You are on page 1of 204
QUATIO SECHLOS De LATIPYNDIO ALBERTO }aSSO8 GUTMARAES ; 0 lotifindio €.0 eentro. dos de~ bates: atuais sébre a problemati- ca brasileira. Pura ug correntes progressistas Gle ¢ a causa bA- sica dla crise em que ore vive- mos, dmuarrindo-nas fi monacul- (ura de expactigio, en detri- mento da produgiv de géncrax alimenticies para o consume! in terne; impedinds o desenvol- vimento do mercado. nacional, a demoeratizacia dq proprieda- Ede, de crédito, do poder e 4 jus tiga) spciul: enyuanto que para as elites coniicrvidoras gant fo vos de fitor niméro um de os tabilidade social, tornando-se, em | consegiténeia, intocdvel, Alberts Passos ‘Caimaries: Ud- nos no presente trabalho umn. espléndida ‘© impressionante wi- sao do processo de formagae da nossa estrutury latifungliiria, des- de suas raizes, até o aspect com que ara se apresenia, mostean- = do-as wirias formas de sua evn lugio Histdrica & regional. Annlisa o auter, com abjetivi- dade cientilica. 25 teses contradi- (Grias sobre a existincia ou nap di curactoristicas feudais em nossa vide rutul, chegands: aun definiedo mais clara © real’ cls misina, qué representa, sem dd _ vida, uma mugnifies contribui- che 4 melhor compreensau esse i problema fundamental, indispen- sivel A jusin formulagio, “polis forgas populares, dos linhas ¢ dos: objetivas da revolugao hea- sileira, Mostro-nos, outrossim, 0 pro- cesso de surgimento do camponés brasileiro, a partir da concen- ttugio do Tntifindig agneareiro. © conseqilente formariio das mas- Sis furais sem terra — os «ugre- gadis —¢, posteriormente, com «winds dos imigruntes’ euro- peus ec a criagha da: eparceriaw. Demonstra a fabicia dw pretensa eguiparacao de «parcerine bra- sili ao institut intermedia. riy conhecide na Europa. pelo mesmo nome e catueterizade por Murs em © Capital, mos: trando @ nftide cardter servil das: relagées: de produgio: aqui existentes ‘Tratase, pots, de jum livre indispensivel ad vonhecimento da tealidsde brasileira, fruty de Pesquisas © de aniilises ctenti- ficas, de elabomegio inteligente: e de interpretagie propria’ de feinas © matetiais. inédites, uma verdadeiia historia ecendmica do Brasil, tendo por centra, o institute bisico da nessa estru- tur, apraria. A Biblioteca de Estudos. Bra- sileiras orgutha:se; assim, de tras zer aos estudiosgs mais est con tribuigio ac processa de auto- conseiéncia critica que aru telits- forma c entijece 6 espirito na- siunal, © que, sendd ‘Gonpeqaén- tin do ‘desenvolvimento ¢cond- nivo ji conquistado, rornbu-se hoje no: impulsionador bisico do~ seu ptosscpuimento, que prec: suinds; porttate, aprofundar © eariquecer, LANCAMIENTO PROGEAMLADO A QUESTAO AGRARIO-CAMPOWESA ATUALIDADE BRASILEIRA . MOISES VINHAS Nesse livro, o aulor faz jma apreciacdo, do pouto de vista marxista, da real situagio da estrntnrd agraria. Revela, com fatos ¢ dados hrefitaveis, a permundnecin do monopélio da nas mos de latifunditrios. As teses con- Tiago § So dlemonstradas todis as conseq is uefasias desse monopolio da terra, par, seis ilo campo e¢ das cidades, para a ine ne para lida a Nagao: Ao estudar a atnal estruture agra o antor compara os dacdos do, processo das ttinas apa tro décadas — a contar dle 1920 a 196 8 HI diverencas ¢ semellaneas entre os ¢ o. Norieste, neste terreno, Ahorda, pela primeita vex, de fornia mat avingida, chi nossa literatura, as diferengas s rehighes entre a questio agraria ea ques: 6 camponesa. Procira esclirecer as relit- es de prodigao predominuntes no ¢ampo e as conseg! fone: classes e camadas dai decor- rentes. A definigho das referidas hisses e camadas ¢lncida as diferentes ¢ principais contradighes no enipio, ; Desenvolvendo sux andlise, conclui, o autor, pela inevitabilidade da reformer agraria, e do ‘ier rulien! da mesma, necessirto para so- ona as contradiches vigerantes entre as forgas que por ¢la lutam, ¢ as que a ela se opden. Ttnionstra, ainda, qie o movimento GUMpOnes EN USceLsO, Assi Como a opinido peal » faverivel cada vex mais 4 reforma agraria, levam 2 formagio de uma frente de ayilo comm, que impulsione o processo revol i ciondvio do Pats, Oo refutacas. One tn- EDITORA FULGOR BIBLIOTECA DE ESTUDOS BRASILEIROS pirecao bE LUIZ OSIRIS DA SILVA RESERVADOS TODOS OS DIREITCS PARA O BRASIL EDITORA FULGOR LIMITADA RB ANHANGUERA, 64-CX. POSTAL, 1821 TELEFONE 51-9095— SAO PAULO —1964 - ee ol ALBERTO _ PASSOS GUIMARAES QUATRO SECULOS- DE LATIFUNDIO FULGOR a=. opi cei il VIT. VIN. IX. X. INDICE Preficio 7 Propriedade ¢ Pré-Histdria 9 O Regime Econémico Colonial: Fendalismo ou Colonialisma ? 