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Danos colaterais sé0 as perdas consideradas acidentais numa a¢ao armada, ‘como a morte de civis, o bombardeio de hospitais e escolas nas imediagées | doalvo de uma operacdo militar. Atualmente, ninguém assume a responsabi lidade pelos danos colaterais dos atos de guerra. Com seu particular brilhantismo, o sociélogo polonés Zygmunt Bauman trons pe a ideia de danos colaterais para o plano da sociedade. No mundo. liquido-moderno, ndo interessa se hd vitimas das.agées politicas e econé- micas. As perdas sdo “naturalizadas”. Pior ainda, as préprias vitimas so culpabilizadas por sua exclusdo. Essa naturalizagao 6 observada sobretudo na indiferenca dos polificos em relacdo aos homens e mulheres sacrificados pelo processo de globalizacéo. 4 CARTAS DO MLNDO 1IQUIDO MODERNO f ‘Aor tau: ‘APRENDENDO A PENSAR COM A SOCIOLOGIA l ‘A sate Da vos (© MALESTAR DA POS MODERNIDADE BAUMAN soske BaUwaN MéD0 ‘laud CCAPTTALISMO PARASIARO MopeRnioane € amarvayéNica Comunpane Mooeenvmane & H: MODERNIDADE UDA as Tewros tious Vioa VIDA em FRacienstos Vipa vaur Vioa Pata CONSUMO 'VioAs DESPERDICADAS SU CVA 6 anos coateris ccrescente multiplicidade de outros, os “danos colaterais” ocor- rem com mais facilidade nos distritos violentos e nas ruas peri- ‘gosas das cidades que nos abrigos fechados de ricos e poderosos. Assim distribuidos, 0s riscos de gerar vitimas colaterais podem até se transformar, as vezes (e segundo alguns interesses e propé: sitos), de passivos em ativos. A intima afinidade ¢ interagdo entre desigualdade e baixas colaterais ~ dois fendmenos que tém crescido em volume e im- portancia em nossa época, assim como no grau de toxidade dos perigos que pressagiam ~ é abordada, a cada vez de uma perspec tiva um pouco diferente, nos capitulos deste livro, baseados, na maioria dos casos, em palestras preparadas ¢ realizadas em 2010 11. Em alguns dos capitulos os dois temas aparecem em primeiro plano, em outros, servem como contexto de fundo. Uma teoria geral de seus mecanismos interligados ainda est por ser escrita; este livro pode ser visto, no maximo, como uma série de afluentes, buscando um leito de rio que até agora nao foi aberto nem ma- ppeado. Estou consciente de que essa sintese um dia deve ser feta ‘Tenho certeza, contudo, de que a mistura explosiva de cres- cente desigualdade social e volume cada vez maior de sofrimento humano relegado a condigao de “colateralidade” (marginalidade, exterioridade, “removibilidade’, de ndo ser uma parte legitima da agenda politica) tem todos o sinais para se tornar, potencial- mente, o mais desastroso dos problemas que a humanidade ser forgada a confrontar, administrar e resolver no século atual. Da agora ao mercado A democracia é a forma de vida da agora: daquele espaco inter- mediario que liga/separa os dois outros setores da pélis: a eccle- sia e 0 oikos. Na terminologia aristotélica, oikos significava a casa da fa. mnilia, o local em que os interesses privados eram constituidos e buscados; ecclesia significava o “piblico” - 0 conselho composto de magistrados eleitos, nomeados ou escolhidos por sorteio, cuja fungao era cuidar dos assuntos comuns que afetavam os cida- aos da pélis, questdes como guerra e paz, a defesa do reino e as regras referentes 8 convivencia dos cidadaos na cidade-Estado. Tendo se originado do verbo kalein, que significa “chamar’, “in- timar’, “convocar’, 0 conceito de ecclesia presumia desde 0 inicio 4 presenga da agora, o lugar do encontro e da conversa, 0 local de reunio das pessoas e do conselho: o lécus da democracia. Numa cidade-Estado, a agora tinha um espaco fisico para © qual a boulé, o conselho, convocava todos os cidadaos (che- {es de familia) uma ou diversas vezes por més para deliberar € decidir sobre assuntos de interesse conjunto e comum ~ e para escolher, por eleigdo ou sorteio, os seus membros. Por motivos bvios, tal procedimento ndo péde set mantido quando o terri- \orio da polis ou 0 corpo politico se expandiu muito além dos 18 Danas colatersis limites de uma cidade: a agora nao poderia mais significar lite- ralmente uma praga publica em que todos os cidadaos do Estado deveriam se apresentar para participar do processo de tomada de decisao. Isso nao significa, porém, que o propésito subjacente ao estabelecimento da agora, e a fungao desta na concretizacéo desse propésito, tivesse perdido sua importancia ou precisasse ser abandonado para sempre. A histéria da democracia pode ser narrada como a de sucessivos esforcos para manter vivos tanto 0 propésito quanto a busca de sua concretizacdo apés o desapare- cimento de seu substrato original Ou seria possivel dizer que a hist6ria da democracia foi pos- taem movimento, guiada e mantida nos trilhos pela meméria da Agora, Poder-se-ia e dever-se-ia dizer também que a preservacio © a recuperagao da meméria da dgora estavam destinadas a pro- ceder de maneiras variadas ea assumir diferentes formas; nao hi ‘um modo exclusivo pelo qual se possa realizar a tarefa da media- a0 entre oikos e ecclesia, e dificilmente um modelo esta livre de obstéculos e impedimentos. Agora, mais de dois mil anos depois, precisamos pensar em termos de muitiplas democracias. O propésito da agora (por vezes declarado, mas quase sem- pre implicito) era e continua a ser a perpétua coordenagio entre interesses “privados’ (com base no oikos) ¢ “puiblicos” (admi- nistrados pela ecclesia). fungdo da agora era e continua a ser ofertar a condigao necesséria e essencial para tal coordenacao: 4 tradugao em mao dupla entre a linguagem dos interesses indi- viduais/familiares e a dos interesses piiblicos. O que em esséncia se esperava ou desejava alcangar na agora era a transformagio de interesses e preocupagdes privados em assuntos puiblicos; e, wwersamente, transformar os temas de interesse piiblico em di. reitos ¢ deveres individuais. O grau de democracia de um regi- me politico, portanto, pode ser medido pelo sucesso ou fracasso, pela suavidade ou aspereza dessa tradugio; ou seja, pelo