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| MITOS DE CRIACAO Marie-Louise von Franz PAULUS re a tet BARN SE SS La ee ee R.A Be Colegao AMOR E PSIQUE © feminino + Aborto — perda e renovagao, E, Pattis + As deusas e a mulher, J. S. Bolen «A feminilidade consciente — entrevistas ‘com Marion Woodman, M. Woodman + Ajoia na ferida, R. E. Rothenberg ~/A'mulher moderna em busca da alma: Guia junguiane do mundo visivel e do mundo invisivel, J. Singer + Aprostitula sagrada, N. Q. Corbett + O medo do feminino, E. Neumann + Os mistérios da mulher, Esther Harding + Variagdes sobre o tema mulher, J. Bonaventure © masculino + Curando a alma masculina, G, Jackson «No meio da vida: Uma perspectiva Jungul- ana, Stein 7 + O pai e a psique, AP. Lima Filho + Os deuses e o homem, J. S. Bolen + Sob a sombra de Satumo, J. Hollis Psicologia e religiao + A doenga que somos nds, J. P. Dourley = Nesia jornada que chamamos vida, J. Hollis + Uma busca interior em psicologia e religiao, J. Hillman Sonhos + Aprendendo com os sonhos, M. R. Galllbach ~ Breve curso sobre 0s sonhos, R. Bosnak + Os sonhos ¢ a cura da alma, J. A. Santord Maturidade e envelhecimento + A passagem do meio, James Hollis, + No meio da vida, M. Stein Contos de fadas ¢ histérias mitolégicas « Aansiedade o formas de lidar com ela nos contos de fadas, V. Kast « A individuagdo nos contos de fada, Marie- Louise von Franz « A interpretagao dos contos de fada, Marie~ Louise von Franz + A psique japonesa: grandes temas e con- tos de fadas japoneses, H. Kawai «A sombra e 0 mal nos conios de fada, M. -L. von Franz + Mitos de criagao, M-L. von Franz + Mitologemas: encarnagdes co mundo invisivel, J. Hollis + 0 Gato, M.-L. von Franz + O que conta 0 conto?, Jette Bonaventure O puer + O livro do Puer, ensaios sobre o arquétipo do Puer Aeternus, J. Hilman + Puer aeternus, M.-L. von Franz Relacionamentos e parcerias + Amar, trair, A. Carotenuto + Eros e phatos, A. Carotenuto + Nao sou mais a mulher com quem vocé se casou, A. B. Filenz + No caminho para as nlipcias, L. S. Leonard + Os parceiros invisiveis: O masculino ¢ 0 feminino, J. A. Sanford + O Projeto Eden — a busca do outro magico, J. Hollis Sombra + Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. Sanford + Os pantanais da alma, J. Hollis + Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann © autoconhecimento e a dimensao social + MeditagGes sobre os 22 arcanos maiores do tard, andnimo + Encontros de psicologia analitica, Maria Elci Spaccaquerche (org.) Psicoterapla, imagens e técnicas psico- terdpicas + Psicoterapia, M.-L. von Franz + Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz + A terapia do jogo de areia, R. Ammann + O mundo secreto dos desenhos: uma abordagem junguiana da cura pela arts, G.M. Furth + No espelho de Psique, Francesco Don- francesco + O abuso do poder na psicoterapia @ na medicina, servigo social, sacerdécio e magistério, A. G. Craig + Ciéncia da alma: uma perspectiva jungui- ana, E. F. Edinger + Saudades do Parafso: perspeciivas psi- or : i + O mistério da Coniuncti ca da individualizagao, E. F. Edinger + Psicoterapia junguiana e a pesquisa contemporénea com criangas: Padrées basicos de intercémbio emocional, Mario Jacoby Corpo e a dimensao fislopsiquica + Dionisio no exilio: Sobre a repressao da ‘emog&o @ do corpo, R. L. Pedraza + Corpo poético: O movimento expressivo em C.G. Jung eR. Laban + Ajoia na ferida ~ 0 corpo expressa as necessidades da psique @ oferece um caminho para a transformagao, R. E. Rothemberg MARIE-LOUISE VON FRANZ MITOS DE CRIACAO PAULUS Ao (CIP) de Catalogagao na Publicagao ( rasileira do Livro, SP, Brasil) Internacional: ee (Camara Brasil ie 1915- ea en Her rego Maria Silvia Mourdo. fi iagéio / Marie-Louise von Franz; t ri Milos de cage efio Paulus 2008 — (Amor e psique) Titulo original: Creation myths ISBN $70-85.349-2056-8 4. Criagéo 2. Mito - Aspectos psiool6gices |. Titulo. I Série CDD-291.24019 03-0861 tdlogo sistematico: trates aa .ctos psicolégicos 291 24019 1. Mitos de criagao : Aspet Jo AMOR e PSIQUE coordenada por Coleco A gon Bonaventure Dra. Maria Elci Spaccaquerche Titulo original Creation myths © 1972, 1995 Marie-Louise von Franz ISBN 0-87773-528-X Tradugdo Maria Silvia Mouro Revisio Valéria Righe Dias Editoragao Linotec Papel Chamois Fine Dunas 70g/m* Impressao e acabamento pres PAULU: 2° edigdo, 2011 © PAULUS - 2003 __ : - o (Brasil) uz, 229 - 04117-0901 Sao Paul — Franc ste 6879-9627 = Tel, (11) 5087-9700 \wwiw.paulus.com.br « editorial @paulus.com.br ISBN 978-85-349-2056-8 INTRODUGAO A COLECAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: 0 seu préprio espaco interior torna-se um lugar novo de experiéncia. Os viajantes destes caminhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagdes psicopatologicas As nossas fe- ridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela 6. Deste modo que poderemos reconhecer que estas feridas e estes so- frimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realizacdo de nossa totalidade. Assim a nossa propria vida carrega em sium sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, nao é 0 espiritual que aparece primei- ro, mas 0 psiquico, e depois o espiritual. E a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen- tido, o que significa que a psicologia pode de novo esten- der a mo para a teologia. Esta perspectiva psicolégica nova 6 fruto do esforco para libertar a alma da dominagao da psicopatologia, do espfrito analitico e do psicologismo, para que volte a si mesma, a sua propria originalidade. Ela nasceu de rene xoes durante a pratica psicoterapica, 2 ete Con ea lidade da psicoterapia. renovar o modelo e a fina e da ps He Hee isa ua existéncia cotidiana, nova viséo do homem na s ees Gueey texto cultural, abrindo tempo, e dentro de seu contexto Cu i i entes de nossa existéncia para podermos reen odera alimentar todos aque- ais alma sdes difer : ee alma. : aaae Be caigels a necessidade de inserir m: em todas as atividades humanas. A finalidade da presente colegao ¢ precisamente Toes tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma cores sacerdotes capazes de entender novamente a linguag da alma”, como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure PREFACIO O texto deste volume decorre de palestras apresen- (adas no C. G. Jung Institute, no semestre de inverno de 1961-62, conforme as transcrigdes de Una Thomas. Andrea Dykes preparou um indice que, para esta edicao, foi revi- sado por Austin Delaney. Quero agradecer a Dra. Vivienne Mackrell, por sua ajuda na revisdo desta edigdo, por seu valioso apoio, e a Sra. Allison Kappes, que efetuou a comparacdo com a edi- ¢ao em alem4o e a digitac&io. Quero também agradecer Kendra Crossen da Shambala Publications, por sua pa- ciéneia e cooperagao. Meus agradecimentos também vao para Princeton University Press, pelas citagdes extraidas do Collected Works of C. G. Jung (Bollingen Series XX), traduzidas para o inglés por R. F. C. Hull e editadas por H. Read, M. Fordham, G. Adler e William McGuire, e pelas citagdes tiradas de Aurora Consurgens; A Document Attributed to Thomas Aquinas on the Problem of Opposites in Alchemy, de Marie-Louise von Franz, traduzido para o inglés por R. F.C. Hull e A. S. B. Glover; para Pantheon Books, de Nova York, pelas citagées de Mircea Eliade em The Myth of the Eternal Return (Bollingen Series XLV), 1954; para o Museum of Navajo Ceremonial Art, de Santa Fé, Novo iL s do Navajo Creation ee ea os registros de Mary C. eelwri- ir era ioie anucen, de renee, pelas citagées che obra de cn Arthur Grimble, A Pattern of Islands, Lee H. Schuman, de Nova Iorque, pelas citagoes Sa ae The Sacred Scriptures of the Japanese, de or eed 1952; e para Doubleday, pelas citagées extrat ae main ducao de Isobel Hutchinson para Festens Gave Eagle’s Gift), de Knud Rasmussen, 1932. México, pelas cttagoe Capitulo 1 O MITO DE CRIACAO Neste livro, tentarei interpretar os motivos que ocor- rom freqiientemente nos mitos de criagdéo. Os mitos de criagdo pertencem a uma classe diferente dos outros mi- los — por exemplo, os mitos dos herdéis ou os contos de fudas — pois, quando sao narrados sempre existe uma . certa solenidade que lhes confere uma importancia cen- (ral; eles transmitem um estado de Aanimo que deixa im- plicita a mensagem de que o que esta sendo dito refere-se aos padrées basicos da existéncia, a algo mais do que o que esta contido nos outros mitos. Portanto, pode-se di- ver que, no que tange aos sentimentos e ao tom emocional que os acompanha, os mitos de criagdo sAo os mais pro- fundos e importantes de todos. Em muitas religides pri- mitivas, narrar 0 mito de criacdo estabelece um ensina- mento essencial no rito de iniciagéo. O mito 6 contado para os jovens iniciados como a parte mais importante da tra- digéo tribal. De muitas outras maneiras também, como veremos mais adiante, os mitos de criacéo referem-se aos problemas mais bdsicos da vida humana, pois dizem res- peito ao significado final, nao s6 de nossa prépria exis- (éncia, mas da existéncia do cosmo inteiro. Como a origem da natureza e da existéncia humana 6 para nés um completo mistério, o inconsciente produziu muitos modelos desse evento. A mesma coisa acontece 9 onde quer que a mente humana se aproxime dos limites do desconhecido. Se, por exemplo, vocé olhar os mapas da antigtiidade, vera que a Grécia aparece mais 0u menos no centro do mapa mas, nas bordas, as coisas tornam-se um pouco distorcidas: a parte superior da Iugoslavia in- clina-se para o alto da Italia e, em seguida, no final de uma regiao conhecida, aparece simplesmente um dese- nho do urdboro, a serpente que come 0 proprio rabo e que, nos mapas antigos, representa 0 oceano. A guisa de deco- ragao, nos cantos dos mapas sao colocadas figuras de ani- mais ou monstros, ou dos quatro ventos. Na Idade Média, a area do mundo conhecido era sempre mostrada no cen- tro, cercada por simbolos abrangentes e, 4s vezes, inclu- sive figuras demoniacas, 0s quatro ventos sopravam na diregao do centro, na forma de cabecga com bocas que so- pravam ou algo semelhante. Esses mapas demonstram ad oculos que, onde quer que a realidade conhecida aca- be, ou seja, quando tocamos a fimbria do desconhecido, af projetamos uma imagem arquetipica. # o mesmo que acontece nos grdficos astronédmicos medievais. Na Idade Média, as pessoas desenhavam to- das as constelagdes que conheciam e, fora delas, 0 cosmo era rodeado pela serpente zodiacal, aquela na qual esta- yam todos os signos do zodiaco; além dela, estendia-se 0 desconhecido. Novamente temos a serpente que morde a prépria cauda, 0 motivo do urdboro, pois esse era o limite do conhecimento consciente do homem de entao. No pe- riodo final da antigiiidade, os primérdios da quimica mos- tram que as pessoas também tinham um certo conheci- mento dos elementos e um limitado conhecimento técni- co, mas, quando era atingido o fim dos fatos conhecidos, eles novamente projetavam essa imagem arquetipica, 0 simbolo do uréboro, para caracterizar a matéria desco- nhecida. Na alquimia, era 0 simbolo da prima materia, ou seja, da matéria original do mundo. A maior parte das indagagoes sobre a origem e a subs- tancia do nosso cosmo ainda nao tiveram resposta; apesar 10 ; lo progresso dos instrumentos técnicos, continuam existindo Pes es desconhecidos. Ha modelos arquetipicos e projecées da ciéncia moderna que discutirei mais adiante, mas conti nuamos sendo confrontados por fatos completamente int: = Kuntes e por teorias contraditérias. Outras civilizagoes ndo foram menos ingénuas que nés, pois também catrart no b raco do desconhecimento e, quando confrontadas por a mistério, projetaram simbolos mitolégicos dos canie: ie oulras coisas, nasceram os mitos de criacdo. a Li. a explicar 0 que significa uma projecdo, gostaria at amar sua aten¢ao para a defini¢do de projecdo apre- sentada por Jung. HA inimeras evidéncias atestandoy © processo da projecao nao foi realmente compreendide, ¢ ue sempre da margem a toda espécie de equivocos de interpretagao. Ao final de Ti, icologi i nia divin e Tipos Psicoldgicos, Jung diz em Projecéo signi, ca a expulsdo de um contetido subjetivo para um objeto; é 0 oposto de introjecdo. Nesse senti- do, é um projeto de dissimilacgao (v. assimilagao) por meee do qual um contetido subjetivo se torna alienado 0 sujetto e, por assim dizer, é incorporado ao objeto. O sujeito se livra de contetidos dolorosos, inconipattvets ao projeta-los, assim como de valores positivos que, por um Ono ou outro — por exemplo, a autodepreciagéo — lhe sao inacessiveis. [Agora, a sentenga que é impor- tante para nos] A projecao resulta da identidade ar- caica entre sujeito e objeto, mas sé 6 corretamente cha- mada dessa maneira quando a necessidade de dissol- ver a identidade com.o objeto j4 se manifestou. Ess: necessidade aparece quando a identidade se Pn i fator de perturbagao, quer dizer, quando a auséncia di contetido projetado é um obstdculo a adaptagdo, eo te. colhimento para dentro do sujeito se tornou désejauel? “G. G. Jung, Collected Works (Pri ba , aI neeton, NJ: Princeton Uni 69), vol. 6, § 783. [digo em portugués, Obras Completas « Zee on 11 As vezes, usamos o termo projegao quando falamos das sociedades primitivas, para dizer que seus mitos e deuses so projecdes de imagens arquetipicas. Isso causa confusdo porque, na sociedade em que esses deuses ainda estado psicologicamente vivos, nado se tornou manifesta a necessidade da retirada da projecdo. Portanto, ainda pre- valece um estado de identidade arcaica. E sé porque nds nao acreditamos, por exemplo, nos deuses da tribo Shilluk do alto Nilo que podemos falar agora de projecdo; mas essa 6 uma aplicacio indireta do termo. Freqiientemente discutimos com os etnélogos que dizem que isso nao é 86 uma projecdo, pois eles viveram com esses povos primiti- vos e, para eles, os deuses séo uma realidade viva; por isso, ndo se pode simplesmente dizer que “nao passam de projecdo”. Esses cientistas apenas entenderam de forma equivocada como usamos 0 termo projecdo. HA ainda um outro motivo pelo qual pretendo conti- nuar comentando este ponto, mas primeiro quero me de- ter na expressdo identidade arcaica, que Jung usa e de- fine no mesmo livro: Uso o termo identidade para denotar uma conformi- dade psicoldgica. E sempre um fendmeno inconscien- te, uma vez que a conformidade consciente envolve- ria necessariamente a consciéncia de duas coisas dis- semelhantes e, em consegiiéncia, uma separacdo en- tre sujeito e objeto, em cujo caso a identidade ja teria sido abolida. A identidade psicoldégica pressupde que é inconsciente. E uma caractertstica da mentalidade primitiva ea base real da participation mystique, que nada mais é do que vestigios da indiferenciagdo en- tre sujeito e objeto e, por conseguinte, do estado in- consciente primordial. E também uma caracteristica do estado mental vigente no intcio do primeiro ano de vida e, finalmente, do inconsciente do adulto civi- lizado, que, na medida em que nao se tornow um con- tetido da consciéncia, continua num estado perma- 12 nente de identidade com objetos... Nao se trata de uma equagao, mas de uma semelhanga a priori gue nunca foi objeto da consciéncia.? Portanto, devemos presumir que, nos estAgios rela- livamente iniciais de nosso desenvolvimento, nao havia diferenga entre nossa psique inconsciente e 0 mundo ex- lerno; esses campos estavam num estado de completa ixualdade, quer dizer, de identidade arcaica. Entao, ocor- reram certos processos psiquicos misteriosos, certas mu- lagdes, que perturbaram a paz dessa identidade e nos for- garam a recolher determinadas representagoes, consta- lando dessa maneira que eram fatos internos, nao extarnos I'm vista disso repomos a idéia sobre os fatos externos com uma nova “projegao”, da qual ainda nfo enxergamos 0 aspecto subjetivo. : Como se verA quando estudarmos alguns mitos de criagdéo, as vezes nos é revelado com muita clareza que cles representam processos inconscientes e pré-conscien- les que descrevem, nao apenas a origem do nosso cosmo. mas a origem da percepgdo consciente que o homem tem do mundo. Isso significa que, antes de me tornar cons- ciente do mundo como um todo, ou de uma parte do ano biente que me cerca, acontecem muitas coisas no meu in- consciente. Os processos pré-conscientes que se desenro- lam num ser humano, antes que sua consciéncia o inun- de, podemos observa-los nos sonhos e em material do in- consciente; os analistas est&o em posicdo de ver, as vezes com uma quinzena de antecedéncia, ou até antes, que agora esta se aproximando uma nova forma de conscién- cia mas que 0 sujeito ainda nao o concebe conscientemen- te. E como a anunciagéo de um processo na consciéncia que aparece no sonho, mas ainda nao se configurou den- tro dos parametros da realidade. Duas semanas mais adiante o sonhador poder vir e dizer: “Agora eu entendo, ® Ibid., §§ 741-42. 