica do se/ent&o) nao tém nenhum papel constitutivo, no significa que as explicagdes intencionais e as nomolégicas excluam-se reci- procamente. Antes, elas se completam, sobretudo quando se trata de ag6es complexas, que exigem explicagdes nas quais os motives ¢ as circunstancias tém a mesma importancia (e onde isto nao ¢ 0 caso?). Sera que o esquema da explicagZo intencional também é ade- quado para caracterizar formas tedricas do pensamento histérico especificas da ciéncia da histéria? Para poder responder a esta per- gunta, é antes de mais nada necessario esclarecer a pergunta antece- dente, se e como aparece na explicagao intencional o conhecimen- to em forma de teoria. Um conhecimento dessa natureza é sempre conveniente quando a conexo entre a agdo ¢ a intengao nao esta ao alcance imediato, mas quando as agOes precisam ser explicadas pelas intengdes que nado eram conhecidas — de tado ou sé em parte — pelos agentes, e que eles se moveram instigados pelas intengdes de outros ou deles préprios. Um exemplo flagrante desse conheci- mento em forma de teoria ¢ a psicandlise. A ela pertencem todas as pressuposig¢des profundamente hermenéuticas sobre a estrutura de motivos das agdes dos homens. As teorias articulam, mediante explicagdes intencionais, o significado de conexdes gerais e com- plexas de agdes que revelam os motivos de agSes determinadas. Com isso se define um conhecimento em forma de teoria, que pode ser aplicado perfeitamente na interpretagdo de encadeamentos tem- porais das agdes dos homens. Nada obsta, pois, que se relacione esse esquema, no qual se con- templa um procedimento elememtar da explicacdo plausivel das agdes mediante motivos e cuja racionalidade prépria pode ser evidenciada, Jorn Rusen com a autodefinicao hermenéutica tradicional das ciéncias histéri- cas. O primeiro a fixar a oposigdo entre explicar e compreender" foi Droysen, que tanto a fundamentou em termos de teoria da histéria e do conhecimento como a definiu metodologicamente. Essa oposigao pode ser entendida, por recurso a teoria analitica contemporanea da ciéncia, em sua antiga significacdo, como oposi¢ao entre tipes di- versos de ciéncia (ciéncias naturais e ciéncias humanas), Ha, contu- do, nao poucas objegGes: (1) 4 que se qualifique a especificidade da ciéncia histéria como “hermenéutica” por meio do esquema da ex- plicaciio intencional, (2) a que se veja sua forma especifica de elabo- rar teorias no processo de construir, pela pesquisa, um saber herme- néutico profundo quanto as estruturas intencionais do agir humano ¢ (3) a que se empregue esse saber como recurso explicativo. E certo que a ciéncia da historia tem de empregar explicacdes intencionais quando pesquisa as agdes dos homens. Ela tampouco pode renunciar a essas explicagdes quando se afasta da historia me- rameute factual ¢ se volta para a historia estrulural, Afinal, ua Oliva dos historiadores, estruturas nada mais sao do que o mado de desig- nar o ordenamento sistematico das condigdes sob as quais 0 agir se deu. Referem-se basicamente, por conseguinte, a agdes (pelo menos em poténcia). Isse nde quer dizer, todavia, que esse processo de ex- plicacgo determine a especificidade cientifica propria a ciéncia da histéria, e a diferencie das demais ciéncias. A ciéncia da histéria pro- cede de forma semelhante, explicando por intengdes, assim como se serve também da explicag&o nomoldgica: ela emprega esse pro- cedimento para suas préprias finalidades, sem que estas finalidades sejam alcangadas 36 por um dos dois procedimentos ou pelos dois em conjunto. Por essa raziio, seu use do saber tedrico da hermenéu- tica profunda é apenas coadjuvante. Teorias que cnunciam ¢struturas motivadoras da acZo humana n4o séo genuinamente histéricas. Qual é a razfo de isso ocorrer dessa forma? Porque as correla- ges entre a intengdo da acdo ¢ a propria agdo, que constituem o ob- jeto da explicagdo intencional, nic representam a qualidade prépria a agio do homem que o pensamente histérico investiga. Explicagdes 4 Droysen, Historik (4), p. 403. Reconstrucao do passado al intencionais nao sao suficientes (por principic) para explicar as mu- dancas temporais que so tematizadas como “histéria”, porque essas mudangas n&o siio buscadas ou efetuadas como histéricas. Resumin- do, pode-se dizer que: “histérico”, em termos de agdes do passado, é 0 que no se pode explicar intencionalmente, ou seja, uma conjun- g4o de acontecimentos que nao so compreensiveis como resultado de uma intencdo que buscasse justamente 0 que aconteceu. Embo- Ta seja sempre tentador subordinar acontecimentos histéricos (por exemplo, a industrializagao da Inglaterra, a Revolugdo Francesa, a fundagio do Império Alemao) a um sujeito (uma classe de capi- talistas exploradores, um grupo de revoluciondrios conspiradores, Bismarck) e declarar depois que os fatos decorreram da intencao dos sujeitos. E tentador porque explicagées intencionais parecem bem evidentes, quando se trata de ag¢des humanas, e permitem articular a experiéncia histérica com as intengdes para o futuro de forma que no suscita dividas nem provoca rupturas — apesar de que tudo isso ne selupre conven¢a. Acontecimentos histéricos oriundos da acao do homem nao se deixam compreender satisfatoriamente como re- sultado de intengdes. E uma experiéncia trivial, mas nem por isso menos importante e constitutiva para o pensamento histérico, a de que a maior parte das mudangas temporais que os homens provo- cam, em si préprics e em seu mundo, nao correspondem as inten- gdes que pudessem ter orientado as agdes. Em geral, tudo acaba por ser bem diferente do que se tinha planejado a principio. Wilhelm Busch resumiu essa experiéncia constitutiva do pensamento histé- tico em uma frase classica: Primeiro as coisas acontecem de outro Jeito e, em segundo lugar, diferentes do que se pensou. E justamente essa exporiéncia que torna necesséria a atividade constituidora de identidade do pensamento historico. Se o processo histérico da vida humana nao passa de uma sucessao temporal de intengSes que se concretizam, ento nio se teria a experiéncia ame- agadora do tempo (e da natureza), que torna necessaria a produgdo de sentido mediante a narrativa histérica.'’ Sé assim os agentes, Cf. 1, p. 56 ss, [ed. bras.]. Mais desenvolvido: J. Rasen, Die vier Typen des historischen Erzhlens, In: Koselleck ot alii (Ed.): Formen der Geschichtssch- veibung (3), p. 514-606, esp. p. 520-536, az Jom Rusen buscando realizar suas inteng6es, estariam conscientes da dura- gao de sua subjetividade propria no movimentado fiuxo temporal do agir. O que acontece é, porém, o contrario: como as intencées levadas a cabo nas agdes, em virtude das circunstancias destas, produzem resultados que nao correspondem as intengées, a experi- éncia da mobilidade temporal das agdes humanas deve passar sem- pre por novas interpretagdes (justamente historicas) proprias, de modo que ainda possam ser entendidas com sentido a partir de suas intengdes. Temos aqui um dos enredamentos metatedricos to freqlientes na ciéncia da historia: o pensamento histérico requer a conexdo constitutiva entre experiéncias do tempo ¢ intencdes no tempo, na qual se insinua a constante tentacdo de dissolver pela hermenéutica 0 desafio posto pela experiéncia temporal, que torna necessario 0 pensamento histérico. A consciéncia histérica bem que gostaria de superar a assimetria entre a intengo ¢ o resultado da ago (a légica do processo histérico, de que as coisas acontecem bem diferentes daquilo que se pensava), assimilando-a no esquema da explicagao intencional ¢ de encontrar, nos abismos da intencionalidade hu- mana, os motivos por que a mudan¢a do homem e¢ de seu mundo no tempo ocorrem sempre, em suas agdes concretas, de maneira tal que tem de se constituir em objeto de interpretacao histérica. O desejo de encontrar tais explicagdes reside no fato de que estas naturalmente livrariam a experiéncia histérica do incémodo cau- sado pela desfasagem entre intengao e execugdo de acdes, Se se pudesse explicar intencionalmente os acontecimentos histéricos de modo que isso bastasse para os entender como sendo realiza- ges concretas das intengdes orientadoras do agir, ent&o poder-se- ia compreender a subjetividade dos homens como fundamento de toda a realidade histérica — que, sempre preocupada com a quest4o da identidade, justamente voltaria a perder-se na realidade tempo- tal evolutiva da vida pratica. Isso decorre do fato de que as agdes humanas, que promovem mudancas no tempo, se d&o sob circuns- tincias cujos efeitos néo conseguem ser adequadamente estimados € cujas intengdes tampouco vém a ser plenamente levadas em conta. Tem-se aqui o lado negativo do superavit de intencionalidade do Reconstrucao do passado 43 agir humano, que constitui a historicidade da vida humana prati- ca:'6 tal como todo homem por principio supera, com suas inten- ges (esperancas, aspiragées), as circunstincias dadas de sua vida prdética, assim também as circunstiincias vio além do peso que vem a ter nas intengdes de agir que influenciam ¢ em seus resultados concretos, As explicacées intencionais e o saber tedrico, hermenéutico, que delas resulta tém na ciéncia da histéria um papel semelhante as explicagdes nomoldgicas e do saber legaliforme que lhes corres- ponde: so empregadas, mas nao fornecem a ciéncia da histéria as formas de explicagao e de teoria que lhe sao préprias. A explicagdo narrativa e o problema dos construtos narrativos tedricos Como determinar as formas de explicagao e de teoria especi- ficas 4 ciéncia da historia? Um olhar sobre a constituigdo pratica do pensamento histérico, que define sua natureza ¢ a delimita com relagao as outras formas de pensamento, dé-nos a entender que seria apropriado perguntar se ja nao existiria na narrativa histérica um potencial explicativo que poderia ser utilizado pela ciéncia da histé- tia de forma especificamente cientifica. A argumentagao empregada até agora leva a essa pergunta. Ela mostrou que a ciéncia da histéria serve-se de explicagdes nomolégicas e intencionais, e das teorias aplicadas por elas, sem que qualquer dos esquemas de explicagdes utilizados devesse ser reconhecido como genuinamente histérico. Ao se analisar mais de perto o processo, vé-se que a ciéncia da his- téria procede mediante explicagGes narrativas. O que se pretende afirmar com isso? As explicagdes nomolégi- cas e intencionais aparecem na ciéncia da histéria sempre no con- texto de histérias. Elas sio parte de um conjunto de sentengas. Ex- pressos em termos narrativos, os efeitos temporais das ocorréncias do mundo humano tornam-se mudangas (com sentido e significado). “CE I, p. 98 ss. [ed. bras]. a Jorn Rasen Pode-se dizer também que as sentencas histéricas referem-se a uma seqiiéncia temporal de situagées: elas afirmam que alguma coisa num determinado momento (t!) era assim ¢ num momento mais tar- de (@) era diferente, ¢ num momento ainda mais tarde (¢*) ainda mais diferente. Esta “alguma coisa” (representada simbolicamente com um “S” como o sujeito [de referéncia] de uma historia) pode ser um individuo (por exemplo, Brutus), um grupo de pessoas (por exem- plo, os trabalhadores), um conceito (por exemplo, a humanidade), um alimento (por exemplo, arroz), um prego (por exemplo, 0 prego do trigo), um sistema econ6mico (por exemplo, o artesanato), en- fim: tudo 0 que possa existir no horizonte das experiéncias da vida humana pratica e 2 que se possa atribuir algum significado para a orientagao dessa praxis no tempo. As histérias asseveram que, com este “S”, se passam coisas no decorrer de um periodo de tempo (cro- nologicamente determinado): Brutus mata César para salvar a Repu- blica romana; na segunda metade do século XIX, os trabathadores constréem, na Alemanha, organizagées politicas proprias; 0.concei- to de humanidade adquire, na segunda metade do século XVII, no discurso da sociedade do Iuminismo alem&o, uma acepgdo emanci- patoria, critica e coletiva;'” o arroz € introduzido por volta de 2000 ou 2150 a.C, no sul da China, onde se expandiu até a extensdo que conhecemos hoje, tendo modificado “decisivamente a vida na Chi- na”;'® o prego do trigo na Europa Central decresceu de 1817 a 1825, voltando em seguida a subir." Esquematicamente, esses processos podem ser apresentados como simples seqiiéncias temporais das varias situagées de S: 8, 8,—.. 