21 A Sesmaria 39 Engenhos ¢ Fazendas 37 O La Formagao da Pequena Propriedade: 1. Intrusos ¢ Posseiros 95 findio Cafceiro 71 Formagiia da Pequena Propriedade: IL Da «Colonizagio» ao Minifundismo 109 A Crise do Sistema Latifundidrio 141 As Crises de Superprodugio ¢ as Transformagoes Capitalistas 149 A Estrutura Agratia no Século xX 177 PREFACTO Restringimo-nos, neste trabalho, & apreciagic de determinados aspectos que nos patecetam marcantes da formacio, apogeu © declinio do latifiindio no Brasil. A tarefa a que nos propuse- mos nao foi a de narrar ampla ¢ exaustivamente os fatos his- téricos, attumados em ordem cronoldgica, mas a de tentat des- cobrir as conexdes interiores entre aguéles fatos, estabelecer © avivar as relagdes de causa e efeito que motivaram os avangos € as recuos, os Exitos ¢ os insucessos do sistema latifundidrio brasileiro. © método de nossa escolha exigiu a busca e¢ 0 realce dos fenémenas tipicos, isto ¢, daqueles que consideramos, dentro de nossas naturais limitagdes, capazes de exptessar, breve ¢€ frisantemente, os vaivéns do processo histérico, método que implicou a omissia de grande nimero de pormenores, pela qual o Jeitor amante das minudéncias nos perdoard. Deixamos, por isso, de referit-nos a diversos acontecimentos, situagdes € circunsténcias que poderiam ter o mérito de alargar @ campo de observagao do leitor mas que, a0 nosso vet, nao tetiam contribuido para reforcar a linha de raciocinio seguida, trazendo o risco de distrair a atencdo para os aspectos se- cundarios. Daf a desigualdade de tratamenta com que foram focaliza das vérias questdes, algumas examinadas mais profunda e extensamente do que outras o foram. Fixamo-nos, por exem- plo, durante o perfodo colonial, na caracterizagio dos enge- nhos e das fazendas de gado, os quais, segundo acreditamos, etam as expressdes tipicas do latifiindio nessa época, Concen- tramo-nos, depois, no latifiindio cafeeiro, estendendo-nos s6- bre os fatos caracterfsticos de sua evolucio, por acharmos que éle foi o tipo representativo de todo o sistema, no perfodo posterior 4 Independéncia. Pareceu-nos igualmente acertado, para fixar a expansio tipica do latifundisma no século XX. tomar por modélo, ¢ dar-lhe atencdo especial, o latifiindio agu- careiro, ao tempo da substituigao do engenho bangué pel usina, na regido nordestina. Ajudou-nos também, 9 método por nés preferido, a encon- trar o elemento «aglutinantes, sem o qual os fatos apreciados perderiam o nexo, o sentide, © nao encontrariam explicagdes plausiveis. Guiamo-nos, pois, entre os caminhos emaranhados aT por problemas de imensa complexidade, através de um fio condutor — a luta das classes pobres do“campo pela conquis- ta da terra. Isso impediu que féssem ainda maiores as difi- euldades a superar na interpretagio daqueles problemas, fa- cilitou-nos a compteensao das suas origens ¢ de suas conse- qliéncias © permitiu-nos a aproximacio da tealidade e a for- mulagdo de vdtias hipdteses e conclusdes. Pelo mesmo motivo por que evitamos tratar dos fenémenos atipicos, ou, a nosso juizo, de insignificante representatividade no contexto de certas situagGes ou de certas épocas, concen- tramo-nos, deliberadamente, em algumas regides fisiogtdficas, que se tornaram palco das princtpais mudancas a destacar, emprestando importancia secundéria ao semelhante desenro- lar dos acontecimentos noutras regides em que éles apenas constituiriam um reflexo daquele processa original. Nenbuma referéncia fizemos, por exemplo, 4 Regido Norte, ainda hoje mais extrativista do que agticola ¢ pouco tratamos da Regiao Centro-Oeste, para onde sé muito recentemente se distenderam as fronteiras cconémicas. Outros fatos propositadamente deixaram de ser menciona- dos, para que nao se dilufsse a ténica com que uns foram acentuados. Mas precisamos confessar a nossa responsabili- dade pela omissio de episddios, porventura importantes, que hos escaparam, assim como por varias inconseqiiéncias e dis- ctepancias que no tivemos capacidade de eviter. Devido 4 estreiteza do prazo de que disptinhamos, éste tra- balho nao péde ser submetido 4 prévia leirura de pessoas com maior autoridade e competéncia, que o teriam expurgado de muitas incorregdes, nao fésse a involuntdria desobediéncia a essa praxe. OL TURRO DE 1963 capitulo 1 PROPRIEDADE E PRE-HISTORIA Era de «paz e sosségo» a vida brasileira antes de comegar a nossa Histéria. Dela assim nos fala Jean de Lery, um dos ptimeitos cronistas a registrar as condigdes de existéncia aqui surpreendidas pelos conquistadores vindos de além-mar. A terra cra um bem comum, pertencente a todos, e muito longe se achavam os scus donos de suspeitar que pudesse al- guém pretender transformé-la em propriedade privada. Dispunham os brasileiros primitivos