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Oedipus Politicus 0 PARADIGMA FREUDIANO DAS RELACOES SOCIAIS' José Brunner QUE TEM 0 AMOR A VER COM ISSO? Numa nota de rodapé em Psicologia das massas e andlise do eu, Freud cita em tom aprovador um simile de Schopenhauer que ilustra o problema das relagoes sociais com a imagem de um bando de porcos-espinhos que chegam bem perto uns dos outros, num dia frio de invemno, para se aquecer. Ao se aproximarem 0 bastante para sentir o calor uns dos outros, eles também se espetam com seus espinhos —e tomam ase afestar. O frio volta a aproximé-los, porém seus espinhos mais uma vez os incitam a se separar. E assim, diz Schopenhauer, ficam indo e vindo até descobrirem “uma distancia média em que possam viver da maneira mais tolerivel”? A inevitivel ambivaléncia em relagio & existéncia do outro esti na base do pensamento social: os outros so necessirios & sobrevivéncia fisica e afetiva de cada um, uma vez que proporcionam a cooperagao, a protegaio, a satisfagao e 0 amor buseados. Ao mesmo tempo, contudo, sua existéncia também é vivida como uma provagio, jé que eles podem constituir uma ameaga ou um fardo, impondo exigéneias e cerceando a liberdade. Como enfatizou Freud em O mal-estar na cultura, as consideragdes utilitaristas do interesse e da conveniéneia nao sao su cientemente fortes para superar o que ele chamou de “*hostilidade miitua priméria dos seres humanos” E que, embora reconhecendo que as pessoas adquirem valor lumas para as outras ao trabalharem juntas, ele afirmou que nem mesmo “as vantagens do trabalho em comurn as mant8m tinidas”.+ Em suas palavras: O clemento de verdade que hi por tris disso tudo, e que as pessoas se dispoem a ‘desmentir, é que os homens nfo so eriaturas gents que querem ser amadas e que, ‘quando muito, podem defender-se quando atacadas; ao contrrio, io eriaturas em ccuja dotagio pulsional figura uma parcela poderosa de agressividade. Como resultado, o semelhante & para eles no apenas um auxiliat ou um objeto sexual 6 anes : ‘em potencial, mas também alguém que thes desperta a tentagdo de satisfazerem \ nee ee homini hupusS Assim, faz-se necessaria uma forga capaz de superar a hostilidade priméria entre as pessoas e de uni-las, apesar dela. Qual poderia ser, portanto, a forga que vincula ‘os individuos numa massa? Segundo Freud, essa forca é 0 amor. Para ele, o amor constituia, simultancamente, a base da autoridade, seu instrumenio e seu efeito, Assim, Freud apresentou uma imagem complexa da inter-relagdo do amor ¢ da autoridade em Psicologia das massas e anélise do eu, afirmando que “as telagdes amorosas... constituem a esséncia da alma das massas [Massenseele]”.* Em suas palavras, “Quando um individuo renuncia a sua singularidade num grupo e deixa {que os outros membros o influenciem através da sugesto, fica-se coma impressiio de que ele o faz. por sentir necessidade de estar em harmonia com os outros, € nio em oposigiio ales, de modo que talvez, afinal, ele o faga ‘ihnen zu Liebe"”.? Como Freud presumiu que os seres humanos so movidos por,uma hostilidade miitua priméria, foi-the preciso explicar como poderia surgir esse amor no grupo. E ele © fez asseverando que o lago que vincula entre si os membros do grupo deriva da submissio deles a uma figura paterna; € por compartilharem 0 amor pela mesma figura paterna que eles se sentem parecidos e préximos uns dos outros.$ Como sugere esse exemplo, Freud analisou a dinamica afetiva das relagdes sociais pela perspectiva do “complexo de E-dipo”, assim denominado com base no antigo drama grego de Edipo rei, no qual o protagonista mata o pai e se casa com amie, sem saber que o faz. Como escreveu Freud a seu amigo Wilhelm Fliess em outubro de 1897: “A lenda grega capta uma compulsdo que todos reconhecem, pois cada um pressente em si mesmo sua existéncia. Cada [pessoa da platéia] ja foi, um dia, um Edipo em potencial na fantasia...” Para Freud, todas as relagdes sociais, privadas ou piblicas, tém em comum um irago tipico ediplaino oculfo que subjaz a suas diversas manifestagies. Fle Tomou isso que postulou como Aiiclé0 edipiano inconsciente das relagdes sociais como 0 ponto de referéncia maximo da analise social, acessivel unicamente a investigagao psicanalitica."