13 Agora eu me dei conta de uma certa coisa”, mas 0 analista no sonho que esse novo plano de entendimento, que essa subita constatagdo, estava sendo preparada ja ha algum tempo nos processos pré-conscientes. Apresento este comentario, agora, como uma declaragao a priori mas espero poder demonstra-la de maneira convincente quan- do estivermos examinando os mitos de criagdo. O que nao podemos mais conceber é que tais proces- sos também devem refletir a origem de nosso mundo cés- mico externo. Isso se atribui ao fato de a nossa antiga identidade ter sido perturbada e de outras projecées no- representar modelos cientificos “objetivos” do mundo ex- terno. Os novos modelos desalojaram os antigos e, com isso, entendemos que esses eram projegdes. Na forma de um desenho, o processo da projecaéo transcorre basicamente como o diagrama abaixo: sujeito objeto A > C : S B arquétipo campo da consciéncia segundo arquétipo A, o ser humano ou Eu no centro de seu campo de consciéncia, olha para um objeto, estando ele como sujei- to. Quando existe uma projecao original, significa que um arquétipo foi constelado no inconsciente, B. O sujeito con- templa o objeto, C, e nao consegue entendé-lo, o que ele 6, afinal! Entao tem uma idéia e concebe 0 objeto como isto e aquilo, mas nado esta consciente do fato de que o arqué- tipo, B, foi constelado em seu inconsciente e lhe transmi- 14 tiu o modelo da idéia a partir da qual ele reconhece C; ele 86 vé que o objeto coincide com sua idéia. E isso que cons- titui o processo da cognigéo como um todo. Bem, esse modo de apercepgao esta certo desde que funcione. Se, por exemplo, digo que Fulano me parece um génio, e se ele continuamente se comporta como tal, sem nunca fazer nada que contradiga minha opiniao, entao nin- guém jamais me convencera de que ele nado é um génio. Mas se ele um dia se comportar como um perfeito idiota (que é 0 fator da perturbagao), entdo eu direi: “Ora, ora, de onde foi que eu tirei a idéia de que este sujeito é um gé- nio?” Somente quando ocorre uma perturbacao, uma néo- coincidéncia, 6 que comeco a me dar conta de que acon- teceu alguma coisa que deve ter perturbado minha con- cepgao. E esse 0 caso que Jung menciona: a projecdo nao se encaixa mais. Por exemplo, quero ser convencido de que um objeto 6 como isto ou aquilo, mas minha idéia nao se encaixa; existem muitos fatores que, como se diz hoje na moderna ciéncia natural, néo convergem: nao existe convergéncia de resultados. Se, na idéia defendida por Kidwin Hubble sobre o universo em expansao, determina- dos resultados da pesquisa atémica nao coincidirem e nao se obtiver uma convergéncia de resultados, pode-se co- megar a cogitar sobre se essa idéia nfo 6 sé uma espe- culagao ou, na nossa linguagem, uma projecdo da parte de Hubble. Porém, enquanto os resultados parecerem con- vergir numa mesma direcdo, enquanto 0 objeto parecer realmente comportar-se de acordo com o meu modelo men- tal, nio tenho motivos para retirar a projecdo. Estarei ingenuamente convencido de que conheco a qualidade do objeto em si. Assim, um dos motivos para se recolher uma proje- cdo € a idéia do objeto no corresponder aos fatos, é algo falsear em algum ponto e no coincidir com os fatos. Uma outra possibilidade muito freqiiente é que um outro ar- quétipo (D) se constele: um segundo arquétipo se mobili- za e destaca no inconsciente e apresenta outro modelo ou 15 idéia A mente do sujeito, viabilizando outra projegao so- bre 0 objeto. O sujeito entao salta sobre a nova idéia, ale- gando que esta é verdadeira e que a anterior era um erro, uma ilusdo — uma projecao. A uma visao retrospectiva, chamamos a primeira concepgao de projeg&o, mas, enquan- to a pessoa estiver presa nela, enquanto 0 arquétipo esti- ver constelado como valido, no inconsciente e no cons- ciente da pessoa, ela nunca 0 chamarA de projecao; pelo contrario, ira considerd-lo a verdadeira cognicao. O sujei- to entdo sente que esta falando de fatos reais e da manei- ra mais honesta que consegue. Essa troca de arquétipos em geral coincide naturalmente com mudangas externas de condigées, de tal modo que certas teorias nado corres- pondam mais a eles. Enquanto sentirmos subjetivamen- te que nao estamos falando de projegdes mas da verda- deira qualidade de um objeto — que é um aspecto especial de nossa mentalidade ocidental — entaéo chamamo-la de verdade cientifica. Os orientais sAo tao introvertidos que, mesmo quan- do se sentem convencidos, ainda alimentam uma certa duvida e ndo conseguem evitar o ponto de interrogagao a respeito de suas “verdadeiras convicgées”. JA nés estamos seguros de que falamos de um objeto externo, desde que nossas projegoes paregam corresponder a eles. No momento estamos sob o dominio de uma nova constelagéo arquetipi- ca que, por ora, esta funcionando e na qual parece que se encaixam todas as qualidades objetivas. Onde quer que haja o que Bavinck denominou de convergéncia de resultados cientificos, onde quer que tudo parega se encaixar num qua- dro e ninguém seja capaz de pensar em quaisquer fatos contraditérios ao modelo que temos em mente, possuimos, por um periodo de tempo, a nossa verdade. Sendo menos criticos em geral, e tendo apenas um conhecimento frag- mentado dos fatos externos, ou sé um conhecimento par- cial se comparado ao nosso, 0S primitivos produziram expli- cagées cosmogénicas para @ origem da existéncia que, para n6s, S40 projecdes absolutamente transparentes. Precisa- mos ter esse fato em mente, porque nao podemos entender 16 RB mitos. se 08 chamarmos simplesmente de projecéo de processos pré-conscientes, sem ter a idéia clara de “proje- (fo” exatamente no sentido que busquei descrever. Antes de tentarmos compreender os mitos de cria yo, temos de nos lembrar também de um outro fato. [ ‘aber, que nds ndo podemos falar de nenhuma espécie ‘de twalidade exceto em sua forma como contetido de nossa vonseténcia, Como Jung assinalou, a tnica realidade so- lyre a qual podemos nos pronunciar é aquela da qual esta- nos cientes.? Se para vocé isso é dificil de eompreender imagine entaéo que vocé teve um sonho na noite passada 3 te se lembra dele pela manha. Se nao houve aonb uaoEyadcs provando que vocé sonhou, entéo o sonho nao ove existéncia. Vocé pode presumir que ele existiu, ou (jue nao existiu, pode dizer qualquer coisa arbitraria « ue yoste de afirmar a esse respeito, mas, Gentecanente ta, lando, vocé nao pode dizer se ele existiu ou nao. Tudo isso quer dizer que nenhum fator que nao tenha em algum ponto entrado no campo da percepeao consciente de a ‘u- ma criatura humana pode ser citado como real. Os dnteos fatos que podemos afirmar que so reais sao ‘os que, de algum modo, em algum lugar, entraram no campo de cons- ciéncia de um ser humano. Todo 0 resto 6 especulagao ar- hitraria. Naturalmente, pela manha, a pessoa ade su- por que teve um sonho e 0 esq’ i ueceu, mas isso n& ser chamado de fato. : chee : Em termos praticos, portanto, podemos asseverar que a nica realidade que nos 6 possivel mencionar ou com a qual efetivamente lidamos é a imagem da realidade pre- sente no campo de nossa consciéncia. O egos ee pontaneo do extrovertido, que por temperamento tem um: intensissima ligagdo com os objetos, sera algo como: “Sim, mas existe uma realidade, s6 que nado podemos falar dela”. Diante disso, sé podemos dizer que se ele prefere supor °C. G. Jung, Memories, Dri i , , Dreams, Reflections (Nova Iorque: R House, 1963), pp. 255-56. [Em portugués, Memérias, ee HORE 17 isso, que fique 4 vontade, mas isso nao pase oo a posicdo inteiramente subjetiva. Se vocé gosta ee sobre as coisas e diz: “Acredito que existe uma re: ee além do campo de minha consciéncia’, essa cron pe de determinadas necessidades de seu temperaments; en tretanto, se uma outra pessoa nao acredita dessa os e vocé nao tem o menor direito de arrancar-lhe aca eve Por conseguinte, se os indianos preferem dizer ae ng existe realidade além SN ee ean gus oe ts iéncia, nado temos o direito ¢ ‘ ) 5 Pode simplesmente comentar que isso nao ears ane a nossa disposigao de temperamento, que preferimos ii com as coisas como se acreditassemos que existe untae ree lidade que transcende a nossa consciéncia, apesar shee podermos lidar diretamente com ela. Aqui ingest snc terreno das crengas e suposigdes metafisicas e re! oe no qual todos sao livres para fazer as auposigoes que -e lhes agradem; mas com isso abandonamos oO spo do fato cientifico passivel de discussdo. Sendo assim, é om preensivel que as histérias que supostamente Se tae descrever a origem do mundo real estejam completam te entremeadas e mescladas com fatores que seria een dizente denominar histdrias dos processos pré-conset a respeito da origem da consciéncia humana. Chegamos aqui a uma outra questao eapord ates que maneira essas idéias miticas, de import one Ae riamente vital, diferem de racionalizacées de sels maioria vai dizer: “Nao passam de contos de fa as’ i S isso ndo 6 exato. Se nos observarmos peicologieanes He Be longo de um periodo de tempo, em breve po nee ee renciar e dizer “algo” esta pensando em nés, quer ner, certos contetidos se nos apresentam e podemos a oon base neles pois fazem sentido para nos, e nos er ne melhor se pensamos dessa determined ere pes : do fato de todos sabermos que a questao da vida ap “©. G. Jung, Collected Works, vol. 14, § 766. 18 Morte, ou da origem e significado da vida, nunca podera ser rospondida racionalmente com certeza absoluta e in- (ubitivel, ela tem, segundo Jung, uma importancia tao (romonda, se n&o inteiramente essencial, que nos dedica- ‘io a formular idéias a esse respeito. Se uma pessoa nao (om mito algum acerca dessas indagagées, ela esta psi- (Wicamente desvitalizada e empobrecida e, provavelmen- (0, sofre de uma neurose. Jung, por exemplo, sugeria a todos os idosos que conviviam com ele que refletissem ‘obre as questées de haver ou nao vida apés a morte e (lo qual era o sentido da morte para eles. Um dos alunos de Jung perguntou-lhe: “Agora estou com setenta anos e vocé (om oitenta. Vocé nao poderia me dizer o que pensa sobre vida apés a morte?” A resposta de Jung foi: “Nao vai ‘\juda-lo em nada lembrar, quando estiver em seu leito de morte, que ‘Jung disse isto ou aquilo’. Vocé tem de ter as suas préprias idéias a esse respeito. O seu mito pessoal. ‘ler o préprio mito quer dizer sofrer e se debater com uma (juestao até que uma resposta brote das profundezas da ulma. Nao quer isso significar que tenha chegado a ver- (lade definitiva, mas sim que essa verdade que lhe ocor- rou 6 relevante para vocé, na forma como a conhece. Acre- ditar nessa verdade ajuda a pessoa a se sentir bem’. Constatamos, dessa forma, que hé mitos de impor- (Ancia vital. Podemos dizer que, no plano psicolégico, ocor- re um fendmeno similar. Por exemplo, todos os povos do mundo conheciam a importancia vital do sal. Como é bem sabido, os povos migravam e, em certas circunstancias, che- garam até a abrir mao de todos os seus bens e tesouros por um punhado de sal. Ha somente cerca de trinta anos foi esclarecido o motivo para tanto. Sabe-se atualmente que o sal desempenha um papel importante na fisiologia huma- na. Mas aquele “algo” em nés, mencionado antes, sempre soube disso. Nos tempos antigos, a importancia do sal era explicada mitologicamente. Havia a busca de idéias que explicassem por que o sal é tao vital para o homem. Tudo era baseado em conhecimentos instintivos, vitais. Portan- to, os mitos expressam um conhecimento vital e instintivo, 19 e quando a pessoa confia nesse tipo de conhecimento entao é saudavel. Isto ndo tem nada a ver com racionalizacdo de desejo ou com alguma espécie de fantasia. Até o momento atual, ainda existem algumas tribos primitivas, mesmo que lamentavelmente apenas umas poucas, que se recusam terminantemente a contar seus mitos secretos para 0S povos brancos. Eles sabem que et ses mitos contém seu conhecimento vital, incumbido “4 lhes preservar a vida. Se um branco chegasse e ners risse de maneira desrespeitosa e prejudicial, dizendo: [ao acredito nisso. Nao passa de conto de fadas”, estaria ane gindo profundamente a alma desses povos primitivos. 6 se pode dizer que a pessoa que nao tem um see nem uma jdéia consistente a respeito do sentido da vida, eeran simplesmente acredita no que le nos jornais, 6 neuré ‘ica e deve ser objeto de pena, pois € prisioneira da crenga em t&o-somente meias-verdades ideologicas. Devemos ter em mente que, quando tentamos interpretar os mitos de | Ao como projegéo de processos psicolégicos internos, fa- zemos isso segundo a perspectiva da populagao branca centro-européia. Essa perspectiva seria imprépria se m estivesse lidando com mitos extraidos das crengas reli- giosas dos esquimés ou de alguns outros grupos Etnicos. Entendendo quem eles s4o, eu diria: Sim, eu também acredito que o mundo foi feito dessa maneira’, e este co- mentério nado seria nem uma mentira diplomatica por- que, para eles, 0 mundo foi criado dessa maneira e essa crenga reflete sua concep¢ao de mundo. Onde é que, hoje em dia, localizamos mitos de cria- cao, elementos ou motivos tipicos de mitos de criagao, om nossa atuagao analitica nos consultérios, e nos sonhos? A forma mais visivel pode ser observada no ieee zofrénico, em que 0 episédio esquizofrénico é Sa e preparado por sonhos de destruigao mundial. m sue modernos, costuma ser uma explosao atomica, ou o tim do mundo, as estrelas despencando — imagens absoluta- mente apocalfpticas; ou a pessoa desperta e todos morre- 20 faim, o ambiente em que se encontra esta todo destrufdo, 1 \uperficie do mundo se abre numa fenda interminavel, © assim por diante. Estas imagens em geral avisam que a vonsciéncia desse ser humano esta em estado explosivo ou prestes a explodir, e que sua consciéncia da realidade om breve ira desaparecer: seu mundo subjetivo sera real- monte destruido. Mas, muito frequientemente, quando o »pisodio esquizofrénico comeca a ceder, ou supera sua fase ayuda, entéo, nas fantasias e em sonhos, os motivos dos imitos de eriagéo surgem e o mundo é recriado a partir de um germe muito pequeno, tal como nos mitos de criagao. \ realidade é reconstruida. Com base em minha experién- cia profissional, se se entendem esses simbolos de recons- lrugao, se se entende o que esta acontecendo quando es- ‘ios simbolos surgem depois de um episédio, e se, no papel de terapeuta, se pode dar-lhes o devido apoio, acompa- nhando o desenvolvimento dessas ideacédes e lidando com clas da forma adequada, pode-se as vezes ajudar a re- construgéo de uma nova personalidade consciente que orno dessa onda posteriormente nao conseguira mais subjugar. Lembro-me de um caso em que aconteceu isso, em- bora nao tivesse sido tao forte; nao se tratava de uma es- quizofrenia clinica. Era um quadro limitrofe, uma mu- |her que, numa condigdo de completa possessao pelo animus, tinha destrogado seu relacionamento com um homem com quem vivia uma transferéncia fortissima. Era um animus ambulante e nao tinha nada além do animus funcionando dentro dela. Uma completa destruigao de sua personalidade feminina tinha se desenrolado ao longo de muitos anos (uma disposigaéo esquizofrénica), e ela esta- va por um triz para perder a cabega. Uma colega que tra- tava dela comigo sugeriu que a interndssemos, conside- rando que ou ela cometeria suicidio, ou faria alguma ou- tra maluquice desse porte, como matar o homem que apa- rentemente a havia decepcionado seriamente. Antes de concordar com essa proposta, quis eu mesma vé-la, e quan do fiz isso percebi, de imediato, que eu no conseguiria 21 mais estabelecer qualquer contato. Ela olhou através de mim com olhar vidrado, e eu nao consegui atingi-la emo- cionalmente. Tive a sensagdo de que ela nao me ouviu, 0 que mais tarde foi confirmado por ela mesma ao me di- zer que nao tinha escutado uma 86 palavra do que eu dis- sera. Estava numa tal condigao que sua atengao, sua cons- ciéncia, achava-se completamente anulada. No meu de- sespero, finalmente lhe disse: “Nenhum sonho, nenhum sonho numa situagao tao desesperada?” Ela disse: ‘S6 um fragmento. Vi um ovo e uma voz disse: ‘a mae ¢ a filha”. Fiquei muito feliz diante da situagao e fui logo falando para ela sobre os mitos de criagao e como 0 mundo renas- ce do ovo mundial. Disse que isso mostrava o germe de uma nova possibilidade de vida e que tudo ficaria bem, que s6 precisAvamos esperar até que tudo viesse para fora do ovo, e assim por diante. Deixei-me arrastar por um entusiasmo avassalador e disse que “a mae e a filha” na- turalmente referiam-se aos mistérios de Eléusis, e expli- quei tudo isso para ela, falando sobre 0 renascimento do mundo feminino, em que a nova consciéncia seria uma consciéncia feminina, e assim por diante. Percebi que, enquanto eu falava, ela ficou quieta; finalmente, coloquei minha mao em seu brago e perguntei: “Vocé se sente me- Thor?” Pela primeira vez ela sorriu e disse que sim. Per- guntei se ela achava que podia ir paraa cama e nao fazer nenhuma bobagem, e ela respondeu que sim, que podia! E foi isso que aconteceu, e 0 dificil episédio foi transposto. Mais tarde, ela falou que estava num buraco tao negro, e que a consciéncia tinha ido tao longe, que nao havia en- tendido uma sé palavra do que eu dissera. S6 tinha per- cebido que eu tinha entendido o motivo do sonho eo en- tendera de forma positiva; por isso, a caminho de casa, ela falara com os préprios botées: “Bom, aquilo pode ser entendido, e parece ser uma coisa boa”. Entao, veja, eu tinha entendido o que estava acontecendo. Eu nao pude transmitir-lhe essa nocdo, seu complexo do Bu estava dis- tante demais, mas o mero fato de ela haver sentido que alguém a compreendera tinha sido suficiente para trans- 22 por uma situagao extremamente perigosa. Com isso se vé como é importante conhecer esses processos arquetipicos pré-conscientes. . Passei pela experiéncia de, normalmente, nao se po- der transmitir 0 significado desses mitos de criagdo para 4s pessoas quando elas estaéo bem no meio das trevas por- que esse material descreve processos que transcorrem num plano muito distante do da consciéncia. Em contras- tc com outras mitologias, esses temas nao dao ao indivi- duo aquela reagaéo intima de quando se entende alguma coisa e se 6 capaz de aplicar esse entendimento ao pré- prio caso, que é o sentimento de quem ouve interpreta- des de contos de fadas ou de mitos sobre 0 heréi, nos quais se constréi uma ligagaéo emocional e afetiva com o mate- rial. Os motivos dos mitos de criacéo parecem estranhos c extremamente abstratos, e portanto sao dificeis de tra- ver até o plano da consciéncia. Por ter um significado tao remoto, quando se tenta transmiti-lo a outras pessoas é dificil oferecer-lhes a sensagdo de que entenderam. O que se pode observar nos casos limitrofes, a saber, a destruigdo da consciéncia e da percepcao consciente da realidade e a reconstrugdo de uma nova consciéncia, 6 sé 0 caso extremo, 0 exagero de algo que também se encon- tra nas situagdes normais. Identificamos a presenga de motivos de criagéo sempre que o inconsciente estiver pre- parando um avango fundamentalmente importante na consciéncia do individuo. O desenvolvimento psicolégico de um ser humano parece seguir 0 padrao do crescimento fisiologico das criangas, que nao crescem de forma conti- nua mas em acessos e aos arrancos. O crescimento da cons- ciéncia também tende a dar saltos repentinos para a fren- te: ha periodos em que o campo da consciéncia se amplia de forma stibita, e em larga escala. Sempre que o alarga- mento da consciéncia ou sua reconstrucao é muito stbita, as pessoas dizem que tiveram uma “iluminacao” ou reve- lagdo. Quando esse processo é mais continuo, elas nao o percebem tanto e sé tém a sensagéo agraddvel de esta- 23 rem crescendo, de estarem se movimentando no fluxo ae vida, que é interessante, sem passarem pela sensagao de uma repentina iluminagéo ou despertar. Sempre gue © processo da consciéncia dé um grande salto pcan’ A sonhos preparatérios, geralmente contendo motivos dos mitos de criagdo. Finalmente, mas nao por ultimo, é preciso conhecer os motivos dos mitos de criacgéo quando se analisa uma personalidade criativa, Analisar pessoas criativas 6 um grande problema porque, freqiientemente, elas pensam que sao neuréticas ou estao numa crise neurética, e mos- tram todos os sinais