de casas e excelentes terrenos «em quantidade muito superior 4s suas necessidades» — escrevera Lery. «No que toca 4 reparticfo dag terras, cada pai de famflia escolhe algumas geiras onde lhe apraz ¢ nelas planta suas rogas; ¢ quanto a isso de herancas ¢ pleitos divi- sérios sio cuidados que deixam aos demandistas e avarentos da Europa.» A conclusdes semelhantes sObre a vida trangilila ¢ a indole pacifica do gentio deveriam ter chegado, ao aqui aportarem, os tripulantes da frota de Cabral, cérea de cingiienta anos antes, «Vinham todos rijos para o batel, e Nicolau Coelho thes féz sinal que pusessem os atcos, ¢ éles os puserame» — registra Pero Vaz Caminha, em sua famosa carta a el-rei D. Manuel. Apés os contactos iniciais, poucos dias de convivio basta- Tam para que fdssem lancgadas as bases de um reciproco en- tendimento ¢ introduzida a pratica do escambo entre os povos do velho ¢ do néve mundo. «Resgataram |4, por cascavéis ¢ por outras ceisinhas de pouco valor que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes peque- nos, € carapugas de penas verdes e um pano de pena de mui. tas cores, maneira de tecido, assaz formoso.» E ésse foi também o meio por que cbtiveram os homens brancos tuda de quanto precisavam para refrescarem suas naus. «Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mui boa von- tade, ¢ levavam-na aos batéis, ¢ andavam jd mais mansos e seguros entre nés do que nds anddvamos entre éles.» Por muitos anos adiante, tal método de resgate das ri- quezas da terra e de aliciamento da mio-de-obra nativa dera provas de completa eficdcia. Assim féra preparada e embar- cada a carga da nau Bretoa, a altura do ano 11 da Descoberta, o e assim também se procedera com o carregamento de outros barcos que a precederam, sébre os quais se tém noticias me- nos precisas. Portuguéses e franceses, que vararam a costa, do Cabo Frio ao Cabo de Sao Roque, nesses primeiros tem- pos, devastaram florestas na apanha de milhares de toros de pau de tinta, sem que ptecisassem empregar, nas suas relagdes com o gentia, outtos elementos mais persuasivos que a oferta, em troca da tiqueza extrafda, de uma reduzida variedade de bugigangas. E para que tivessem sida bem sucedidos cm sua emprésa, os traficantes europeus da época nao poderiam ter lidado com tribos tio inabordaveis e hostis como depois as imaginaram, com intengdes preconcebidas, varios conhecidos historiadores. Pelo que se sabe de sua vida ptimitiva. nossos indios, em diversas regides, j4 haviam ultrapassado a fase superior Estado Selvagem e penctrado na fase inferior da Barbdtie, adotando-se a classificagio de Lewis Morgan. Conheciam a cerémica € teciam suas rédes. Praticavam uma agricultura ru- dimentar, nes perfodos de sedentaricdade que se alternavam com os de nomadismo, cultivando a mandioca ¢ o milho. Dés. ses dois géneros obtinham uma série de produtos, particular- mente a farinha, cuja preparagio exigia certa experiéncia de ttabalho de tipo mais elevado. Sua antropofagia, tao alardea- da pata conveniéncia dos conquistadores, parecia estar em de- clinio, ¢ restringia-se a meras formas rituals, havendo infor- magoes de que, numa ov noutra drea, seus ptisioneiros jd eram Poupadas: Dificilmente se poderd determinar o grau de desenvolvi- mento e de generalizagao das. praticas escravistas entre os {n- dios nessa época. De um lado, exageravam-se as noticias sé- bre a antropofagia, quando se tinha interésse em justificar a preia do gentio, que, dessa maneira, aparecia como um ato de filantropia dos conqnistadores. Doutro lado, exageravam-se as noticias sébre a esctavatuta, quando se pretendia apresentar © trabalho escravo como uma ttadicio indfgena, ¢ nio a re- sultante da coagio dos homens brancos. A elucidagiio désse aspecto controverso ¢ obscure, mas nao io obscuro quanto aparenta, € muito importante para a ex- plicagiio dos fatos histérices que decidiram do cardter da co- lonizagio portuguésa. Teriam os nossos indies evoluido espontineamente da an- tropofagia para o sistema da esctavidio em época anterior ao contacto dos brancos ? E pouco provdvel que isso sucedesse. 