° Assim, ja no fim da vida, ao recapitular suas idéias no Esbogo de psicandlise, Freud declarow que, mesmo “que a psicanilise ndo possa gabar-se de nenhuma realizagao sendo a descoberta do complexo de Faipo recalcado, essa descoberta, por sis6, dar-Ihe-ia diteito de ser incluida entre as preciosas novas conquistas da humanidade”.!! Embora os temas edipianos ja se houvessem tornado centrais na teorizagao de Freud em 1897, ele empregou a expressio “complexo de Edipo” pela primeira vvez.em 1910, a0 apresentar a combinagio do desejo sexual pela mae com 0 ddio rivalizante a0 pai como o “‘camplexo nuclear” de todas as neuroses.!? E embora, em 1920, tenha declarado que o complexo de Edipo era “a pedra de toque que distingue os adeptos da psicandlise de seus adversirios”, Freud nunca fez uma 18 Jon ean exposiglo sistematica e peremptoria de suas caracteristicas em nenhuma obra isolada.!? Ao contririo, sua reflexio sobre 0 complexo de Edipo passou por diversas etapas, nas quais ele foi desenvolvendo e complicando cada vez mais 0 ‘modelo original simples das relagdes sociais nas esferas privada e piblica."™ ‘A presente discusstio do conceito freudiano do complexo de Fdipo e de suas ramificagdes politicas se da em trés niveis, Num deles, elucido o que Freud quis dizer com essa que constitui, provavelmente, a mais conhecida de suas eategorias teéricas. Em outro plano, mostro que suas idéias sobre as relagdes sociais — tal ‘como encontradas em sua teorizagao sobre ocomplexo de Edipo — fornecem uma intrigante percepgio das ambivaléncias e da dialética inerentes a todas as relagbes sociais. Por tiltimo, afirmo que a compreensio freudiana das relagées sociais no ‘io da familia foi fundamentalmente politica, uma vez que ele concebeu a familia ‘do apenas como uma instituigo social que d4 margem & ambivaléncia afetiva, mas também como uma arena de lutas pelo poder. O que torna politica uma teoria das relagdes sociais nio é sua referéncia ao mbito puiblico, aos partidos ou aos ‘governos, mas seu interesse pelas estruturas e dindmicas do poder e da autoridade. Allis, os pensadores politicos, desde Plato até hoje, interessaram-se no s6 pelo aspecto piblico ou governamental do dominio e da dominago, mas também pelas dimensdes de poder e dominago que esto implicadas em todasas outras relagbes sociais, inclusive as da Um Grupo be TRES Permitam-me iniciar meu exame do paradigma edipiano de Freud por uma leitura atenta dos primérdios da vida: ‘A ctianga de peito ainda ndo distingue seu eu do mundo extemo como fonte das ssensagdes que fluem para ela. Aprende a faz8-10 aos poucos... admirada com © fato de que algumas fontes de excitago, que mais tarde reconheceri como os {rglos dle seu préprio corpo, podem dar-Ihe sensagdes a qualquer momento, 20 [passo que outras fontes Ihe escapam de tempos em tempos — dentre elas, a que ela deseja mais do que todas, o seio matemo —e s6 reaparecem em decorréncia deseus gritos desocorro, Dessemodo, pela primeira vez um “objeto” écontrastado, & \com o eu sob a forma de algo que existe “do lado de fora” © que 86 & forgado a parecer mediante uma ao especial Como vemos, o eu — termo com que Freud designa 0 agente mental da in- dividualidade racional ¢ consciente — no existe desde sempre; tem que se desenvolver através da telagio com um outro preexistente: a mae, Para Freud, em outras palavras, © conceito coerente de eu é como que indiretamente adquirido, em fungo de um conceito da alteridade. A seu ver, além disso, o eu do bebé, & ‘medida que este se conscientiza de ser separado e ter limitagdes, 6, “antes e acima de tudo, um eu corporal”.!6 Ele surge quando o bebé percebe que os seios da me ecipus Pocus 9 nio esto inteiramente