grau em que seu principal objetivo tenha sido alcangado, mais do que, como muitas vezes é 0 caso, pela obediéncia rigorosa a um ou outro procedimento, visto de modo erréneo como condi¢ao a0 agora 30 mercado ‘mesmo tempo necesséria e suficiente da democracia ~ de toda democracia, da democracia como tal. Como 0 modelo de “democracia direta’ da cidade-Estado — em que era possfvel fazer uma estimativa in loco de seu suces- soe da suavidade da traducdo apenas pelo mimero de cidados participando em carne e osso do processo de tomada de decisio ~ era claramente inaplicavel ao conceito moderno, restaurado, de democracia (em particular a “grande sociedade’, aquela entida- de reconhecidamente imaginada, abstrata, além do alcance da experincia e do impacto pessoais do cidadio), a teoria politica moderna batalhou para descobrir ou inventar meios de mensu- racZo alternativos pelos quais a democracia de um regime poli- tico pudesse ser avaliada: indices que pudessem ser defendidos e apresentados para refletir e sinalizar que o propésito da égora havia sido atingido de forma adequada e que sua fungio fora desempenhada da maneira correta. ‘Talvez os mais populares desses critérios alternativos tenham, sido os quantitativos: a percentagem dos cidadaos participantes no processo eleitoral que, na democracia “representativa’ substi- tuiu a presenga deles em carne e osso no processo de elaboracio das leis. Mas a efetividade dessa participacao indireta tende a ser ‘um tema contencioso; em particular quando o voto popular co- ‘megou a se transformar na tinica fonte aceitavel de legitimidade dos governantes, embora regimes obviamente autoritarios, dita- toriais, totalitarios e tiranicos, intolerantes divergéncia publi- a ou a0 didlogo aberto, pudessem apregoar percentagens mais altas do eleitorado nas urnas (¢ assim, por critérios formais, um apoio popular muito mais amplo as politicas de seus governan- tes) que governos cuidadosos em respeitar e proteger a liberdade de opinido e expresso ~ percentagens com que aqueles s6 pode- riam sonhar. Nao admira que, sempre que os tracos definidores da demo- cracia sao atualmente explicitados, a énfase tenda a se deslocar das estatisticas de comparecimento e absentefsmo eleitorais para esses critérios de liberdade de opiniao e expresso. Com base nos » Danos colaterais conceitos (elaborados por Albert O. Hirschman) de “éxito” e “vor” ‘como as duas principais estratégias que os consumidores podem (¢ tendem a) empregar a fim de ganhar uma influéncia genuina sobre as politicas de marketing," amitide tem-se sugerido que 0 direito dos cidadaos de vocalizar abertamente sua discordancia, 4 provisio de meios para fazé-lo e atingir a audiéncia pretendida, assim como o direito de optar por abandonar o territério sobera. no de um regime detestado ou desaprovado, sio condigées sine qua non que os regimes politicos devem atender para que suas credenciais democraticas sejam reconhecidas, ‘No subtitulo de seu estudo muito influente, Hirschman co- oca na mesma categoria as relagdes vendedores-compradores e Estado-cidadaos, sujeitas aos mesmos critérios de avaliagio de desempenho. Esse procedimento foi e continua sendo legitima- do pelo pressuposto de que as liberdades politicas eas liberdades de mercado sio estreitamente relacionadas ~ necessitando umas das outras, assim como alimentando-se e reforgando-se uma 4 outra; que a liberdade dos mercados, que constitui a base do crescimento econdmico, além de promové-lo, é, em tiltima ins- Lancia, a condigao necesséria, assim como o caldo de cultura, da democracia politica -, enquanto a politica democritica & a tni- ca estrutura em que 0 sucesso econdmico pode ser perseguido e alcangado. Contudo, esse pressuposto € discutivel, para dizer © minimo, Pinochet no Chile, Syngman Rhee na Coreia do Sul, Lee Kuan Yew em Cingapura, Chiang Kai-shek em Taiwan e os atuais governantes da China eram ou sio ditadores (Aristételes os chamaria de “tiranos”) em tudo, exceto nos nomes de seus cargos; mas eles presidiram ou presidem uma notavel expansio € 0 ripido crescimento do poder dos mercados. Nenhum dos paises citados poderia ser considerado um exemplo de “milagre econémico” hoje, nao fosse pela prolongada “ditadura de Estado” E, podemos acrescentar, nao & apenas coincidéncia que tenham se tornado um exemplo como esse. Tembremos que a fase inicial, na emergéncia de um regi- ‘me capitalista, a da chamada “acumulagao primitiva” de capital, Da agora 20 mercado 2 sempre é assinalada por levantes sociais sem precedentes € mui- to marcantes, pela expropriagdo de modos de subsisténcia e pela polarizagao das condigies de vida; isso s6 pode chocar as viti- mas e produzir tensdes sociais potencialmente explosivas, que empresérios e comerciantes diligentes precisam reprimir com a ajuda de uma ditadura de Estado coerciva, potente e impiedosa. Permitam-me acrescentar que os “milagres econdmicos” japo- nés ¢ alemao no pés-guerra podem ser explicados, em grande medida, pela presenga de forgas de ocupagéo estrangeiras que tomaram das instituigdes politicas nativas as fungdes coercivas/ opressivas do poder de Estado, fugindo a todo e qualquer con- trole que pudesse ser exercido pelas instituigées democraticas dos paises ocupados. Uma das chagas mais evidentes dos regimes democriticos & 4 contradicfo entre a universalidade formal dos direitos de- mocriticos (garantidos de modo igual a todos os cidadaos) ¢ a capacidade nem tao universal de seus portadores de exercer de fato esses direitos; em outras palavras, a brecha entre a con- digdo juridica de um “cidadao de jure” e a capacidade pratica de um cidadao de facto - brecha que, em teoria, seria supera- da por individuos que empregam suas capacidades e recursos proprios, dos quais, contudo, eles podem nao dispor -, 0 que ‘ocorre num enorme nimero de casos. Lorde Beveridge, a quem devemos o projeto do “Estado de bem-estar social” britinico do pés-guerra que mais tarde seria copiado por um bom nimero de paises europeus, era um liberal, no um