10 Mais aceitivel ¢ a hipétese de haver sido a escraviddo intro. duzida apds aquéles contactos, antes ou depois de Cabral, sem que _tivesse alcancado alguma amplitude, por lhe faltarem as condicdes requeridas para o seu desenvolvimento, no estdédio em que se achava o gentio. As teferéncias de Nébrega a indios vendidos em Pérto Se- guro, aos portuguéses, pelos préprios indios, assim como ou- tras que se conhecem, bem como as que tratam dos casos em que éstes se entregavam ao cativeiro premidos pela fome on pelas calamidades natutais, nao sio de molde a convencer-nos senio de acontecimentos esporadicos, e, assim mesmo, tardios, pois se prendem ao tempo em que os hibitos civilizados jé tinham penetrado em algumas comunidades nativas. E sto igualmente tardias as noticias sGbre guerras que entre si mo- viam as tribos para fazer prisioneiros @ negocid-los com os co- lonizadores, que os vendiam ov os submetiam ao trabalho escravo, Que a esctaviddo penetrou na Histéria da Humanidade com a civilizagao, depois que o homem passou a viver sedentaria. mente, a abandonar o canihalismo e a aproveitar os prisio- neiros de guerra como trabalhadores escravos, néo padece dii- vida. Seria, porém, duvidoso que isso tivesse aconrecido na préhistéria brasileira, antes que as comunidades indigenes houvessem atingido téda a plenitude de uma vida sedentdria, antes que praticassem a domesticagio de animais ¢ conheces- sem a uso dos metais. Note-se, a propésito, que os portuguéses se cercavam de todos os cuidados a fim de que os indios se mantivessem na ignorancia de muitos costumes civilizados, chegando a proibir que, nas zonas distantes da costa, os desbravadores brancos fundissem metais, pata que nao transmitissem aos da terra co- nhecimentos que se tornariam perigosos se utilizados na fei- iura de armas ¢ instrumentos de trabalho. O periodo relativamente curto de duragio do escambo, co- mo forma dominante nas relagdes entre o indio ¢ as conquis- tadotes, ¢ outro argumento contra a possibilidade de existén- cia de um sistema desenvalvido de escravidio no seio das co- munidades indigenas. Se a frota de Cabral aqui encontrasse disponibilidade farta dessa mereadoria humana, foco de cobiga dos traficantes de além-mar, dela nfo sé falariam amplamente as erénicas désses primeiros tempos, quando se refetissem ao es- cambo, como se teria constituido um fator de principal relévo na expansio das trocas ¢, ainda, de permanéncia das relagies pacificas entre os povos da terra ¢ os de além-mar. Ao invés disso, entretanto, as crénicas acentuam que as guerras dos bran- aA, cos contra os indios, visando a escravizé-los, teriam coincidide com o declinio do escambo. Por que precisariam os colonizadores encetar as sangiindrias campanhas para a preia do gentio se o poderiam adquitir fa- cilmente, trocando quantos prisioneiros escravizados houvesse por produtos de insignificante yalor ? A extensio e fetocidade assumidas por essas campanhas de- monstram, sobejamente, que no apenas eram escassas ou ine- xistentes as reservas de indios esctavizados no seio das tribos, como ainda que a sua apropriagdo pelo branco seria impossivel pot outras formas que nao a violéncia, Tria terminar, por ésse motivo, a fase das relagGes pacificas entre ambos os povos, aproximando-se ignalmente do fim o petiodo em que o escambo assegurara aos portuguéses o caminho para o saque das riquezas da regio descoberta. Quanto 4 tesel de que o escambo comegara a decair quando os indigenas jd nio mais se interessavam pelos produtos que Ibes eram oferecidos, por os terem de sobra, nao parece nenhum modo razodvel. Por mfnimas que féssem as necessi- dades materiais dos indios, limitadas pelo seu modo de pro- dugao, clas tenderiam forgosamente a diversificarse com o préprio desenrolar das trocas e a intraducdo de novos costu- mes aprendidos dos civilizados. Cabe citar o cxemplo dos franceses que nao se lamentavam de tais limitagdes e mantive- ram, em geral, progressivo entendimento com os povos pri- mitivos, de quem espoliavam a riqueza extrativa para engros- sat sua traficincia, atraindo para seu lado, com a maxima ha- bilidade, as simpatias do indigena. Os fatos recolhidos pela Histéria dao a respeito plena confirmacao, ¢ nao sé quande de suas perambulacdes pelas terras do pau-brasil, como tam- bém nos tempos em que se entregavam A mercincia de peles 1 Alexander Marchant (Do Escambo @ Eseravidéo, Col, Brasiliana, 1943, pig. 96) observa que “os indius.podiam bem chegar & suciedede em relagio ao que os portuguéses tinham a oferecer.” Essex “saciedade”, portanto, re- feriase as bugigangas que niio mais interessavam 20s Indios. agora dese- josos de objetos de valor tais como instrumentos de trabalho, armas, ete. ‘Aos portuguéses, porém, iso allo convinha, porque o que éstes quetiam ent abter géncros ou man-de-ubra indigena a custos insignificantes. Pelo que, conclui Marchant; “Reduzides a enfrentar um sistema que ji ia falindo, os pottuguéses, mais do que unca necessitadns de brages, encontram uma alternativa na escravizacia.” (Pig. 97.) De fato, como se 18 ma carta de Duarte Coelho de 20 de devembro de 1946 (Histdéria da Colonizucée Portugu@sa, vol ul, pag, 314), queixava-se fitia do muito que prometiam aos indins os que vinham “fazer tornando-se uquéles cada vez mais exigentes: “e coma esta fartos de fercamentas fazem-se mais ruins do que sic e alvorocamse ¢ ensobex- becem-se ¢ levantam-se’’. 