sob seu controle, como havia imaginado a prinefpio, porque * pertencem a uma outra pessoa, Como resultado de sua percepgdo da alteridade dos seios, o bebé toma-se ambivalente em relagio a eles. De acordo com Freud, o bebé tanto procura devorar os seios da mae quanto receber deles o alimento, para q) éles sejam “assimilados pela devoragao ..., desse modo, aniquilados como tais”,7 Ao tentar abolir a existéncia isolada dos seios e incorpori-losem si mesmo, o bebé esti almejando resolver sua ambivaléncia diante do poder da mie, isto é, da ccapacidace que ela tem de dar ou reter o alimento com 0 seu corpo. Alm disso, Freud afirmou que a consciéncia emergente do bebé sobre sua dependéncia fisica dos pais acarreta seu primeiro amor, que & dirigido a “mulher {que © alimenta” e a0 “homem que o protege”.!® Se a alteridade © os cuidados despertam amor e agressividade, de acordo com Freud, o amor, por sua vez, erin sentimentos de seguranga ¢ angistia, Em suas palavras, “ser amada por um adulto io dé @ crianga meramente a satisfag3o de uma necessidade especial, mas significa também que ela conseguir o que quer em todos os outros aspectos”.!? Por essa razio, o reconhecimento que a crianga desenvolve do controle dos pais. sobre suas necessidades e desejos também transforma a possivel perda do amor parental numa perspectiva assustadora. Como os filhos temem perder o amor dos pais €0 sentimento de seguranga que Ihe & concomitante, os pais, através da entrega ou da recusa voluntarias de sua afeigo, podem empregar seu amor como um instrumento de dominagao e controle, Desse modo, o sentimento que. crianga tem de depender de outra pessoa “cria as primeiras situagdes de perigo © gera a necessidade de ser amada, que ird acompanhé-la pelo resto da vida" 2° Do conjunto de sensagdes de seguranga e angiistia evocados pelo amorsurge 2 autoridade, Por servir de instrumento de poder, explicou Freud, o amor “toma-se ‘uma fonte importante de autoridade, se no a mais fundamental de todas"?! E, também em suas palavras, “para a crianga pequena, os pais sio, a principio, ainica autoridade e a fonte de todas as crengas. O desejo mais intenso e significativo da crianga, durante esses primeiros anos, é ser igual aos pais (ito é, a0 genitor de seu sexo) e ser grande como o pai e a mac”.?? Menino € Menino Com a instauragio do que Freud chamou de “fase félica”, por volta dos trés anos de idade, o pénis ¢ 0 clitéris tomam-se as principais zonas erdgenas para as criangas. Nessa etapa, a masturbagdo & a forma caracteristica de satisfagao Entretanto, por haver presumido que ela é acompanhada por fantasias com a mie, Freud nio considerou a masturbagao, nesse estégio, uma forma de sexualidade auto-erética.?» Em suas palavras, existem na fase filica, pela primeira vez, “um objeto sexual e um certo grau de convergéncia das pulsdes sexuais para esse objeto”. Freud presumiu que, orjginalmente, a mae constitui o objeto sexual de ambos os sexos, e que nesse periodo sé existe a identidade sexual masculina, sem a Jost Bruner ‘uma correspondente identidade feminina independente, Nessa fase, a antitese se ‘dé “entre ter um drgdo genital masculino © set castrado” 2 Essa diferenga na concepgio que 0s meninos e meninas tém de simesmos, e que Freuclretratou como resultante de sua anatomia, leva a dois caminhos pelos quais se do complexo de Edipo, desse momento em diante, até ser superado. ‘Os meninos desejam a mie, mas percebem sua ligagio sexual exeludente com o pai. Em conseqiiéneia de ameagas de castragao mais ou menos explicitas, proferidas por pais e babs em resposta & masturbagao, assim como da observacio das diferengas sexuais, ante a visio da mudez de uma erianga do sexo oposto, eles criam fantasias referentes & violéncia potencialmente castradora do pai. Sob 0 impacto dessas ameagas reais e imagindtias de mutilagio corporal, a imagem do pai, que se afigura & crianga como o iinico obstéculo a impedir a fantasiada unio incestuosa com a mie, passa por uma