8, “HL B, Bédecker, Menschieit, Humanitat, Humanismus, Geschichiliche Grundbe- griffe. Historisches Lexikon zur politisch-soziaien Sprache in Deutschland, v. 3, Stuttgart, 1982, p. 1063-1128. "F. Braudel, Die Geschichte der Zivilisation, 15, bis 18. Jahrhundert. Miinchen, 1971, p. 152. “W. Abel, Agrarkrisen un Agrarkonjunktur. Eine Geschichte der Land- und Emndhrungswirtschaft Miteleuropas seit dem hohen Mittelalter. Hamburg, 2. ¢4., 1966, p. 210. Reconstrugao do passado 45 A ciéncia da historia costuma, pois, nfo apenas “narrar” essas modificagdes temporais de algo como seqiiéncia de situagées, mas também explicd-las. Ela expde como se chegou de S, e S,, pasando por uma série de situacGes intermedidrias, a S,- Conforme o que deve ser explicado cla se vale de diferentes modos de explicago e dos conhecimentos tedricos que Ihes correspondem. Ela pode prece- der assim, sem objecdes de ordem logica, na medida em que as ex- plicacdes nomoldgicas e as intencionais no se contradizem; antes, servem umas as outras como compliementares, Considerando mais de perto esses passos argumentativos da explicacdo histérica, cons- tata-se que a explicagdo que leva de S, a S, nunca esta completa no sentido dos esquemas das explicagées nomoldgicas e intencionais. Ela nunca est inteiramente garantida por um conhecimento formu- lado em termos tedricos e empregado para explicar (de forma que o procedimento no aparece, pois, como caso particular de uma regra universal, como aplicagdo de uma lei ou como execugdo de uma intengdo do agir). Invés disso, os passos de S, aS, ¢ ... até Sn sfo efetuados pela narrativa. As explicagSes estio inseridas nela, mas nao cxplicitam integralmente cada passo. O que significa isso? Tomando-se em consideragao (por razdes de simplificagao) apenas as explicagdes nomoldgicas, pode-se caracterizar epistemologicamente esses pas- Sos como segue; S, sé € explicado parcialmente, apenas como $} de S,, enquanto dado antecedente no ambito de uma regra universal {por exemplo, determinada crise econémica ¢ explicada, por recur- so a lei de Gresham, a partir do dado antecedente que consiste na depreciag4o da moeda; nao é a crise econémica que é explicada, mas a inflacHo que, no caso tomado, estd necessariamente ligada a cla). Para poder explicar suficientemente S, como conseqiiéncia temporal de S,, séo captadas informa¢des adicionais (D,) sem re- lagdo nomolégica formal com S., para que S, de S}_e D, se tome assim plausivel (por exemplo, a crise econdmica como resultante da inflagdo e de outros fatores como danos de guerras precedentes, desemprego, etc.). Um procedimento explicativo “histérico” toma- Tia a seguinte forma: 46 Jorn Risen a: 1 Ss, >>Ss, Do, O mesmo esquema vale também para as explicagdes intencio- nais: na ciéncia da histéria trata-se de situagdes (S,) mais comple- xas do que se poderia explicar pelas agdes que se originaram de intengSes (assim como, por exemplo, uma situagao da Republica romana, decididamente marcada pela morte de César, mas para cuja explicagdo o mero assassinato por Brutus no basta, pois outras ex- plicagdes, por exemplo de cunho histérico-constitucional, so rele- vantes). Explica-se intencionalmente uma agao (8), determinante da situagdo S,, mas nao a situacdo em sua totalidade. E preciso procurar para além do explanans (motivagao do agit) outros dados explica- tivos D, (circunstancias ou condi¢ées do agir, que ndo aparecem ou o fazem de forma distinta nos juizos sobre a situagdo que esto pre- seules ua uiulivayav do agir). A ccadeia narrativa de sentengas histéricas explicativas pode ser representada no seguinte esquema:”” Esquema da argumentacao histérica (de acordo com Hempel e Stegmiiller) Esses curiosos passos explicativos, incompletos 4 luz dos es- quemas das explicagdes nomoldgicas ¢ intencionais, nao se baseiam numa subcapacidade intelectual da disciplina “hist6ria”, que ainda nao teria conseguido encontrar as leis que conduzem, de forma ne- cessaria, de S,, pelas varias fases intermediérias, até S$. Tampouco se trata de pontos fracos na explicacao, situados na imensa com- plexidade do dominio de conhecimento da “histéria” e que ainda Stegmiller (nota 4), p. 352-358 (também em: Baumgartner/Riiscn (3), p. 165-172). Reconstrugao do passado a7 n&o teriam sido suficientemente explorados pelo saber nomoldgico ou tedrico de qualquer outro tipo. Essa incompletude, porém, esse déficit de procedimentos explicativos necessérios 4 argumentacao hist6rica, revela apenas a inadequacSo dos modelos de explicagio utilizados. Ela decorre da natureza do pensamento histérico, de seus interesses cognitivos constitutivos, com os quais a “‘histéria” ¢ te- matizada como objeto e cujo formato ndo se adequa ao esquema da explicacado nomolégica e ou intencional. Como nesses esquemas en- tram dados que do informagées adicionais, eles se abrem ao mesmo tempo para a singularidade da realidade da “histéria”. Esse comple- mento explicativo (D,, D,, D,) é objetivamente necessario. Com ele, © pensamento histérico leva em conta as caréncias de orientagao 4s quais se deve. Essas caréncias de orientagao vao, por principio, além do esquema de pensamento das explicagdes nomoldgica ¢ intencio- nal. Pois trata-se, no pensamento histérico,?! de mediar, pela reme- moragéo, entre o superavit de intencionalidade do agir humano, que vai ld das cundigdes ¢ requisitos que lhe so dados, ¢ a experién- cia do tempo passado, de modo tal que a vida humana pratica atual (nos processos vividos, atualmente, de mudangas no mundo dos ho- mens) possa ser orientada. Nesse processo, o pensamento histérico néo tem como apresentar as experiéncias temporais do passado, nem pelo esquema de explicagao nomolégica nem pelo hermenéutico. Gostaria de fundamentar esse ponto, a seguir, um pouco mais, No caso de uma explicag&o nomoldgica, o pensamento histéri- co isolaria a experiéncia temporal do passado do superdvit de inten- cionalidade da vida pratica atual, ao qual, no entanto, deveria ser re- ferido. Peto argumento nomoldgico poder-se-ia constatar, mediante Tecurso as experiéncias do passado, os processos temporais do agir e do sofrer presente que tém as mesmas circunstancias € caracte- risticas do agir e do sofrer passado (que, pelo tempo transcorrido, Pode ser investigado). Saber disso é imprescindivel por causa de seu significado para a competéncia técnica do agir, que se insere nas cir- cunstancias ¢ nas condi¢des que lhe sao dadas (e com que agir isso nao seria assim?). S6 que nao podera servir de orientagado da vida > CEI, p. 575s. [ed. bras]. 48 Jorn Rasen humana pratica se as intengdes concretizadas conduzirem para além das respectivas circunstancias e condigdes. O pensamento histérico recorre, por forca dessa sua fungao orientadora, a experiéncias tem- porais, das quais o esquema das explicacdos nomoldgicas abstrai: experiéncias de mudangas que no correspondem a regularidade interna daquele que passa pela mudanga. Trata-se de experiéncias temporais que, comparadas com as que séo apreendidas nomolo- gicamente, possuem 0 status de contingéncia. Com as informagdes adicionais (D,, D,,..-D,), 0 esquema da argumentagdo histérica ex- plica justamente o que, em S,, S,,...S,, € contingente com relagdo as propriedades $2,S3,...Sn nomologicamente explicavcis. Com toda razio, o debate contempordneo sobre teoria, na ciéncia da historia, assumiu a fungao de superar a contingéncia, atribuindo-lhe assim um status especial ao lado das ciéncias nomo- l6gicas.”* S6 que essa atribuigao de status é problematica por duas tazées: primeiro, porque 0 pensamento nomoldgico ¢ ele proprio um meio de supcragao da contingéneia; ele supeia essa experiencia ao revelar regularidades até ent4o desconhecidas, A luz das quais a experiéncia apreendida como contingente passa a ser explicada nomologicamente. Em segundo lugar, porque s6 restaria ao pensa- mento histérico uma unica fungio compensadora: ser responsdvel apenas pelas experiéncias temporais que no pertencem 4 esfera das ciéncias nomolégicas; ficaria dependente, portanto, da competén- cia reivindicada por estas (remetida, por assim dizer, aos residuos de contingéncia que sobrassem das ciéncias sociais que procedem nomologicamente). Na verdade, nunca faltara, no Aambito da vida humana pratica, a experiéncia da contingéncia a ser dominada histo- Ticamente; a questo est4é em saber como avaliar esse dominio me- diante a histéria em relagdo a sua supcracdo (sempre parcial) pelo pensamento nomoldgico. Deve-se explicar “apenas” de forma histé- rica (considerando a superagdo nomolégica da contingéncia como a melhor possivel) ou deve-se esclarecer “exclusivamente” de modo historico, no sentido de “unico” (considerando necessério controlar ®H. Libbe, Geschichtsbegriff und Geschichtsinteresse. Basel, 1977; do mesmo autor: Was heisst: “Das kann man nicht histovisch erkldren?” (9). ayia a Reconstrugao do passado ag a contingéncia de outra maneira do que por sua superagao, ou seja, por reconhecé-la)? Se se pensar na interrelacdo constitutiva com as caréncias de orientacdo da vida humana pratica, na qual o pensa- mento histérico se encontra também como ciéncia, a resposta estd entdo a nosso alcance imediato: o pensamento histérico abre o olhar para a contingéncia das mudangas temporais do homem ¢ de seu mundo (e ultrapassa com isso 0 esquema de sua explicagdo nomo- logica, desvelando as possibilidades de realizagao do superavit de intencionalidade). Pode-se chamar de liberdade aquilo que faz com que os ho- mens vao além, intencionalmente, das circunstancias ¢ condi¢des dadas em sua vida prdtica, e afirmem-se nessas mudangas de si mesmos e€ de seu mundo, de que sao agentes e pacientes por seu proprio agir. E essa liberdade que, antes de mais nada, torna pos- siveis as experiéncias da contingéncia. E com respeito a elas que © pensamento histérice rememora os processos temporais do pas- sado humano, cuja contingéncia € interpretada com possibilidade de liberdade. A contingéncia 6, assim, a sombra empirica projetada pela liberdade do homem. O pensamento histérico domina a experiéncia da contingéncia (do presente) na medida em que nfo é superado mediante conheci- mento nomoldgico na forma de experiéncias generalizadas do passa- do, mas sim por manter-se aberto 4 possibilidade da liberdade. E isso acontcce porque os processos temporais contingentes das mudangas do homem e de seu munde no passado sio enunciados como a his- toria dessas possibilidades, de sua abertura, de seu aproveitamento, desperdicio, fracasso, expectativa, enfim: rememoram-se todas as formas pelas quais 0 homem da testemunho de sua liberdade. No caso de uma explicacgdo intencional, a experiéncia tempo- ral do passado preservaria o trago das intengées orientadoras do agir que permaneceriam presentes nele, mas