12 durante a ocupagio do territério norte-americano. Aqui, como ali, os franceses revelaram grande traquejo na arte de dominar pelo engddo as populagdes nativas, tirando delas o suficiente para expandir o seu comercio, setvindo-se do escambo como instramento bdsico de suas relagdes pacificas com os indios, 0 quais souberam astuciosamente utilizar como aliados nas guerras contra os seus inimigos. Todavia, nfo foi a falta de habilidade dos conquistadores portuguéses que motivou a substituigio do escambo pela vio- léncia no trato com o gentio. As mudancas que se processa- yam nesse terrenos foram simples decorréncia das necessidades econdmicas da Metrépole que a levavam a optar por outras formas de exploracio da terra conquistada, Quando predominava a mercdncia dos produtos_florestais, @ que mais preacupava era a paz com o gentio. Os capitdes da frota de Cabral revelaram essa intengao ao se reunirem para decidir que «nao curassem aqui de, por férga, to- mar ninguém, nem fazer escindalo, pata a de toda mais amansat ¢ pacificar». Mandaria a prudéncia, em nome dos objetivos a que se propunham, que, mesmo quando os que apor fdrga» tomassem indios, nos primeiros lustros, o fizes- sem «sem ¢scindalo», e assim deveriam também ter agido os demais capities das naus que por aqui passaram, sem excluir a Bretoa. A politica entdo vigente a Metrépole orientava-se no sen- tide de tornar o gentio a principal férca de trabalho na ex- plotacio extrativa, Recebia le em quinquilharias, cartas de batalho ¢ quejandos, o pagamento de seus servigos, que con- sistiam no corte, na preparacio e no transporte do pau-bra- sil e no abastecimento de tudo quanto pudesse intetessar as frotas de guardacostas e mercadores. A méao-de-obta indigena ndo-escrava foi ainda utilizada nas rogas que se formavam em tGrno das feitotias, durante os primérdios da ocupagio por- taguésa, Mantiveta-se nesses tétmos, ao que tudo indica, até a ins- tituisdo das Donatarias, em 1532, 0 convivio entre o fneola e os conquistadores, respeitado pelos tiltimos, em cetta me- dida, o regime comunal da propriedade sub o qual viviam os primeiros na pré-histéria brasileira. Dai por diante, a preia do gentio, antes furtiva e acessd- tia, foi estendendo-se a tédas as regides, vindo a constituit- se paulatinamente numa das atividades mais lucrativas, quer como fonte de suprimento de mfo-de-obra pata a formaciio das lavouras, quer como género de exportacio. 13 Conta Frei Vicente do Salvador que, quando comegaram as entradas, muitos colonizadores nao estavam convencidos de que ésse sistema fésse o mais conveniente para os fins pro- postos. «As guerras, diziam éles, afugentayam os Gentios» para a distancia de muitas léguas da costa, acreditando ser «melhor trazélos por paz e por persuasio de Mamalucos; que por les saberem a lingua, e pelo parentesco (...) os trariam mais facilmente que por armas.» Por todo o tempo de vigéncia das Donatarias, que se pode tomar como a fase de transi¢fio entre as formas pacificas ¢ o uso da coacdo nas relagdes com o gentio, o escambo se tor- naria cada vez mais escasso. A habilidade ¢ a asnicia dos co- merciantes de costa, dos mercadores expetimentados no enten- dimento com os povos das Indias, deixatiam de ser os ele- mentos fundamentais de ligacio entre as duas sociedades que, mais tarde, deyeriam forcosamente hostilizar-se. Acresce que entravam em jégo, agora, interésses e objetivos diferentes da simples aventura da conquista que havia empol- gado os traficantes ¢ mercadores. Nao se tratava apenas de vir buscar e transportar para os mercados da Europa os fru- tos do continente descoberto e sim de fundar aqui novas fon- tes de riqueza com a ocupacio ¢ exploracdo da terra, em- présa a que se lancavam os mais audazes representantes da fidalguia lusa. Aos principios e métodos da conquista, sucediam os ptin- cipios e métodos da colonizagio. A missio confiada aos co- lonizadores cra a de submeter o incola, apropriar-se de suas terras c bens, impor-lhe suas concepgdes e transformé-lo num agente décil de seus objetivos de dominio. A partir do momento em que algo mais do que a riqueza extrativa passa a despertar a cobica da metrépole portuguésa, comecam a apagar-se os vinculos que nos atavam 4 pré-histd- tia. A transformagdo da terra conquistada em colénia de ex- ploragio exige novas instituigSes jurfdicas, novas formas de propriedade que sdmente poderiam vicar sébre as rufnas das Instituigdes