socialista. Acreditava que sua visdo de um seguro abran- gente, coletivamente endossado, para todos, era consequéncia inevitavel e complemento indispensével da ideia liberal de liber- dade individual, assim como condigao necessaria da democracia liberal. A decretagao da guerra ao medo por Franklin Delano Roosevelt teve por base 0 mesmo pressuposto, como também deve ter sido a investigagao pioneira de Seebohm Rowntree so- ” anos colatorais bbre 0 volume e as causas da pobreza e da degradagao humanas. A liberdade de escolha encerra, afinal, imtimeros e incontaveis riscos de fracasso; muitas pessoas considerariam esses riscos insuporté- veis, temendo que pudessem exceder sua capacidade pessoal de enfrenté-los. Para a maioria, aideia liberal de liberdade de escolha continuaré a ser uma ilusio fugidia e um sonho inttil, a menos ‘que 0 medo da derrota seja atenuado por uma politica de seguro implantada em nome da comunidade, uma politica em que pos- sam confiar e da qual possam depender no caso de derrota pessoal ou de golpe do destino. Se 0s direitos democraticos, eas liberdades que os acompa- nham, sio garantidos na teoria, porém inatingiveis na prética, a dor da desesperanca sem diivida seré coroada pela humilhacio da infelicidade; a capacidade de lidar com os desafios da vida, testada todos os dias, é afinal, a prépria oficina em que a au- toconfianga dos individuos (e também sua autoestima) é forja- da ou dissolvida, Pouca ou nenhuma expectativa de socorro no que se refere & indoléncia ou impoténcia individuais pode advir de um Estado politico que nao seja (e se recuse a ser) um Esta- do social. Sem direitos sociais para todos, um nimero amplo ¢ provavelmente crescente de pessoas ird considerar seus direitos politicos de pouca utilidade e indignos de atengao. Se os direitos politicos sao necessérios para que se estabelecam os direitos sociais, estes sio indispenséveis para que os direitos politicos se tornem “reais” e se mantenham em operagao. Os dois tipos de direitos pre- cisam um do outro para sobreviver; sua sobrevivéncia s6 pode ser uma realizagao conjunta, Estado social foi a ultima corporificagao da ideia de co- munidade, ou seja, a reencarnagio institucional daquela ideia em sua forma moderna de “totalidade imaginada” ~ composta de dependéncia, comprometimento, lealdade, solidariedade e confianga miituos. Os direitos sociais so, por assim dizer, a ma- nifestagao tangivel, “empiricamente dada’, daquela totalidade ‘comunal imaginada (ou seja, a variedade moderna de ecclesia, a cestrutura em que essas instituiges democraticas estdo inscritas), Da bgore eo mercado a que liga a nogao abstrata a realidades cotidianas, enraizando a imaginagdo no solo fértil da experiéncia da vida didria. Esses di- reitos certificam a veracidade eo realismo da confianga miitua pessoa a pessoa, ¢ da confianga numa rede institucional comum que endossa e convalida a solidariedade coletiva. Cerca de sessenta anos atrés, TCH. Marshall reciclou a dis- posigdo popular da época naquilo que ele acreditava ter sido (c ainda tendia a ser) uma lei universal do progresso humano: dos direitos de propriedade aos direitos politicos, e destes aos direitos sociais.? A liberdade politica, a seu ver, era um resulta- do inevitavel, ainda que um tanto atrasado, da liberdade eco- nomica, enquanto ela prépria originava necessariamente os direitos sociais ~ tornando tanto vidvel quanto plausivel para todos o exercicio dos dois tipos de liberdade. A cada sucessiva ampliagao dos direitos politicos, acreditava Marshall, a agora se tornaria mais inclusiva, categorias de pessoas até entao inau- diveis ganhariam vor, mais desigualdades seriam eliminadas ¢ mais discriminagdes, abolidas. Cerca de um quarto de século depois, John Kenneth Gal- braith apontou outra regularidade, contudo, esta agora capaz de modificar a sério, sendo de refutar, 0 prognéstico de Marshall. Quando a universalizagao dos direitos sociais comega a dar fru- tos, cada vez mais detentores de direitos politicos tendem a usar sua prerrogativa de votar para apoiar iniciativas de individuos, ‘com todas as suas consequéncias: uma crescente (e nao reduzida ‘ou eliminada) desigualdade de rendimentos, de padroes de exis- téncia e de expectativas de vida. Galbraith atribuiu essa tendén- cia A disposigdo e a filosofia de vida extremamente diferentes da ‘emergente “maioria satisfeita’? Sentindo-se agora firme na sela € & vontade num mundo de grandes riscos, mas também de grandes oportunidades, a maioria emergente nao via necessidade de “Estado de bem-estar social"; este seria para eles um arranjo que seus membros cada vex mais vivenciavam como uma gaiola, e ndo como uma rede de seguranga; uma restri¢éo, e no uma abertura; e como uma Py Dance colataraie. dadiva perduléria de que eles, os satisfeitos, capazes de depender dos proprios recursos e livres para perambular pelo planeta, pro- vavelmente jamais precisariam e da qual dificilmente viriam a se beneficiar. Para eles, os pobres locais, mantidos presos ao solo, nio constituiam mais um “exército de reserva de mio de obra’, € 0 dinheiro gasto para manté-los em boa forma era dinheiro jogado fora. O amplo apoio (“para além de direita e esquerda”) 0 Estado social, visto por TH. Marshall como destino final da “Jégica histérica dos direitos humanos’, comegou a encolher, de- sintegrar-se e desaparecer em velocidade acelerada. Na verdade, o Estado do bem-estar (social) dificilmente sur- giria se 0s donos de fabrica nao tivessem considerado a protecio de um “exército de reserva de mao de obra” (manter os reservis- tas em boa forma para 0 caso de serem chamados de volta ao ser- vigo ativo) um investimento lucrativo. A introdusio do Estado social era de fato uma questao “além de direita e esquerda’s ago- ra, porém, chegou a vez de a limitacao e a gradual desmontagem das disposig6es do Estado de bem-estar social se transformarem numa questao “além de direita e esquerda’ Se o Estado de bem-estar social agora carece de recursos, des- ‘morona ou é mesmo ativamente