também nesse caso se perderia a contingéncia, cujo controle o pensamento histérico busca. A contingéncia na concretizacdo de agdes resultantes de in- tengdes consiste no fato de que as agdes dependem de circunstan- cias e condicdes, que as intengdes orientadores do agir nao tém como avaliar adequadamente em sua totalidade e em todos os seus 50 Jérn Risen aspectos. O pensamento histérico mantém aberto 0 espago da con- tingéncia no qual as agdes se efetuam na relagdo com suas intengdes orientadoras e no qual intengdes se realizam. Com isso, ele traz para 0 Ambito de orientacdo da vida pratica um superavit experiencial quanto a intencionalidade do agir humano, ao qual esta tem de con- formar-se, se nfio quiser que sua liberdade seja uma mera aparéncia, O pensamento histérico também se preocupa com isso, quer dizer, basicamente com relacdo a liberdade do homem: ela 6 remetida ao Ambito dos condicionamentos, o inico onde tem possibilidades de se realizar. A evidéncia hist6rica da sua limitagdo funciona como estimulo para motivar a sua ago. Se, A luz dos esquemas das explicagées nomoldgicas ¢ inten- cionais, a argumentagdo explicativa de uma histéria aparece como incompleta, como déficit desses esquemas, pée-se entdo a pergunta Se, em contraste com esses esquemas, seria possivel elaborar um esquema que represente a natureza especificamente histérica da ex- plicagdo. Se a ciéncia da histéria s6 utiliza as explicagdes nomolé- gicas e hermenéuticas de modo subsidiario, quais seriam entdo seus processos préprios de explicagiio? Para se poder responder a esta pergunta, tem de ficar muito cla- To, antes de mais nada, que a pergunta sobre o “por que” é especifica- mente histérica ¢ que, dessarte, requer uma resposta especificamente histérica ou seja, uma explicagao hist6rica. Um explanandum hist6- rico € a modifica¢ao temporal de alguma coisa. Um exemplo episte- molégico classico é o fato de o duque de Buckingham ter seguido, até 1623, o plano de casar o principe Carlos com a infanta espanhola Dona Maria, mas depois de 1623 ter desistido desse plano” O ex- Planans & 0 fato de que ele, em 1623, numa viagem com o herdeiro do trono 4 Espanha, mudou sua avaliaggo quanto A uma possivel li- gagdo entre as casas reais inglesa ¢ espanhola. A relago logica entre 0 explanandum ¢ o explanans é a de uma histéria: seu comeco e seu fim séo a mudanga que é preciso explicar, o meio é 0 acontecimento que explica a mudanga. O préprio narrar a histéria jé é por si um Detalhes em F.C. Dahman, Geschichte der Englischen Revolution, Leipzig, 1844, p. 159-167. Reconstrugao do passado 51 procedimento explicativo.* Explicagdes especificamente historicas sao explicagdes narrativas. Seu esquema tem a seguinte forma: Esquema de uma explicagGo narrativa (segundo Danto) @)SéFemt, (2) G ocorre com § emt, 3)SéHemt, explanandum: (1), (3) explanans: (2) S = “sujeito” de uma historia; F = situagdo inicial; H = situacao final; G = acontecimento Os exemplos, com que a bibliografia especializada elucida a natureza e a estrutura da explicaciio histérica, correm todos o risco de mal-entendidos no caso da historia mencionada da mudanga de opinigo do duque de Buckingham. Como se trata de histérias no Ambito de acontecimentos singulares (mudanga de idéia, amolgadu- tas em carros), tem-se irremediavelmente a impressio de que uma explicapdo narrativa se refere ao nivel da histéria factual, mas nao Aquela que trata de uma ligag&o estrutural entre fatos ¢ onde nao existem pessoas atuantes em primeiro plano. Essa impressao € en- ganosa, porque S pode muito bem ser um sistema sécio-econdmico complexo (como, por exemplo, o da Inglaterra) ou um duque, ¢ F, H podem ser sistemas complicados de propriedades (como, por exem- plo, o de uma sociedade agrdéria de um determinado tipo ou o de uma sociedade industrial nos primordios da industrializagao), e também podem ser diferentes os acontecimentos G, que ocorrem com S, que se pode transformar em H por meio de F. A historia correspondente seria a da industrializagdo na Inglaterra. © esquema de uma explicagao narrativa diz respeito, portanto, também ao pensamento historico em seu todo. Esse esquema é tao 2 Adoto a argumentago de A. C. Danto, Analytische Philosophie der Geschichte 9). 52 Jorn Risen orm risen tipico para a explicagao da ciéncia da historia, como a narracdo his- terica € constitutiva para 0 conhecimento histérico. Por ele é possi- vel tomar plausivel que e Por que os prognésticos nao representam papel algum no pensamento histérico sem que, com isso, a dimensio do faturo esteja-Ihe vedada. As explicagdes histéricas sio dessarte, POF principio, reconstrutivas e nio podem, também Por principio e pela mesma raz4o, tomar-se Prognéstico mediante uma transposi- sao temporal do explanandum para o futuro, Porque 0 explanandum histérico j4 contém em si a diferenga de tempo que poderia ser utili- zada em um prognéstico: a diferenga de tempo entre 1 et, nao se da ~ Como no esquema de uma explicagao nomolégica (se se dotar os antecedentes ¢ 0 explanandum com Coeficientes de tempo) — entre explanans ¢ explanandum, mas no proprio explanandum. Naturaimente, € possivel imaginar t, como se encontrando no futuro, mas isso nao é um prognéstico, apenas um processo histérico ficticio: demonstra-se o que deveria ocorrer com 8, que (ainda) pos- Sui agora a qualidade G, se deixa de ser G para ser H. Esta apresen- tagao de um proceso histérico ficticio nao é rara, faz parte de cada consciéncia histérica em forma de uma Perspectiva ou expectativa de faturo que se refere as lembrancas do passado e é determinada Por intengdes normativas. A simetria entre explicagdo e prognéstico no esquema do pensamento nomolégico Corresponde a simetria en- tre lembranga e expectativa no esquema do pensamento narrativo, e a legalidade abrangente naquele caso corresponde, neste caso, A te. Presentacdo abrangente de continuidade. “Expectativa” nao signifi- al aon no sentido de profecia. Antes, trata-se de uma esperanga Com o esquema da explicacdo narrativa é possivel estabelecer com preciso do que se trata, quando se fala das tio debatidas teo- vias histéricas, Em primeira lugar, as teorias nao surgem de imedia- to (como as leis no esquema da explicagao nomoldgica) como parte constitutiva das explicagdes histéricas no esquema natrativo. Sera que a ciéncia da historia nao é Por esta razio carente de teorias?5 *H. Litbbe, Wieso es keine Theorie der Geschichte gi i , ichte gibt. In; Kocka/Nipperd (Ed.), Theorie und Eredhlung in der Geschichte (3), p. 65-84. spperesy Reconstrugao do passado 53 O esquema da explicag4o narrativa apresentado especifica a expli- cagdo histérica, de tal forma que sua realizacéo propriamente cien- tifica ndo seja mais visivel (assim como as teorias especificamente cientificas da intencionalidade tampouco aparecem no esquema da explicag&o hermenéutica e, no esquema da explicagéio nomoldgica, a forma da lei ainda nao € especifica para teorias nomolégicas cien- tificas. Meras sentencas se/entao ainda nao sao leis e muito menos teorias). Isso nao quer dizer que alguma coisa como “teorias hist6- ricas” ndo possa acrescer-se aquilo que o esquema da explicagdo natrativa apresenta como suas caracteristicas constitutivas ou essen- ciais, sejam introduzidas artificialmente em nome da ciéncia. Pelo contrario: a existéncia, especificidade e fun¢ao das teorias histéricas devem provir dos fatores constitutivos de uma explicagio histérica, deixando-se enunciar de forma plausivel pelo esquema da explicagiio narrativa. Um oihar sobre os demais esquemas pode focalizar aquilo que esta em causa como “teoria”. No esquema nomolégico tem-se uma formulagio genérica das conexées entre os dados proprios aos an- tecedentes e ao explanandum. Essa formulagio, com seu grau de generalidade, “cobre” ao mesmo tempo a conexdo especifica entre as condigées iniciais dadas ¢ 0 explanandum dado (covering law). Esta ‘‘cobertura” genérica encerra igualmente o saber hermenéutico profundo com o qual sfio formuladas, na explicacao intencional, as conex6es entre motivacdo ¢ ago, de modo a remeter determinadas agdes a determinadas motivagGes. Esse saber genérico também ¢ utilizado na explicagao histérica; todo historiador que explica mu- dangas da estrutura social, ao “narrar” o processo de transformacio de uma situagdo em outra, trabalha com conhecimentos em forma de teoria sobre a dinamica da transformagao (Jacob Burckhardt diria: sobre as “poténcias”) das estruturas sociais; desta forma, a especifi- cidade temporal das estruturas é levada em conta, por definigdo, nes- se saber. As teorias histéricas “cobrem” também 0 espago de tempo entre t, ¢ t, ¢ tommam visiveis, nele, os fatos a que se tem de recorrer quando se quer saber de que maneira se passou de F a H. Por recurso a essas teorias pode-se especificar e concretizar o transcurso do tem- po S$ (F) t, + S (G) t, +S (H) t,. Assim, por exemplo, uma teoria do 5a jorn Risen imperialismo “cobre” o espago de tempo do final do século XIX ¢ do comeco do século XX, caracterizando-o com base nos fatores de politica externa nele presentes (em sua relagdo de dependéncia para com seu desenvolvimento interno). A estrutura e a funcdo dessas teorias e de seus elementos, os conceitos histéricos, serio ainda tratadas com mais pormenor. Por enquanto trala-se apenas de seu esboco esquemiatico, de seu status € de sua fungao na explicagao histdrica. E possivel, de maneira seme- thante 4 que aparece no esquema da explicagiio narrativa, descrever a forma tedérica de que o saber histérico se reveste nas explicagdes histéricas especificamente cientificas? O esquema de uma explica- cao narrativa ¢, ao mesmo tempo, o esquema elementar de uma his- téria (comeco, meio, fim da conexdo temporal de uma mudanga, de alguma coisa ou de algum acontecimento). A “forma tedrica” de uma histéria correspondente a esse esquema elementar é o seu en- redo: ele define o comego e o fim ¢ enuncia que ctapas narrativas (atgumculativas) conduzem dy iniciv av ténnine.” Ele “cobre” a histéria como uma lei cobre a conexiio entre os antecedentes e 0 ex- planandum ou como a compreensdo hermenéutica profunda cobre a conexdo entre uma motivaciio e uma ago. Ele fixa também, por as- sim dizer, o fluxo do discurso, da mesma forma que o conhecimento em forma de teoria (nomolégico ou hermenéutico) estipula a que fa- tos 0 explanandum deve ser relacionado pela explicagdo. Para tanto, anecessidade de langar mao de uma argumentagio tedrica propria ¢ complexa, pelo menos em parte, quando os contextos nao sao mais ‘Zo triviais como no caso do duque de Buckingham e de seus planos de casamento, tem de estar bem clara para a ciéncia da hist6ria, ao se pensar, por exemplo, em explicacdes que digam respeito ao cres- cimento da populacao ou a industrializagao da Europa. Com a analogia literdria do enredo, a especificidade e a fun- ¢4o0 das teorias histéricas esto indicadas apenas provisoriamente. Elas so construtos de histérias, construtos narrativos, projetos (ou como mais se queira designa-las metaforicamente) ¢ servem para + Para o significado estrutural e constitutivo do enredo de uma narraco, of. o artigo de P. Ricoeur, “Narrative time”. Critical Inquiry, 7, 1981, p. 169-190. Reconstrugao do passado 55 tornar transparentes as explicagées histéricas que recorrem ao saber nomoldégico ou hermenéutico com seus elementos tedricos. Nelas, todavia, a apresentagdo narrativa de um processo temporal possui, por si mesma, fungdo explicativa. As formas que essas teorias tomam e as fungGes que exercem (ou poderiam