primitivas. Incipiente ainda, a caca aos escravos indigenas nao havia até entéo provocado a ruptura definitiva nas relagdes entre €stes ¢ os conquistadotes, o que se verificaria irremissivel- mente inais tarde, com a expropriagao em larga escala de suas terras, Tanto assin que seriam encontradicos na «histéria das varias donataries os exemplos de populacio européia ¢ na- tiva vivendo em excelentes relagies ¢ até mesmo em estreito convivios, o que, evidentemente, ndo resultaria do «moda de ser 14 natural» dos portuguéses, como quer Paulo Meréa?, mas do fato de nao terem éstes ainda abandonado, por essa €poca, os meios pacificos de cooperacfo econémica. Uma reconstituicio Iégiea désse periode de iniciagio da his- réria de nosso pais, sébre o qual so escassas € contraditérias as noticias, nos fard compreender que a duelidade de métodos — o do comércio pacifico ¢ o do emprégo da férga — que pot muito tempo coextstiram nas relagGes com os silvicolas, de certo refletiria a conflito de interésses ¢ de concepgdes, a disputa entre castas ¢ faccdes que dividiam ¢ minavam a sociedade seis- centista de além-mar. O crescente predominio da farga sébre a astticia, no trato com as gentes da terra, ptosseguiria a despeito de taxativas determi- nagdes em contrério, de tio duvidosa exeqiibilidade que logo em seguida eram invalidadas por outras determinagées, igualmente expressas, em favor da escravidio dos indios. Ainda nos primeiros tempos das Donatarias, ter-sc-ia empre- gado, indiferentemente, a astticia ou a férca para submissio do gentio, ¢ hd boas indicagdes de que petsistiam os reccios de fa- zer escandalo, agindo-sc com moderagio e prudéncia, Que nao era inteiramente livre a preia do indigena e sua exportagao, po- demos deduzilo dos textos das cartas de doagio, de Martim Afonso, Duarte Coelho ¢ autras, em que constava autorizagio expressa para conduzir para o Reino um nimero limitado de indios escravos, o qual variava de vinte c quatro a quarenta ¢ ito, afora outros que figurassem na tripulagio das naus. Isso se dera entre o sexto e o sétimo lustro do primeiro sé culo, ¢ logo a seguir, em 1537, surgia a bula papel de Paulo IIT, onde clatamente se recomendava que nfo féssem os indios pti- yados de sua liberdade nem do dominio de scus bens; 0 que nao impediu que, quase a2 mesma época, uma carta régia consagrasse a escravizacao dos Cactés. © predominio dos métodos de férga viria a firmar-se, defini- tivamente, depois de 1549, com a instalagio do Govérno-Geral de Tomé de Souza, quando aparecem, com maior evidéncia, as provas de urilizagao de indios catives entre a mao-de-chra empre- gada internamente, periodo cm que fam sendo progressivamente ocupadas ¢ exploradas, de maneita sistemdtica, as terras outrora a éles pertencentes. Um depoimento preciso e insofismavel sGbre as condigées em que se processavam, a essa altura, as relagdes com o gentia, va- mos enconttar na carta dirigida de Pérto Seguro a D. Joao il, 0, 2 Hindria da Colonizardo Portuguéra, vol, til, pag. em 7 de fevereiro de 1550, por Pedro Borges, que féra destina- do «por mandate do governador ao socorra dos Tlhéus»: «A causa que principalmente fazia a éstes gentios fazer guer- ta aos cristios — diz Borges em certo trecho — era o assalta que os navios que pot csta costa andavam faziam néles. E neste negscio se faziam coisas tio desordenadas, que o menos era sal- teé-los porque houve homem, que um indio principal livrou de maos de outros mal ferido ¢ maltratado c o teve em sua casa © 0 curou eo tornou a pdr sio das feridas em salvo. Este ho- mem tornou ali com um havio e mandou dizer ao gentio prin- cipal que o tivera em sua casa que o fésse ver ao navio, cuidando © gentio que vinha éle agradecer-lhe o bem que lhe havia feito, como o teye no navio o cattvou com outros que com éle foram © o foi vender por essas capitanias.»3 Desde entio, tomaria formas cada vez mais cruéis a preia dos silvicolas, a caga por todos os meios desumanos com que se ha- via de nutrir de bragos cativos as plantagGes e os engenhos que ja se espalhavam pelas capitanias mais présperas. Penetravam, sertio a dentro, as hordas de preiadores A cata de bragos indigenas, os quais se supunha sctiam capazes de de- sempenhar, resignados ¢ submissos, o papel que lhes reservava o névo sistema de ptoducao implantado pela emprésa colonial. O indio livre foi, assim, banido de suas terras e expulso para Jonge do litoral, aonde sé permaneciam os que 4 férga tinham caido no cativeiro. Tribos inteiras foram jogadas contra outras tribos, para o que se agravavam antigas discérdias e se fomentavam novas. Na arte de intrigar os nativos, de despertar ¢ acittar ddios entre