expressiva transformagio. Deixa de ser a imagem de um protetor benevolente, que proporeiona seguranca, ¢ se converte na de uma figura primordialmente cerceadora e punitiva, que encarna “todas as restrig6es sociais toleradas a contragosto”.2® Assim, o pai passa a ser odiado como aquela pessoa cuja presenca impede 0 praver e ameaga por fim a qualquer satisfagao do desejo — e que pequeno Edipo deseja ver morta. Entretanto, confrontado coma forca superior do pai, em vez de realizar essa fantasia mortifera, “o eu da crianga afasta-se do complexo de Edipo”.27 ‘Também para a menina, a mie é o objeto original do desejo, segundo Freud. Entretanto, quando percebe que nem ela nem a mae tém pénis, a menina considera 1a mie a responsivel por essa auséncia, responsabiliza-a por sua anatomia decep~ cionante, e se afasia dela, Freud afirmou que as meninas so induzidas a reduzir seu interesse sexual e a ingressar no periodo de laténcia por uma combinagao das ameagas externas — isto ¢, autoridade parental — com um sentimento de humi- Ihagio, decorrente da concepedo que tm delas mesmas como homens castrados. Entretanto, Freud afirmou que, em contraste com os meninos, “as meninas permanecem [no complexo de Edipo] por um tempo indeterminado; desfazem-no tardiamente e, mesmo assim, de maneira incompleta”2* Portanto, enquanto os ‘meninos podem nunca se recuperar por completo de sua angiistia de castragao, as ‘meninas passam a se aceitar como vardes castrados — ou assim supunha Freud. ‘Além disso, em contraste com sua discussio do desenvolvimento masculino, que ccontém comentirios preocupados com os efeitos potencialmente graves da res0- lugdo malsucedida do complexo de Edipo, ele afirmou que “é pouco prejudicial para a mulher permanecer em sua atitude feminina edipiana”, uma vez que isso significa que, “nesse caso, ela escolherd o marido por suas caracteristicas patemnas e se disporé a reconheccr-Ihe a autoridade”.”* De acordo com Freud, os problemas ‘surgem quando as mulheres se recusam a aceitar a autoridade masculina; nesses ‘casos, “aflora a amargura hostil da mulher contra o homem, que nunca desaparece por completo da relagiio entre os sexos e que & claramente indicada nas lutas ena produgio literdria das mulheres ‘emancipadas””.>° pus Polis a Cito décadas depois de proferido esse juizo questionavel sobre o feinismo, nem chega a ser preciso dignificé-lo com uma consideragio séria. O que merece tengo, porém, é o fato de Freud haver retratado os primeirissimos estigios da vida como jé implicando uma dialética de ambivaléneias que decorre de uma > dinamica politica de dominagao e dependéncia, No paradigma freudiano, como vvimos, a dependéncia evoca 0 amor € a agressio, O amor leva a sentimentos de protegao e seguranga, por um lado, e & angistia, por outro, o que, a principio, di origem submissio.e & obediéncia ¢, mais tarde, a esforgos pela obtencao do poder € da independéncia, bem como ao dio e & hostilidade. Eus piaLéricos Freud apresenta 0 eu como algo que se desenvolve nilo apenas em relagio a um outro sujeito conereto ou generalizado — 0 Outro, como gostam de chami-lo, alguns tedricos sociais contemporineos —, mas também em relagdo a0 pai e & ‘mie, isto é,adois sujeitos separados, mas sexual e socialmente inter-relacionados, cada um dos quais assume uma postura diferente perante o terceiro sujeito que_| emerge. Portanto, a visio freudiana considera fundamentalm ngul: condicio social: todo ser humano ingressa num mundo em.que. sempre. jd” existem pelo menos outros dois, relacionados por lagos sociais/sexuais, cuja existéncia é a precondigio de seu proprio ser, Todo ser humano tem pene eee> sua posigdo perante a presenga simultdnea, conflitante mas complemeniar deles, e tem de aprender a lidar com os desejos e angustias, as ilusdes e decepsdes, 0 amor € 0 édio que essa presenga desperta. Como declarou Freud numa nota de rodapé dos Trés ensaios sobre a teoria da sexualidade, “cada recém-chegado neste planeta confronta-se