disso; entretanto, quando se estuda 0 material de seus sonhos, fica claro que sdo neurdticas nao devido a desajustamentos aos fatos internos ou externos da vida, mas sim porque estao sendo perseguidas por mo idéia criativa e precisam fazer algo a esse respeito. Sao acossadas por uma tarefa criativa; vistas de fora, elas se comportam exatamente da maneira que os outros neur6- ticos e, muitas vezes, elas mesmas se diagnosticam como neuréticas por causa disso. A dificuldade, porém, esta em que nao se pode fazer a invengao pelo outro! Digamos a0 um fisico que deve inventar uma coisa procura aten e mento; é isso o que o inconsciente quer dele. Nao se po e fazer isso por ele! Antes de mais nada, provavelmente voce néio conhece fisica 0 bastante e, em segundo lugar, seria afinal a sua invengao, e invenere significa adentrar algu- ma coisa, descobrir algo novo, e nado se pode fazer isso pela outra pessoa. Gracas a Deus por isso, pois 108 estaria privando da mais valiosa experiéncia de sua ve a se o fizesse. Portanto, vocé tem de acompanhar o outro em sua sofrida jornada. Ele diz: “Sim, mas 0 que é que eu tenho de descobrir?” Bom, eu também nao sei, mas ele tem de descobrir alguma coisa! Entaéo ele diz que Se eu nao posso lhe dizer 0 que é, no 0 estou ajudando. En AO, vocé tem de ter bastante material cientifico a mao Pare conseguir mostrar ao individuo que um ato criativo esta acontecendo agora, que um mundo novo esta prestes a nascer, que algo inédito quer entrar no campo da cons- 24 /\Oncin, Ha determinados processos preparatérios que de- vom ser entendidos, porque deles se pode, no minimo, ex- (rir certos indicios quanto ao rumo que a invengao ira (omar, poupando assim, ao analisando, um doloroso des- perdicio de tempo. O analista pode servi-lo como um cao (Wo fareja e diz: “Por aqui nao, nao por esta trilha, mas por wquola La!” Dessa forma, vocé pode intuitivamente circuns- vrever a dire¢éo em que esta se encaminhando o processo ‘ruitivo dele, de tal sorte que ele nao precisa perder tempo ‘lurante anos perseguindo caminhos errados, sendo possi- , portanto, acercar-se mais depressa do evento original (le criagéo de um mundo que se constelou em sua psique. Isto tem uma importancia enorme se vocé pensar no ‘juanto € difundida a crenga de que a psicandlise, e a ana- lixe junguiana também destroem a personalidade criativa. Muitos artistas e cientistas criativos evitam contato co- hosco porque acreditam que nés, dentro de um modelo ana- litico redutivo, iremos destruir sua personalidade criati- va. Rilke disse, quando insistiram para que fosse fazer analise freudiana, que tinha medo de, ao expulsar seus ilem6nios, seus anjos também fossem expulsos e, portanto, recusava-se a fazer andlise. Eu afirmo que esse medo da personalidade criativa em se submeter a um tratamento analitico, ou de mostrar interesse pela andlise, é justifica- do na medida em que sao poucos os analistas que conhe- cem 0s processos criativos da mente e, entendendo-os de forma equivocada, usam métodos redutivos de cura da neu- rose, quando deveriam, em vez disso, adotar uma atitude de favorecer novos contetidos que estao prestes a vir a luz na consciéncia. Quem tem uma personalidade criativa, quando uma tarefa criativa o pressiona e deprime, de fato comporta-se, muitas vezes, como um neurético horrivel, de maneira desajustada e impossivel. Corrigir ou coibir um pouco o comportamento neurético, sem destruir ao mesmo tempo o cerne criativo do processo, é uma tarefa delicada. Para tanto, é muito importante conhecer o material para se poder reconhecer os processos. Vocés vero que os mitos de criag&o podem ajudar-nos a encontrar esse material. 25 As vezes pode-se afirmar que a parte criativa é 80% do problema, e¢ 0 reajustamento, 20%; outras é 0 inverso. Parte disso sempre esta presente, e essa é uma das suti- Jezas da andlise. Depende muito do relacionamento afetivo entre analista e analisando, pois se é muito intensa a contratransferéncia, 0 analista tende a nao ser suficien- temente redutivo, e se o analista depreciar secretamente o analisando, pode prejudicé-lo e, com isso, destruir suas possibilidades criativas. Essa é uma situacdo muito deli- cada, na qual a pessoa tem, eventualmente, de confiar nos proprios sonhos. E como 0 jardineiro que precisa de- cidir sobre o que ira arrancar e 0 que ira cuidar para que cresca. Pode-se, contudo, fazer uma transferéncia muito intensa, pensando que o cerne de criatividade da pessoa 6 a coisa mais importante e que todas as bobagens que saem dai sao criativas e por isso devem ser alimentadas. O analista excessivamente maternal, que se senta em cima para chocar um monte de ovos de fénix, acaba parindo ovos falsos! Por outro lado, acho que o instinto criativo é tao for- te que se o analista tentar destrui-lo 0 analisando aban- donaré a andlise. Nao se pode destrui-lo. Se o analista efetuou a tentativa errada de reprimi-lo, causa mal-estar e 6dio pela psicologia. Alimentaré amargor, mas a forca dinamica de uma disposigao criativa jamais sera supri- mida. Pode-se dizer que ha também criaturas humanas sem uma criatividade muito forte, apenas com uma pe- quena dose de fantasias criativas, e que poderiam alar- gar seus horizontes e tornar suas existéncias mais signi- ficativas; portanto por que nao deixar que vivam! Pois, afinal de contas, a pessoa de fato se sente melhor se nao se esmaga 0 impulso. Se toda vez que vocé quiser brincar com alguma coisa divertida vocé pensar que é criancice, entao vocé definha. Nao chega a ser uma catastrofe; mas acho que é uma pena esmagar pequenos impulsos criati- vos, que poderiam tornar a vida muito mais bonita. Gra- cas a Deus, em geral os sonhos ficam selvagens quando a pessoa tenta erradamente esmagar alguma coisa. 26 Ao lor Eliade, descobrimos que os mitos de criac& oii muitas civilizagdes eram repetidos em condicé = jeificas. Os mitos cosmogénicos e a mitologia da fr dia por exemplo, sao usados toda vez que uma nov sa 6 sonatrutda, Eliade oferece uma ilustracao: ne O astrélogo mostra em que local os alicerces ficam en atamente sobre a cabeca da serpente [que é uma con telagao estelar] que sustenta o mundo. O carmihnteire /abrica um pequeno gancho de madeira do tronco da arvore Khadira, e com um coco enterra o gancho no chdo, nesse ponto espectfico, de tal maneira que o gan- cho prenda com firmeza a cabeca da serpente no solo. A pedra fundamental é colocada em cima do gan- cho. Apedra angular, portanto, fica situada exatamen- te no ‘centro do mundo’. Mas 0 ato da fundacdo repete, ao mesmo tempo, 0 ato cosmogénico, pois ‘firmar? a cabeca da serpente, enterrar o gancho nela, é imita: gesto primordial de Soma (Rgveda, II, 12 D ou Tad i" quando este ‘fincou a serpente em seu covil’ (VI, 7, Dun A serpente simboliza 0 caos, o informe e néio-ma- nifesto. Indra sobrepuja Vrtra (IV, 19, 3) indivi. (aparvan), ndo-desperto (abudhyam)...* “ = No instante em que a pessoa assenta 0 alicerce de t ,ela (por assim dizer) recria 0 mundo todo outra vez, Na baixa Idade Média, quando os vikings ou os angl saxdes davam © primeiro passo para se estabelece' inl novo territério, construiam um altar e repetiam o mit a ee eo enad com isso que aquele territério antes fart ettenti on sy emt de ereaione coats cientemente submetido a Sean tio a Getona, ‘ Neo vam entrando nele e se instalando em tal ugar, oO hie ° Margaret Sinclair Stevenson, The Ri r r venson, The Rites of the Twice-B 1920), eitado em Mireoa Bliade, The Myth of the ternal Rouiea: or Coe. istory (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1971), p. 19. 27 ia na . A mes- ovo conquistado sentia nao era levado em core me al repeticao do mito de criagaéo Bart ee ae é Z ivilizago z que uma cidade cad s civilizacoes toda ve! n a eae ade fundada repete, por assim dizer, es ae estabelecido um centro que € 0 ae ee ae i conce:! s do qual tudo o mais se . A Sea anne. um novo cosmo, estabelecido deste ae i : i iagao ¢é cialmente - de criagdo 6, ou par tro. Portanto, o mito pe ie is de forma ritual, © cenado uma vez mais : ee i do mito de criagao, ‘ nidade. Um outro uso d B A808 ae ainda permanece vivo dentro de ama Peet 0. . ser descrito todos os anos, na festa do Ano Nov a do Ano Novo nao sé na nossa acepcdo desse no a fest: te a OC} termo, mas sempre que comega um novo zn om 4 quer sentido Toda vez que esse nove tempo aa ie Ee ‘ iagéio é i osame! - a i Jo é exposto minucl tao um mito de cria¢ac ede ir ma solene, o que significa que agora 0 mundo, mee ae novo e, portanto, é preciso que retorne a con: eon pessoas tudo que se passou in illo tempore, como Uma outra situagaéo em que 0 mito de eee 4 presso aparece nos povos das eG pie = lek a : SE eta cne as colheitas sao mune ed ae nue a vida esta em risco e que 0 cosmo, Se esta exausto e vazio, os nativos de Fidji sen’ en dade de um retorno in principio; em outras Pe ah se ram a regeneracio da vida cosmica nao po’ seat Sena de restauro, mas de recriagao. Portanto, a mn ae sencial, nos rituais e mitos, de qualiene a ued significar 0 “comego’, 0 original, ° BHM be eae ors lato se obtém a confirmagao do que po en i aga pre que é necesséria uma nova atitu tf oe oe nen novo reajustamento& pene eer re asico. Se por ex Fs | 1 £00 ee entra = terreno desconhecido, esta psi * Ibid., p. 81. 28 colégica e fisicamente numa situagdo perigosa; é um ris- co tremendo, vocé perdeu as suas raizes, ndo esta adap- ado, e portanto se encontra sob ameaga de morte fisica e dissociagao psicolégica. Por conseguinte, em novo territé- rio, 0 conquistador estabelece um novo cosmo. A cerimé- nia do Ano Novo mostra que nossa percepgao consciente da realidade e que nosso ajustamento a ela tende a des- vanecer-se, tornar-se distorcida e um habito semi-incons- ciente, em vez de um esforgo consciente, e envelhece da mesma forma como o simbolo do rei envelhece, como os simbolos religiosos envelhecem. O que talvez antes tenha sido na juventude uma prece ardente, dita com fervor e de todo 0 coragao, torna-se um “bl4-bl4-bla4” mecanico com 0 passar do tempo. Essa constante ameaca de resvalar no repetitivo e na continuacdo mecdnica, de deslizar para a inconsciéncia, de perder a sensacao de vitalidade de um determinado procedimento, tem de ser combatida pela re- criagdo da realidade inteira, retornando até a fonte da consciéncia. Os nativos de Fidji tém uma maneira menos mecanica de fazer a mesma coisa: eles nio repetem seu mito de criagdo sé a cada Ano Novo, mas toda vez que sen- tem, de repente, que existe uma ameaga urgente A vida. Sempre que estao ameagados pela dissociagao, pelo pAni- co e pela desordem social, tentam restaurar a criagao e 0 cosmo todo, narrando seu mito de criacio. Eles criam de novo, por assim, a ordem consciente das coisas e, depois, esperam o efeito correspondente em suas almas, o que significa que, mais uma vez, eles deve- riam sentir-se pessoalmente em ordem. Para os aborige- nes dessa regiao, esse processo pode chegar ao ponto de, por exemplo, quando a safra de arroz nao esta indo bem chamar-se um curandeiro para que ele circule 0 campo e enquanto assim procede narre o mito de criagio do arroz. Dai em diante, é como se o arroz fosse capaz de dizer: “Bom, agora eu sei outra vez como devo ser”, e tornar-se novamente capaz de crescer em ampla quantidade. Claro que se trata de uma projegdo no arroz que dificilmente tem qualquer influéncia sobre 0 cereal. Mas isso causa 29 uma forte impressdo em nds. Quando sabemos de novo a razdo pela qual nascemos, e qual é de fato a nossa tarefa na terra, e quando tomamos conhecimento outra vez de qual é 0 real sentido de nossa vida, entao podemos nova- mente toca-la em frente. E por isso que Jung disse que nunca tratou de um paciente que estivesse na segunda metade da vida sem chegar na questéo do sentido da vida para essa pessoa. Nao fazia diferenga que problema coti- diano tivesse dado inicio ao tratamento; ele sempre re- dundava nessa indagacao final. Se, pois, a pessoa sabe que sua vida tem sentido, entéo ela 6 capaz de suporta- la. O homem é capaz de agiientar praticamente qualquer coisa, desde que veja o significado que isso tem. Por fim, ainda podemos ver que quando a pessoa é ameagada fisicamente ou por uma dissociagéo completa, como no exemplo que citei antes, o mito de criagao é no- vamente narrado pelo inconsciente. O inconsciente rela- ta partes do mito de criagdo para resgatar, mais uma vez, a vida consciente e a percep¢do consciente da realidade. Haver4, aqui, a presenca de mais um elemento, a saber, a analogia do mito de criagaéo com o simbolismo do processo de individuacdo, que é visto, com muita clareza, no mate- rial alquimico. Este aspecto eu abordarei mais adiante. Discutirei os mitos de criagdo da seguinte maneira: primeiro narro 0 mito que mostra, mais claramente que os outros, como a criagado 6 um despertar para a conscién- cia, no qual podemos captar o flagrante de como o desper- tar para a consciéncia é idéntico a criagao do mundo. De- pois, introduzo alguns exemplos do nascimento do cosmo através de uma acdo acidental. Em terceiro lugar, apre- sento o tipo em que a criagdo é representada como um movimento de cima para baixo — em que seres espiri- tuais do Além criam, descendo ou atirando coisas para baixo. Depois, partimos para a criag&o que decorre de um movimento de baixo para cima, tal como a que encontra- mos em mitos de emergéncia nos quais tudo vem de um buraco na terra. Em seguida sera abordado o motivo dos 30 dois criadores, como o dos dois animais, ou os criadores “¢meos. O motivo do Deus faber, a Divindade que fabrica 0 mundo, como no nosso mito biblico da criagao, ira ocu- par-nos em seguida. Posteriormente, passamos pelo mo- tivo da primeira vitima. Depois, serao brevemente des- critos os estados subjetivos de animo do Ser criador; por oxemplo, a criagao pelo riso, pelo medo, pelo choro, e to- das as criagdes através de sentimentos ou anseios, de en- \regas e do amor. Discuto, entdo, rapidamente, alguns motivos primordiais basicos, ou seja, 0 ovo mundial, o ho- mem primordial por meio de cuja decadéncia 0 cosmo in- \ciro 6 construido, 0 conceito de libido por um fogo criati- vo, um mana, uma energia mundial, de onde tudo brota. A seguir, analiso brevemente por que tantos mitos de cria- cao contém intimeras cadeias de geracées. Esses sio mi- los de criagdéo basicamente da Polinésia e do Havai, mas também do Japao e, novamente, dos mitos gnésticos de criagao, nos quais Deus produz pares gémeos, tais como vida e verdade, ou Logos e Verbo, e assim por diante, ca- deias e cadeias de geracées de deuses ou espiritos, ou ou- \ros seres, até que a realidade nasca. Em seguida, ha o motivo das particulas, as sementes do mundo. E, final- mente, a reproducdo subjetiva da criagdo na meditagao, conforme a alquimia a praticava, em que a confecgao da pedra filosofal era tida como a reproducio da criagao do mundo, em nfvel subjetivo. Um grande problema deste livro sobre mitos de cria ¢do € que eles so os mitos mais bdsicos de todas as civili- zagdes e, portanto, a esséncia da humanidade; isso néo quer dizer que sejam faceis de se entender. Por outro lado, parece-me que os mitos de criagdo nao sdo especialmente interessantes naquelas linguagens que entendo do ponto de vista filolégico, como o grego e o latim, por exemplo. Muitos mitos de criacgdo sao altamente abstratos e basea- dos em idéias abstrusas e em conceitos aparentemente estranhos. Para poder apresentar palestras sobre eles, de forma apropriada, é preciso que se saiba hebraico, sAns- crito, babilénio, sumério e todas as demais linguas primi- 31 tivas. Nao sou capaz disso. Logo, vejo-me forgada a con- fiar em tradugées. Tentei trabalhar com as melhores, mas nao posso garantir que todas as nuangas de cada pala- vra, em cada mito, tenham sido apropriadamente capta- das pela traducdo. Por causa disso, planejei enfatizar e dar especial atencdo a certas similaridades de motivos e tipos de motivos, sem entrar muito pelos detalhes de um tinico mito. Estou também inteiramente ciente de que muitos lei- tores ficarao chocados ao ler uma miscelanea de mitos oriundos de tantas civilizagdes, alguns dos gregos e de ou- tros grupos culturais variados, altamente diferenciados. N&o tentarei elucidar as diferencas culturais. Os etndlogos e historiadores de religides estao em muito melhores con- dicdes para isso. O alvo de minha pesquisa é mostrar que ha estruturas arquetipicas basicas brilhando por tras da variedade de motivos, e que tais estruturas, entre outras funcdes, sio manifestacdes do mistério da criatividade da psique humana inconsciente. Ao tentar interpretar alguns dos motivos, atingimos esse fator criativo, que se manifes- ta de forma simbdlica. Buscarei fornecer ao leitor recursos para o entendimento dos processos criativos alojados nas profundezas da psique humana. 32 Capitulo 2 O DESPERTAR COSMOGONICO Comegarei com um mito que descreve a criagao do mundo como um despertar da consciéncia. Este mito foi relatado por Knud Rasmussen, em seu livro The Eagle’s Gift, no qual ele reproduz uma coletanea de mitos esqui- mos. Um desses 6 narrado por Apatac, do rio Noatak, a quem Rasmussen perguntou como o mundo foi criado. E cle respondeu que: As pessoas néo gostam de pensar. Elas nao gostam de trabalhar com as coisas que sdo dificeis de captar e talvez seja essa a razéo pela qual conhecemos téo pouco sobre o céu e a terra e a origem dos homens e animais. Talvez sim, talvez nao. E muito complicado entender como comecgamos a existir e para onde va- mos quando morremos. As trevas ocultam 0 comego e o fim. Como saber mais sobre 0 mais numinoso que nos cerca € que nos mantém vivos, sobre aquilo que cha- mamos de ar e céu e mar, e o que denominamos de humano e todos os lugares que habita, e os animais e peixes e mares e lagos? Ninguém pode saber coisa al- guma ao certo a respetto do inicio da vida. Mas aque- le que abrir os olhos e os ouvidos, e tentar se recordar do que os antigos diziam, pode preencher o vazio de seu pensamento com este ou aquele conhecimento. 