os mes- mos, os colonizadores portuguéses aplicatam aqui sua grande pe- ticia jd comprovada em outras dreas e repetida com téda a per- feigao, mais tarde, na caca aos negros da Guiné. Désse modo, o mercado de trabalho iria rapidamente aumentar, ao suprit-se também com os prisioneiros feitos pelas tribos vitoriosas nas guerras a que, para tal fim, os indigenas eram empurrados. Amiudavam-se as entradas e sucediam-se as guerras de exter- minio dos brancos contra os indios, a que éstes respondiam com investidas © ataques de conseqtiéncias nao menos tettiveis para muitos dos colonizadores, Os macicos «descimentos», a que cram atrastades os prisioneiros resultantes dessas empreitadas san- grentas, tornavami-se cada vez mais freqiientes, 4 medida que ctescia a enorme mortandade dos indigenas cativos, vitimados pelo rude regime de trabalho a que os submetiam, constran- nia da Colonia da Portuguéss, vol. tt, pi gidos a viver num ambiente inteiramente diverso daquele a que se haviam acostumado, Ainda hoje, ao glorificar os fatos da descoberta ¢ do povoa- mento, a histéria oficial faz por ignorar as verdadeiras razées pelas quais, no Brasil, foi tao rapidamente dizimada a popu- lacdo nativa, a ponto de hoje apenas dela restarem poucos re- manescentes, enquanto que, noutros paises, como alguns da América Espanhola, aquela populagio, apesar de téda a brutal espoliacio igualmente sofrida, pdde sobreviver e, até certo pon- to, expandir-se. Os esforgos realizados no sentido de restubelecer a verdade sébre o papel do indigena em nossa formacio ainda deixam margem para permitir a divulgac3o, nos compéndios, de sérias deturpagdes. Tém, pottanto, cetta atualidade as criticas ¢ acusa- gSes que a propdsite fizera o General Couto de Magalhies: aCoitados! Eles (os indias} nao tém historiadores; os que lhes escrevem a histéria qu sao aquéles que, a pretexto de religiao ¢ civilizagio, querem viver & custa de seu suor, reduzir suas mulheres ¢ filhas a concubinas; ou sin os que os encontram de- gtadados por um sistema de catequese que, com mui ratas e honrosas excegGes, é inspirada pelos mdveis da gandncia ou da libertinagem hipdcrita.> Tantas ¢ tais desumanidades aqui se cometetam, tio espan- tosa sé tornara a mortandade dos silvicolas que, ante a ameaca de com isso se esgotarem as reservas nativas de bragos, mais ¢ mais protestos se levantavam, no prdprio Reino, contra os atos de selvageria dos brancos. Continuon, no entanto, a Coroa a tergiversar, ora promo- vendo medidas defensivas, ora aceitando a espoliacao do gentio. «Decretaya-se hoje o cativeiro sem restri¢des, amanha a liber- dade absoluta, depois um meio rérmo entre os dois extremes. Promulgava-se, revogava-se, transigiase» — coma notou Jodo Francisco Lisboa, A medida que se estendia o dominio dos colonizadores por- tuguéses sébre os territérios pavoados pela gentio, mais fre- qiientes se tornavam as perseguicGes, a caca desapiedada ao brago cativo, multiplicavam-se os descimentos ¢, em contrapar- tida, os assaltos do gentio ac branco. Nos engenhos ¢ planta. gGes fundados pela nobreza lusitana, o indigena teimava cm rejeitar o trabalho escravo, dava constantes demonstragdes de rebeldia e, quando nfo conseguia fugir, terminava abatido pe- los castigas ou pelas daengas, morrendo as dezenas ou as centenas. Malgrada os apelos de Anchieta e de Nébtega, as piedosas tecomendagdes papalinas, ¢ as timidas determinages da Mc- 17 2s. trdpole, a marcha inexordvel da colonizag3o prosseguia em seu avango, deixando no rastto 0 sangue das populacdes nativas No segundo século, faziam-se mais ferozes os apresamentos e mais encarnicados os massacres. $6 nas catnificinas levadas a efeito em 1619 por Bento Macicl Parente na regio mara- nhense, segundo estimativa de Simao Estdcio de Oliveira, pas- sara de 500000 o nimero de mortos e cativos. Subiam tam bém a enormes ciftas os descimentos de indios ¢ escravos. In- fotmagbes recolhidas pelo Visconde de Sio Leopoldo indicam que, numa de suas devastadoras invasdes, os paulistas condu- ziram de Guaird 15000 indios que foram vendidos, aos lotes, em praca publica Por sua vez o gentio n@o se comportava passivamente em relagio aos seus perseguidores e redobrava seus assaltas com cada vez maior audacia, Rebelava-se igualmente contra o tra- balho sedentdrio, tornayase um escravo de infimo rendimento e manifestava pela «indoléncia» seu protesto contra o estilo de vida a que o queriam subjugar. A tal estado de coisas eta preciso par cébro, alcangar uma ttégua pata consolidar os éxitos da colonizacdo; €, ante as ne- cessidades de mobilizaciio de um tipo de mio-de-obra mais adap- tdvel ao modo de producto implantado, impunha-se uma nova politica, que consistiria em substituir o «indolentes escrayo da terra pelos negros importados da Guiné. Embora se repetissem, também no século XWil, os atos di bios ¢ incoerentes que formatam o lastto juridico de todo o periodo colonial, viria a surgir uma tomada de posicio impot- tante, com o Alvard de 1.