com a tarefa de dominar o complexo de Edipo”.! Ao superar e resolver o complexo edipiano, a crianga — isto 6, tipicamente, o filho vardo — amadurece até um estigio mais adulto e conquista 0 que Freud chamou de “ibertagdo do individuo, a medida que ele cresce, da autoridade dos pais”? ‘A concepedio freudiana de como o filho varlio se emancipa da dominacao paterna merece tum exame mais detido, uma vez que, ironicamente, é considerada ccontingente internalizagao da autoridade paterna. Nas palavras de Freud: “A. autoridade do pai ou dos pais é introjetada no eu, ali formando o niicleo do supereu, ‘que assume a severidade do pai”. Somente ao absorver as normas do pai —que proibem odesejo incestuoso pelamde—e fazé-las suas & que o filho pode tornar-se auténomo. A resolugiio do complexo de Edipo leva a criagao do supereu, nome dado por Freud & instincia intema que impde a lei e emite juizos. Ao administrar e implementar padres morais (ou seja, a0 agir como uma consciéneia moral) que se originaram fora do sujeito, mas que se tornaram parte da concepgio que o filho tem de si mesmo, o supereu pode tornar-se rispido e cruel na perseguigio da culpa da vergonha. Todavia, a agressio do supereu nao precisa ser necessariamente 2 José Brunner derivada da paterna; pais brandos e moderados podem originar uma consciéneia ‘moral severa nos filhos. Freud explicou que, “através da identificagio, [0 filho ‘vario] toma a sia autotidade inatacavel. Essa autoridade transforma-se eno em Seu supereu ¢ se apodera de toda a agressividade que a crianga gostaria de ter exercido contra ela”. Além disso, Freud complicou esse quadro, ao enfatizar que | a“relagio [do supereu} com o eu nio ¢ esgotada pelo preceito ‘Tens de ser assim | (Como teu pai)’. Ela abarea também a proibigéo ‘Nao podes ser assim (como teu \ Pai), isto é, ndo podes fazer tudo 0 que ele faz; algumas coisas sio prerrogativa dele” 35 ‘Como resultado dos perigos e angistias evocados pelo complexo de Edipo, 8 crianga recalea todos os desejos sexuais nas profuindezas do inconsciente por volta dos cinco anos de idade. Coma instauragaio do periodo de laténcia, a radical alteridade interna do inconsciente é lacrada e a oposicio fundamental entre o Prazer, por um lado, eas exigéneias da realidade social, por outro, entrincheira.se nna alma e é aceita como fundamental para a vida humana. A imagem freudiana da dissolugio do complexo de Edipo retrata uma Auftebung dialética do desejo e da autoridade paterna, que & simultaneamente abolida em sua forma original — isto é, conscientemente ou externamente — ¢ reservada e transformada intemamente, ou seja, inconscientemente. 0 filésofo alem@o G.W.F. Hegel usou o termo Auflebung para descrever o resultado dos Processos dialéticos; ele denota a transigo mediante a qual uma coisa é simulta. neamente abolida ¢ conservada, em que um momento afirmativo é preservado ¢ | Gontido em sua negagio. Nesse sentido, odiscurso freudiano sobre o complexo de 'Edipo também delineia estigios de uma dialética politica da obediéncia e da emaneipagdo nos quais a dependéncia leva & autonomia, mas nos quais a autono- mia ndo apenas abole a submissio como também a intemaliza e preserva. Ditoem fermos um pouco diferentes, a crianga, através do complexo de Edipo, aprende niio apenas a abandonar seus desejos diante da autoridade, mas também a lidar com a presenca da autoridade, identificando-se com suas exigéncias. Quando o desejo encontra a oposi¢do da autoridade, a autoridade & internalizaca e se tornn propria do sujeito, A dialética politica acarretada pelo complexo de Edipo tornou-se parte do modelo freudiano de todos os contatos dos individuos com a sociedade © a autoridade. Na visio freudiana do cu e dos outros, nio existem seres humanos simples nem relagdes sociais sem ambivaléncia, Uma multiplicidade de mecanis- ‘mos psiquicos— como o recalcamento e a formagiio reativa — pode transformar, de mancira imprevisivel, um afeto em seu oposto. Assim, ele afirmou, pot exemplo, que “aqueles que, quando criangas, foram os mais pronunciados egoistas podem muito bem transformar-se nos membros mais titeis e abnegados da comu- nidade; a maioria de nossos sentimentalisias, amigos da humanidade e protetores dos animais, evoluiu de pequenos sadicos e torturadores de animais”.