33 34 [Aqui podemos enxergar como a projegao é realmente descrita: enchemos o vazio de nosso pensamento, pro- jetamos no vazio.] Por isso é que gostamos de ouvir as pessoas que nos trazem informagées colhidas das experiéncias que as geragées anteriores acumularam, porque todos os mitos antigos que nossos ancestrais contam sao o que os mortos nos dizem. Ainda podemos falar com as varias pessoas que foram sdbias hd muito tempo atrads, mas sabemos que sGo poucos os que gosiam de ouvir. Minha avo sabia muitas coisas surpreenden- tes a respeito dos fatos antigos, e sei por ela o que vou lhe contar agora. O céu comecou a existir antes da terra, todavia nao era mais velho, porque quando comegou a existir a terra também estava se formando. Jé possuta uma crosta firme antes que houvesse qualquer terra e antes que também surgisse o primeiro ser vivo de quem nao sa- bemos coisa alguma. Esse ser nos chamamos Tulun- gersagq, ou Pai Corvo, porque ele criou toda a vida da terra e os seres humanos e é a origem de todas as coi- sas. Ele no foi uma ave comum, mas um poder sagra- do, criador de vida, que estava em tudo que existia neste mundo no qual hoje vivemos. [Aqut temos o con- ceito de energia.] Entretanto, ele também comegou na forma de um ser humano (portanto néo pense no Pai Corvo como um corvo; ele apenas se tornou um corvo) e ficava vagando no escuro e todos os seus feitos eram completamente errdticos, até que se tornow manifesto para ele quem ele era e o que deveria fazer. Sentava-se crocitando no escuro quando de repente despertou para a consciéncia e se descobriu. Ele nao sabia onde estava ou como tinha comecado a existir, mas respirou e teve vida, ele viveu. Tudo 0 mais & sua volta encontrava-se no escuro e ele nao conseguia ver coisa alguma. Com as mdos, tateava seu cami- nho a esmo, tocando os objetos, e seus dedos tocavam «a argila onde os abrisse. A terra era argila e tudo a volta dele era argila morta. Ele deixou que seus de- dos deslizassem sobre a argila, e entéo achou seu rosto ¢ sentiu que tinha nariz, olhos e boca, e também que possuta bragos e pernas, como nés. Ele era um ser humano, um homem. Em cima de sua testa, sentiu um pequeno né duro, mas ndo sabia por que estava ld, ele nao possuta idéia de que havia se tornado um corvo antes, e que esse pequeno né iria crescer e se transformar no seu bico. Mergulhou em meditacdao. Agora entendia, de repente, que era um ser livre, algo independente que nao estava pregado no que o ro- deava. Rastejou pela argila, devagar e com cuidado. Queria descobrir onde estava. De repente, suas mGos encontraram um espaco vazio a sua frente e ele per- cebeu que nao devia avangar mais. Depois pegou um toco de argila e o atirou na fenda. Prestou atengado porque queria ouvir quando o barro duro chegasse no fundo, mas ndo escutou nada, e por isso se afas- tou do abismo e encontrou um objeto duro que enter- rou na argila. Ele ignorava porque havia feito isso, mas fizera, e depois se sentou de novo em meditacao, refletindo sobre o que poderia existir em toda essa funda escuridéo que o rodeava. Entéo escutou um tre- mor no ar e uma criatura muito pequena e leve pou- sou em sua mdo. Com a outra mao ele a tocou e sen- tiu que tinha bico, asas e penas quentes e macias no corpo, e miniusculos pés despidos. Era um pequeno pardal, e que ele percebeu que jé estava ali antes dele e tinha vindo em sua diregdo, proveniente da escuri- dao, saltitando a sua volta, e ele nao 0 havia notado antes que o tocasse. Como esse homem gostava de contato social, tornou- se mais ousado e avancou mais corajosamente raste- Jando sobre a terra e se aproximou de um lugar em que tinha enterrado uma coisa antes, e esta havia criado raizes e se tornado viva: um arbusto tinha bro- tado e a terra ndo era mais estéril pois a argila nua 35 36 estava agora coberta de arbusios; e tinha grama tam- bém. Mas 0 homem ainda se sentia sé, e por isso for- mou uma figura de argila que lembrava a sua, e en- tdo novamente se sentou crocitando e esperando. As- sim que o novo ser humano se tornou vivo, comegou a cavar a terra com as mdos. Nao tinha sossego e cava- va incessantemente, constantemente, toda a terra & sua volta, e, entdo, ele descobriu que esse outro ser humano tinha um perfil psicoldgico diferente do dele, e que possuta um temperamento quente, prontamen- te irritdvel, além de atitudes violentas. Ele nao gos- tou disso e arrastando-o até 0 abismo jogou-o 14 den- tro. Esse ser, se diz, tornou-se mais tarde Tornaq, 0 esptrito mau, de quem descendem todos os maus es- ptritos da terra. Depois, 0 homem rastejou de volta para a drvore que ele havia plantado, e viu que ali havia outras drvores, uma atrdés da outra. Tinha se tornado uma floresta com um solo rico, e as plantas haviam nascido por todo lado. Ele as tocou com as mdos e sentiu seu formato, seu aroma, mas nao con- seguia vé-las. Por isso se sentiu compelido a saber mais sobre a terra que ele mesmo havia fundado e foi se arrastando para cd e para ld, com o pequeno par- dal sempre voando sobre a sua cabega. Ele ndo podia vé-lo, mas sempre escutava suas asas e, as vezes, ele pousava em sua cabega ou em sua mao. Mas o ho- mem se arrastava pelo chao, no escuro, porque nado ousava andar em pé no escuro, e por toda parte depa- rou com dgua e assim descobriu que estava numa ilha. Agora, queria saber o que havia 14 embaixo, no abis- mo, e pediu ao pequeno pardal que descesse para des- cobrir. Diante disso, a ave saiu voando e ficou fora muito tempo; quando retornou, disse que la embaixo, no abismo, existia terra, uma terra nova que tinha acabado de formar sua crosta. O homem decidiu des- cer e pediu ao pardal que se sentasse sobre seus joe- Ihos. Entéo ele notou como o bicho era feito e tentou descobrir como o pardal conseguia se manter suspenso no ar pelas asas. Pegou, entdo, gravetos da floresta que pareciam asas e colocou-os nos ombros. Os sravetos se transformaram em asas de verdade, e dele mesmo nasceram penas que cobriram seu corpo e 0 no6 em sua testa comegou a crescer e formar um bico. Agora, 0 homem percebeu que podia voar como o pe- queno pardal, e eles satram voando juntos. O homem disse: “G6uq! Géuq!” e havia se tornado uma grande ave negra e se autodenominou Corvo. A terra de onde vieram foi por ele chamada de Céu. Ficava téo longe quanto hoje o céu é distante da ter- ra, de modo que quando chegaram ao fundo estavam completamente exaustos. Ali tudo era deserto e esté- ril, e ele novamente plantou a terra como havia feito com o céu e saiu voando para todo lado e chamou essa nova drea de Terra. Depois, para habitar a Ter- ra, ele criou seres humanos. Alguns dizem que ele os criou de argila, da mesma maneira como tinha feito o primeiro ser no Céu; outros relatam que ele criou 0 homem. por acaso, 0 que seria ainda mais estranho do que se ele o tivesse criado pela forca da vontade e de proposito. Pai Corvo andou pela Terra e plantou ervas e flores. Descobriu uns casulos e ao olhd-los abriu um; um ser humano pulou de dentro, lindo e completamente cres- cido, e o Corvo ficou téo espantado que arrancou sua mascara de ave e, com essa admirac¢do, tornou-se de novo ele também um ser humano. Acercou-se rindo do homem recém-nascido e disse: “Quem é vocé e de onde vocé vem?” O homem disse: “Venho deste casu- lo”, e mostrou o buraco de onde ele havia saido. “Eu ndo queria ficar mais deitado 1é dentro, entdo forcei o casulo com os pés e abrio buraco, ¢ saltei para fora”. Com isso, Pai Corvo deu uma gargalhada e disse: “Bem, bem, vocé € mesmo uma criatura estranha! Nunca conheci nada como vocé!” Depois riu de novo e acrescentou: “Fui eu quem criou este casulo, mas néo 37 sabia o que nasceria dele. Mas a terra na qual vocé esté caminhando ainda néo estd terminada. Vocé néo sente como ela treme? Devemos ir para um lugar mais alto, onde a crosta seja mais dura”. E assim apare- ceu o primeiro homem e mais tarde Pai Corvo criou todos os outros seres.’ Vou pular o resto da histéria, que fala de como fo- ram feitos os ursos, raposas e todas as aves etc., ede como, sempre com a ajuda do pardal, Pai Corvo péde dar um outro passo adiante. Ele ensina os seres humanos a cons- truir casas e caiaques, a fisgar peixes etc. Um dia, uma enorme massa negra saiu do mar e 0 Pai Corvo ajudou os seres humanos a mata-la. Era um monstro marinho. Eles o cortaram em pedagos, que atiraram para varios lados, e desses surgiram todas as grandes ilhas. Assim, lentamen- te, a terra cresceu e se tornou um lugar onde habitavam as pessoas e as criaturas. A historia termina dizendo que, quando a terra tinha se tornado no que devia, o Corvo reuniu todos os seres hu- manos e disse: “Eu sou o seu Pai e vocés devem a mim a terra que tém e sua pessoa, e nunca devem me esquecer”. Entao, partiu voando da Terra e subiu ao Céu onde ainda era escuro, mas ele havia recolhido algumas pederneiras da terra e com essas criou as estrelas. Atirou no céu 0 que havia sobrado das pedras, e delas surgiu um grande fogo que derramou luz sobre a Terra, e assim foram criados 0 Céu e a Terra. Foi dessa mancira que a Terra e todos os seres humanos e todos os animais comecgaram a existir; entretanto, antes desses todos existia o Corvo, e antes deste ainda havia o pequeno pardal. Essa é uma linda histéria que mostra que 0 processo de despertar para uma percepcao de realidade é parecido com o estado de Animo de quem sai de um estado de in- 7Knud Rasmussen, Die Gabe des Adlers (Frankfurt am Main: Societits- Verlag, 1937), p. 47. 38 consciéncia. Este é projetado no Pai Corvo que, por assim dizer, se torna lentamente consciente e, a luz dessa cons- ciéneia, a realidade comeca, ao mesmo tempo, a existir. Ocorrem aqui alguns motivos que nao discutirei, mas nos quais retornarei depois, numa conexao posterior. Um «diz respeito aos dois seres originais: Pai Corvo e 0 pequeno pardal, Mais adiante, veremos que é muito difundido o motivo de haver, no principio, um criador relativamente mais ativo, um Deus protagonista de criacdo; ele tem uma figura de sombra que 0 acompanha, que é passiva e lem- hra 0 pequeno pardal, que s6 esta ali, e praticamente nao fay nada além de existir; contudo, é absolutamente neces- sitrio como contraparte. De acordo com esta historia, ele é inclusive mais antigo do que o protagonista ativo. Tam- hém vemos aqui o motivo da forma humana do primeiro ser criativo, uma figura de antropos que vocés irdo perce- ber que 6 um outro motivo arquetipico muito difundido nos mitos de criagao. A criagéo comeca na forma do homem; s6 depois 6 que aparecem todas as outras formas. No nosso mito, vemos a imagem de um criador incons- ciente, que cria 0 mundo de uma maneira intermediaria, descobrindo-o, tornando-se consciente dele e, em parte, por atos acidentais como atirar barro numa fenda, ouvir e de- pois plantar uma semente e mais tarde descobrir um ar- busto e depois plantar o casulo. Mas, como ele confessa, nao tinha nogao do que poderia sair dali e ficou absoluta- mente pasmo quando apareceu um ser humano. Ele nao havia tencionado criar um ser humano. No entanto, esse criador nao é tdo inconsciente e animalesco quanto outros criadores dos mitos primitivos, pois é dito que as vezes sen- tava-se e mergulhava em meditacdo. O termo em aleméo diz que ele afundava em “pensamentos”. Isso significa que cle dé um passo no sentido da criagao: ele reflete e cogitaa respeito. Também acontece um certo grau de planejamen- to, como quando ele quer saber o que ha no abismo. Tenta igualmente imitar 0 pardal que tem asas, quando quer descer até o fundo desse mesmo abismo. 39 Esse despertar da consciéncia pode ser encontrado no mito de criagao dos Winnebago, publicado por Paul Rudin. Neste, desde as primeiras palavras, esta dito: “No principio, o Que Faz a Terra /i. e., o criador, que é uma figura paralela 4 do Pai Corvo] estava sentado no espaco quando chegou a consciéncia e nao havia nada mais em parte alguma”.® Aqui, ha o mesmo motivo: primeiro exis- te um ser completamente inconsciente de forma humana, © seu primeiro passo é despertar para uma percepgao cons- ciente do mundo externo. Se isso nao prova que a historia da origem do mundo e da origem da consciéncia desse mesmo mundo, sao fatores absolutamente coincidentes, ndo sei o que mais possa prova-lo. A criagéo por ato acidental é um fato altamente im- portante, quando buscamos alcancar o entendimento do processo criativo no inconsciente. Vocés sabem que quan- do tentamos desenhar ou pintar, costuma acontecer de, por engano, fazermos uma mancha. O pincel se move errado, por “vontade propria”, e faz uma marca feia. Mui- tas vezes, quando permitimos que esses acidentes acon- tecam, de repente enxergamos um rosto ali, ou fazemos uma figura para cobrir a mancha e, com isso, muda toda a imagem. Esses acidentes sao um dos fatores mais cons- telados da fantasia inconsciente. Na arte moderna, eles desempenham um papel significativo; alguns artistas até cultivam essa forma de criagdo na qual manchas, furos e objetos achados por acaso séo, num determinado momen- to, inseridos na figura total. Esses artistas buscam apro- ximar-se do processo criativo acolhendo as coisas aciden- tais que se oferecem espontaneamente. E por isso que, quando deixamos um analisando entrar num processo de imaginacao ativa e ele é pintor, em geral nds o aconselha- mos a escrever em vez de pintar e, se é escritor, a pintar em vez de escrever, porque onde somos incapazes, e por- 8 Paul Radin, Winnebago Culture as Described by Themselves (Baltimore: Waverly Press, 1950), p. 9. 40 (anto, impotentes e inconscientes 6 muito mais provavel «ue esses acidentes acontegam. Se vocé nao puder pintar, acontece que o inconsciente constela muito mais nesse ato de pintar, ao passo que se vocé domina uma forma de arte © 6 muito habil e, por conseguinte, capaz de excluir essas interferéncias acidentais perturbadoras do inconsciente, vocé sabe como manejar o pincel e pode prevenir as man- chas; mas, se vocé é incapaz e fica infeliz quando faz uma pintura borrada e é tomado por uma emocio, pois ficou (rabalhando naquilo durante trés horas e tudo ficou hor- rivel, entao vocé mergulha num afeto e o inconsciente se manifesta! De repente, vocé tem uma fantasia a respeito da mancha que lhe diz alguma coisa, como uma mancha de Rorschach; logo é realmente uma imagem que vem do inconsciente. Vocé tem a sensagéo de que é uma coisa es- pontanea que apareceu exatamente quando vocé ficou com raiva e queria rasgar aquilo em mil pedagos. Portanto, ajuda a entrar no mesmo estado de Animo do Pai Corvo, de tatear no escuro e se sentir perdido: ent&o, 0 processo criativo do inconsciente é constelado. Por isso é que, na imaginagéo ativa, é importante usar um meio no qual a pessoa nao seja eximia, nao domine qualquer técnica que possa excluir a interferéncia do inconsciente. Na histéria das invengées da civilizagao ha muitas que foram descobertas por acaso, quando a pessoa estava brincando com um objeto e, subitamente, teve uma idéia. Schiller chega inclusive a dizer que o homem esta no mais elevado de si mesmo quando brinca, quando nao age mo- vido por propésitos conscientes. A criatividade pelo lidico é um fator tao conhecido e essencial que nem se precisa assinald-lo. Todavia, constatamos repetidas vezes que se tentamos induzir nossos analisandos a fazer uma imagi- nagao ativa todo o racionalismo cético salta a vista: 6 uma perda de tempo, nao é possivel fazer isso, ndo sei dese- nhar, nao tenho tempo para isso hoje, nem amanha, nao estou inspirado — e todas as outras formas de resistén- cias e bloqueios da consciéncia que possam ser citadas. Mas todo novo comego, assim como todo processo essen- 41 cial de consciéncia, deve primeiro provir de um estado des- ses; somente entao, o ser humano se mostra aberto o sufi- ciente para deixar que o novo elemento penetre e permita assistir 0 desenrolar do que vier. Muitas pessoas criati- vas acendem sua criatividade com uma depresséo monu- mental. Elas tem uma consciéncia do Eu tao bem cons- truida e tao forte que o inconsciente precisa recorrer a meios muito enérgicos — como envid-las a uma depres- sao infernal — antes que consigam se soltar o suficiente para deixar que as coisas acontecam espontaneamente. Observei que as pessoas que tendem a ter essas depres- sées criativas, se puderem antecipa-las brincando, nao ne- cessitam entrar na depressio e sempre que se consegue induzir alguém que esta em séria depressio a comegar alguma brincadeira, o estado depressivo imediatamente se desvanece, pois a intengéo secreta final dessa espécie de depressdo 6, como o proprio termo demonstra, depri- mir, abaixar o nivel da consciéncia, para que esses pro- cessos entrem em aco. Isso entao é a escuridéo, a nigre- do, no qual o Ser divino mais elevado deste conto esqui- mé6 esta assentado, como sfmbolo de algo que ocorre vezes e vezes seguidas sempre que aparecer um impulso criati- vo essencial da consciéncia. 42 Capitulo 3 CRIACAO QUE VEM DE CIMA, CRIACAO QUE VEM DE BAIXO Quero passar agora para o proximo motivo impor- tante, ou seja, a criacgdo que acontece de cima para baixo, e de baixo para cima. No exemplo que estarei citando, de forma relativamente detalhada, os dois motivos apare- cem na mesma historia. Minha intengdo 6 sempre apre- sentar um mito de criagao com mais detalhes, ja que re- presenta um tipo completo de mito, ao passo que os ou- tros sé sao citados em parte, pois penso que dessa manei- ra podemos formar uma nocg&o muito melhor do mito do que se passarmos correndo por uma série de motivos iso- lados. O mito que vou narrar foi extraido da tribo dos iro- queses, que sao nativos norte-americanos.® De acordo com esse mito, havia do “outro” lado do céu, virado de costas para nés, seres que eram chamados Ongwe. As notas dizem que 0 termo Ongwe significa ho- mem-ser e representa as imagens de todas as coisas que existiram posteriormente na terra, i. e., uma imagem das casas, uma imagem das Arvores, e de todos os animais.'° Esses arquétipos — no posso evitar essa expressao — de ° J..N. B. Hewitt, Jroquoian Cosmogony, vol. 21 (Washington, D. C.: Annual Reports of the Bureau of American Ethnology, 1908). 4° Indianermdrchen aus Nordamerika, dentro da série “Marchen der Weltliteratur” (Jena: Diederichs Verlag, 1924), p. 93. 