desmantelado, é porque as fontes do lucro capitalista flutuaram ou foram levadas da exploragio da aio de obra fabri para a exploracao dos consumidores; € porque 0 pobres, privados dos recursos necessérios para responder as se- dugées dos mercados de consumo, precisam de dinheito e linhas de crédito (que nao séo os tipos de servico fornecidos pelo “ tado de bem-estar social”) para ter alguma “utilidade” segundo a ‘compreensio desse termo por parte do capital de consumo. Mais que tudo, o “Estado de bem-estar social” (que, repito, deveria ser chamado de “Estado social’, denominagio que tira a énfase da distribuigao de beneficios materiais para p6-la no pro- cesso de construgéo comunitéria que motiva sua implantagao) foi um arranjo inventado e promovido como se sua finalidade fosse prevenir a atual tendéncia a “privatizagao” (termo taqui- ‘grifico que se poderia traduzir por promogdo dos padrées indi- Ds bgora a9 mercado % vyidualizantes, em esséncia anticomunais, do estilo do mercado de consumo, padrées que colocam os individuos em competicao centre si): uma tendéncia que resulta na fragilizagao e no des- moronamento dos alicerces sociais da solidariedade humana. A “privatizagao” transfere a assustadora tarefa de confrontar ¢ (a0 {que se espera) resolver problemas socialmente produzidos para ‘os ombros de individuos, homens e mulheres que, na maioria dos casos, nao dispdem de recursos suficientes para esse fim, en- quanto o “Estado social” tende a unir seus membros na tentativa de proteger a todos e a qualquer um deles da “guerra de todos contra todos’, impiedosa e moralmente devastadora ‘Um Estado € “social” quando promove o principio da co- munalidade endossada, do seguro coletivo contra o infortiinio individual e suas consequéncias. E esse principio ~ declarado, posto em operacio e em cujo funcionamento se acredita ~ que cergue a “Sociedade imaginada” até o nivel de uma “totalidade auténtica” - uma comunidade tangivel, percebida e vivida -, € portanto substitui (para empregar os termos de John Dunn) a “regra do egoismo’, que gera desconfianga e suspeita, pela “regra da igualdade’, que inspira confianga e solidariedade. F 0 mesmo principio que torna democritico 0 corpo politico; ele eleva os ‘membros da sociedade & condigao de cidadaos, ou seja, torna-os detentores de direitos, para além do fato de serem os detentores de agoes de uma sociedade politicamente organizada; beneficid- rios, mas também atores responsiveis pela criagio e alocagio decente dos beneficios. Em suma, tornam-se cidadios definidos € movidos pelo profundo interesse no bem-estar ena respon- sabilidade comuns; uma rede de instituiges piblicas nas quais ha confianga de qué clas garantam a solider. e a fidedignidade da “apélice de seguro coletiva’ langada pelo Estado. A aplicagio desse principio pode proteger (e frequentemente 0 faz) homens ce mulheres do triplo veneno de “silenciamento”,exclusao e humi- Ihagao ~ porém, o que é mais importante, pode se tornar (e em geral se torna) uma fonte prolifica da solidariedade social que transforma a “sociedade” num valor comum, comunal. % anos colatrais Hoje, contudo, nds (dos paises desenvolvidos, por nossa propria Iniciativa, assim como “nds” dos paises “em desenvolvimento’, sob pressiio dos mercados globais, do Fundo Monetério Inter- nacional e do Banco Mundial) parecemos estar caminhando na diregao oposta; as “totalidades’, sociedades e comunidades, reais ou imaginadas, tornam-se cada vez mais “ausentes”. O espectro da autonomia individual esta se expandindo, mas também ar- cando com o peso de fungdes antes consideradas de responsa bilidade do Estado, mas agora transferidas (“subsidiarizadas”) para a esféra das preocupagdes individuais. Estados endossam a apélice de seguro coletivo de modo temeroso e com crescentes reservas, e deixam para o individuo a tarefa de, com suas realiza- ses, alcangar 0 bem-estar € tornar seguro esse bem-estar. Assim, poucas coisas estimulam as pessoas a visitar a agora, {que dira se engajar em seus trabalhos. Deixadas cada vez mais por conta de seus recursos e sagacidade proprios, espera-se das pessoas que encontrem solugdes individuais para problemas s0- cialmente gerados, e que 0 fagam individualmente, usando suas habilidades e capacidades. Tal expectativa coloca os individuos em competicéo miitua e faz com que a solidariedade comunal (exceto na forma de aliangas de conveniéncia temporarias, ou seja, de lagos humanos atados e desatados a pedido e “sem cri vinculos”) seja percebida como algo amplamente irrelevante, se no contraproducente. Se nao for amenizada por uma interven <0 institucional, essa “individualizagdo por decreto” torna ines- capaveis a diferenciagao e a polarizagao das oportunidades indi- viduais; na verdade, transforma a polarizagao das expectativas oportunidades num processo capaz de se movimentar e acelerar or si mesmo. Os efeitos dessa tendéncia eram ficeis de prever ~ e agora podem ser computados. Na Gra-Bretanha, por exemplo, a parce- la da renda nacional nas maos do centésimo mais rico da popu- lacao dobrou desde 1982, pasando de 6,5% a 13%, enquanto os agora 20 mercado a principais executivos das cem empresas da FTSE” tém recebido (até a “crise crediticia” e depois dela) nao vinte, como em 1983, porém 133 vezes mais que 0s assalariados médios. ‘Mas esse nio 6 o fim da historia. Gragas a rede de “autoes- tradas da informacio’, em répido crescimento tanto em extensio quanto em densidade, todo e qualquer individu (homem ou mulher, adulto ou crianga, rico ou pobre) é convidado, tentado ¢ induzido (ou seja, compelido) a comparar sua propria sorte com a de todos os outros; em particular, com 0 consumo excessi- vo praticado pelos idolos piiblicos (celebridades constantemente expostas nas telas de TV e nas capas de tabloides e revistas de Juxo); ¢ a mensurar os valores que tornam a vida digna de ser vi- vvida pela opuléncia que eles exibem. Ao mesmo tempo, enquan- to as expectativas realistas de uma vida satisfatéria continuam a divergir profuncamente, os