® Para Freud, além disso, 0 amor sempre implica também o édio; dai ele haver descrito um Oedipus Polit a mecanismo tipicamente edipiano, que é a identificagdo do fillio com 0 pai, como “ambivalente desde o inicio; com a mesma facilidade, pode transformar-se numa ‘expressio de ternura ¢ no desejo de-eliminagdo.de alguém... O canibal... tem uma afeigdo devoradora por seus inimigos e s6 devora aqueles de quem gosta”.®7 Ja ‘vimos que, numa etapa anterior, ao mamar nos seios da mile, 0 bebé tanto pode querer devori-los quanto se alimentar neles. A visio freudiana das relagdes dos filhos com os pais contraria as idéias piegas referentes a0 eu e aos lagos familiares. Contradiz: também as imagens comuns do sujeito e das relagdes sociais que subjazem a maior parte da teflextio liberal e utiitarista, na qual se pressupdiem eus essencialmente racionais, atomi ticos, transparentes, unos ou estiticos. Na visio de Freud, o eu originalmente nto tem unidade ¢ se desenvolve ao se.cindir da mie, até finalmente incorporar 0 pai. Na dialética do complexo de Edipo ¢ em sua resolugao, algumas fronteiras entre 65 sujeitos se deslocam e outras sio (mentalmente) canibalizadas. Contudo, 0 resultado desses processos de identificagio e intemalizagao & que o pai canibali- zado transforma-se num aspecto essencial e determinante do filho, cuja propria identidade pode depender da presenca internalizada continua do primeiro. Embora as relagdes sociais e a autoridade dos outros possam ser abolidas, em sua forma atual e externa, nem por isso elas so obliteradas. So, antes, transpostas para um ‘campo interno e inconsciente, onde 0 pasado & conservado ¢ continua a ter impacto no presente ¢ no futuro. Portanto, o complexo de Fdipo transforma o pai no arquétipo de todos os portadores da lei e de todas as figuras posteriores cujos atos possam ser inconsci- entemente percebidos como castradores. Ele se torna a imagem prototipica da autoridade, opondo-se aos desejos indomados e andrquicos que se, recusarem a respeitar os limites ¢ as diferencas. E mais, nao apenas nao existem sujeitos auténomos para Freud, como também nao existem unidades edipianas autOnomas. ‘Todo triingulo edipiano faz parte de uma rede que se estende no tempo, remontan- do a geragdes anteriores, € na qual as relagdes sociais do passado munca sto realmente aniquiladas. Como assinalou o psicanalista francés Jean Laplanche: De fato, esquece-se com demasiada freqéncia, ao se falar da relagdo me-filho ‘ou da relagao genitores-filho, que.os pais tiveram pais; eles tém seus"*complexos”, seus desejos marcados pela hisoricidade, de modo que reconstruir © complexo edipiano da crianga como uma situagio triangular, esquecendo que, nos dois vértices do tringulo, cada protagonista adulto é também portador de um pequeno triingulo, eatéde toda uma série de trdngulos interligados, édesprezar umn aspecto cessencial da situagao.** © PAIPOR TODA PARTE Em Totem e tabu (1912-13), Freud transpésas caracteristicas da dinémicaedipiana do terreno privado da familia e do desenvolvimento infantil individual (ontogé~ Py Joe Bruner nese) para os aspectos pablicos do desenvolvimento da humanidade comoum todo (filogénese). Introduziu a perspectiva edipiana filogenética narrando a intrigante histéria de uma “horda primeva” que, segundo ele, teria existido numa era primitiva, na qual as fantasias edipianas eram supostamente realizadas na pritica, Esse mito das origens retraia uma sociedade governada pela forgafisica de um pai Primevo que usava as mulheres que o cercavam para sua satisfagdo sexual exclusiva, castrando os filhos vardes quando estes se atreviam a se tomar seus rivais sexuais. Segundo Freud, os