43 todas as coisas terrenas eram chamados de Ongwe, e vi- viam naquele lado do virado de costas para nds. O céu era entendido como uma espécie de cipula sobre a nossa terra, e as Ongwe viviam além dele. Veremos mais adiante que algumas dessas Ongwe eram identificadas com constelacées das estrelas fixas. Viviam em casas, iguais Aquelas em que os iroqueses moravam. Geralmen- te saiam para cagar pela manha e voltavam para casa ao entardecer. Assim, as Ongwe levavam realmente uma vida similar a que os iroqueses depois tiveram. Num certo local havia duas Ongwe, um homem e uma mulher, pessoas de alia posigao, que levavam uma existéncia muito religiosa e solitéria. Um dia a mu- lher foi até o local em que vivia 0 homem. Ela pos- suia um pente e disse a ele que ficasse em pé pois que- ria pentear-lhe os cabelos. Ele se ergueu e ela pen- teou o cabelo dele. Todos os dias acontecia a mesma coisa. Mas logo os parentes da mulher comegaram a falar entre si porque ela estava mudada, e a cada dia ficava mais evidente que ela iria ter um filho. A mae dela, uma pessoa idosa, reparou e perguntou a filha com que homem ela se havia deitado, entretanto a moga ndo respondia. Ao mesmo tempo, o homem fi- cou doente e a mulher velha foi até ele e lhe pergun- tou se ele se sentia mal. Ele respondeu: “Oh, Mée, preciso lhe dizer que vou morrer.” A mae disse: “Mor- rer! O que isso quer dizer?” Pois aquelas pessoas que viviam no céu naéo sabiam o que significava morrer; até enido, nenhuma Ongwe tinha morrido. O homem prosseguiu: “Quando eu morrer, aconteceréo as se- guintes coisas: a vida deixard 0 meu corpo, que se tornaré completamente frio. Oh, Mée, depois vocé deve fazer o seguinte: deve me tocar com as suas méaos dos dois lados do meu corpo, e deve me olhar fixamente quando perceber que eu estou morrendo. Quando vocé vir que a minha respiragéo esté ficando mais fraca, saberé que eu estou morrendo, e entéo deve colocar 44 as suas méos sobre os meus olhos. Vou dizer-lhe mais uma coisa: vocé deve fazer um caixdo e colocar meu corpo la dentro, como numa tumba, e depois colocar o caixdo num local alto”. A mulher fez como lhe ha- via sido dito e tudo aconteceu como fora previsto. Eles o colocaram num caixdo que foi depositado num lo- cal elevado. Entéo, a mulher velha perguntou & mu- lher nova, outra vez, quem era o pai da crianga, mas de novo nao obteve resposta. A crianga, uma menina, nasceu e se desenvolveu ra- pidamente e logo estava correndo por todo canto. Mas depois comegou a chorar e ninguém sabia por qué, e ela chorou durante cinco dias. A avo entdo disse que deviam mostrar para ela o caixdo, e levaram a garo- tinha até ld e a suspenderam. Quando ela viu 0 ca- déver do pai parou de chorar, mas téo logo a desce- ram ela chorou de novo. Isso aconteceu durante dias, e eles sempre tinham de levd-la de volta para ver o homem morto. Um dia, a crianga voltou com um anel que o homem morto tinha usado e eles a repreende- ram e perguntaram por que ela havia pego o anel. A crianga disse que fora o homem que lhe dissera para tomd-lo, porque ele era realmente seu pai e, depois disso, mais ninguém disse uma palavra a respeito. Depois de algum tempo, o pai de dentro do caixdéo chamou a menina, e lhe disse que tinha chegado o momento de ela se casar, e que deveria levantar-se bem cedo na manhé seguinte e dirigir-se a um lugar muito distante, que ele lhe indicaria, no qual ela iria encontrar um chefe de boa reputagdo cujo nome era Hoohwengdschiawoogi, 0 que significa “Aquele que sustenta a terra”, e esse era 0 homem com quem ela deveria se casar. Assim, a moga se aprontou e partiu no dia seguinte. [Vou pular os detalhes da viagem que o pai morto lhe deuj. Mas ela precisava atravessar um rio em que havia um dragéo e esse dragdo era a Via Lactea. Ela 45 46 precisava cruzar uma série de constelagées perigosas «usim como resistir aos ataques do dragdo das tem- pestades e outros perigos. Finalmente, ela chega na cabana desse chefe, ao lado da qual encontra-se uma drvore Onodscha cujas flores emanam luz, a luz que vemos na terrae que também dava luz para as Ongwe. Ela entra na cabana, apdia a cesta no chao, e diz: “Vocé e eu vamos nos casar”. O chefe nao dd resposta, mas estende um tapete no qual ela pode se acomodar e lhe diz que pode ficar ali a noite toda. Na manha seguinte, pede a ela que se levante e vé trabalhar, como era costume das mulheres. Ela deve cozinhar o milho, mas, ao fazer isso, sente dores muito fortes por- que ele mandou que ela ficasse despida enquanto co- zinhava, e seu corpo ficou queimado com a massa quente de milho que espirrava da gamela. Todavia, ela apertou os dentes e suportou a dor. Todas as ve- zes, depois de ela haver tolerado o sofrimento, ele cura seu corpo com dleo. Ficam juntos mais duas noites. No quarto dia, o chefe the diz que ela pode voltar para casa; ele simplesmente a manda de volta e lhe pro- mete que lhe enviard o milho como recompensa pelo que ela havia feito. Assim, a mulher volta pelo caminho perigoso que havia cruzado na ida [novamente vou omitir alguns dos detalhes dessa parte da viagem], mas quando regressa para os pais fica com saudades do marido e volta a ficar com ele. Ela faz a viagem trés vezes. O chefe fica mutto surpreso em vé-la novamente, mas um dia percebe que ela esta gravida. Dia apés dia, noite apés noite, ele pensa sobre isso e nao consegue compreender como ela engravidou, pois ele nunca a tocou fisicamente. Ele estd estupefato. Ele acha que aconteceu quando o hdlito dos dois se fundiu enquan- to conversavam. Mas é dbvio que ela daré 4 luz uma crianca. O chefe fica transtornado e pergunta para ela quem pode té-la engravidado, mas ela néo enten- de. Entao o chefe que “sustenta a terra” fica muito doente e sente que estd para morrer. Ele diz para a esposa que agora estd bastante seguro de que uma menina Ongwe ird nascer e diz que ela deve alimen- tar e amamentar essa menina que crescerd e deveré ser chamada Gaengsdesok — “Doce Vento Rodopian- te”. A esposa né&o entende o que ele lhe diz, mas de- pois de um tempo dé &@ luz uma menina e, apés dez dias, ela a leva embora. Lentamente os sofrimentos do chefe pioram cada dia mais. Por isso, ele diz que a drvore Onodscha, a drvore de luz que fica ao lado de sua cabana, deve ser arrancada pelas ratzes; entéo a terra [que é na realidade a cuipula do céu] ficaré com um buraco e, ao lado desse buraco, ele deve ser colo- cado com a esposa sentada perto dele. Assim é feito e, tao logo a mulher se senta perto do buraco com ele, diz que eles devem olhar juntos para baixo e que ela deve por Gaengsdesok nas costas e embrulhd-la cui- dadosamente com roupas. Ele lhe dé um pouco de comida e lhe pede que se sente ao lado dele com as pernas penduradas pelo buraco. Ele sugere que ela olhe para baixo e, enquanto ela esté olhando, ele a segura e a empurra para baixo pelo buraco. Assim que ela comega a cair, 0 chefe se pée em pé e se sente muito melhor. Diz que agora é novamente o Velho, que se sente muito bem de novo, e que a drvore Onodscha deve ser novamente erguida. Ele sentira citime da Autora Boreal e do Dragto de Fogo, com seu corpo branco — um dos dragées que ela havia transposto; era por isso que ele adoecera, pois tinha pensado que talvez um deles fosse o pai da crianga e, por causa de seu citime, ele a empurrara pelo buraco. A mulher que fora empurrada pelo buraco no céu afunda pela escuridéo sem-fim. Todas as coisas ao seu redor sdo de cor azul escuro; ela naéo consegue ver nada e ndo sabe o que lhe acontecerd &@ medida que vat afundando cada vez mais. As vezes ela enxerga alguma coisa, mas nao sabe o que é. E a superficie de uma grande dgua com muitas aves aquaticas que nela 47 nadam. Uma dessas aves de repente solia um grito e diz que um ser humano, uma mulher, esté saindo da dgua: ele esté olhando para a dgua e vé a miragem. Uma outra, no entanto, relata que ela nao esté saindo da dgua mas descendo dos céus [Aqui vém-se os dois movimentos.] As aves fazem uma rdpida conferéncia sobre o que podem fazer para salvar a mulher. Todas elas alcam v6o juntas e, quando alcangam a mulher, carregam-na as costas e lentamente descem com ela. Nesse interim, uma grande tartaruga chega a super- ficie da agua, e as aves depositam a mulher nas cos- tas largas desse animal. Entdo [e este é um motivo famoso e bastante recorrente em muitos mitos de cria- ¢do norte-americanos] algumas aves tentam mergu- lhar para recolher terra e, no final, uma delas conse- gue trazer um tanto de volta. Elas espalham essa ter- ra nas costas da tartaruga e, quando fazem isso, a terra fica ld, se espalha e se torna toda a superficie terrestre de nosso mundo. Nesse meio tempo, a mulher novamente engravida porque [e isto 6 sé assinalado de passagem, mas vocés devem guardar o detalhe em mente], durante a que- da, a crianca tornou a entrar em seu utero. O nasci- mento que jd tinha acontecido no céu se torna regres- sivo, por assim dizer; quando a mulher chega nas costas da tartaruga da terra, ela fica novamente gra- vida da menina e dd outra vez & luz o Doce Vento Rodopiante. Mae e filha entdo ficam juntas e a meni- na cresce com notével velocidade. Mais uma vez, essa menina encontra um homem desconhecido. O mesmo tema se repete trés vezes. De maneira misteriosa, ela , engravida. Seu marido é um homem que parece in- dio: ele tem uma flecha e mais tarde é dito que ele éo esptrito da grande tartaruga na terra. A menina en- téo dé & luz a um par de gémeos; um, que é um tipo positivo de salvador, cria 0 mundo e a humanidade; 0 outro, que é negativo, um ser diabdlico, cria todas as coisas destrutivas tais como os mosquitos e os ani- mais ruins [i. e., os aspectos desagraddveis da cria- ¢do. Como temos um outro capitulo reservado para o motivo dos gémeos, nao quero entrar em detalhes so- bre o mesmo agora; iria atrapalhar]. Segundo alguns comentaristas, a primeira gravidez da primeira mulher Ongwe decorre do fato de ela haver penteado o cabelo do marido e, provavelmente, pensa 0 comentarista, ter engolido algum piolho dele. Sabemos que entre alguns povos primitivos é um gesto amistoso pentear o cabelo de alguém, e ha quem nao sé esmague os piolhos entre as unhas como efetivamente chegue a comé- los. E um motivo mitolégico famoso o de que uma gesta- ¢4o sobrenatural possa ocorrer por meio de pulgas ou ou- tros insetos do género. O piolho, no simbolismo, normal- mente tem o significado de um pensamento completamen- te auténomo, de algo que fica na cabeca, embora nao se queira, e suga o sangue. E um simbolo maravilhoso para idéias obsessivas: idéias que ficam na mente, subjugando todos os outros pensamentos e, ao mesmo tempo, sugan- do o sangue, sorvendo a energia psiquica. Fiquei muito impressionada ao constatar o quanto é vivo esse simbolismo do piolho quando visitei, na Améri- ca, uma das grandes instituigdes perto de Sao Francisco, o Hospital Estadual de Napa Valley. Um dos médicos apresentou-me uma senhora polonesa de origem muito simples que, de acordo com o diagnéstico, era esquizofré- nica. Era de tipo muito comunicativo e vivia em estado delirante, que ela parecia apreciar bastante. Trabalhava no hospital e nao era infeliz em seu delirio. Quando o médico lhe pediu que ela me contasse algumas de suas idéias acerca do sistema do mundo, ela despejou uma imensa quantidade de material mitol6gico. Disse que ti- nha visto Deus, qual a fisionomia dele, como 0 mundo ti- nha sido criado, e assim por diante. E entao, no meio de uma longa histéria, ela disse que na lua viviam todos 0s indios e loucos — os “lundticos” — e que as pessoas que enlouqueciam eram aquelas que constantemente se es- 49 quociam de catar os piolhos, aqueles que nado esmagavam on piolhos de suas cabegas! Ai é possivel ver ainda o sim- bolismo original numa linda ilustragéo, pois quem nao critica nem luta continuamente com as idéias obsessivas, que nao catam os piolhos — e dizem “Mas 0 que é isso? O que estou pensando? Isto é verdade?” — s&o os que vao para a lua, para o nivel dos lunaticos e indios: regridem a um estado primitivo. Fiquei impressionada ao encontrar o simbolismo do piolho nesta forma moderna. Em muitas mitologias, as divindades ou deménios da terra roubam seres humanos para pegar os piolhos deles. Existe um famoso motivo na mitologia esquimé da deusa Sedna, que vive sob 0 mar e é responsavel por cui- dar de todas as criaturas marinhas, as focas, baleias e peixes. Entretanto, quando nao ha focas ou outras cria- turas para cagar, tem-se 0 sinal de que a cabega de Sedna esta cheia de piolhos e sujeira. Quando isso acontece, um xama tem de mergulhar no mar para encontrar Sedna, que entao vai estar de péssimo humor, e portanto muito perigosa de ser abordada, pois tentara matar qualquer um que chegue perto dela. O xama tem de se aproximar, pentear-lhe o cabelo, limpar sua cabega e catar todos os piolhos; depois disso, ela o agradecer efusivamente e no- vamente enviara animais para os esquimés cacarem. Isso deve ser feito periodicamente. Ha um crescimento cons- tante de contetidos auténomos no inconsciente, que po- dem se tornar destrutivos se 0 homem nao cuidar deles devidamente. Estou me delongando nos comentarios sobre esse mo- tivo porque é uma variagao do motivo da criag&o que come- ca com um evento completamente acidental: a mulher pen-. teia o cabelo do marido e talvez tenha comido um piolho. Isso é inclusive uma conjectura e nao esta contida no texto, mas decorre de uma seqiiéncia de eventos que, a mim, pare- cem extremamente significativos: esses mintsculos inicios apontam para a presenca do fendmeno de um pensamento auténomo que vem vindo de algum lugar do inconsciente e que futuramente tera enormes conseqiiéncias. 50 O motivo do pai que adoece assim que a mae engra- vida é repetido duas vezes. No primeiro caso, ele morre; ©, no segundo, teria morrido se néo houvesse empurrado 4 esposa para baixo, rumo a terra. O motivo do “primeiro ser que morre” também reaparece em algumas outras cos- mogonias. Agora quero apenas aponta-lo: mais adiante, discutiremos este aspecto em conexdo com o motivo dos sémeos e com a idéia de que se uma coisa se torna real, alguma outra tem de desaparecer e passar pelo umbral, caindo do outro lado. Pode-se dizer que, no inconsciente, tudo 6 e nao 6, Quando se torna consciente, “é”, e portan- to 0 aspecto “nao é” também se torna manifesto. Pode-se, inclusive, dizer que, no inconsciente, tudo 6 tudo, dd-se uma completa contaminagdo dos contetidos, mas assim que um conteudo ultrapassa o limiar da consciéncia, tor- na-se definido e, nessa medida, se destaca do contexto em que estava inserido; recua e morre, ou se torna o aspecto de sombra da coisa. O motivo da criagaéo essencialmente vinculada com algo que esta morrendo ou sendo destrui- do reaparecera em muitos outros contos. Quero primeira- mente apresentar um levantamento de diversas variacgdes do mesmo motivo, antes de nos dedicarmos mais de perto a interpretacgéo do mesmo. Nesta histdria, pretendo ater- me essencialmente ao motivo de cair, do alto para o fun- do, ¢ ao motivo da imagem refletida da mulher como se estivesse saindo do fundo para o alto. Acerca do motivo da Ongwe, ou seja, que no céu ha- via antigamente todo o conjunto de imagens arquetipicas das coisas que, mais tarde, comecaram a existir na terra, nao ha muito o que dizer. De um ponto de vista junguiano, é uma confirmagao do que descobrimos partindo de um angulo completamente diferente, ou seja, dos arquétipos. Pode-se dizer que as Ongwe sdo as imagens arquetipicas no inconsciente coletivo. Em nosso primeiro mito de cria- ¢ao havia um motivo semelhante. Pai Corvo primeiro cria tudo no céu e depois desce voando pelo abismo adentro, e recria tudo da mesma maneira na terra: as coisas sao to- das criadas primeiramente no céu e uma réplica é criada, 51 dopoin, na terra, Este padrao nao se limita aos aborige- How norle-americanos ou do Alasea, mas pode ser identi- fiundo om toda parte, e sugiro a leitura de uma coleténea dosnos motivos no trabalho de Eliade, O mito do eterno retorno. Ble diz, na secdo intitulada “Arquétipos celestes do territérios, templos e cidades”: Segundo as crengas da Mesopotamia, o Tigre tira seu modelo da estrela Anunit, e o Eufrates da estrela da Andorinha. Um texto sumério fala do “lugar da cria- cdo dos deuses”, em que “a [divindade] dos rebanhos e grdos” pode ser encontrada. Para os povos dos mon- tes Urais, hé da mesma maneira um protétipo ideal no céu. No Egito, lugares e casas eram denominados segundo os “campos” celestiais: primeiro os campos celestiais eram conhecidos, depois eram identificados na geografia terrestre. Na cosmologia iraniana da tradicao zarvanitica, “todo fendmeno terrestre, quer abstrato, quer concre- to, corresponde a um termo celestial, transcendental e invisivel, a uma “idéia” no sentido platénico. Cada coisa, cada nogao, se apresenta sob um duplo aspec- to: o de menok e o de getik. Hé um céu visivel; por- tanto, também haé um céu menok que é invisivel...”!! Ha centenas de outros exemplos similares, nos quais se pode ver que essa idéia de tudo ter uma réplica, ou melhor, uma imagem modelo no céu, pode ser encontrada em muitas civilizagées e, finalmente, mas nao por ultimo, na filosofia platénica, embora nesta tenha se tornado li- geiramente abstrata. Crencas mais primitivas, de civili- zacées que progrediram menos em uma tradicao consciente coletiva, contém o mesmo motivo, mas ai as imagens-mo- delo nao ficam no céu, e sim na terra. Por exemplo, os indios naskapi, uma tribo muito primitiva que vive na 1 Eliade, The Myth of the Eternal Return, p. 6. 