padres sonhados e os simbolos cobigados de uma “vida feliz” tendem a convergir; a forca mo- tora da conduta nio é mais 0 desejo mais ou menos realista de “Se equiparar aos vizinhos’, mas a ideia altamente nebulosa de “equiparar-se as celebridades’, comparar-se com supermodels, jo gadores de grandes times de futebol e cantores de sucesso. ‘Como sugeriu Oliver James, essa mistura verdadeiramen- te toxica é criada ao se acumularem “aspiragoes irrealistas, as- sim como a expeciativa de que elas possam se concretizar”; mas grandes segmentos da populacio britanica “acreditam poder tornar-se ricos e famosos’, que “qualquer um pode ser um Alan Sugar ou um Bill Gates, ndo importando que a probabilidade real de isso ocorrer tenha diminuido desde a década de 1970°* (0 Estado hoje tem cada vez menos capacidade (e disposi- io) de prometer seus siiditos a seguranga existencial (“ser livre * Indice caleulado pels FTSE The Index Company. Representa um pool de em ages da Bolsa de Valores de Londres, visando a detectar movimentos de altaou Dbaixa nas cotagies. A FTSE € uma companhia independent, de propriedade conjunta do Financial Times e da London Stock Exchange. Objetiva 0 manejo ‘dos indices de servigas de dados em escala internacional, e nio s6 no Reino Unido. (NT) cy anos colaterais do medo’, como Franklin Delano Roosevelt expressou numa frase famosa, invocando sua “firme crenga” de que “a nica coi- sa que temos a temer é 0 proprio medo”). Em grau cada vez maior, a tarefa de garantir a seguranca existencial ~ obtendo mantendo um lugar digno e legitimo na sociedade humana e evitando a ameaga de exclusio - € agora deixada por conta dos recursos e habilidades préprios de cada individuo; e isso quer dizer correr riscos enormes e sofrer a angustiante incerteza que essas tarefas inevitavelmente implicam. O medo que a demo- cracia e seu filhote, o Estado social, prometeram erradicar vol- tou como vinganga. A maioria de nés, da base ao topo, teme hoje, embora vaga ¢ inespecifica, a ameaga de ser excluido, de ser tido como inadequado diante do desafio, desprezado, hu- milhado e destituido de dignidade. (05 politicos, tanto quanto os mercados de consumo, sdo dvi- dos por tirar proveito dos medos difusos e nebulosos que satu- ram a sociedade atual. Os comerciantes de servigos e bens de consumo anunciam suas mercadorias como remédios garanti- dos contra o abominével sentimento de incerteza e as ameacas indefinidas, Movimentos € politicos populistas assumem a tarefa abandonada com a fragilizagao e o desaparecimento do Estado social, do mesmo modo que grande parte do que restou da es- querda social-democritica, amplamente desacreditada, Mas, em nitida oposicio ao Estado social, eles esto interessados em ex- pandir (e nao em reduzir) 0 volume desses medos; em particular, em expandir os medos provocados por aquele tipo contra o qual a TV os mostra resistindo galhardamente, enfrentando e prote- gendo a nagio. A ironia € que as ameacas exibidas pela midia, da maneira mais vociferante, espetacular e insistente, raras vezes sio (se & ‘que chegam a ser) as que se encontram nas raizes da ansiedade e do medo populares. Nao importa o éxito que o Estado possa ob- ter na resisténcia as ameagas anunciadas; as fontes genuinas de ansiedade, daquela incerteza abrangente ¢ aterrorizante, assim como da inseguranga social, causas basicas do medo endémico agers 0 mereado » a0 modo de vida capitalista moderno, vao permanecer intactose, pelo contrétio, emergir reforgados. No que diz respeito massa do eleitorado, os Iideres pol cos (atuais e pretendentes) sao julgados pela severidade que ma- nifestam no curso da “corrida pela seguranga’. Politicos tentam superar um ao outro nas promessas de tratar com austeridade ‘s responséveis pela inseguranga ~ auténticos ou supostos, mas 6 que esto perto, ao alcance, € que podem ser enfrentados ¢ derrotados, ou pelo menos considerados conquistéveis ¢ assim apresentados. Partidos como 0 Forza Italia ou a Liga Norte po- dem vencer eleigdes prometendo evitar que os labutadores lom- bardos sejam roubados pelos preguigosos calabreses; defender cesses dois grupos dos recém-chegados de outras terras, que lhes trazem a Jembranga a instabilidade e a fragilidade incuravel de sua prépria posigao; e também defender todo ¢ qualquer eleitor dos importunos pedintes, molestadores, vagabundos, assaltan- tes, ladrdes de carros e, evidentemente, ciganos. A ironia € que ‘as ameagas mais assustadoras & vida e a dignidade humanas, e portanto a vida democritica, irdo emergitilesas. Da mesma forma, 0s riscos a que as democracias esto hoje expostas se devem, pelo menos em parte, & forma como os go: ‘vernos buscam com desespero legitimar seu direito de governar ¢ de exigir disciplina exibindo seus misculos e mostrando sua determinagio de permanecer firmes diante das infindaveis amea- ‘528 (auténticas ou supostas) aos corpos humanos ~ em lugar de (como faziam antes) proteger a utilidade social de seus cidadaos, suas posicdes respeitaveis na sociedade e a garantia contra a ex- clusio e negagio da dignidade e a humilhagao. Digo “em parte” porque, o segundo motivo de a democracia estar em risco € 0 ‘que s6 pode ser chamado de “fadiga da liberdade’, Esta se mani- festa na placidez com que a maioria de nds aceita 0 processo de limitagio gradual de nossas liberdades tao dificeis de conquistar, de nossos direitos & privacidade, & defesa nos tribunais, a sermos tratados como inocentes até prova em contrario. Laurent Bonelli recentemente cunhou 0 termo “liberticida” para denotar essa » Denes cletaais combinacao das novas e extravagantes ambicbes dos Estados coma timidez ea indiferenca dos cidadios.