filltos frustrados conseguiram escapar ao controle do pai em algum momento e, movidos por seu desejo incestuoso comum pela mic ¢ pelo ddio comum ao pai, cometeram o parricidio em nome do incesto. Freud acreditava que esse ato teria ocorrido repetidamente nos tempos pré-his- toricos; em sua visio, 08 filhos primitivos dominavam e assassinavam os pais primitivos e, “como canibais selvagens que eram, é escusado dizer que devoravam sua vitima, além de maté-la”.” Nesse ato canibalesco, os filhos realizavam fisicamente aquilo que, segundo Freud, todos os filhos posteriores procuraram alcancar simbolicamente na dissolugo do complexo de Edipo: internalizavam 0 pai, de modo que cada um adquiria parte da forca dele. Depois do parricidio, os filhos perceberam que nenhum deles poderia de fato assumir 0 lugar do pai sem provocar uma guerra de todos contra todos, Foi esse, na mitologia freudiana, 0 comego da civilizagio, que partiu da transicéo de um estado originirio em que a obediéncia era imposta de fora, pela coergao fisica do pai, para uma nova forma de obediéncia, baseada na intemalizagdo das regras. Essa transigdo foi possibilitada por um contrato social feito pelos filhos; eles se comprometeram a renunciar ao despotismo, declarando que “nenhum poderia ou deveria jamais obter o poder supremo do pai, embora fosse por isso que todos haviam lutado” Além disso, 20 exagerarem o poder do pai morto, aribuindo-Ihe dimensdes imaginrias ilimitadas, os filhos ampliaram infinitamente o aleance de sua autori- «dade péstuma, de modo que “o pai morto tomnou-se mais forte do que forao vivo” #! Freud retratou o contrato social como resultante da obedigneia péstuma & autori- dade do pai voltada para seu resgate simbélico,a fim de aplacar os sentimentos de remorso e culpa. Assim, no contrato social freudiano, os filhos nao apenas se ligaram uns aos outros como membros de uma comunidade, mas também fizeram ‘um “pacto com 0 pai” depois da morte dele. A acreditarmos na teoria de Freud, a lembranga do parricidio primevo teria entrado num inconsciente coletivo compartihado por toda a humanidade, que com isso ter-se-ia transformado numa espécie de filho eterno, Em Moisés e 0 mono- teismo, por exemplo, Freud afirmou que “os homens sempre souberam (dessa maneira especial) que um dia tiveram um pai primevo ¢ que o mataram”.43 0 discurso freudiano apresenta essa lembranga inconsciente do assassinato, bem como a culpa inconsciente concomitante, como se fizessem parte de um instinto humano que leva as pessoas a buscarem figuras paternas, temerem-nas e se dips Polis 85 Tevoltarem contra elas. Em Moisés e 0 monoteismo, ele declarou que “sabemos que ha, na massa da humanidade,intensa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, diante da qual ela se curve e pela qual seja governada e, quem sabe, até maltratada,.. Trata-se da saudade do pai, sentida por todos desde a infancia. “4 Na visio freudiana, o pai primevo morto também inspirou a construgao ‘monoteista de uma divindade paterna, Freud afirmou que a religio monoteista vvisou ressuscitar, em escala césmica, a dependéncia ¢ a submissao dos filhos a autoridade patema. Ao imortalizar o pai primevo e entronizé-lo no reino dos céus, © monoteismo anulou a culpa inconsciente universal por seu assassinato, Freud claborou e ampliou diversos pressupostos ¢ implicagdes politicos de seu mito edipiano filogenético em Psicologia das massas e andlise do eu, em 1921, em O futuro de uma ilusio, em 1927, em O mal-estar na cultura, em 1930, em “Por que guerra?”, em 1932, ¢ em Moisés e 0 monoteismo, em 1939, onde recapituloa ‘odo 0 mito da horda primeva, A seu ver, todos aqueles que se tomam autoridades edespertam a obediéneia dos outros — inclusiveas divindades — devem ser vistos como figuras patemnas. Como foi ilustrado nos trechos introdutdrios deste ensaio, Freud retratou a sociedade, como seria inevitivel, como dividida entre as massas/filhos, de um lado, € 08 lideres/pais, de outro. Decifrou