52 peninsula do Labrador, assim como algumas tribos afri- canas, contam que todas as espécies de animais tem um animal médico-rei, que é responsdvel pela vida de todos os demais. Digamos que entre os wapiti — ha centenas e milhares deles na mata — existe um fantasma, ou super- wapiti, que vocé jamais deve matar, ferir ou aborrecer. Nao se pode de fato mata-lo, mas se vocé disparar contra esse super-wapiti, contra essa “idéia” wapiti, entdo todos os outros desaparecerdo da mata e nao se podera mais achar nenhum. Esse é 0 responsavel pelo fato de que ha- via wapitis e 6 o nico principio por tras da multiplicida- de dos outros wapitis. Portanto, o cacador que depara com esse animal arquetipico deve mostrar o devido respeito e nunca feri-lo ou disparar contra ele, ou matad-lo, porque se fizer isso estard destruindo todas as suas chances de uma boa cagada. Essa é a mesma idéia que as cosmogonias apresentam, mas 0 animal arquetipico, aqui, este super- wapiti, vive na terra em meio as outras criaturas, nao distante, no céu. Nesse padrao, pode-se ver o que hoje seria possivel descrevermos como 0 inconsciente coletivo € 0S processos psiquicos ainda completamente entrelaca- dos na realidade externa, e a tal ponto que existem na mesma esfera. No mito Ongwe, acontecem coisas de uma ordem mais desenvolvida: a idéia da Arvore arquetipica e do animal arquetipico etc., diz que essas criaturas nao estao na ter- ra mas vivem em algum lugar além do Céu. Isto corres- ponde a uma experiéncia que ocorre reiteradamente. Tro- pecei eu mesma com ela, numa experiéncia pessoal, ha quatro anos, quando construi uma casinha de férias, um chalé que terminou tendo um formato bastante simbéli- co. Naturalmente, como construir é uma empreitada muito empolgante, fiquei completamente perdida na coisa e to- dos os dias me cobria de cimento e po. Acompanhava cada etapa da construgéo com grande prazer e, aparentemen- te, de acordo com o inconsciente, deixei-me entusiasmar um pouco além das medidas, porque tive um sonho no qual havia uma réplica exata da casa que eu estava er- 53 guendo no Além, e que eu nao devia me esquecer disso. Fiquei muito impressionada com essa imagem e contei 0 sonho para Jung, que riu a plenos pulmoes e disse: “Nao é mesmo engra¢ado? Tive a mesma experiéncia!” Ele nunca me dissera nada sobre isso até ent&o, mas naquele dia fa- lou que, quando estava fazendo sua torre em Bollingen — que é muito simbGlica, e ele havia iniciado a construcio com 0 esquema de uma mandala —, também tivera um sonho, em que no Além havia aquela mesma Bollingen, numa réplica, e que teve a sensacéo de que nao se deve esquecer que, ao fazer algo criativo na realidade, isso nao passa de uma réplica, de um segundo modelo, de algo cuja realidade estava no Além e permanecia 14. Isso foi ha ape- nas quatro anos, mas desde entao tive trés outros sonhos nos quais sonhei com uma casa do Além, que parece exata- mente a mesma; entretanto, possui uma espécie de atmos- fera magica. Toda vez que sonho com a casa do Além, um evento muito essencial e importante sempre acontece nela. Esse 6 um exemplo moderno; pode-se imaginar como essas crengas provavelmente se originaram porque se eu quises- se criar uma crenga a partir dos meus sonhos, saberia ago- ra que minha casa 6 apenas uma réplica de uma casa Ongwe no Além, que sentia a extrema necessidade de re- petir aqui na terra. De maneira completamente auténo- ma, essa idéia reapareceu, e 6 provavel que tais experién- cias oniricas tenham também induzido os indiés a cons- truir essa tradigaéo. A casa do Além com a qual sonhei era naturalmente eterna, uma casa que n4o poderia ser des- truida nem pelo fogo nem pela agua, e onde se pode morar depois da morte. A casa deste plano ira sofrer naturalmente o mesmo destino de todas as casas da terra. A criagdo é um evento repentino e auténomo que, de uma perspectiva psicologica, poderiamos dizer que ocor- re no inconsciente coletivo sem qualquer outro motivo. Aqui podemos perceber, em forma mitolégica projetada, uma confirmagao da hipétese junguiana de o inconscien- te ser dotado de uma criatividade auténoma. A visdo freudiana, o inconsciente é somente — dizendo nua e crua- 54 mente — uma lata de lixo na qual contetidos inaceitaveis da consciéncia e da experiéncia pessoal séo reprimidos ou suprimidos, ao lado de alguns residuos arcaicos, em- bora estes sejam apenas vagamente definidos por Freud. Mas se acontece alguma coisa no sonho, sempre se favo- rece a tendéncia de localizar sua origem em algum even- to externo concreto, seja um trauma de infancia, seja uma representagao da consciéncia, ou algum outro evento ex- terno. Jung, no entanto, observando os seus pacientes, chegou cada vez mais a conclusdo de que o inconsciente nao 6 sé um sistema de respostas, um sistema reativo que responde a situagdes externas, como pensamentos ou re- presentagées conscientes, mas pode, sozinho, e sem ser movido por qualquer outra razao externa ou biografica, produzir algo novo. Em outras palavras, 6 criativo na acepgao essencial desse termo. Isso quer dizer que, por exemplo, vocé pode ter uma vida sem surpresas, em que tudo parece ir transcorrendo muito bem até que, de re- pente, algo comega a borbulhar no seu inconsciente e vocé passa a ter um sonho perturbador atrds do outro e, lenta- mente, chega a sensagao de que algo esta se agitando num nivel subliminar, e vocé nao sabe por qué. Esse movimen- to vai devagar atingindo o plano da consciéncia, tanto como uma exigéncia interna de mudanga quanto como uma ampliacao da consciéncia ou um impulso criativo. Naturalmente, vocé ainda pode concluir que deve ter ha- vido a necessidade de alguma compensagao. Nao sabemos, por exemplo, se os iroqueses, no momento em que seu mito cosmogénico apareceu, nao estavam passando por algu- ma situagao especifica que exigia a compensaciio forneci- da por esse mito. Pode-se dizer que deve ter sido uma rea- cao a algum acontecimento, entretanto nao se pode espe- cificar qual. Devemos nos ater ao fato de que o mito apon- ta para o surgimento auténomo de algo no inconsciente, sem qualquer outro motivo, apenas espontaneamente. Ha muitos mitos de criag&o nos quais acontece de, subita- mente, um deus se sentir solitario e querer uma parceira, ou de repentinamente Pai Corvo acordar para a conscién- , 05 cia, ou de uma mulher engravidar em meio a seres arque- tipicos, depois do que tem inicio uma longa cadeia de rea- ¢des do processo criativo. Pessoalmente, inclino-me a acre- ditar que nem sempre precisamos ir em busca de razées externas, mas que na realidade a psique humana incons- ciente 6 capaz de criar do nada: o inconsciente é capaz de, subitamente, produzir um novo impulso e néo podemos explica-lo como reagéo a nada, exceto talvez ao tédio! Quando tudo esta calmo, talvez exista um ligeiro acimu- lo, uma aglomeracdo de energia em algum ponto, que reflui para o inconsciente e produz uma reagio dessas. Mas con- traria essa teoria 0 fato de que muitas vezes testemunhei pessoas acossadas por um novo impulso criativo justamen- te numa fase em que estavam extraordinariamente can- sadas e ocupadas com questées de sua vida externa, enem um pouco entediadas, e que tiveram reagées do tipo: “Oh, meu Deus, agora! Justo agora! Nao quero fazer nada cria- tivo agora! Nao posso, tenho muitas outras coisas para cuidar!” Portanto, a mim ndo parece que poupar energia destinada ao mundo externo possa explicar esse fato: é mais como se realmente existisse um spiritus creator no inconsciente que se manifesta dessa maneira, e mobiliza novas possibilidades. Se analisarmos a “geografia” desse mito iroqués, te- mos primeiro 0 Céu onde a Ongwe vive com a arvore. Entao o chefe faz um buraco nela e uma mulher despenca. Em- baixo, ha uma superficie de 4gua, embora ninguém saiba como ela surgiu, e ha aves aquaticas nadando por ali, que também ja existiam; estas parecem ser co-eternas com a Ongwe. Na superficie da agua esté’a tartaruga. A mulher assenta sobre ela e nas costas do animal 0 mundo lenta- mente se expande; primeiro, as aves fisgam a terra e en- tao o crescimento se inicia por si até que, aos poucos, forma-se uma superficie de terra que nada no oceano ten- do a tartaruga como seu centro de apoio. A mulher se acomoda ai e dé 4 luz uma crianga e, desse momento em diante, os eventos terrestres continuam surgindo. 56 Céu Ongwe buraco ce mulher caindo tartaruga reflexo da mulher Um dos fatos mais interessantes dessa histéria é 0 pequeno detalhe das aves vendo o reflexo da mulher que cai; uma ave avisa que uma mulher esta descendo do céu, enquanto outra, olhando para a superficie da agua, diz que ela esta vindo de baixo para cima. Eles a enxergam em reflexo, como se ela viesse de cima e de baixo. O mo- tivo da miragem nado seria tao importante se ndo sou- béssemos que, em alguns outros mitos de criagdo, esse processo todo comega sob a terra e é um lento emergir até a superficie. O tipo de mito de criagdéo em que todo 0 processo co- me¢a embaixo e lentamente vai subindo para um plano superior, pode ser encontrado em um dos mais detalhados relatos que se conhece a respeito, no trabalho de Mary Wheelwright intitulado The Navajo Creation Myth, que tem por subtitulo “A histéria do que emergiu”. Nao vou entrar em todos os detalhes, pois o texto é cheio de nomes indige- nas com defini¢ées muito dificeis. Trata-se de um mito ti- picamente primitivo, muito complicado e sutil, com nume- rosas figuras e nuangas, mas, para nossos objetivos mais imediatos, estes aspectos dificultam 0 relato. Este comeca com a histéria do que emergiu. Ha mundos diferentes que emergem um do outro. O primeiro é 0 mais baixo. 57 58 A histéria comeca no Lugar de Correr e Arremessar, ou Jahdo-konth-Hashjeshjin. O filho do Fogo, cuja mde é um Cometa, e Etsay-Hasteen, o primeiro ho- mem, que é 0 filho da Noite e cujo pai é Nahdoklizh, que é 0 azul em cima do lugar onde o Sol se pée, estavam Id, e também Estsa-assun, a primeira mu- lher, e assim por diante. O nome dela tem a ver com a Aurora. O Deus-terra é Begochiddy; ele é 0 Deus realmente criador. E o grande Deus cuja mde é um Raio de Sol e cujo pai é a Luz do Dia, Este Deus- terra “construiu uma montanha branca a leste e uma montanha azul ao sul”, e assim por diante. Primeiro ele cria embaixo, sob a terra, uma espécie de cosmo que é cercado por quatro montanhas nas quatro di- regées do horizonte. Também cria quatro tipos de formigas e alguns insetos. Na montanha do leste, ele planta bambu e outras coisas. Depois, decorrido algum tempo, quando o bambu estava crescido e alto, todos eles subiram em seus talos; e “Begochiddy pu- xou o bambu até o segundo mundo e Hashjeshjin soprou quatro vezes no buraco o que o fez se fechar e o primeiro mundo ardeu e ainda esta ardendo”. Esse primeiro mundo, criado perto do centro da terra, era s6 um mundo tempordrio e todos os seus habitantes, animais e deuses, subiram ao sair dele e o destrut- ram depois. O mundo igneo subterréneo explica os vulcées que existem hoje. Depois, esses primeiros seres entraram no segundo mundo: “Begochiddy levou terra do primeiro mundo e criou as montanhas do leste, sul, oeste e norte, e plantas semelhantes as do primeiro mundo, e plan- tou algodao branco a leste, algodéo azul no sul” e assim por diante. [Novamente, vou pular um trecho longo porque estou seguindo sé uma certa linha.] Depois, sobem para o terceiro mundo, e 1d, novamen- te, seis deuses criam todas as coisas vivas. Em segui- da, entram no quarto mundo; ld, o gafanhoto surge da crosta que cobria o terceiro mundo e entra naquele quarto mundo que é coberto de dgua. Com a ajuda do gafanhoto, as pessoas chegam e se instalam no quar- to mundo.” Na seqiiéncia, tém inicio, por meio de um processo longo e complicado, a organizacao e as ceriménias tribais. Nos quadros de areia dos navajos, o centro da imagem — o centro da mandala — é sempre o ponto que representa esse local da criagéo. Em todos quadros feitos com areia pelo curandeiro para curar doencas, o centro é 0 local de onde tudo emerge; é onde a criagdo ocorre e onde todos os mundos acontecem em quatro etapas. Entre os indios hopi existe um mito similar.*3 No tem- po das origens, as pessoas viviam muito embaixo da ter- ra. Tinham determinados motivos para virem A tona: es- tavam em numero excessivo, muito apertadas em pouco espago, discutiam demais. Por isso, alguns chefes pensa- ram que era preciso fazer alguma coisa. Enviaram passa- ros para explorar e assim conseguiram descobrir um mun- do superior. Subiram num pinheiro, em contraste com 0 pé de bambu dos navajos e chegaram em outra camada. Depois de algum tempo, estavam passando pelos mesmos apuros nesse segundo mundo: a situacdo, entéo, se torna intolerdvel e eles tém de dar um outro passo. Isso conti- nua até que atingem a superficie atual da terra. Provavelmente, esses mitos sdo influenciados uns pelos outros porque as tribos mantinham um certo inter- cambio. No mito hopi, h4 um motivo secundério da descida que é importante: ao final do relato é dito que eles chega- ram no local do nascer do sol antes que as outras tribos surgissem e que, tao logo o primeiro grupo de pessoas che- gou a atual superficie da terra, numerosas estrelas cairam do céu. “Ah!”, disse 0 povo que estava emergindo naquele 4 Mary C. Wheelwright, Navajo Creation Myths (Santa Fé, 1942), p. 39. ie Waters, Book of the Hopi (Nova Iorque: Viking Press, 1968), pp. 9ss. 59 instante, “alguém ja esta ai”, e eles se instalaram onde se encontravam. Aqui, 0 movimento principal é representa- do como um surgimento em etapas, mas no final, quando alcangam a superficie, as estrelas caem. Portanto, 0 con- tramovimento também é contido no mito, mas sé como motivo secundério, na imagem das estrelas cadentes. No mito navajo de criagaéo, os deuses que estavam no primeiro mundo, no inicio dessa criagdo, eram seres divi- nos cujos nomes se referem a todos fenémenos celestes: a luz amarela depois do pér-do-sol, a luz azul, a aurora, to- das as diferentes gradagées de luz que podemos ver no céu. Portanto, apesar de estarem muito embaixo da ter- ra, geograficamente falando, eram na realidade deuses celestes, e vocés podem agora também se lembrar que as Ongwe dos iroqueses sao ligadas a constelagées. Assim, os deuses criadores dos navajos também tém um certo re- lacionamento com aparigées celestes, mesmo quando vém de baixo. No mito hopi, a emergéncia é descrita como a subida dos chefes e seres humanos, ao passo que as estre- las caem na terra, e portanto, novamente, ocorre uma li- gacao secreta com constelagées celestes e, de maneira ex- traordindria, o que esta acima esta embaixo; todavia, isso é dizer as coisas de modo enfatico demais: ha alusées, como se 0 que esta embaixo tivesse ligagao com o que esta em cima e vice-versa. . A superficie da terra que é alcangada, ou criada, é 0 resultado final de um longo processo de queda ou emer- géncia; é o que, em linguagem psicolégica, nés chamaria- mos de campo da consciéncia. Jung representa a conscién- cia humana como algo semelhante a um campo, um campo magnético, por assim dizer. Assim que um contetido in- gressa no campo da consciéncia, cai numa rede de associa- goes. Se eu sei alguma coisa, entao ela esta associada ao complexo do Eu, e por meio deste esta conectada a todos os outros contetidos conscientes momentaneos da minha cons- ciéncia. Portanto, se desejamos imaginar a consciéncia dentro de um esquema, podemos dizer que é um campo de 60 poercepcao consciente em que o complexo do Eu age como contro regulador. Assim que digo “eu sei”, algo entrou no campo da minha consciéncia. Naturalmente, ha fronteiras indistintas onde sei e nao sei. As vezes, sei e As vezes no, dependendo da intensidade com que algo entra no campo de consciéncia do Eu. Ocorre a mesma coisa com a percep- yo sensorial: se vocé estiver atento e ouvir uma nota muito uguda, e de repente pensar em alguma outra coisa, néo ouvird mais a nota ou se ouvir nado se dard conta do que osla ouvindo. Se ligar o radio no quarto num volume imuito suave, ira perceber a mesma coisa: haverd mo- mentos em que vocé vai escutar a musica, mas se seus ponsamentos passarem para algum outro tépico, talvez nem perceba se o radio estava ligado ou nao. Assim, yeralmente existe no nosso campo de consciéncia um cen- (ro no qual a luz da consciéncia do Eu esta focalizada, e em torno dela ha areas de penumbra e outras completa- mente inconscientes, nas quais pode-se dizer que 0 que se encontra ali é inconsciente, uma vez que nao entra no campo da consciéncia. No inicio, tentei ilustrar a idéia de que 0 que gosta- mos de achar que “esta na realidade” é 0 contetido de nos- sa consciéneia. A realidade além do contetido da conscién- cia € e continua sendo algo indescritivel, algo a cujo res- peito ndo podemos falar nada. Portanto, podemos dizer que a superficie do mundo real coincide com o que cha- mariamos de campo da consciéncia, de consciéncia vigil, e este sé 6 criado lentamente, através de todos os eventos pré-conscientes que sao representados por movimentos de queda e ascensdo. Ja na filosofia grega e novamente no gnosticismo e na tradigaéo medieval, a psique humana tem sido situada numa posi¢cdo intermedidria entre opostos. Por exemplo, a psique era considerada como um fenémeno intermedia- rio entre o espirito e 0 corpo, entre o céu e a terra. Jung usou esse esquema para ilustrar o papel da consciéncia e o papel da psique em seu artigo intitulado “Sobre a natu- 61 reza da psique”.* Devo enfatizar aqui que concordamos com a asser¢do de que a psique é um fator inteiramente desconhecido que, tal como no caso da matéria, sé pode- mos descrever como uma substAncia, sem qualquer deci- sdo acerca do que seja. Jung diz que poderiamos equipa- rar o fenémeno psiquico num ser humano ao espectro de luz que contém todas as cores do arco-fris. Por um lado, vemos que o fenémeno psiquico se dissolve lentamente nos processos fisicos, no corpo e em seus processos mate- riais. A medicina psicossomatica esta atualmente con- centrando todas as suas investigagées nessa misteriosa interface. Cada vez sabemos mais que existe alguma li- gagao e que ha interagdes entre os processos fisicos e psiquicos, que uma reagao psiquica pode influir numa reacio fisica, e vice-versa. Isto nao exige nenhum conhe- cimento médico profundo, pois, se vocé beber uma certa quantidade de alcool, logo percebera que ele influi em sua condigdo psiquica, embora seja muito evidente que a sua psique foi influenciada por um agente material. Mas também se da o fato oposto, que algumas pessoas negam mas que 6 igualmente ébvio. Se vocé receber uma carta dizendo que seu melhor amigo morreu, vocé pode desmaiar ou ficar muito palido, porque suas artérias se contraem com 0 choque. Nao é a carta, mas o contetido dela que o afctou fisicamente; 6 0 que a carta transmite que desen- cadeou a reagao fisica: ndo foi a tinta no papel que o fez desmaiar, e sim o significado da mensagem. Ha, portanto, ha uma interagao, cujas leis e condi- cdes ainda n&o conhecemos por inteiro; todavia, no geral, podemos dizer que existe uma espécie de transigéo gra- dual entre as condicées fisicas e psiquicas, em que ambas as reacoes se transformam uma na outra. SAo necessdrias muito mais pesquisas para que possamos afirmar como essa ligacdo acontece. Naturalmente, isto é um simile. Entretanto, o final da escala cromatica, onde esta o infra- 4G, G. Jung, Collected Works, vol. 8, §§ 3438s. 62 vermelho, é 0 ponto em que os fenémenos psiquicos lenta- mente se tornam fenémenos fisicos. Nesse pélo, também se dé o fendmeno do instinto, que parece estar intimamen- te ligado & nossa estrutura corporal como animais. Temos reagées instintivas que, em grande extensdo, se manifes- tam como reagées fisicas imediatas. Se, por exemplo, eu ago um movimento como se fosse golpea-lo, vocé recua sem nem pensar; seu corpo reage instintivamente no ato. Com Jung, definimos instinto como uma disposi¢ao inata para reacées fisicas tipicas. Essas reagées instintivas a huma- nidade tem em comum com todo reino animal, pois os ani- mais também tém estruturas instintivas que, em situacées especificas, sempre reagem da mesma maneira a estimu- los externos. Mas nés podemos reagir instintivamente, sem a participagéo de qualquer processo psiquico consciente. Se um carro avanga na sua diregao, vocé da um salto para se afastar e sé no instante seguinte é que vai entender o que aconteceu e por que agiu daquele modo. Naturalmen- te, vocé pode ter a sensagao de perceber de forma clara 0 que esta se passando, mas isso nao é absolutamente ne- cess4rio: vocé pode reagir fisicamente através do corpo ou através do inconsciente. No pélo oposto, Jung situa o mundo dos arquétipos que, em si, 6 tao misterioso e desconhecido quanto a qui- mica do corpo em sua configuragio mais essencial. Quan- do ele situa os arquétipos nessa extremidade, esta se re- ferindo aos mesmos como fator psicéide.'