exercer) serfio tratadas em pormenor nas segdes se- guintes. Com isso, pretende-se mostrar que as teorias histéricas sio construtos de pensamento em dire¢ao aos quais a raz4o narrativa se desenvolve, quando a histéria se conforma como ciéncia. A passagem para o todo: da teoria “da” histéria Para abordar os elementos tedricos do saber histérico perten- centes 4 argumentacdo histérica especificamente cientifica, gostaria de relaciond-los com a forma de teoria que desde ha muito desem- penha um papel controverse na ciéncia da historia. Refiro-me as teorias que enunciam as histérias como um todo, como um espa- go de tempo que engloba a evolucao temporal do homem e de seu mundo, teorias que aparecem como filosofias da historia materiais, determinadas em seu conteudo. Tais teorias da histéria como um todo sao precarias do ponte de vista tanto histérica como sistematico. Do ponto de vista da historia da ciéncia (sobretudo no espaco de lingua alema), a ciéncia da histéria afirmou-se como disciplina independente no contexto do historicismo do sécule XIX, por oposi- gio a filosofia da histéria desse tipo (primeiro a idealista, sobretudo a de Hegel, mais tarde, 4 materialista). Tais teorias eram considera- das (c ainda o so, para muitos) como ndo-cientificas, até inimigas da ciéncia, porque se desviam da importancia da pesquisa histérica empirica. Na filosofia materialista da historia, o precario nao é tanto seu papel de referéncia negativa para a pretensio de competéncia dos historiadores profissionais, mas o fato de ela ter desempenhado, apesar dessa critica, um papel de forma alguma insignificante para o trabalho empfrico da histéria especializada. Ela ensejou, como qua- dro de referéncias das interpretacées histéricas, a interpretagao dos 56 Jorn Risen dados das fontes,”’ Tal filosofia, contudo, nao aparece explicitamente na pesquisa como um instrumento do conhecimento histérico ope- tado ¢ controlade metodicamente, mas sim como um fator velado, por vezes até reprimido (e por isso ndo menos eficaz, apenas mais incontrolado), que atua sobre a interpretagdo historica do passado do homem ¢ sobre a fungdo de orientag&o pratica dos resultados obtidos pela interpretacdo e¢ apresentados historiograficamente. A mesma ambivaléncia mostra-se também no plano da andlise sistematica da matriz disciplinar da ciéncia da histéria. Assim como nao resta divida acerca da existéncia do fator “idéias” nos funda- mentos da ciéncia da histéria ¢ de que esse fator se articula em “teo- tias” especificamente cientificas, tampouco se deve dar por garantido que a “histéria”, como supra-sumo do cognoscivel historicamente, come o todo do conhecimento histérico, pode ou nao ser formulada teoricamente, e que essa formulagdo pode ou ndo ser utilizada como fator do trabalho histérico cientifico especializado. Falar de “hist6- tia” ¢ t&éo banal ¢ natural no dia-a-dia du listuriadur, quanto € diffcil © mesmo quase impossivel evidenciat em seu discurso a presenga do elemento tedrico correspondente 20 conhecimento histérico. Por isso é muito importante esclarecer, no ambito de uma teoria da histéria que queira manter-se em um nivel médio de abstragao entre o principio fundamental e geral da metodizagdo, por um lado, ea formagcao de teorias histéricas explicitas, por outro, o que real- mente quer dizer teoria “da” histéria. A esse respeito, quero, antes de mais nada, levantar a questao se “a” histéria é algo que existe, para que a ciéncia da hist6ria possa pesquisa-la empiricamente e apresenté-la historiograficamente. Como existem argumentos fortes que visam negar essa questo, quero entdo examinar se um conheci- mento histérico em forma de teoria, que verse sobre a totalidade da hist6ria, ainda possui algum sentido ¢ pode (ou até deve) ter fungao, Tos processos cognitivos da ciéncia da histéria. A pergunta se existe “a” histéria, como estado de coisas susce- tivel de ser investigado e apresentado na historiografia, nao é uma 7Isto se pode constatar bem no exemplo de Droysen. Cf. J. Risen, Begriffene Geschichte. Genesis und Begrindung der Geschichtstheorie. Yn: J. G. Droysen. Paderborn, 1969. Reconstrucdo do passado 57, pergunta empirica, mas (meta-) tedrica. E verdade que a primeira vista a idéia de que se poderia elaborar uma “historia geral”, como a suma e unidade global de todas as histérias especiais, nao parece tio esdrixula. Afinal de contas, hd suficiente evidéncia de histérias mun- diais ou universais mais ou menos bem sucedidas. Tais empreendi- mentos parecem somente problematicos do ponto de vista pratico & empirico. Do ponto de vista pratico, so problematicos por causa da dificil tarefa de comprometer os especialistas de campos especificos do desenvolvimento histérico com uma concep¢ao abrangente da totalidade, de maneira tal que, nele, possam fazer valer sua pericia. Do ponto de vista empfrico, s4o problematicos diante da imensidao da experiéncia do passado revelada pela pesquisa histérica. Muitos historiadores, contudo, nao consideram abusiva a idéia de uma historia abrangente, na qual se efetivariam os esforgos em- preendidos até agora pela pesquisa histérica e pela historiografia, poderia ser uma espécie de assintota do desenvolvimento da cién- cia (aproxima-se constantemente, mas nunca se ulcanga). Essa idéia € amitde apenas uma idéia regulativa, abscéndita, indireta, meio consciente ou inconsciente, da atividade cognitiva da histéria. Qual é 0 pesquisador ou historiador que nao acredita encontrar-se no ca- minho da historia “definitiva”, na quai desembocariam, em ultima andlise, todos os esforcos cognitivos e historiograficos? Ja existe uma idéia dessas, de forma mais elaborada e com forte pretensio vinculante, no marxismo-leninismo, como idéia de uma regularida- de geral do desenvolvimento historico, que reine passado, presente e futuro na unidade de um processo histérico unico. A vista da abundancia inestimavel do saber historico e de sua constante expanséo, fruto do afinco da pesquisa histérica, a idéia de um todo da histéria, que possa ordenar essa riqueza, que insira a pesquisa especializada no contexto abrangente das representagdes histéricas e que as encadeie com todas as demais em uma totali- dade que faga sentido, s6 nfo é atraente para os amantes do caos. (E como poderia surgir uma preferéncia por resultados cadticos do pensamento historico, tendo em vista a pressdo, na profissionaliza- ao na ciéncia da hist6ria, para se produzir clareza metédica nesse pensamento?) A quest&o esta apenas em saber se a ordem, 4 qual 58 Jorn Rusen conduz a disciplina metodica especificamente cientifica do pensa- mento histérico, requet necessariamente a idéia “da” historia como Tepresentacdo de um processo temporal abrangente, de contetdo de- finido que, em ultima anilise, determinasse a consciéncia histérica. Por principio, a resposta a essa pergunta é um niio, ainda antes de quaisquer ponderacdes pragmaticas e empiricas. Por que isso? Porque nao é possivel pensar de modo logicamente consistente uma tal idéia da totalidade da histéria, que encerrasse em si todas as de- mais histérias.”* Pois uma histéria é, como construto mental e como experiéncia temporal interpretada, incvitavelmente particular. Ela tem sempre um comego ¢ um fim, para além dos quais se podem imaginar comegos ¢ fins de outras histérias. Por isso, a idéia de uma hist6ria de todas as hist6rias, uma histéria das historias, é contradit6- ria, Uma tal histéria jd teria diante de si, a seu lado ou fora de si, por forga de sua prépria estrutura narrativa, outtas histérias (no minimo pensaveis). Por conseguinte, ela nao poderia, dotada de comego ¢ fim, conter, abranger e ordenar todas as historias ¢ as conexdes entre elas pela mera referéncia a si mesma. Como experiéncia temporal interpretada mediante a atribuigao de sentido pela narrativa histérica, a historia ¢ scmpre particular. Ela nao pode ser concebida como universal sem deixar de ser histéria, isto é, estruturada narrativamente. Nao gostaria de me contentar com essa argumentacao formal, mas Tecorrer ainda a um argumento material, que se aparenta a uma fundamentacio da concep¢do de uma historia universal, abrangente, integral. Em sua evolugdo temporal, a espécie humana nao constitui justamente uma histéria, na qual se integrariam todas as hist6rias particulares dos homens, grupos, cstados, sociedades, povos, cultu- tas? E nao seria ent&o essa historia o estado de coisas empirico, cuja possibilidade é logicamente contestada? Contra esse argumento, pode-se objetar que a referéncia 4 espécie biolégica “homem” como critério de determinagiio de uma histéria total da humanidade pde » Principalmente H. M. Baumgartner chamou a atencao para esse fato: Narrative Struktur und Objektivitat. Wahrheitskriterien im historischen Wissen. In: Risen (Ed), Historische Objektivitdt, 7, p. 48-67, em especial p. 54-57. Apenas resumi sua argumentagdo. Reconstrucdo do passado 59 justamente a particularidade (uma especie distinta das demais e de- pendente delas na cadeia evoluciondria), que se quer suprimir. Essa historia, como histéria de uma espécie, é particular. A universalidade de que ela deveria estar revestida, em relagdo ao conhecimento his- térico acumulado, falta-lhe porque ela se bascia em caracteristicas bioldgicas, invariaveis ao longo do tempo. Com isso, essa historia nao pode ser obtida a partir de tais caracteristicas nem apreendida interpretativamente. A histéria biolégica da espécie humana exctui —nAo inclui — a histéria da humanidade, tal como a ciéncia da histé- ria tematiza. Dessarte ela nao pode ser a histéria integral ¢ universal em questao, cuja concepcao ¢ sempre buscada na interpretagao or denadora da experiéncia humana do tempo. E outra coisa falar “da” histéria como determinagao da espécie humana, falar da “humanidade” nao como algo biolégico, mas como algo historico. Pois trata-se da especificidade da vida humana pratica, que se pode descrever mais adequadamente como historicidade™ ¢ que sO se pode apreender empiricamente no campo da experitncia histérica. Essa determinacdo histérica da espécie é universal e englo- ba todas as experiéncias historicas. Se ela for definida, todavia, como uma historia, entdo ela mesma define as caracteristicas que qualifi- cam a vida humana como humana em uma tnica vertente temporal. As demais vertentes possiveis seriam assim privadas da qualificagao de humanas e s6 poderiam ser julgadas como desumanas. Come pode uma definigao da espécic histérica evitar esta au- tocontradi¢ao — ja que se trata de uma qualificagao de humanidade universal e abrangente? Isto é possivel, se se conceber a humanidade nao como o estado de coisas empirico de uma evolugio historica, mas como 0 principio para todos as possiveis cvolugdes, cuja uni- versalidade vai além de todas as experiéncias, mesmo quando se entende as experiéncias temporais como histéricas, como manifes- taco da qualidade humana do homem no processo de mudancas temporais de si mesmo e de seu mundo. Também a idéia da conformidade a uma lei geral da evolugio histérica pode ser contestada como paradoxal, nao s6 formalmente, PCE Lp. 56 os,[ed. bras.) 60 Jorn Rasen mas também por meio de argumentos materiais, Formalmente, va- lem também para essa idéia as objegdes, suscitadas acima,*° contra a caracteriza¢ao do conhecimento historico mediante o esquema de uma explanagdo nomolégica. Se levarmos em conta essas objegdes, ao declarar a conformidade a leis gerais como enredo, como cons- truto que sustenta uma histéria universal, a pretensa universalidade da conformidade a leis est4 entdo em contradic¢’o com a particulari- dade de todo construto teérico que sustente a interpretagfo narrativa da experiéncia temporal. Em termos de conteido, a idéia de uma formula histérica universal (a lei “da” histéria), que — por princi- pio — da a entender o futuro como previsivel e 0 processe histérico, por via de conseqiléncia, como controlavel, pode ser refutada pela remissdo de Popper 4 evolucdo do conhecimento humano.