conflitos sociais em larga escala como a expressio de um conflitointergeracionalinconsciente subjacente, centrado nas exigéncias de obediéncia das massas/filhos aos lideres/pais°@é relutdncia ou Tecusa das massas/filhos a se submeterem as exigéncias dos lideres/pais, Nesse onflito, Freud tomou sistematicamente o partido dos lideres/pais (embora sempre se opusesse a religiio), pois, como afirmou em O fiuturo de uma ilusio: E somente peta influéncia de individuos eapazes de daro exemplo, ¢reconhecidos ‘pelas massas como seus lideres, que eles podem ser indzidos aexecutaro trabalho ¢ suportar as reniincias de que depende a vida da civilizagdo. Tudo corre muito ‘bem quando esses lideres sio pessoas dotadas de um discernimento superior das exigéncias imperiosas da vida, © que ascenderam a0 auge do dominio de seus ‘desejos pulsionais. Mas existe orisco de que, para ndo perderem sua influéncia, les fagam mais concessdes a massa do que esta thes faz, © entio thes pareca necessirio independer da massa usando os meios de poder de que dispem,*3 Em parte alguma dos escritos de Freud encontram-se exemplos de pessoas que se rebelem contra déspotas por terem tido sua vida ¢ seus bens, seus direitos ¢ seus interesses ameacados ou violados por lideres autocriticos. No discurso freudiano, as rebelides aparecem, invariavelmente, como obra de massas/filhos que recusam obediéncia a lideres/pais por nao conseguirem tolerar as restrigdes que estes lhes impSem. Essa abordagem autoritéria é 0 resultado légico da grade analitica edipiana, que apresenta a submissio ¢ a obediéneia as figuras patemas como nocesséria dexisténcia social e que desconsideraos perigos do autoritarismo. Além disso, a visio edipiana exibe uma clara tendenciosidade patriarcal: cla reduz a « José runner politica a uma atividade de pais e fithos vardes, enquanto relega as mulheres a0 Papel de objetos passivos do desejo masculino. Ao mesmo tempo, entretanto, a obra de Freud contribuiu muito para os métodos contemporineos de desmascaramento dos lideres ¢ de suas posturas 20 chamara atengdo para os desejos, fantasias, medos e angustias inconscientes que fazem parte da natureza humana. Afinal, um dia o lider também foi um pequeno Edipo. Apesar de sua tendéncia autoritiria, o paradigma edipiano de Freud legou ‘um voeabuliio itila pensadores citicos como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse, através do qual os motivos, mecanismos e estratégias ocultos da repressio, da dominagao ¢ da subjugacdo politicas foram revelados e articulados. Ele permitiu 8 conceituagio da sociedade na mente do individuo e a formulagao de criticas & alienagdo, insatisfagdo, a culpa, a vergonha, frustragio, a exploragio e & desigualdade — inclusive a desigualdade sexual. Na verdade, grande parte do ensamento feminista contemporaneo nasceu da analise freudiana da dial sexualidade e da politica, assim como da reagio a essa andlise. ‘AMBIVALENCIA FINAL Em suma, o paradigms edipiano de Freud une a complexidade ao reducionismo ¢; com isso, desperta justamente 0 afeto que procura explicar — a ambivaléncia, Por um lado, ele proporciona um discemimento critico das relagdes sociais reyelando a dialética subjacente a todas as suas manifestagdes e indo buscar a origem dela na dualidade complexa doantagonismo eda complementaridade entre corpo e sociedade, sexualidade e civilizagao, amor e édio, autoridade e autonomia, filhos e pais. Por outro lado, o paradigma freudiano constitui um constructo teérico reducionista, que faz do desenvolvimento masculino a norma, é intensamente falocéntrico e autoritirio ¢ resvala para uma universalizagao mitica. Dai o fato de esta discuss do paradigma edipiano de Freud sobre as relagées sociais ter sido, 40 mesmo tempo, critica e simpética — ou seja, ambivalente. Sem negligenciar suas falhas © preconceitos, tentei mostrar que ainda hoje esse paradigma pode fornecer muito material para a reflexio.

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