® Jung atribui ao arquétipo um aspecto psicdide, o que significa que ha tra- cos que apontam para o fato de ele nao ser “s6” psiquico no senso mais estrito do termo, mas que contém alguns aspectos que transcendem o campo que denominamos de psiquico. Por exemplo, quando o arquétipo aparece den- tro de um fenémeno sincrénico, entaéo podemos concluir que sua natureza é psicéide. O arquétipo constelado num fenémeno sincrénico tem o aspecto de ser capaz de apare- % Ibid., § 420. cer como uma disposigao dos fatos materiais externos. A natureza psicéide dos arquétipos 6 um grande problema para noés, neste preciso momento. O fato desnorteante 6 que existe a forte suspeita de que aqueles dois pélos realmente tém uma ligacao secre- ta, que aquilo que polarizamos em dois aspectos nos limi- tes da psique sAo, na realidade, somente dois aspectos de um fenémeno vivo e unificado — um X que ndo podemos definir e que devemos, por exemplo, chamar de mistério vivo do ser humano. Mas se observarmos cuidadosamen- te os fenémenos psiquicos, veremos que existe uma certa polarizagdéo. Digamos que um monge medieval tem uma visdo da Virgem Maria e entra em éxtase por causa disso, e que depois escreve um artigo sobre mariologia e 0 signi- ficado da Mae de Deus. Entao, ele estar experimentan- do o arquétipo da mae em seu pélo espiritual, como um arquétipo que transmite uma experiéncia emocional e espiritual e d4 um certo significado & sua vida. Se o mes- mo monge encontra uma mulher gorda, maternal, e cai no colo dela e fica ali sentado o resto da vida, entdo esta experimentando o arquétipo da mae em seu pélo instinti- vo. Nesse sentido, cle é basicamente um instinto; pode- mos dizer que ele caiu no padrao instintivo mae-filho. Recorri a casos extremos para ilustrar que existe um cer- to contraste, milenar, que tem sido descrito na filosofia como a oposigao entre espirito e corpo, entre espfrito e pulsao instintiva. Em seu ensaio, Jung retoma de novo 0 antigo concei- to de Pierre Janet, o de aspecto inferior e aspecto superior de uma fungao psiquica, o que deixa implicito que todas as nossas fungées psicolégicas tém, por assim dizer, 0 ex- tremo infravermelho, que é 0 aspecto inferior da funcdo, e que culmina nos processos somaticos, e também 0 ex- tremo superior, que mais ou menos entra no campo da consciéncia. Tomemos, como exemplo, uma reagéo como 0 amor: o extremo inferior seriam os impulsos sexuais fisi- cos e o superior, os sentimentos e fantasias que a pessoa 64 normalmente alimenta quando esta apaixonada. A parte superior tem um rabo inferior, por assim dizer, no extre- mo fisico. Quanto mais nos aproximamos da parte inferior como uma fungao, seu extremo infravermelho, mais en- (ramos no campo em que as variagdes e uma certa liber- dade de agéo — i. e., a capacidade de parar no meio de uma reagéo — nfo podem mais ser percebidas. E por esse motivo que na esfera instintiva temos aquilo que os z06- logos chamam de reagao “tudo ou nada”. Na zoologia, é bem sabido que, se um animal comec¢a uma atividade ins- tintiva, freqtientemente ela nao pode ser interrompida no meio; 6 como um mecanismo que, tao logo iniciado, tem de ser percorrido do comeco ao fim, e que é 0 que se cha- ma de reagao “tudo ou nada”. Se, de fora, vocé interrompe um animal “ativado” por uma reagao dessas, entdo acon- tecem as ditas reagées deslocadas, pois de alguma manei- ra a energia acumulada tem de ser descarregada. Se vocé parar, digamos, dois animais que estéo no meio de uma luta — antes que uma decisdo natural tenha sido alcan- cada, com a vitéria ou a derrota de um ou de outro — o animal ou comera furiosamente ou arranharé violenta- mente ou fara qualquer coisa para expressar uma rea- cao deslocada. Ocorre 0 mesmo se vocé interromper o acasalamento ou uma refeicdo: 6 como um processo me- canico posto em funcionamento, que se for interrompi- do, tem de ab-reagir de alguma outra forma. Isso quer dizer que o animal tem mais ou menos de seguir com 0 processo até o fim, mesmo que no meio parega ter per- dido o sentido. Konrad Lorenz certa vez deu um exemplo maravi- lhoso de duas aves macho, que queriam lutar, mas as duas sentiam tanto medo quanto desejo de agredir. As duas es- tavam sendo impelidas a luta pela agress4o, mas as duas eram igualmente grandes e por isso nado podiam lutar, porque cada uma temia igualmente a outra. Se sdo abso- lutamente iguais, entao existe 0 bloqueio da reacao, pois ha um equilibrio completo que nenhum dos adversdrios consegue romper. Sabe o que as aves fizeram? Entreolha- 65 rane fikamente e enfiaram a cabeca embaixo das res- peclivan adas e dormiram! Houve um tipo de suspense entre an duas; todavia elas nao chegaram a nenhuma de- cinfio, Num caso assim, instala-se uma reagao deslocada. Porlanto, se vocé comega de fora, ou se existe um equili- brio entre dois instintos, a coisa nado pode seguir em frente porque ha duas reagdes igualmente fortes, e isso resulta numa reagdo deslocada. Alguma coisa precisa acontecer e entao entra em cena, subitamente, um terceiro padrao instintivo. De modo que os dois inimigos dormiram, um de frente para o outro. Antigamente, nas pesquisas sobre comportamento animal, pensava-se que quanto mais para baixo se cami- nhasse na escala da vida animal, mais se verificariam condutas completamente mecanicas, reagées “tudo ou nada”. Mas, pesquisas mais recentes com insetos demons- traram que, mesmo no nivel das vespas e formigas, ja existem, além das reagées “tudo ou nada”, uma certa quan- tidade de variagées livres. Com base nos estudos sobre instinto animal, até onde eu sei, a idéia de que animais inferiores sio como maquinas, como motores que simples- mente ligam no padrao instintivo e seguem funcionando, e que quanto mais subimos pela escala mais ha variedade de condutas, parece que nao é verdadeira, pois os primér- dios de uma certa liberdade j4 existem num nivel muito elementar. Mas, comparado com reacées humanas, pode- mos dizer que todas as reacées animais sAo relativamen- te reagdes “tudo ou nada”, e que somente por causa de um acentuado aumento na forca de vontade do complexo do Eu é que os humanos podem assumir uma certa dose de liberdade em suas reagées. Neste contexto, liberdade sig- nifica um fendmeno subjetivo ou uma experiéncia em que a pessoa se sente livre para decidir. Filosoficamente, nun- ca se pode comprovar uma reacdo livre, e também nao se pode provar o contrdrio, mas subjetivamente a pessoa sente que gostaria de comer aquele bife, todavia, nfo o fara por este ou aquele motivo. A pessoa sente que tomou 66 uma decisao por livre e espontanea vontade, mesmo que depois algum filésofo lhe diga que sua reagdo tinha sido condicionada por alguma outra coisa. Jung diz que nao encontrou um s6 arquétipo sem um instinto correspondente. Isso serviria para confirmar a suspeita de uma conexao secreta entre ambos. Se vocé vai na diregdo do extremo espiritual, tem imagens arque- tipicas, experimenta o significado emocional dessas ima- gens e se torna mais rico por causa dessas representa- gdes internas; se vocé se movimenta na diregao do outro extremo, entéo vocé se move no sentido de agir, de ence- tar uma atividade instintiva, de executar uma certa agdo no plano da realidade fisica. O caso nado 6 necessariamen- te taéo extremo, pois em geral a consciéncia humana muda de nivel. Poderiamos comparar o Eu humano a um raio de luz que se move ao longo de uma escala, As vezes aproxi- mando-se mais de um extremo, As vezes mais de outro, e as vezes ainda permanecendo mais no meio do espectro. Para usar um exemplo que mencionei antes: quando eu estava construindo minha casa, 0 impulso para a cons- trugdo veio da idéia arquetipica que eu tinha na cabeca, mas durante a atividade da construgao entrei fundo de- mais na camada oposta e me tornei absolutamente como o animal construindo seu ninho, perdida na “loucura” da construgao, e depois tive um sonho corretivo, que serviu para me lembrar do outro extremo, da casa eterna no Além. Com a minha consciéncia do Eu, eu tinha me movi- do excessivamente na direcdo do pélo instintivo da escala e, por razdes que me eram desconhecidas, nao me era per- mitido agir assim. Por que isso n4o tem autorizacdo para ser ninguém sabe, pois tenho visto muitas pessoas felizes em sua dedicacao a essas atividades fisicas, esquecidas do outro extremo, sem que tenham quaisquer sonhos para admoesta-las. Ora, o fator regulador que forca uma cria- tura a permanecer mais neste extremo ou ir mais até 0 outro 6 algo que pertence aos mistérios do processo de individuagao. A pessoa tem uma certa estrutura para rea- lizar e talvez ndo transcenda a lei interna. 67 extremo extremo infravermelho ultravioleta fisico experiéncias espe psicéides reagées pnagens mecanicas arquetipicas instintivas fenémeno vivo homem como psique, corpo e espirito Se vocés se lembrarem desse esbogo da psique, en- tenderao melhor por qué, de acordo com os mitos de cria- ¢ao, a realidade humana — ou seja, a realidade da cons- ciéncia humana — é descrita, nesses mitos de criagdo, como um fenémeno intermedidrio, que se desenrola entre dois pélos. Evidentemente, os arquétipos psicdides cor- respondem as Ongwe, do nosso primeiro mito. Sao as ima- gens eternas, as constelagdes eternas, e caem na terra humana. No mito de emergéncia, essas imagens vém do extremo oposto, Se quisermos saber a diferenca entre os dois extremos, temos de amplificar mitologicamente, o que significa qualitativamenie, a diferenga que ha entre am- bos. Vocés também enxergaram a identidade secreta de ambos, porque no centro dos deuses terrestres realmente ha deuses celestes, portadores de um estranho componen- te terrestre. Assim, de certa maneira, de um lado ha os deuses semimateriais, enquanto os outros séo realmente mais espirituais. Aqui podemos ver a unido dos opostos, ou a relativa intermutabilidade dos extremos, que sabe- mos ser um processo tipico dos fendmenos psiquicos; as- sim que um fenémeno psiquico toca um extremo, ele co- mega de modo sub-repticio, e depois mais intensamente, a manifestar sua qualidade oposta. Dessa forma, fala- mos do fenémeno da enantiodromia, segundo 0 qual uma coisa cai na oposta. 68 Em nosso mito iroqués, a tartaruga vem de baixo: para a mitologia dos iroqueses, a tartaruga é o espfrito da terra; a tartaruga carrega a terra. Ela tem 0 mesmo papel na mitologia hindu. O fato de existirem animais e ‘igua embaixo, e constelagées estelares e seres humanos cm cima, corresponde muito bem a esses dois pélos dos fenédmenos psiquicos. 5 importante saber a diferenga qualitativa entre uma criag&o que comeg¢a em baixo e uma que principia em cima. Se, nos sonhos, vocé encontra um motivo de criagéo que vem de baixo, tem de esperar uma coisa diferente do que se a criagdo fosse descrita como vinda de cima. Lembro do sonho de um homem: uma nave sideral pousou e uma lin- da mulher saiu de dentro dela e queria induzi-lo a fazer certas coisas. Essa seria uma versio moderna do tema ancestral de uma Ongwe que desceu para ele. Os sonhos modernos costumam usar naves estelares com esse pro- posito. Nesse caso, vocé pode esperar com relativa certe- za (eu pelo menos ainda nado deparei com excegées) que, quando essa experiéncia pousar na consciéncia (quando o homem teve esse sonho nao estava acontecendo muita coi- sa em sua vida consciente), ela tomard a forma de uma idéia carregada de emocdo, algo que sera descrito como uma iluminacdo repentina, um stbito despertar, uma nova percep¢ao na consciéncia, e assim por diante. Assu- mira basicamente o que poderfamos chamar de uma for- ma mental emocional. Por outro lado, se um processo cria- tivo é descrito num sonho como algo que vem vindo de baixo, ent&o facilmente pode acontecer de a primeira ater- rissagem na consciéncia ser algo que o sonhador execute no plano da realidade, uma aco cujo significado simbéli- co ele s6 compreendera depois do evento. Ele sera repen- tinamente induzido a comprar um barco e sair remando, ou construir uma casa, ou sentird uma necessidade im- periosa de se comportar de determinada maneira, e en- tao, talvez muito mais tarde ainda, quando ja tiver rea- lizado a atividade até o fim, sinta interesse em cogitar e 69 especular sobre o significado simbélico. Mas a primeira atitude a ser imediatamente tomada ocorreraé no plano da realidade fisica. A criagéo que desce do alto tem origem nas imagens arquetipicas que, entéo, descem e entram no territério das realizagées. Em termos psicolégicos, aplicando-se isto ao processo criativo, seria 0 mesmo que se um artista ti- vesse uma intuigdo arquetipica, uma idéia intuitiva, mas claro que isso nao significa que ela tenha sido realizada. Qualquer pessoa que tenha tentado pintar tera passado pelo que chamo de desapontamento criativo. Em seu inti- mo, a pessoa tem a imagem perfeita de alguma coisa e, portanto, pega o pincel ou o lapis, sentindo um grande entusiasmo. O que ela acaba produzindo no papel 6 uma cépia muito triste, imperfeita e canhestra, extremamen- te decepcionante, quando é comparada com a imagem in- terna que ela inicialmente tentara recriar. De acordo com minha experiéncia, fico inteiramente preocupada com essas imagens internas e parece que até consigo enxerga-las no papel a minha frente. E sé na manha seguinte, quando olho sobriamente para o que fiz que enxergo a realidade e entado tenho a impressdo de estar vendo, em vez do ideal, um rabisco deveras patético. A coisa s6 assume essa for- ma extrema, é claro, para a pessoa que no é artista. Mas muitos artistas com quem conversei me asseguraram que o que criaram na tela, quando comparado com a imagem interior, nunca é satisfatério e, portanto, sempre da en- sejo a um novo tipo de desapontamento. Uma verdadeira descida do alto para um plano mais abaixo é sempre algo acompanhado pela decepedo. Pode-se facilmente enten- der isso pois, no mundo dos arquétipos, a pessoa esta inflacionada como se estivesse lidando com 08 deuses. Entretanto, essa inflacdo é necessdria porque nado é pos- - sivel sermos criativos sem um certo teor de entusiasmo. Precisamos dessa intensidade e desse impeto, e isto, cer- tamente, vem de Deus. A dificuldade esta na realizacdo da tarefa. Isso também se evidencia na histéria da cién- cia, quando se lidam com as grandes descobertas. Para 0 70 ciontista, transferir sua visdo para o papel, de uma manei- ri que consiga apresenta-la para os colegas como uma nova looria, 6 uma conquista notavel. Também é por esse moti- vo que existem tantos “provaveis” génios nesta terra. Es- los sao, principalmente, individuos que de fato tiveram al- umas intuigdes criativas mas que sao preguigosos demais para enfrentar as grandes dificuldades e labutas ineren- los a trazer para o plano da terra tais visdes. Por assim dizer, essa 6 uma criagéo que vem de cima. Significa a realizagdo de idéias arquetipicas que se origi- nam no inconsciente e entao vém a luz no plano da reali- dade, através da consciéncia. Esse é um tipo descida, pois, vista pela perspectiva sensivel, 6 como um escurecimento, uma deterioragdo da visdo interna original. Quando a criacdo é vista vinda de baixo, pode-se di- yer que a criatividade fica situada no corpo. Essas pes- soas sofrem de sintomas psicossomaticos que afetam prin- cipalmente as fungées controladas pelo sistema nervoso simpatico, por exemplo, a 4rea abdominal: elas sofrem de dor de estémago, célicas estomacais, e coisas do género. Essas pessoas acham util quando alguém as incentiva a trabalhar com 0 corpo sem nenhuma intengao consciente; por exemplo, uma atividade com argila, lapis ou pincel que se deixa deslizar por um papel, ou simplesmente movimentos ritmicos, como os que as crian¢as fazem. Pode- se também sugerir que fagam os movimentos que os im- pulsos as impelem a realizar. Todos os impulsos criativos originam-se no incons- ciente, e faz uma diferenca mais qualitativa eles virem de cima ou de baixo. Se um impulso vem de cima, a pes- soa tem a vivéncia de uma idéia ou inspiragéo, e na sua mente aparece uma imagem ou idéia. Entao o que as con- fronta é a questao da realizacéo. Se ele vem de baixo, é como um chamado das profundezas do corpo, oriundo do desconhecido, que muitas vezes se faz acompanhar por sintomas psicossomaticos. 71 E importante identificar a diferenca qualitativa en- tre as duas formas de criagaéo. Por exemplo, se seu pa- ciente tem sonhos que vém de baixo, vocé deve chamar a atencéo para o fato de que, caso alguma necessidade ins- tintiva repentina surja e o mobilize para fazer alguma coisa, ele ndo a reprima e nem, por exemplo, se recolha numa reflexdo introvertida dizendo para si mesmo que nao 6 nada mais que uma coisa simbélica, que ele sabe 0 que ela significa e nao precisa colocd-la em pratica. vezes, tendo em vista a criatividade, é absolutamente essencial primeiro fazer algo no plano fisico e sé depois entrar no significado simbélico. Se a pessoa pula esse es- tAgio com uma introje¢do precoce, dizendo que sabe o que aquilo que dizer, que é sé simbolicamente isto ou aquilo, ela perde todo 0 impacto emocional do novo contetido e no conseguird realmente introduzi-lo na consciéncia. Portanto, se existem motivos de criac&o vindo de baixo, nao se deve reprimir a necessidade premente, fisica ou irracional, de executar algo, a menos, claro, que seja mui- to perigoso ou dispendioso. Ha, naturalmente, limitagdes razodveis. Mas com as experiéncias que vém de cima é preciso, ao contrdrio, advertir o analisando a eventual- mente no se deixar arrastar demais pela inflac&o de que agora teve uma grande iluminagao que deve contar para o mundo todo etc., e que deve se manter aberto a quaisquer movas percepgées repentinas que lhe ocorram, vindas de cima, e raiem — maravilhosa palavra! — sobre ele. O motivo pelo qual um novo contetido criativo oriundo do inconsciente entra 4s vezes por uma certa porta e ou- tras, pela outra, ndo sabemos. Tenho sé uma suspeita de qual possa ser esse motivo. Certa feita tomei conhecimento de um mito indigena norte-americano em que o grande Deus queria ensinar ao seu povo um conhecimento de medicina secreta, mas nao conseguia que eles o ouvissem, nao conseguia transmitir-lhes seu conhecimento secreto; por isso, ele ensina a lontra e lhe da o segredo do saco medicinal e todos os outros segredos do ritual de medici- na e os medicamentos, e entdo é a lontra que ensina os 72 seres humanos.