*! Como o decorrer da evoluc&o histérica depende da expansao do conhe- cimento humano e como esta expansdo nao pode ser prevista por meio de métodos cientificos, assim também nao é possivel prever 0 decurso futuro da histéria.”? Com essa critica é possivel evitar uma falsa objetivagao da historia quando se trata de abordar, pela interpretagdo, o campo do historica- mente cognoscivel, no qual o pensamento enceta seu caminho para a historia. No caso “da” hist6ria ndo se trata de um estado de coisas objetivo que pudesse ser medido e determinado pelo conhecimento em sua totalidade. Pensar a historia dessa maneira pressupGe consi- deré-la desde um ponto de vista absoluto, cuja adogiio no é possivel CE p. 28 ss. 3 Refiro-me a K. Popper, A miséria do historicismo, Tibingen, 1965, p. XI. 2 Embora a argumentagéo de Popper scja dirigida unicamente contra um dos prinoi- pais principios do materialismo histérico na sua expressio ortodoxa, marxista-le- ninista, no se chegou— até onde sei - a tentar justificar a idéia de uma legalidade histérica geral e da pretensdo de atribuir ao conhecimento historico a faculdade de prever, mas tampouco a propor uma nova formulagdo clara do “teorema da legalidade” diante dessa abjegao. E de notar que N. Iribadschakov (Zur Kritit der biirgerlichen Geschichtsphilosophie, Frankfurt, 1975) discute detalhadamente o problema das leis histdricas e critica os téoricos “burgueses” (inclusive Popper), tas no trata da argumentagdo de Popper aqui referida. Esse argumento foi dis- catido também por M. Comforth, que se ocupa exclusivamente da polémica de Popper contra Marx ¢ 0 marxismo (Marxistische Wissenschaft und antimarxistis- ches Dogma, Frankfurt, 1973). Reconstrucao do passado 61 demonstrar se se negligenciar a dinamica temporal interna da vida humana pratica, de cuja apropriagao cognitiva afinal se trata. Ao par- tir desse ponto de vista, dever-se-ia pensé-la, a histéria, como com- pleta, como terminada, sem precisar pensar também cm um recome- go, tal como resultaria dos efeitos do agir humano que modificam 0 mundo ¢ cuja intencionalidade sempre vai além das circunstancias em que se originaram. Isso, porém, nada significa além do fato de que © sujeito deve situar os interesses e as caréncias presentes em seu ponto de vista no contexto da histéria a conhecer, cuja consti- tuigdo ¢ a fonte mesma do conhecimento histérico. Buscar adotar esse ponto de vista significaria negar, junto com a pluralidade de E; muitos possiveis pontos de vista, negar a objetividade por consenso & dos conhecimentos histdricos, que se baseia em um tal pluralismo.> A objetividade por consenso seria transposta para objetividade por fundamentapao, com o que se obteria o contrario do que se preten- dia com a concepgao de histéria como um todo, como um estado de ; coisas cognoscivel (“objetivo” no sentido de dado prévia e indepen- dentemente do sujeito) e com a adoce do respective ponto de vista “absoluto” (no sentido de despojado do pluralismo das diferentes f caréncias ¢ interesses). Ao invés de um conhecimento dinamizado - © movido pela multiplicidade dos pontos de vista (a busca de con- » Senso) dever-se-ia encontrar uma verdade independente de pontos y de vista (“objetiva”) e por isso néo-relativa, clara (para no dizer: f absoluta), Entretanto, como esta 86 poderia existir se baseada na ve- Tificagdo de estado de coisas empiricamente dado, tem-se a trans- f feréncia dos critérios de sentido e significado do estado de coisas, televantes para a verdade, para o arbitrio das decisdes. Por detras do objetivismo (tedrico) “da” historia esconde-se a ideologia de um decisionismo pratico. Estara, com isso, 0 esforgo tedrico por uma totalidade da histé- Tia limitado a uma critica (metateérica) de uma falsa coisificago da i historia? Por mais que essa critica contribua para salvar a contingén- cia da experiéncia histérica de ser posta de lado no pensamento da histéria como um todo, para devolver ao tempo sua forga geradora b BCE Lp. 138 ss. [ed. bras]. 62 Jam Risen de historia e para defender e descerrar o espaco da liberdade humana contra a ambi¢fo cega de poder sobre a histéria, nao fica tesolvido o problema de uma apreensde tedrica da histéria como um todo como um espaco da experiéncia histérica. Esse problema se pe com forga ainda maior depois da critica 4 falsa filosofia da histéria. Se se admitir (metateoricamente) que todo conhecimento histérico de contetido empirico e que todas as histérias sio necessariamente particulares, ndo se abandonaria ent&o a unidade da experiéncia his- torica, e se contentaria com uma multiplicidade de histérias que, em iltima andlise, estariam conectadas por meras decisées arbitrérias? Sera que, em lugar de um falso objetivismo, nao se teria um subje- tivismo problematico que, afinal, precipitaria no caos a experién- cia histérica em seu conjunto? Que sentido tem o apelo a liberdade humana, quc critica a unificagao forgada da hist6ria, se esta critica acaba por levar sé a uma representago da contingéncia, na qual a indisponibilidade das ocorréncias histéricas transforma-se na im- possibilidade de conhecer suas inter-relagdes? A condenagdo do conhecimento histérico como um todo ao caos ¢ inevitavel, se se pensar no “todo”, com respeito 4 experiéncia histérica, apenas como 0 conteiido de uma historia tnica, como tem- po petrificado em objeto histérico. Esta alternativa: ou “a” historia como histéria universal abrangente, no sentido de uma filosofia ma- terialista da histéria ou 0 caos desordenado da experiéncia historica, nao sé nao ¢ obrigatéria, como simplesmente exclui outras possibili- dades de se conceber teoricamente a historia como totalidade e, com isso, ordenar em pensamento o dominio da experiéncia historica. O erro de raciocinio embutido em tais dicotomias™ consiste em que “a” histéria € procurada como algo universal ao mesmo tem- po para além e para fora das historias particulares. Se se procura “a” historia nas histérias, ent&o se encontram possibilidades para pensar na histéria como totalidade, sem incorrer em contradigdes fatais. Nem € preciso procurar, demorada ¢ penosamente, teorias alternativas a filosofias da histéria insustentaveis, para poder dizer algo com sentido sobre a suposig4o de uma totalidade em relagao * Essa objecdo vale também para a distingdo entre hist6ria universal e historia mul- tiversal de O, Marquard. (Universalgeschichte und Multiversalgeschichte (8).) Reconstrucao do passado 63 a experiéncia histérica. Na linguagem da historiografia, em que o conhecimento histérico se manifesta nos construtos narrativos, nas “historias”, essas suposigées j4 estao presentes conceitualmente, embora nem sempre na forma de teorias elaboradas da histéria como um todo, mas sim de modo pré-tedrico e banal. Esse modo é 0 de conceitos elementares, que indicam a estruturagdo geral ¢ clemcn- tar da experiéncia histérica ou que, em outras palavras, sinalizam a apreensao interpretativa da histéria como um todo. Os conceitos ele- mentares (como, por exemplo, desenvolvimento, processo, época, etc.) abrangem, metaforicamente, 0 dominio total do que é historica- mente cognoscivel, “a” historia como espaco da experiéncia. Neles, "esse dominio ¢ igualmente preparado para a apropriago narrativa nas historias particulares.* A historia € apreendida, pela linguagem e pela metafora, como campo de experiéncia, como o supra-sumo do que é interpretavel historicamente (na narrativa). Essa apreensdo se di no dominio glo- hal da experiéncia do tempo, antes de serem elaborados, em for- ma de teorias, conceitos elementares ou categorias. Essa apreensiio nao depende da conceituagaio de uma teoria especifica. Tirar dai a conclusio que 0 conhecimento histérico possui carater fundamen- talmente poético, “literario” ou “retorico”, n&o convence, se esses termos tiverem a conota¢aio de “ndo-cientifico” ou “incapaz de ser cientifico”.* Nesse caso, ter-se-ia simplesmente ignorado 0 poten- cial de racionalizagio, que 0 pensamento histérice sempre possui, ao apreender, pcla linguagem, o campo da experiéncia do que € his- toricamentee cognoscivel. E pelo alcance tedrico de seus concei- fos elementares que a ciéncia da histéria decide a justificagado e a abrangéncia de sua pretensdo de cientificidade, De que teoria da histéria como um todo se trata? Trata-se de uma discussao explicita dos principios, por referéncia aos quais a experiéncia do tempo se toma experimentavel, cognoscivel, pes- quisavel e narravel como histéria. Esses principios tem origem no *H. White refere expressamente esses dados lingilisticos: Meta History. The his- torical imagination of the Nineteenth-Century Europe. Baltimore/London, 1973; do mesmo autor: The tropics of discourse. Essays in cultural criticism. Baltimore/ London, 1978. 36 Assim H. White (nota 35). 64 Jérn Risen processo de orientagao existencial e sdo expressamente aplicados (e com isso, especificados) as experiéncias da mudanga temporal do homem e de seu mundo. Eles apreendem — de modo especificamente cientifico— as experiéncias temporais de maneira tal que o passado, ao longo do processo de progresso do conhecimento e da ampliagao das perspectivas, se torna presente, reforgando assim a identidade dos envolvidos na experiéncia temporal tematizada. Trata-se de uma abordagem explicita da idéia de continuidade. Essa idéia ¢ determi- nante para a fung%o de atribuigao de sentido da narrativa histérica ¢ abrange as trés dimensdes do tempo, com o que transforma as ex- periéncias temporais em fatores da formagSo da identidade huma- na.?’ Tais princfpios da atribuig&o histérica de sentido abrangem o Ambito total do conhecimento histérico especificamente cientifico e recobrem, nesse sentido, “a histéria”. Mas, para focalizar isolada- mente o plano no qual tais suposigdes de totalidade da significagao histérica esto localizadas, e da mesma forma filtrar o universal dos processos do pensamento histérico que levam 4 particularidade de uma histéria (ou “das historias”) € necessdrio perguntar com preci- so quais os elementos tedricos, que dizem respeito 4 histéria como um todo e que agem nos processos de formagao da identidade pelo conhecimento histérico. Trata-se dos elementos de orientagiio da existéncia humana, que delimitam a “histéria” como um dominio préprio, especifico de pen- samento no campo geral dos fatores que orientam a vida humana pratica e os “predispdem” ao conhecimento especificamente cienti- fico. Esses elementos constituem um sistema de conceitos elementa- res com 0s quais a experiéncia do tempo pode ser transformada em conhecimento historico. Esse sistema remete a experiéncia temporal ao dominio do que € historicamente cognoscivel. Ele “define” (no sentido de delimitar) a historia como um campo de experiéncia ¢ constréi ao mesmo tempo, para esse dominio, o modelo de inter- pretagdo adequado. Pode-se falar também de um sistema de univer- sais histéricos, que distingue previamente o campo da experiéncia histérica do dominio mais abrangente da experiéncia do tempo em geral € o remete a “interpretagdes histéricas” (histéricas no sentido ” Cf. 1, p. 64-66, 89-91 fed. bras]. Reconstrugao do passado 65 da atribuicao narrativa de sentido as experiéncias do tempo, com auxilio das representagdes de continuidade com o fito da formagao de indenidade)** Tais sistemas se apresentam absolutamente capazes de teorizar: como teorias do carater histérico do homem e do seu mundo. Tam- bém se poderia falar de uma (em contraste com disciplinas empiri- as) antropologia histérica teorica. Do ponto de vista formal, ela explicita os conceitos elementares ou as categorias do conhecimento histérico, as mudancas temporais do homem e de seu mundo como processos continuos, que tornam a mudanga temporal experimenta- da cognoscivel como processo historico. Do ponto de vista material, tais sistemas explicitam, do ponto de vista sincrénico e diacrénico, os fatores que sio determinantes nesses processos. Uma tal antropologia historica teorica nao ¢ considerada pe- los historiadores profissionais como pertencendo ao campo de sua especialidade. Os que se dedicaram a essa questo foram, antes, alguns poncos isoladns” (e ainda o s4o).