* Algum tempo atrés, eu via na TV milhares de passageiros presos nos aeroportos britinicos durante outro “panico do ter- rorismo’, quando voos foram cancelados apés o antincio da des- coberta dos “terriveis perigos” de uma “bomba liquida” e de uma conspiragio mundial para explodir as aeronaves em pleno voo. Mas eles nao se queixavam! Nem um pouco... Nem de terem sido farejados por cies, mantidos em filas intermindveis para ve rificagdes de seguranca, submetidos a buscas corporais que em situagio, normal considerariam ofensivas a sua dignidade. Pelo estavam jubilosos, radiantes de gratidao: “Nunca nos sentimos tao seguros quanto agora’, repetiam. “Estamos muito gatos as nossas autoridades por sua vigilancia e por cuidarem tao bem de nossa seguranga!” No ponto extremo da atual tendéncia, ficamos sabendo de prisioneiros encarcerados durante anos, sem acusagao, em lugares como Guantnamo, Abu Ghraib e talvez dezenas de outros lugares que se mantém secretos e, por isso mesmo, s40 ainda mais sinis tos e menos humanos; 0 que ficamos sabendo causou murmiirios de protesto ocasionais, mas quase nunca um clamor piiblico, mui- to menos uma reagao efetiva. Nés, a “maioria democritica’, nos consolamos com o fato de que todas essas violacées dos direitos |humanos sio dirigidas a ‘eles’, nio a “nds” ~ a tipos diferentes de seres humanos (“CA entre nds, sera que so mesmo humanos?”) -, de que esses ultrajes nao nos afetam, nds, as pessoas decentes. De modo conveniente, esquecemos a triste licio aprendida por Martin Nieméller, pastor luterano e vitima da perseguicio nazista. “Primeiro eles pegaram os comunistas’, refletiu ele, “mas cu nio era comunista, de modo que fiquei calado. Depois vieram atris dos sindicalistas, mas, como eu nao era sindicalista, no disse nada. Depois vieram atrés dos judeus, mas eu nao era ju- deu... E depois dos catélicos, mas eu nao era catélico... Depois vieram ateés de mim... E af ndo havia mais ninguém para gritar por quem quer que fosse” (a égora a0 mercado a Num mundo inseguro, seguranga é 0 nome do jogo. A se- _guranga € 0 principal objetivo do jogo ¢ seu maior prémio. £ um valor que na pritica (se nao na teoria) reduz ¢ afasta do campo visual ¢ das atengées todos os outros ~ incluindo valores caros para “nés”, mas supostamente odiados por “eles’, e por isso decla- rados causa principal de eles desejarem nos atingir, assim como de nosso dever de derroti-los e puni-los. Num mundo tio inse- ‘guro como 0 nosso, a liberdade pessoal de palavra ¢ de ago, 0 direito & privacidade, de acesso a verdade ~ todas essas coisas que costumavamos associar & democracia e em nome das quais ainda fazemos guerra ~ precisam ser reduzidos ou suspensos. Ou pelo menos é o que declara a versio oficial, confirmada pela pritica, ‘A verdade ~ cuja omissio poe em risco a democracia -, nio obs- tante, € que ndo podemos defender efetivamente nossas liberda- des em nossa propria terra colocando cercas entre nés ¢ 0 resto do ‘mundo e cuidando apenas dos nossos interesss. ‘A classe é apenas uma das formas histéricas de desigualdade, 0 Estado-nagao, apenas um de seus arcabougos histéricos. As- sim, “o fim da sociedade de classes nacional” (se € que de fato a era da “sociedade de classes nacional” chegou ao fim, o que é ‘uma questio em aberto) nao prenuncia “o fim da desigualdade social”, Precisamos agora estender o tema da desigualdade para além da érea equivocadamente limitada da renda per capita; ela deve se ampliar at$ a atragio fatal e reciproca entre pobreza ¢ vulnerabilidade social, corrupgio, acumulagio de perigos, assim como humilhagao e negacao da dignidade; ou seja, até os fatores que moldam as atitudes e a conduta e que so responséveis pela integracao (ou, de modo mais correto, nesse caso, desintegracio) de grupos, fatores que depressa crescem em volume e importan- cia na era da informagio globalizada. Creio que 0 que esta por tris da atual “globalizagio da desi- gualdade” ¢ a repetigao atualizada, embora desta vez em escala plavietitia, do processo apontado por Max Weber nas origens do ‘eapitalianio moderne e por ele chamado de “separacao entre local ‘le trabalho ¢ local de residéncia’; em outras palavras, a emancipa- ‘ilo dos interesses empresariais em relagéo a todas as instituigdes socioculturais de supervisdo e controle eticamente inspirados en- tio existentes (concentradas, naquela época, na residéncia/oficina familiar e, por meio dela, na comunidade local); e, por conseques cia, a imunizacao das atividades empresariais contra todos os va- lores, exceto a maximizagio do lucro. Com o beneficio do tempo, odemos agora ver os desvios atuais como uma réplica ampliada desse processo original que jé tem duzentos anos. Os resultados sio os mesmos: répida expansio da miséria (pobreza, desagrega- ‘40 de familias e comunidades, fragilizagdo ¢ afrouxamento dos vinculos humanos diante do “nexo financeiro” de Thomas Carlyle) € uma nova “terra de ninguém” (uma espécie de Velho Oeste, a ser mais tarde recriado nos estidios de Hollywood), livre de leis restrtivas e de supervisio administrativa, s6 esporadicamente vi sitada por juizes itinerantes. Para resumir uma longa histéria:& cisio original dos interes- ses empresariais seguiu-se um longo e frenético esforgo do Estado emergente para invadir, submeter, colonizar e por fim estabele- cer uma “regulacio normativa” nessa terra dos “livres para tudo”; para lancar os alicerces institucionais da “comunidade imaginada” (chamada de “nagio”), destinada a assumir as fungOes de sustenta- ‘io da vida antes desempenhadas por residéncias, pardquias, guil- das de artesios ¢ outras instituigbes que impunham valores aos negocios, mas que agora sairam das maos debilitadas de comuni- dades locais destituidas de seu poder executivo. Hoje assistimos & Cisio Empresarial Parte 2: agora a vez de se atribuir aos Estados- hago o status de “residéncias” e “trincheiras do paroquialismo"; de serem vistos com desagrado, depreciados e atacados como obs. téculos & modernizacio, reliquias irracionais e hosts i economia Acesséncia da segunda cisio, tal como 0 fora a da original, é © divércio entre poder e politica. No curso de sua luta para limi- tar os danos sociais e culturais da primeira cisio (culminando Da égora 20 mercado 2 nos “trinta gloriosos” anos que se seguiram & Segunda Guerra Mundial), o Estado moderno emergente conseguiu desenvolver instituigdes