** Bom, temos aqui uma indicacdo inte- ressante. O Deus mais elevado — Mennebosh — tenta transmitir algo para o ser humano, mas no consegue pois existe um bloqueio. O mito nao explica qual é, se as pes- soas sAo muito ignorantes, ou o qué; por isso ele ensina um instinto, um animal, porque nao consegue fazé-lo do outro jeito e entdo o animal toma parte, naturalmente. Portanto, a razao pela qual as vezes o novo conhecimento vem por uma porta talvez seja pelo fato de a outra se en- contrar obstruida. A obstrugao da entrada pelo espiritual ocorre principalmente devido a dogmatismos, de teor re- ligioso, cientifico ou de alguma espécie de viséo de mun- do [weltanschauliche]. Estou me referindo a dogmatismo no seu sentido negativo, ou seja, quando o sujeito esta, dogmaticamente certo de que algo quer dizer exatamente isto ou aquilo, sem a menor possibilidade de discussao a respeito. Assim que a consciéncia humana adota uma for- ma absolutamente dogmatica de conviccdo contra 0 mis- tério do mundo circundante e da psique, entado natural- mente um dos pélos do eixo bipolar fica bloqueado. Em tais circunstancias, tenho muitas vezes constatado que um arquétipo que quer ser observado tem de se manifes- tar pela lontra. Dessa forma, a constelagéo arquetipica pode causar sintomas fisicos pois néio existe abertura mental suficiente para dizer: “Sim! Por que nado?” E preciso que haja uma certa elasticidade mental para se receber uma revelagao oriunda do inconsciente espiritual mas, se essa via estiver obstruida pelo dogmatismo, e houver no segun- do plano uma forte constelacdo, entao o arquétipo pode usar a lontra de Mennebosh e afetar 0 corpo de uma outra ma- neira. Nao é possivel engolir, ou vocé acaba tendo algum outro sintoma desagradavel. Isso quer dizer que seu cor- po, seu animal, comega a tentar transmitir o significado. Estou falando agora de reagdes anormais; por exem- plo, a obsessdo de se lavar quarenta vezes por dia ou coi- ‘6 Indianermarchen aus Nordamerika, p. 76. 73 sa assim. Evidentemente, as pessoas que tém essa obses- sao deveriam lavar, ndo a sujeira das maos, mas a sombra em sua psique. Em geral, existe muito evidente a necessi- dade premente de remover a sujeira pela agua. Tive um paciente, um introvertido, homem de pouca vontade, que se deixava arrastar pela extroversdo da esposa e pelo am- biente extrovertido que ela criava, e entado ele desen- volveu a idéia obsessiva de que toda vez que queria sair ele tinha de acompanhar com o dedo o desenho dos sapa- tos. Sentava-se para colocar os sapatos e passava o dedo pela borda dos calgados. Isso indicava claramente que ele precisava afirmar sua posigao. Ele deveria dizer: “Essa é a minha posicAo, e a sua é esta”, e expressar a sua, que era diferente. Era precisamente isso que ele nunca conseguia fazer, mas sendo do tipo sensagao intuitivo, ele se deixava arrastar por todas as situagdes e depois se lamentava amar- gamente. A obsessdo mostrava exatamente o que ele devia ter feito, nao fisicamente desenhando o contorno dos sapa- tos, mas o plano fisico, apresentando onde se situava. As vezes, uma nova percep¢ao, se for muito essencial e importante, vem de dentro e de fora. Digamos que exis- te um jovem que ainda esta na constelagao bissexual ado- lescente, mais para homossexual, mas que nao tem expe- riéncias concretas. Freqiientemente constatei que esse jovem teria sonhos mostrando a anima vindo ao seu en- contro, numa experiéncia interior, com todas as espécies de percepgdes internas da anima, ao passo que no plano externo ele estava se apaixonando pela primeira vez. Nesse sentido, encontrava a anima nos dois extremos, na projecdo sobre uma mulher externa, num encontro exter- no fisico e, ao mesmo tempo, na primeira percepgao interna do princfpio feminino. Isso nao é verdade sé para essa situagiio especifica, pois muitas vezes observei que, se uma nova percepcao essencial é constelada, ela tende a vir de fora e de dentro, e entaéo acontece aquilo que a pessoa chama de sincronicidade. Dessa maneira, uma nova per- cepcao de fatos internos coincide com o contato com no- vos fatores externos pela primeira vez. 14 Quero abordar um motivo que aparece na histéria dos iroqueses, onde uma mulher é a figura principal do processo criativo, ou melhor, algumas mulheres. O mito comega com uma mulher que engravida no céu; entio uma outra moc¢a engravida e cai. Novamente nasce uma menina; e s6 entdo 6 que se torna um processo masculi- no de criagdo, pois somente na terceira geragdo é que a mulher dé a luz a gémeos, os quais se tornam o Criador c o Anticriador, os poderes positivo e negativo da cria- cao. Todavia, existe uma longa série de figuras femini- nas antes que haja uma masculina. Também é incomum, se compararmos com os mitos de criagdo da nossa civiliz zacao, o fato de que a figura que desce do céu é feminina endo masculina. Se examinarmos os muitos outros mitos de criagao poderemos ver que os dois tipos existem, em diversas va- riagdes. Nao podemos dizer que um tipo seja primario e 0 outro, um desvio. A questéo mais proveitosa seria: “Ha alguma diferenga qualitativa e psicolégica entre esses dois tipos?” Serd que podemos encontrar nessas civilizagdes outras indicagdes que expliquem ou esclaregam o fato de ser feminino 0 Deus Céu e masculino o Deus Terra (algo que nds sempre imaginamos do jeito inverso)? Um paralelo famoso (e podemos guardar uma relati- va margem de seguranca ao presumir que nao houve in- fluéncia do mito iroqués sobre esta) pode ser encontrado na mitologia egipcia, em que a Deusa do Céu, a Grande Deusa Mae, Nut, representa toda a ctipula celeste. Ela cobre a terra inteira, uma imensa vaca em cujo ventre todas as estrelas estdo consteladas, uma figura feminina monumental que se debruga sobre a terra. A terra é Geb, o deus masculino, seu consorte.'” E dificil explicar a quest&o de por que o represen- tante da terra 6, aqui, uma divindade masculina; talvez Manfred Lurkker,Gétter und Symbole der alten Aegypten (Berna: Scherz Verlag, 1974), pp. 37s 75 seja por que o que costumamos considerar masculino, 0 Deus do Céu, é uma divindade feminina. Penso que se analisarmos a civilizacéo egipcia como um todo, uma de suas mais notaveis caracteristicas é algo que eu chama- rei de concretude de suas idéias. Civilizagdes mais primi- tivas, semiprimitivas e até mesmo altamente desenvolvi- das, com poucas excecées, acreditavam em alguma forma de vida apés a morte, mas s6 os egipcios se deram ao tra- balho de garantir a imortalidade pela mumificagado do corpo e pela construgdéo de enormes cAmaras funerdrias nas quais retratavam cada um dos passos da travessia do mundo inferior pelo morto. A idéia da imortalidade do in- dividuo nao sé era concebida e ensinada de maneira reli- giosa mas também era praticada na matéria. A maioria das civilizagdes sabe que um deus, mesmo que more numa estatua ou num fetiche, tem de ser man- tido vivo pela participacgao humana, seja por meio de san- gue humano ou de sacrificios animais, ou com preces dia- rias. Mas nenhuma outra civilizacdo foi tao longe quanto a egipcia, que cuidava das estatuas de seus deuses em medida extraordindria. Pela manha, ha o despertar do rei, as estatuas dos deuses sao acordadas, banhadas e ungidas e depois carregadas até o Nilo e lavadas e novamente untadas e devolvidas ao templo no qual colocam alimen- tos aos pés delas, e assim por diante. A dimensao concre-' ta da idéia religiosa vai aqui muito mais longe do que em qualquer outra civilizacao da qual eu tenha ouvido falar. Para dar-lhes uma nocAo de como era concreto 0 en- sinamento egipcio, havia um texto, um fragmento de pa- piro, que descreve o processo quimico do embalsamamen- to. Vocés sabem que, primeiro, os intestinos e 0 cérebro eram removidos e depois 0 cadaver era colocado numa solugdo de sal e sédio, na qual permanecia imerso por varios dias. Essa solugdo tinha uma qualidade de pre- servacao e, depois disso 0 cadaver era untado com certos éleos e embrulhado nas tiras de linho da mimia. Num pa- piro que hoje se encontra no Cairo mas que vem de Tebas, assim como em outros hoje existentes no Louvre, temos 716 um texto que oferece instrug6es praticas para se mumifi- car um corpo. O comego se perdeu, mas o fragmento que temos diz o seguinte: “Primeiro untar a cabeca duas ve- ves com um bom 6leo [de uma planta especifica] e depois dizer: ‘Oh, Osiris [e aqui entra o nome do falecido] este 6leo chegou até vocé vindo de Punt para que seu odor pos- sa ser embelezado pelo odor da divindade; que parte do fluxo do Deus Sol Ra possa chegar até vocé; que sua alma” ascenda ao reino divino. Horus vem para encontré-lo por meio deste 6leo””. Depois, as orelhas e 0 nariz sAo untados c assim se seguem as instrugées, dizendo que as visceras devem ser tiradas e colocadas em quatro canopos e, em seguida, nas A4nforas de porcelana, e depois a parte de dentro da mtmia devia ser untada com éleo. Enquanto isso esta sendo feito, deve ser lido um texto (que hoje esta perdido). Depois, 0 cadaver deve ser virado de brugos e ter as costas untadas, com cuidado para que nao caia de volta dentro do caixao, pois a cabega e 0 ventre estado cheios de ervas e 6leo, e os deuses dentro do caixfo nao devem ser incomodados. Ao longo de todo o procedimento, o ros- to do cadaver deve ficar virado para o leste. Sobre suas unhas deve ser colocado ouro, com as seguintes palavras: “Oh, Osiris [e novamente 0 nome do morto deve ser pro- nunciado], agora vocé esta recebendo unhas de ouro e seus dedos agora séio de metal e as unhas dos dedos dos pés sao de eletro. As emanagées do Deus Sol Ra chegam até vocé, verdadeiros membros divinos de Osiris. Agora vocé caminha com os proprios pés até a Casa da Eternidade e ergue os bracos para a Casa do Infinito. Com o ouro esta mais formoso, com o eletro encontra-se mais forte. Seus dedos se tornaram maledveis na Casa de Ra e nas ofici- nas de Horus”. O texto continua entéo sem mais qual- quer mencéo 4 mtimia. Quando quer se referir ao cada- ver, emprega a expressdo “este deus”. Diz: “Agora apli- que [este ou aquele ungiiento] neste deus” etc.!® A mumi- ¥ Gunther Roeder, Urkunden zur Religion des alten Aegypten (Jena: Diederichs Verlag, 1923), p. 297. 77 lieagho 6 destinada a conferir ao falecido as qualidades da olernidade e da divindade; 6 uma divinizacdo e uma imortalizagao da personalidade, mas cada passo é execu- (ado de forma absolutamente concreta. E uma concreti- zacio notavel de fenémenos que, em geral, em outras re- ligides, sdo, ao contrario, considerados invisiveis e inte- grantes de um reino invisivel. Ha passos no sentido dessa concretizagao, magica por exceléncia, na maioria das religides primitivas; en- tretanto, eles nunca s&o executados a tal ponto. Se algum dia vocés forem até o Vale dos Mortos, do outro lado de Luxor, onde se localizam as tumbas de todos os reis egip- cios, e entrarem nessas camaras, verao que ao longo de um nimero intermindvel de cAmaras e passagens exis- tem imagens representando o que a alma do falecido pas- sa antes de se tornar Ba, uma estrela imortal no céu. Ai, novamente, cada passo é executado completa e concreta- mente no teto da camara funeraria. Nessas tumbas, vocés verdo 0 que chamamos de processo de individuacdo re- presentado no teto das cAmaras funerdrias. Vocés po- dem ler cada passo do processo, se souberem 0 suficien- te de simbolismo comparado. Acho que essa concretiza- cdo de coisas que hoje chamariamos de idéias espirituais ou religiosas tem a ver com 0 fato de que no Egito a terra é masculina e o céu, que n6és consideramos como 0 reino espiritual, 6 mais feminino. De maneira estranha, aquilo que consideramos como a realidade material 6 ignorada ou tratada como transi- toria e insignificante pelos egipcios. Por exemplo, ape- sar de todo dinheiro e trabalho investidos na construcéo de templos e tumbas, eles nunca, ou quase nunca, cons- truiam casas particulares de alguma durabilidade; sim- plesmente, viviam em tocas de barro que caiam aos peda- gos em questao de vinte ou cinqiienta anos. A existéncia terrena era tratada como mais imaterial, como algo a ser ignorado quase que por completo. Toda a énfase era dada as coisas que chamariamos de realidade espiritual, ou as 78 coisas do Além, ou aos contetidos do inconsciente. Por- lanto, de certa maneira, existe uma peculiar inversdo dos sentimentos perante a vida: para nés esta vida, nossa existéncia fisica temporal, é a realidade, e o outro mundo « algo relativamente real para algumas pessoas, mas com- pletamente irreal para muitos racionalistas. Quando Jung viajou até o Egito, ficou chocado com esse fato e comentou com um dos guias, que ainda levava turistas até as tum- has e que parecia um homem sabio, como era estranho (jue os egipcios nunca se dessem ao trabalho de construir casas decentes que durassem, em contrapartida com o fato (lc labutarem para preservar as tumbas pela eternidade fora. Numa tipica reagao oriental, ao mesmo tempo sa- bia e melancélica, o guia devolveu-lhe um sorriso e res- pondeu que numa das casas a pessoa vivia setenta anos «, na outra, a eternidade inteira; logo valia mais a pena construir para a eternidade! Ele ainda preservava essa mesma atitude diante da vida. Segundo ela, esta vida era ‘upenas um episédio sem importancia; nossa vida presen- lc e nossa existéncia material eram coisas impermanentes « banais, se comparadas com as idéias e representagdes ‘rquetipicas que, para os egipcios, eram completa e con- cretamente reais. Os indios norte-americanos, em particular os iroque- os, parecem-me mostrar uma propensdo semelhante em lormos de sua atitude religiosa porque — embora nao atin- indo os extremos dos egipcios — tém a mesma tendéncia (le considerar a existéncia temporal nesta terra como algo rolativamente sem importancia, acentuando a realidade ‘onereta daquilo que, hoje, nds chamariamos de contet- (los espirituais. Por conseguinte, 0 que estou tentando enfatizar é que se um conceito mitolégico é qualificado ‘omo masculino ou feminino, como um ser celestial ou lorrestre, essas séo qualificagdes psicologicas sem uma reulidade absoluta, ou um significado em si; também elas io passam de qualificagées simbélicas. Se uma coisa é (lila ser terrestre, néo deveriamos entendé-la dentro do 79 preconceito do que chamamos de terrestre; simplesmen- te, temos de captar 0 sentido da palavra terrestre, ou seja, algo que aparece em forma relativamente concreta. Ora, por que a Deusa do Céu, Nut, deveria ser uma entidade feminina no Egito? O que isso quer dizer do ponto de vista pratico? Espero ter transmitido a vocés 0 que signi- fica o Deus espiritual ser um Deus da Terra. Ja interpretei 0 que Geb 6, mas n&o o que Nut representa. Ao lerem os textos religiosos egipcios, provavelmente vocés ficaram cho- cados com sua tremenda expressividade poética e emocio- nal. A qualidade emocional é tecnicamente confirmada pela quantidade incomum de repetigoes. Ora, a necessidade de repetir a mesma sentenga vinte ou trinta vezes apenas de- monstra a intensidade da emocdo. As pessoas emocional- mente tomadas por uma histéria ou uma idéia repetem-na incessantemente e nao conseguem parar de falar sobre ela ou de contd-la vezes e vezes seguidas. Acontece 0 mesmo quando a pessoa sofreu um choque — um acidente de carro, por exemplo; é preciso evitd-la sendo ficaremos ouvindo a histéria do acidente vinte vezes ou mais, no mesmo dia. E uma forma de abreagir um impacto emocional forte. Tanto nos textos indigenas dos norte-americanos, como nos textos egipcios, existe uma similaridade nota- vel a esse respeito, pois constata-se um acimulo incomum de adjetivos elogiosos e de repetigao emocional. Aqueles dentre vocés que ja leram textos religiosos egipcios, ou textos dos indios norte-americanos, sabem disso. Portan- to, parece-me que aquilo que hoje nés chamamos de 0 rei- no celestial das idéias platénicas, a esfera do logos, para esses povos era mais uma experiéncia emocional e sen- sivel-sensorial. Isso quer dizer que se trata mais de uma questao de estabelecer um tom emocional, um clima de vinculagao afetiva com esses contetidos, algo que tem um teor essencialmente feminino e que, para a psicologia masculina, pertence A anima. Assim, onde nés situamos o nosso céu espiritual os egipcios tinham mais uma atmosfera emocional de expe- 80 riéncias religiosas, e onde possuimos uma realidade con- creta eles praticavam a realizacdo concreta daquilo que nos hoje descrevemos como espiritual. Situado acima da Deusa Nut celestial, segundo a es- trutura césmica egipcia, existe ainda o Deus Sol Ra, que passa de barco sobre as costas dela. Nao deveriamos es- quecer que também em nosso mito iroqués ha tantas Ongwe masculinas quanto femininas e que l4 em cima também esta Onodscha, a arvore da luz que ilumina os mundos aci- ma e abaixo. Portanto, além do principio feminino, nova- mente existe o principio masculino. Essas estruturas de- veriam ser entendidas como qualitativamente caracteris- ticas daquilo que esta mais perto e mais distante da cons- ciéncia, embora nao num sentido absoluto. Retomando o mito de criagao esquimé, vocés hao de lembrar que, no céu, Pai Corvo era um ser humano e que 0 Unico aspecto incomum apresentado por ele era uma pequena protuberancia em sua testa que, mais tarde, se tornou bico. Foi sé quando ele decidiu descet pelo abismo que havia descoberto — abismo que corresponde ao bura- co no céu no mito iroqués — que primeiro se dotou de asas feitas dos gravetos tirados de arvores e depois se tor- nou um corvo. Essa é uma histdéria muito vaga porque mais tarde, na terra, ele nao 6 um corvo mas um homem com mascara de corvo: num dado momento, quando ri ao descobrir que um ser humano se tornou realidade, ele arranca sua mascara de corvo e mostra sua face humana; entao deixa a mascara novamente de lado. Isso mostra que mesmo depois de se haver tornado um corvo, ele ain- da é secretamente um ser humano. Portanto, 0 corvo 6 mais um disfarce ou concha, que o recobre por fora. S60 pardal pode ir e vir entre os dois mundos, sem se transfor- mar. No mito indigena de Mennebosh, que queria trans- mitir uma certa sabedoria de cura para as tribos dos algonquin,-nao lhe foi possivel ser ouvido, por isso ele teve primeiro de ensinar a lontra e foi esta que, saindo da 4gua, ensinou os seres humanos. 81

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