*° A razdo para tanto pode estar na circunstancia de essa teoria lidar com pressupostos funda- mentais e contextos abrangentes da pesquisa histérica, o que deixa indefinida a competéncia de tal ou qual especialidade ¢ chama a participacdo direta da filosofia e das ciéncias sociais. Por outro lado, essa teoria é 0 local onde, no dmbito da busca do conheci- mento referente ao homem, s4o igualmente postos os trithos que levam 4 ciéncia da histéria e 4 sua pesquisa empirica. Pode-se es- clarecer aqui, metaforicamente, no que consistem a unidade da ex- periéncia histérica ¢ o contexto interno de todas as histérias (pos- siveis): a assinatura do homem “paciente, esforcado e ativo, tal como ele é, sempre foi e sempre sera” (Jacob Burckhardt).*' Uma elaboracio tedrica desse tipo do todo “da histéria” j4 mereceria ser tefictida também no scio da ciéncia da histéria, ou seja, a atengio do historiador. 2 Mais pormenores em I, p. 58 ss. ® Penso, por exemplo, em K. Lamprecht e em K. Breysig. Assim, por exemplo, A. Nitschke, Historische Verhaltensforschung (8). “J, Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, Obras completas, Berlin, 1929- 1934, v. 7, p. 3; na edigdo critica a cargo de P. Gans: J. Burckhardt, Uber das Studium der Geschichte, Miinchen, 1982, p. 226. 66 Jorn Rasen Em scguida gostaria de mencionar alguns pontos de vista im- portantes para uma antropologia histérica tedrica dessa natureza, sem ter a pretensdo de um trabalho completo ou de tentar um es- boco sistematico. Apenas em indicagdes esporadicas posso chamar a atengdo para a questao de se e como tais pontos de vista j4 foram levados em conta nessa elaboracio. Formalmente, o abarcamento tedrico da totalidade do histérico Se apresenta como sistema de categorias historicas. Elas caracteri- zam a historicidade da mudanga temporal do homem e de seu mun- do na forma de conceitos histéricas elementares. Por exemplo: do legado do Iluminismo — progresso ¢ seu contraconceito, regresso; do legado do historicismo — desenvolvimento ¢ individualidade; do legado da pés-histdria — processo, mudanga estrutural, transforma- go (dos sistemas sociais). Com essas categorias, o tempo é tema- tizado como historia. “Em si”, como pura ocorréncia, 0s processos temporais ainda nao representam histéria possivel de ser conhecida; s6 quando aparecem come “tendéncias”, conv “épucas” ou “evulu- gdes” (para dar outros exemplos de conceitos histéricos elementa- res), 4 tuz portanto de categorias desse tipo, podem ser considerados como histéria e apreendidos pela pesquisa. Tais categorias sao “antropolégicas”, na medida em que repre- sentam produtos do trabalho interpretativo do homem, nos quais o tempo da natureza é transcendido em tempo humano. Essas catego- rias expressam o tempo como tempo humano, como tempo social; com elas, o tempo interior da subjetividade humana, que se exprime continuamente na pratica da vida, torna-se visivel no espelho das condigées reais da vida. Como sintese lingiiistica manifesta da capa- cidade transcendente do agir humano, as categorias tornam deciftd- veis os tragos do espirito humano no processo de mudanga na vida humana pratica. Essas categorias podem ser trabalhadas sistematica- mente ¢ se apresentam em forma de teorias explicitas. Nao existem muitos exemplos delas ¢ o mais destacado seriam os “Conceitos so- ciolégicos elementares”, de Max Weber.” 2M. Weber, Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriss der verstehenden Soziologie, ed. por J. Winckelmann, Kéln, 1964, p, 142. Reconstrucae do passado 67 Materialmente, o abatcamento tedrico da totalidade do histé- tico apresenta-se como um sistema de suposigdes quanto as razbes da mudanca temporal do homem e de seu mundo. Elas caracteri- zam a historicidade dessa mudanga temporal na forma de fatores de mudanga elementares e universais que 0 homem e seu mundo, no decorrer do tempo, produzem e experimentam na pratica, Determi- nagSes dessa natureza ordenam as experiéncias historicas sincréni- ca e diacronicamente. Elas segmentam os campos de experiéncias para chamar a atenedo para a interdependéncia entre diversos fatores fundamentais da mudanga histérica ¢ tornam contextos diacrénicos compreensiveis mediante recurso as forgas geradoras da mudanga. Pode-se exemplificar o primeiro caso com a distingao conhecida en- tre trabalho, dominagao e cultura; o segundo, com a tese inseguranca instintiva do homem e com seu reverso, 0 modo de agir humano, intencional e superabundante, para a autopreservagdo ¢ para o do- minio do mundo. Temous, com essas suposivOes basicas, universais hisidricus. Servem como um guia geral, com o qual os processos temporais, que so considerados historia pelo enquadramento categorial, po- dem ser matcrialmente determinados ¢ diferenciados. Esses univer- sais constituem um sistema de coordenadas com o qual se consiréi © quadro de referéncias da interpretagao hist6rica. Para essas supo- sigdes fundamentais de toda interpretagao histérica existem muitos exemplos de explicagdo tedrica, na maioria dos casos como antropo- logias, a0 menos chamadas e interpretadas assim. Um dos exemplos mais conhecidos é 0 capitulo sobre Feuerbach em Ideologia Alema de Marx e Engels.” O fato de também os historiadores, incluindo os que nao s&o adeptos de uma teorizagio sistematica ¢ séio mesmo re- feridos como seus opositores, nao desdenharem tal trabalho tedrico, mas considerarem-no importante como “introdugdo 4 pesquisa e 4 Teflexo histéricas”, é exemplificado pela teoria das trés poténcias e seis condicionalidades de Jacob Burchkardt.* ® Edigo critica em: Deutsche Zeitschrift fir Philosophie, 14, 1966, p, 1199-1254. “1, Burckhardt, Weltgeschichiliche Betrachtungen, Obras completas (nota 41), ¥. 7, p 20-121; edigio critica: Uber das Studium der Geschichte (not 41), p. 122-153, 173-204, 254-341. Um exemplo instrutivo de como se pode desenvolver, a 68 Jorn Rasen Naturalmente, em teorias que — por principio — interpretam historicamente as experiéncias temporais, surge a referéncia nor- mativa constitutiva do pensamento histérico.* Os universais histé- ricos nfo sé delimitam o campo da experiéncia histérica no Ambito da experiéncia temporal, mas definem também a medida e a dire- g&o para a ampliagdo das perspectivas, que devem ser alcancadas pelo processo cognitive da ciéncia da hist6ria (processo orientado pela teoria, o que significa aqui ter como fundamento a apreensao tedrica da histéria como um todo). Esses universais fixam os para- metros da generalizagiio, que as normas do pensamento histérico sofrem, no processo de ampliag4o das perspectivas, ao atribufrem sentido. ‘Na forma tedrica de uma antropologia histérica, a referéncia normativa do pensamento histérico ja esta sintetizado com seu referencial de experiencial. As atribuigdes normativas de sentido 4s referéncias do pensamento histérico a seu objeto transpdem- st scuupre também para o quadro interpretative que ordena a experiéncia histérica. A denominagéo “antropologia” ja indica como isso é possivel, A “humanidade” & ao mesmo tempo o regu- lador do referencial de experiéncias ¢ do referencial de normas no pensamento histérico.* A experiéncia histérica € estabelecida no Ambito de todas as possiveis experiéncias temporais do homem ¢ por ele demarcado como um campo especial, no qual as experién- cias do passado so empregadas significativamente para a interpre- tagHo do presente e a expectativa do futuro. Essa demarcacdo seria va e “historia” como (possivel) contetida da consciéncia histérica, como substancia da experiéncia histérica, seria vaga e pensavel arbitrariamente, se nfio se tratasse de experiéncias determinadas, partir da concepeao tebrica de uma antropologia historica, um grande empreendi- mento esta na Geschichte des Altertums {Historia da Antiguidade], de E. Meyer. primeiro volume: Geschichte des Orients bis zur Begriindung des Perser~ reiches (Stuttgart, 1884) comega com uma introdugdo, na qual Meyer, partindo de Elementen der Anthropologie, earacteriza as estruturas da evolugao histérica ¢ define assim 0 lécus de sua “Historia da Antiguidade”. “CEI, p. 108 ss. fed. bras.]. “SCF. os resultados esclarecedores na apresentapao histérica de H. Bédecker (nota 17). Reconstrugae do passado 69 quer dizer daquelas que foram filtradas com a ajuda das normas, que lhe dio um sentido, do campo total de todas as possiveis expe- riéncias temporais. E possivel confirmar isto tanto formal quanto materialmente. Formalmente, as categorias ou conceitos elementares (experimen- taveis) ordenam os processos temporais nas mudangas do homem e do seu mundo de forma tal que elas aparecem em um contexto que (tendencialmente) chega até ao presente e faz, antecipar o fu- turo, de conformidade com as experiéncias. Antropologicamente, a experiéncia temporal fixa-se como histérica quando se relaciona em linha direta com os pontos de vista que os autores ¢ os destina- larios do conhecimento historico consideram como decisivos para sua identidade. Por meio dessa referéncia histérica acontece algo com os pontos de vista dos sujeitos do conhecimento histérico: eles passam a ser tratados de forma comunicativa. Certificam-se sobre as histérias os que comunicam entre si a solidez temporal de seus pontos de vista na vida presente, Esta certificagao € cientifica ua medida em que for determinada pelas regras de uma argumentagao orientada pelo consenso. Consenso, na comunicacao sobre pontos de vista historicamente confirmados, quer dizer o reconhecimento reciproce da diversidade, ¢ com iste o reconhecimento mutuo das identidades, respectivamente atribuidas a partir de pontos de vista diversos. A antropologia historica teérica deve assim categorizar a experiéncia temporal como histérica, de modo que ela possa fun- cionar como meio da formag%o do consenso na luta social atual pelo reconhecimento. “Humanidade”, como critério normativo da categorizagdo da experiéncia historica, sintetiza esse principio do reconhecimento. Quais as conseqiiéncias desse ponto de vista para o sistema de categorias dos universais histéricos ndo posso desenvolver aqui em detalhe, porque extrapolaria o ambito de uma teoria da histéria. Po- dem ser indicadas, todavia, algumas das condigdes que uma antro- pologia histérica teérica deveria preencher, se quiser corresponder aos principios determinantes do pensamento histérico que a teoria da histéria elabora, pela reflexdo, e que exprimem sua pretensio de ser racional. 