politicas e de governanga feitas sob medida para a postulada fusio de poder (Macht, Herrschaft) e politica no inte rior da unido territorial entre nagdo e Estado. O casamento de poder com politica (ou melhor, sua coabitagdo dentro do Estado- nagao) agora termina numa separacdo que tende ao divérci poder em parte evapora para cima, para o ciberespaco, em parte fui lateralmente para mercados militante e grosseiramente apo- liticos, e em parte torna-se “subsidirio” (a forga, “por decreto”) da drea da “politica de vida" de individuos recém-"emancipados” (de novo por decreto). Os resultados so muito semelhantes aos que foram produ- ziidos pela cis4o original, s6 que desta vez numa escala incompa- ravelmente maior. Agora, contudo, nao ha & vista nada equiva- lente ao “Estado-nagio soberano” que entdo se postulava; nada capaz. (ou assim se esperava que fosse) de divisar (que dird im- plementar) uma expectativa realista de controlar os efeitos até agora puramente negativos (destrutivos, desagregadores de ins- tituigdes, desarticuladores de estruturas) da globalizacao, de re- capturar as forgas que se movimentam as cegas para submeté-las a um controle eticamente orientado ¢ politicamente conduzido. Até agora, pelo menos... Agora temos poder livre da politica e politica destituida de poder. © poder ji & global; a politica, por léstima, permanece local. Os Estados-nagao territoriais sio dele- gacias de policia locais no estilo “lei e ordem’, assim como latas de lixo, cortadores de grama e usinas de reciclagem locais para -0s ¢ problemas globalmente produzidos. Ha razdes validas para se supor que, num planeta globali- zado, com o destino de cada um, em cada lugar, determinando 6 de tados os outros e sendo por eles determinado, nio se pode ‘mais garantir e proteger com eficicia a democracia “isoladamen- te, num pais ou mesmo em alguns paises selecionados, como é © caso da Unido Europeia. A sorte da liberdade e da democra- cia em cada lugar é decidida e estabelecida no palco global; e sé Ey anos costes nesse palco ela pode ser defendida com uma chance realista de sucesso permanente, Nao esti mais no poder de qualquer Esta- do ativo, sozinho, ainda que dotado de recursos, fortemente armado, resoluto e inflexivel, defender certos valores no plano doméstico e virar as costas aos sonhos e anseios dos que esto fora de suas fronteiras. Mas virar as costas é precisamente aqui- lo que nés, europeus americanos, parecemos estar fazendo quando mantemos e multiplicamos nossas riquezas a custa dos pobres lé de fora. ‘Alguns exemplos sio suficientes. Se quarenta anos atrés a renda dos 5% mais ricos da populacio mundial era trinta vezes ‘maior que a dos 5% mais pobres, quinze anos atras jf era sessen- ta vezes maior, e em 2002 atingiu um fator de 114. ‘Como assinalou Jacques Attali em La voie humaine,* meta- de do comércio mundial e mais de metade do investimento glo- bal beneficiam apenas 22 paises, que abrigam 14% da populagio ‘mundial, enquanto os 49 paises mais pobres, habitados por 11% da populacdo mundial, recebem entre si apenas 0.5% do produto global ~ quase 0 mesmo que a soma dos rendimentos dos trés homens mais ricos da Terra. Algo em torno de 90% da rique- za total do planeta permanece nas maos de apenas 1% de seus habitantes. ‘A Tanzania produz uma renda anual de USS 2.2 bilhées, ‘que divide entre seus 25 milhdes de habitantes, O Banco Gold- man Sachs ganha USS 2,6 bilhdes por ano, divididos entre 161 acionistas. Europa e Estados Unidos gastam USS 17 bilhdes por ano com comida para animais, enquanto, segundo especialistas, apenas USS 19 bilhdes seriam necessérios para salvar da fome toda a populagéo mundial. Como Joseph Stiglitz relembrou 0s ministros do Comércio europeus que se preparavam para seu encontro no México,’ o subsidio europeu médio por vaca “equipara-se a0 nivel de pobreza de USS 2 por dia com os quais milhdes de pessoas subsistem’, enquanto os subsidios america- nos para o algodao, de USS 4 bilhdes pagos a 25 mil fazendeiros, Ds agora 20 mercado 3s “provocam a miséria de 10 milhdes de agricultores africanos e mais que superam a mesquinha ajuda dos Estados Unidos a alguns paises afetados’, De vez em quando ouvimos Europa e Estados Unidos se acusando mutuamente de “priticas agricolas desonestas”, Mas, como observa Stiglitz, “nenhum dos lados parece disposto a fa- zer concessdes relevantes”. Mas uma concessio relevante talvez possa convencer outros a nao encarar a desavergonhada exibicéo de “poder econémico bruto por parte dos Estados Unidos e da Europa” como algo mais que um esforgo no sentido de defender 0s privilégios dos privilegiados, proteger a riqueza dos ricos servir a seus interesses ~ 0 que, na opiniao deles, pode ser tradu- zido como mais riqueza e mais riqueza ainda. Para serem elevadas e redirecionadas a um plano mais alto que o Estado-nagdo, as caracteristicas essenciais da solidarieda- de humana (como os sentimentos de pertenca miitua e de res- ponsabilidade comum por um futuro comum, ou a disposicéo de cuidar do bem-estar uns dos outros e de encontrar solucées amigiveis ¢ duradouras para choques de interesses esporadica- mente exaltados) precisam de um arcabougo institucional para a formagao de opinides e a constituigao de desejos. A Unido Eu- ropeia quer constituir (e caminha nessa direcao, ainda que de maneira lenta e hesitante) uma forma rudimentar ou embriond- ria desse arcabougo institucional, encontrando em seu caminho, como obsticulos mais importunos, os Estados-nagao existentes ¢ sua relutancia em partilhar o que tenha restado da soberania que um dia foi plena. A atual direcao ¢ dificil de delinear sem ambiguidade, e prever seu futuro torna-se ainda mais dificil, além de injustificével, irresponsével e imprudente. Sentimos, percebemos, suspeitamos o que precisa ser feito. Mas nao sabemos a forma ou 0 formato que isso acabaré assu- mindo, Podemos estar bem seguros, contudo, de que o formato final no sera qualquer um dos que conhecemos. Serd (deve ser) diferente de todos aqueles a que