70 Jorn Rusen A qualificago histérica da humanidade, mencionada acima,’” que elabora a determinagdo da espécie humana a base da experi- éncia histérica e nao da biolégica, precisaria desenvolver-se dentro de um sistema de universais. “Humanidade”, como determinagao de espécie, nfo surge na forma de uma histéria objetiva, que (de- sumanamente) desperdigaria sua particularidade na universalidade da espécie. Ela é situada, como fator constitutive da ago ¢ do so- frimento humanos, onde sua mobilidade temporal por si propria en- gendra sentido. E por esse sentido que 0 pensamento histérico tem que se empenhar, se ndo quiser inserir a experiéncia do tempo passa- do em um contexto de sentido com o presente (de modo orientador, apontando para o futuro) de maneira objetiva e nao arbitraria. (Aqui esta incluido o trago hermenéutico fundamental de todo pensamento histérico.) O que iste quer dizer materialmente? O pensamento his- torico sé pode assumir sua fungZo nos processos sociais de formagao da identidade humana se interpretar a experiéncia do tempo passado categorialmente, de maneira que essa experiéncia possa ser inserida no horizonte de referéncia dos entendimentos miituos que geram a identidade dos homens. Os critérios de sentido determinantes desses horizontes devem se transformar cm categorias da experiéncia his- torica. “Humanidade” € por si propria um critério diretor desse tipo. Na sua verso constitutiva de ciéncia, ela delimita empiricamente o Ambito da experiéncia histérica no campo de toda articulag’io pos- sivel da vida humana pratica, seus pressupostos, suas condigdes, circunstincias e conseqiéncias. Como critério normative da am- pliagdo de perspectivas, ela regula a formagao do consenso acerca do significado das mudangas temporais no passado do homem e de seu mundo para o uso pratico na vida presente e para a projec3o de perspectivas de futuro. Por fim, enquanto supra-sumo da qualidade tacional da vida humana pratica, fornece cla também o ponto de vista determinante para que os processos temporais da vida humana pratica tenham sentido. Como critério de sentido desse tipo, “humanidade” deve ser ainda elaborada, no ambito de uma antropologia historica, para “CE p. 55. “CET, p. 142 ss. (ed. bras.]. Reconstrugao do passado 71 funcionar como construto categorial dos pontos de vista determi- nantes da experiéncia temporal do passado. A determinagae racio- nal da humanidade — como capacidade humana de comunicagao argumentativa, dirigida ao consenso —, decisiva para a constituic¢ao da histéria como ciéncia, adviria a fungdo de idéia regulativa. Nas mudangas temporais do homem ¢ do seu mundo, 0s processos de entendimento comunicativo devem ser identificados ¢ ponderados como chances racionais da vida humana prdtica. Isto nao quer di- zer que as determinantes racionais do conhecimento histérico na realidade histérica seriam apenas copiadas, como se a experiéncia histérica meramente ecoassc a pretensiio de racionalidade do co- ahecimento histérico (como em Hegel, em que a historia aparece racional aquele que a vé como racional).” Pelo contrario, a expe- riéncia histérica deveria ser categorizada de tal maneira que nela aparecam os tragos daquela qualidade humana, que o pensamento histérico, na sua verso especificamente cientifica, reclama para si com suas pretenses de verdade. Assim, $6 para citar um exemplo: na andalise da ordem sincré- nica da experiéncia histérica, as relagdes categoriais entre trabalho, dominagao e cultura ndo podem ser ordenadas arbitrariamente, mas 1m de ser articuladas de tal maneira que a socializago humana pos- sa ser interpretada como a luta dos sujeitos pelo reconhecimento mi- tuo. O potencial racional ativo na socializagao humana deveria ser legivel na autoproducdo cultural do homem (a0 menos como possi- bilidade). “Dominag4o”, por exemplo, apareceria, ent&o, sempre a juz de sua legitimacao, ou seja, como dependéncia do homem de homens, para os quais o elemento “consenso” seria constitutivo (a0 menos como possibilidade).*" Isto naturalmente ndo quer dizer que experimentar a dominaco deva ser tornado legitimo por si e que a histéria sempre legitime o status quo. Pelo contrario: diz-se que essa experiéncia, 4 luz da caréncia de legitimagao fundada no critério © CEG. F. W. Hegel, Die Vermunft der Geschichte, ed. por }. Hoffmeister, Hamburg, 1955, p. 31. * Maiores desenvolvimentos em J. Risen, Geschichte als Aufilirang? Oder: Das Dilemma des historischen Denkens zwischen Herrschaft und Emanzipation, Ge- schichte und Geseilschafi, 7, 1981, p. 189-218. 72 Jorn Risen do consenso, deva ser posta em evidéncia ¢, com isso, também ¢ sempre, sujeita a critica, Conseqtientemente, as mudangas tempo- rais, sob as condi¢des da vida humana pratica, como viabilizadoras de chances (positivas ou negativas) de reconhecimento, precisam ser cognosciveis diacronicamente como processos nos quais a busca por reconhecimento é tida como o impulso elementar e geral do agir humano em quaisquer circunstancias. Com base em tais categorizacdes, a experiéncia histérica apa- rece ent’o como manifestagio de como o homem realiza sua his- toricidade no agir e no sofrer, e de como essas realizagdes podem ser tomadas como manifestagdes de humanidade com as quais pode ser relacionada sua concepgio normativa (reconhecimento comu- nicativo pleno) tanto positiva quanto negalivamente, afinmativa como criticamente. Na relacdo positiva, a ciéncia da histéria colo- caria as esperan¢as e as expectativas do seu presente no plano da experiéncia. A experiéncia lhe concederia uma especificagdo tem- poral c matcrialmente definida, uma dircgao temporal concreta. Ela poderia, por exemplo, pela rememoragio dos processos que assegu- ram institucionalmente as chances de reconhecimento, fazer conhe- cer riscos de regressio e defender o que foi conquistado. Na relagao negativa, poderia potenciar esperangas ¢ expectativas, indicar as restrigdes 4 institucionalizagdo praticada, até agora, das chances de Teconhecimento, identificar as tendéncias para a superagao de tais restrigdes ¢ estimar as chances de futuro 4 vista dessas restrigdes ¢ de seus motivos. B nessa forma que © pensamento histérico, com suas pretensdes de ampliar e realizar as chances racionais nos pro- cessos de formacao da identidade por meio da consciéncia histérica, se justificaria por meio da experiéncia historica. Nessa forma, 0 pen- samento histérico ndo se submete cega ¢ afirmativamente as marcas do vencedor nem catapulta a razo (como forma da vida pratica), cega ¢ criticamente, para além das manifestagdes histéricas. Ficam assim indicadas as possibilidades e os limites de uma antropologia histérica teérica como abarcamento da histéria como um todo. Inevitavelmente surge a pergunta acerca de como se passa da possibilidade a realidade, da apreensao tedrica da totalidade do histérico 4 reconstrugdo de contextos histéricos reais nas histérias Reconstrugdo do passado 73 particulares, ¢ acerca de sc ¢ como s¢ procede tcoricamente nesse caso. Esta pergunta pode ser formulada assim: Se as teorias histd- Ticas — como construtos narrativos — tém um papel importante no conhecimento histérico, que se aplica a experiéncias temporais reais e leva a hist6rias particulares, como é que se passa de uma antro- pologia histérica geral a estrutura teérica de tais construtos? Se a teoria geral da histéria ndo desempenha papel algum na construgio (orientada pela teoria) de histérias, ent4o teria apenas fungdes mar- ginais no 4mbito de uma teoria da histéria? Dessa forma no valeria a pena o esforgo de uma apreensio tedrica e poder-se-ia deixar tran- qiilamente o conhecimento histérico, seus conceitos clementares ¢ seus pressupostes fundamentais por conta da intuig&o pré-tedrica dos pesquisadores. O que acontece, porém, é justamente o contrario. Nos cons- trutos teéricos das histérias baseadas na experiéncia, os universais histéricos tém um papel muito importante (por exemplo, o conceito de progresso na historiografia do Iuminismo ou as representagdes das forgas econédmicas elementares da mudanga social na ciéncia contemporanea da histéria). Como é que isto acontece? A passagem do esbogo da suma de todas as histérias possiveis para as determi- nagées conformadoras das histérias reais esté sempre presente ja na apreensdo tedrica do todo da historia. O que torna tais apreensdes Plausiveis, que critério funciona em caso de divida quando é neces- sario escolher entre apreensdes concorrentes? E a experiéncia tem- poral do mundo, isto ¢, a experiéncia do presente, que toma plausi- veis sistematizacdes categoriais gerais da experiéncia histrica, e é também ela que conduz, da apreensio da histéria como um todo de historias possiveis, narraveis com sentido, ds interpretagdes tedricas de histérias reais. Aexperiéncia do presente conduz da histéria possivel 4 historia Teal. Ela introduz o tempo real na rede dos universais histéricos, tecida sistematicamente. E com ela que essa rede produz também Tepresentagdes dos processos temporais reais. As representagdes de continuidade, decisivas para as constituigdes de sentido da narrativa histérica, concretizam-se, a partir dos universais da antropologia his- térica, mediante a experiéncia temporal do presente, predominante. 7 Jorn Risen Constroem-se 4 luz de universais histéricos, por exemplo, pe- riodizagées gerais a partir de experiéncias do presente do tipo “nao- mais [ocorrendo]” ou “ainda-ndo [ocorrendo]”, que tornam proces- sos temporais cognosciveis como histéricos, Os universais histéricos tecem, igualmente, com as experiéncias temporais do presente, uma rede de perspectivas teéricas que capturam as experiéncias tempo- rais do passado. Com o fito de orientar, estas vém a ser relacionadas narrativamente ao presente de maneira tal que produzem uma pers- pectiva de futuro como diretriz do agir. Essas referéncias da antropo- logia histérica ao presente (que ainda se encontram em um nivel de abstracZo muito alto) introduzem tempo real, uma cronologia preci- sa, na rede categorial de interpretagdes gerais: a partir do agora, um “ndo-mais” e um “ainda-nao”. Isto nao se refere apenas, nem mesmo principalmente, a cronologia das determinagGes temporais externas (da natureza), embora naturalmente represente um momento incon- tornavel de estruturagdo da relagao dos universais historicos 4 expe- rigucia, Vista porém simplesmente em si, uma cronolugia de dadus fisicos nao é histérica: as datacGes feitas por ela nao sao histéricas, porque lhes falta a referéncia constitutiva 4 dimensao de sentido em que se forma a identidade humana. Sem o entrangado dos universais histéricos, que estrutura temporalmente essas dimensdes de senti- do (tempo pensdvel e experimentavel como sentido), a cronologia das datas fisicas no faz sentido. S6 por meio desse entrangado os processos temporais naturais (mareados por dia, més ¢ ano) transfor- mam-se em tempo histérico. 86 nele se constituem as épocas como grandezas ordenadoras dos processos temporais, mediante as quais 0 proprio presente pode ser caracterizado como processo temporal. Por recurso ao contexto sistemdatico dos universais da antropo- logia histérica consegue-se distinguir, na vida pratica presente, a ex- periéncia concreta de “nunca-mais” do passado e do “ainda-nao” do futuro. E nesse contexto que pode elaborar a representacao concreta, material, da continuidade, com a qual se pode elaborar, sistematica e metodicamente a cxperiéncia temporal do passado. Tais representa- ges da continuidade abrangem tendencialmente todo o campo das mudan¢as temporais pensdveis como histéria. Elas 0 centram, pois, nas experiéncias presentes das mudangas temporais, de modo que Reconstrucdo do passado re) estas Ultimas sejam situadas de forma geral em processos temporais que englobam passado e futuro, com o que é possivel representar cursos de acdo repletos de experiéncia ¢ de expectativa. E essa relac3o das antropologias histéricas 4s experiéncias do presente (que por sua vez, naturalmente, j sio mediadas teorica- mente ¢ determinadas por pontos de vista normativos) que concreti- 7a a apreensao tedrica da experiéncia histérica. O olhar histérico tor- na-se, com esse procedimento, parcial. Na medida em que, a partir das experiéncias do presente, so trazidos a baila contetdos gerais predominantes, que dizem respeito a todos os que vivem numa mes- ma época (por exemplo, o avanco da tecnologia de guerra por meio de armas nucleares ou as revolucdes bioldgicas na agricultura), pro- duzem-se processos temporais como representa¢ées de um processo global articulado, de uma tendéncia geral, de um desenvolvimento abrangente. Ela ainda ndo tem a forma de uma historia narravel, mas pré-estrutura tais histérias, ao determinar o curso dos processos vemmporais que devem ser claborados como historias, se quiserem ser conforme 4 experiéncia (do presente) e eficazes como orienta- go. Quanto mais se parte dos contetidos concretos das experiéncias atuais da vida pratica, tanto mais s¢ destaca, sobre o pano-de-fundo das representacdes gerais dos processos temporais, 0 arcabougo teé- tico de histérias parciais — teorias hist6ricas propriamente ditas. Fungiées das teorias histéricas As teorias histéricas sdo construgSes de processos temporais, que servem de fio condutor para as histérias. Elas tém por base representagdes gerais dos processos temporais, que sdo obtidas ao se preencher um sistema de universais histéricos com experiéncias do presente altamente generalizadas. As representagdes dos pro- cessos temporais aparece como uma periodizacao geral ou como Tepresentagdes do fio condutor do desenvolvimento histérico. Po- dem ser elaboradas como teorias da evolugao social. Exemplos co- nhecidos so os teoremas do materialismo histérico ou a teoria de Max Weber da desmistificagdo e da racionalizagdo universal. Tais 76 Jorn Risen teorias adquirem a posi¢ao singular de status intermedidrio, entre os universais histéricos de uma antropologia histérica te6rica por um lado, e o construto teérico de historias parciais reais, ou seja, teorias histéricas em sentido restrito, do outro. Correm sempre, por isso, 0 risco de serem objetivadas como construgdes de uma tnica histéria universal, abrangendo todas as historias parciais concretas, ou entdo de se perderem no tempo nenhum das estruturas abstratas. Nem por isso elas s4o desnecessdrias. Elas so o elo argumentativo necessario entre os universais da antropologia histérica que demarcam (“defi- nem”) o campo da experiéncia temporal, interpretando as experién- cias histéricas, e os quadros tedricos de referéncia da interpretagao histérica, com os quais determinadas experiéncias temporais do pas- sado sao elaboradas e atualizadas. Nao se analisa aqui seu status tedrico em separado. O impor- tante é fazer apenas ver que as teorias encaminham a experiéncia temporal do presente a via da interpretacio historica. Elas canalizam as experiéncias do presente para o arquivo da lembranya, av eluborar aexperiéncia atual da mudanca do homem e de seu mundo, entre um. “nunca-mais” e um “ainda-nao”, na representagdo gera] de um pro- cesso histérico. Com esta representacdo, a lembranga da mudanga passada pode ser mobilizada e¢ relacionada ao presente. Teorias histéricas séo elaboragdes dessas representages dos processos sob a forma de construgdes de processos particulares. O tipo, a medida ¢ a dimens&o da determinagdo dessa singularidade dependem de que experiéncias temporais particulares do passado sejam empregadas e atualizadas natrativamente. Assim, por exem- plo, a teoria da modernizagao da feig¢do concreta a uma teoria geral do progresso, tendo em vista a experiéncia presente propria das tensdes entre os paises industrializados ¢ as nagdes em desenvolvi- mento.*' Essa teoria tem por base uma representagao do processo temporal, na qual determinada experiéncia do presente é generali- zada como diretriz dos processos histéricos. De que representagao se trata? A de que o pensamento tecnolégico da otimizagio dos meios (racionalidade de fins) se impde a todas as determinagdes de 51H-U. Wehler, Modernisienmgstheorie und Geschichte (8). Reconstrucao do passado 77 sentido predominantes no agir humano, e a de que seus vinculos com a tradi¢ao, assim como a racionalidade de valores nela pre- sente, desaparecem. Estabelecida a relac&o dessa diretriz com as tensSes concretas entre as sociedades altamente industrializadas (sobretudo no Ocidente) ¢ os paises em desenvolvimento, entio resulta o modelo basice da teoria da modemmizag4o, que pode ser elaborado como referéncia interpretativa da histéria da Idade Mo- derma (0 que, de fato, j4 ocorreu intimeras vezes). Que nessas concretizagGes os pontos de vista normativos tam- ‘bém tém um papel importante, fica claro j4 no fato de o direcio- namento mencionado (no exemplo da teoria da modernizacdo) ser F posto como progresso. Com essa qualificagéo normativa, a teoria da moderniza¢ao estabiliza a identidade cultural das sociedades in- dustriais do Ocidente {e langa naturalmente também um desafio as outras culturas, 0 que torna agudo o problema da objetividade por consenso).” Como outro exemplo de como se pode obter, a partir de pers- pectivas gerais de interpretagio dos processos temporais de mu- dancga do mundo humane, construtos de evolugées histéricas parti- cularcs, gostaria de mencionar novamente a interpretagdo da ética protestante por Max Weber. Ela pressupde uma antropologia histé- rica que constitui a historia de forma genérica na intencionalidade, vinculada a interesses e formada pela interpretagio, da socializagio humana. Essa antropologia é aplicada 4 experiéncia predominante atual do sistema capitalista da economia e da burocracia, produ- zindo — como representagdo geral do processo temporal — a conti- nuidade abrangente da racionalizagao ¢ da desmistificagtio. Weber introduz nesta representag4o a questi (decorente das normas da subjetividade burguesa tradicional) das chances da liberdade hu- mana, destilando, por meio dela, os contextos genéticos das formas modernas de vida e atribuindo-thes sentido religioso. Ele elaborou Para esse problema da objetividade por consenso, cf. J. Risen, Die Kraft der Erinnerung im Wandel der Kultur. Zur Inmovations- und Emeuerungsfunktion der Geschichtsschreibung. In: B. Cerquiglini / H. U. Gumbrecht (Ed.), Der Diskurs der Literatur- und Sprachhistorie, Wissenschafisgeschichte als Innovationsvor- gabe, Frankfurt, 1983, p. 29-45. 78 Jom Rasen dessarte um questionamente histdrico, teorizavel via sociologia da religiao, mediante o qual sua famosa tese poderia ser testada empi- ticamente.** Nao afirmo que Weber tenha de fato procedido to “dedutiva- mente” — esta é uma questdo de sua biografia —, mas apenas que sua tese ganha assim um perfil de teoria da histéria, cujo significado, conferido pelo proprio Weber (e nao sé por ele), s6 pode ser tornado piausivel a luz de tal construto teérico. As teorias histéricas sao referéncias para perguntas ou constru- tos de hipéteses com os quais é possivel apreender estados de coisas empiricos. Elas fornecem fios condutores de historias, que séo cria- das e tecidas por si mesmas, de como que se elabora e apresente, a partir delas, mediante argumentagao fundante, a estrutura de sentido de uma histdria. Isso pode ser precisado na dtica do esquema de uma explicacao narrativa. O contexte explicativo da relacdo tem- poral entre t, ¢ t, —na qual, no tempo t,, S passa pela situagao G, de modo que § deixa de ser F ¢ passa a ser H — € esquematizado pela narrativa. De que forma isso se dé? Tal ocorre porque uma teoria histérica qualifica o periodo estudado de maneira que S, com as suas modificagées F, G e H, apareca como caso particular de uma evolu- ¢&o genérica (por exemplo: o imperialismo alemdo aparece, 4 luz de ‘uma teoria historica do imperialismo, como a realizagao particular de uma tendéncia evolutiva dos Estados de determinado nivel de desenvolvimento cm determinada época). Para o cardter histérico de uma teoria abrangente desse tipo (“covering”), que explique narrativamente o fenémeno, é decisivo que ela no trate o estado de coisas de uma forma abstrata, olhando o fenémeno a ser explicado apenas no que tenha em comum com fendmenos semelhantes. Com esse procedimento, a teoria 0 apre- sentaria apenas como “caso de ...”. Pelo contrario, as caracterizacgoes 3M. Weber, Gesammelte Aufsdtce zur Religionssoziologie, v. 1, Tubingen, 1922. Acerca da discussio sobre a tese weberiana da rela¢Ao histérica entre capitalis- mo € protestantismo, cf. M. Weber, Die protestantische Ethik,'v. 2: Kritiken und Antikritiken, ed, por J. Winckelmann. Minchen/Hamburg, 1968; C. Seyfarth/W. M. Sprondel, Seminar: Religion und gesellschafiliche Entwicklung. Studien zar Protestantisnus-Kapitalismus These Max Webers. Frankfurt, 1983, Reconstrucao do passado 79 abstratas da teoria devem ser utilizadas também para revelar a parti- cularidade de cada fendmeno. (Era isso que Max Weber queria dizer ao diferenciar com rigor o tipo ideal, como componente essencial de uma teoria histérica, da nogao de género).** Os fenémenos aparecem 4 luz da teoria, que os ordena em processos abrangentes ¢ os torna compreensiveis, a partir desses processos, justamente nao apenas como “um” caso, mas “um caso particular’. Assim, por exemplo, 0 imperialismo alemao pode ser caracterizado com a particularidade do “atraso”, quando se recorre a interpretagdes tedricas da época e de seu desenvolvimento. A teoria histérica n&o suprime a contingén- cia dos processos que interpreta, mas a destaca ¢ ihe da visibilidade, ao indicar com a maior precisdo possivel a conjuncao de circunstan- cias, sob as quais as mudangas estudadas ganharam perfil préprio. Seu desempenho especifico, seu ganho argumentativo com relagdo a descriciio de senso comum das mudangas, reside no fato de ser ela que elabora os recursos conccituais, com os quais (a) se caracteriza cur precisdo as respectivas conjungdes determinamtes, (b) se cons- tata sua natureza no processo temporal abrangente e sua relagao com outros fendmenos (semelhantes) do mesmo periodo, e (c) se identifi- ca os fatores decisivos nelas atuantes. Como € que isso acontece? O processo em questdo, que S entre t, et, se modificou de F em H, é projetado para o plano do conheci- mento tedrico acerca de mudangas de mesmo tipo (ou semelhante) e do mesmo periodo. Trata-se entdo nao mais deste S particular, mas de um estado de coisas do tipo de S (por exemplo, socieda- des com uma determinada estrutura socioeconémica, constituigdes de um determinado tipo), em fungao do que F e H aparecem sob o Angulo de caracteristicas estruturais. Essas determinagdes nao abstraem do tempo de que se esta tratando, mas esse proprio tem- Po passa a ser caracterizado genericamente no ambito de teorias telativas ao desenvolvimento e 4 época. Nesse plano tedrico, Get, (na forma de um contexto complexo de desenvolvimento), passam a valer como perspectivas aplicaveis ao empirico. Eles esclarecem os dados das fontes de tal forma que a pergunta por que S, entre t, *M. Weber, Gesammelte Aufsdtze zur Wissenschafislehre (4), p. 20 ss.

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