nos acostumamos no passado, na era de construgdo da nagéo ¢ de autoafirmasio dos Estados Danas coatersis nacionais. Dificilmente pode ser de outra forma, ja que todas as instituiges politicas agora disponiveis foram feitas sob me- dida para a soberania territorial do Estado-nacao; elas resistem ‘a se estender para uma escala planetéria, supranacional as ins- tituigoes politicas que se prestem A autoconstitui¢do da comuni- dade humana de escala global nao serio (ndo poderio ser) “as _mesmas, apenas maiores’ Se fosse convidado a uma sessio par- lamentar em Londres, Paris ou Washington, Aristoteles talvez aprovasse suas regras de procedimento ¢ reconhecesse os bene- ficios oferecidos as pessoas a quem suas decisdes afetam, mas ficaria perplexo ao Ihe dizerem que 0 que lhe fora mostrado era a “democracia em ago”, Nao era assim que Aristételes, criador do termo, visualizava a “pélis democritica’ Podemos muito bem sentir que a passagem das agéncias ¢ dos instrumentos de agao de internacionais para instituigoes universais ~ globais, planetérias, atingindo toda a humanidade ~ deve ser e serd uma mudanea qualitativa, e ndo apenas quantita- tiva na historia da democracia. Assim, podemos ponderar, com preocupagio, se os arcabougos de “politica internacional” hoje disponiveis podem acomodar as praticas da emergente comuni dade organizada global, ou se de fato Ihe servem de incubado- ra, Que dizer da Organizagao das Nagdes Unidas, por exemplo, apresentada em seu nascedouro como guardia e defensora da soberania indivisivel e incontestavel do Estado sobre seu te torio? Serd que a forea coerciva das leis planetérias depende dos acordos (reconhecidamente revogiveis!) de membros soberanos da “comunidade internacional” para obedecé-las? Em seus estagios iniciais, a modernidade elevou a integragao humana até o nivel de nagdes. Antes de concluir 0 trabalho, contudo, a modernidade necessita realizar outra tarefa, ain- da mais formidével: elevar a integracao humana até o nivel da humanidade, incluindo toda a populagao do planeta. Por mais dificil e espinhosa que possa ser essa tarefa, ela é imperativa a 4goca a0 mercado 2 urgente, pois, para um planeta caracterizado pela interde- pendéncia universal, trata-se, literalmente, de uma questio de vida (compartithada) ou morte (conjunta). Uma das condigdes cruciais para essa tarefa ser empreendida e realizada com se- riedade é a criagdo de um equivalente global (no uma réplica nem uma cépia ampliada) do “Estado social” que completou e coroou a fase anterior da histéria moderna ~ a da integragao de localidades ¢ tribos em Estados-nagéio. Em algum momento, ‘uma ressurgéncia do cerne essencial da “utopia ativa” socialista ~ 0 principio da responsabilidade comum e do seguro coletivo contra a miséria e o infortunio ~ sera indispensavel, embora desta vez em escala global, tendo como objeto a humanidade como um todo. No estigio ja alcangado pela globalizacto do capital e do ‘comércio de mercadorias, nenhum governo, isolado ou mesmo em grupo, consegue equilibrar as contas. Sem isso, a capacidade de 0 “Estado social” continuar com sua pratica de erradicar efe- tivamente a pobreza no plano doméstico é inconcebivel. Tam- bém ¢ dificil imaginar governos, isolados ou mesmo em grupos, capazes de impor limites a0 consumo e elevar os impostos até os niveis necessarios para a continuagio (que dira a expansio) dos servigos sociais. Uma intervenga0 nos mercados é de fato necesséria, mas, se acontecer - em particular se, além de ape- nas acontecer, também provocar efeitos tangiveis - serd ela uma intervengao de Estado? Em vez disso, parece que ela devera ser uma obra de iniciativas ndo governamentais, independentes do Estado e talver até dissidentes dele. A pobreza, a desigualdade ¢, de modo mais geral, os de- sastrosos efeitos e “danos colaterais” do laissez-faire global nao podem ser enfrentados de maneira efetiva nem isolado do res- to do planeta, num canto do globo (a nao ser 4 custa do que norte-coreanos ou birmaneses tém sido forgados a pagar). Nao hha uma forma decente pela qual um 56 ou varios Estados territo- riais possam “optar por se excluir” da interdependéncia global da humanidade, O “Estado social” nao é mais viével s6 um “planeta » anos colaterais social” pode assumir as fungdes que os Estados sociais, com re- +2: sultados ambiguos, tentaram desempenhar. Suspeito que os provaveis veiculos para nos conduzir a esse “planeta social” nao sejam Estados territorialmente soberanos, e : % sim organizagoes e associagbes ndo governamentais cosmopoli- Um réquiem para 0 comunismo tas, aquelas que atingem diretamente as pessoas necessitadas por sobre as cabecas dos governos locais “soberanos” e sem interfe- réncia deles A visio do comunismo foi concebida e nasceu na maré montante da fase “solida” da modernidade. {As circunstincias desse nascimento devem ter deixado suas marcas profundamente gravadas, porque, durante muitos anos desde entio, na verdade durante um século e meio, essas marcas cemergiram intactas de provas ¢ testes sucessivos, mostrando-se, no fim, indeléveis. Do bergo ao timulo, 0 comunismo sempre foi um fendmeno genuinamente sélido-moderno. Na verdade, © comunismo foi um dos filhos (talvez o filo) mais figis, devo- tados € amorosos, assim como (ao menos em suas intencbes) © aluno mais zeloso de toda a prole da modernidade sélida; subalterno leal e o dedicado companheiro de armas da moder- cde em todas as suas sucessivas cruzadas; um dos poucos devotos a permanecer leais a suas ambigdes e vivamente interes- sados em prosseguir com seu “projeto inacabado’, mesmo quan- do a maré da historia se inverteu, € as ambigdes “solidificantes” da modernidade foram deixadas de lado pela maioria de seus figis, ridicularizadas ou condenadas, abandonadas e/ou esqueci- das. Inflexivelmente devotado a intengdes, promessas, dogmas ¢ cinones da modernidade sélida, 0 comunismo continuou até 0 fim num campo de batalha jé evacuado por outras unidades do »

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