° de abril de 1680. Muito mais incisivo € consistente do que os anteriores, ésse documento adquirin extraordindria significagzo porque néle foi reconhe- cido, pela primeira vez, ao indigena, o direito & propricdade das terras «ainda que sejam dadas em sesmarias a pessoas particulares, porque na concessiio dessas sesmatias sc tesetva © ptejuizo de terceiro ¢ muito mais se entende, e¢ quero que se entenda, ser reservado o dircito dos indios, primdrios ¢ na- tutais senhores delas».5 4 CF. Lemos Brito, Pontos de Partida para a Histéria Econdmica do Brasil, Col. Brasiliana, 1939. 3. “O indigens, primariamente cstabelecido, tem a sedam posisio, que cons- titi o fundamento da posse, segunda conhecido texto do jurisconsulto Paulo (Dg. tit. de acq. vel, amitr. posses. L. 1) a que se referem Savigny, Molitor, Maynz ¢ outros romanistas; mas o indigena além désse jus possersionis, tem 0 jes porsideati, que jd Ihe € recoahecide € preliminarmente legiti- mado, desde a Alvari de 1° de abril de 1680, como dircizo congénite.” (Joao Mendes Jdnior, Os Indfgewar do Brasil, seus Dirsitos Individuait e Politicos, S. Paulo, 1912, 58/59.) 18 Mais significative ainda ¢ 0 fato de que, até o momento de ptoclamar-se, incondicionalmente, o direito do indio As ter- ras por éles ocupadas, na qualidade de «primérios e naturais senhores delas», ndo se havia ainda instituido, sob forma com- pleta ¢ perene, a propriedade privada dos colonizadores as terras que lhes ctam distribufdas, em conformidade com o ptincipio da sesmaria, sob determinadas condigdes e reservas, ¢ cuja efetivacio era indispensdvel pata sua confirmacdo posterior. Admitindo-se a validade da conhecida tese de Citne Lima, de que a propriedade privada das terras, inicialmente concedidas em usufruto aos sesmeiros, nasceria com a Real Ordem de 27 de dezembro de 1695, a qual, no dizer daquele eminente pes- quisador, «enyolvia uma transformagio completa da situagio juridica do solo colonial», forgoso é concluir que o reconheci- mento explicito © irrestrito da propriedade ao indigena havia precedido, de 15 anos, a instituiggo do dominio territorial di- eto por parte dos colonizadores. Isto pésto, teria sido o indio o primeiro a investir-se, por um diploma legal, do direito A propriedade agrdria, o qual sd- mente iria estender-se aos invasores europeus alguns anos mais tarde, Nao obstante, pouco ou nenhum efeito pratico resultaria des- sa decisio da Metrdépole, logo relegada ao esquecimento nos arquivos, Nada perturbaria menos a tranqtiilidade dos senho- tes feudais da América Portuguésa, empenhados em desalojar a qualquer custo o gentio das terras mais férteis e mais cobigadas, do que semelhantes retalhos de papel, ja desacreditados por uma longa tradigio de inexequibilidade Continuatiam, assim, por muito tempo, o esbulho das popu- lagSes nativas, a apropriapio viclenta do imenso tetritétio por elas utilizado na caga e pesca c na extragio de ftutos silyestres ou ocupadas por suas aldeias ¢ por suas lavouras. Intensifica- vam-se, também sem descontinuidade, a matanca e a escravidao do gentio, Quase um século depois, no govérno do Marqués do Pombal @ Alvara de 4 de abril ¢ a lei de 6 de junho de 1755 tevitali zavam os térmos do Alvard de 1680, determinando-se que vessem os mesmos execugdo imediata, » 6 Rui Cite Lima, Terra: Devolutas, Porto Alegre, 1933, pag. 37. Em sua Hisidria Tervitorial do Brasil, vol. 1° e Gatco, pag. 136, Felishello Freire tinha dado interpretasio diferente ac dispusitive que estabelecia a co- beanca do féro: “Ai esti assinada uma grande fevolucio que se operon po dizeito de propricdade territorial, que na zona agricola do pais pissou, como em muitas vilas ¢ cidades, an simples dominio itil © proprieticio agricola, que até entio tinha sdbre suas propriedades dircito pleno, trans- formou-se em enfiteuta do Estato, 19 «Foi Pombal — escreve Rodolfo Garcia — quem rompeu sem regresso com o principio da escravidao. certo que os indios, ainda depois das famosas leis de 1755, foram nao pou- cas vézes vitimas da opressio dos escravizadores; mas, nesses casos, o mal tinha um cardter meramente acidental e tmansitd- tio, As experiéncias que em sentido contritio tomou o prin- cipe regente D. Joao, pelas cartas régias de 13 de maio e 2 de dezembro de 1808 e 1.° de abril do ano seguinte, nao foram bem aceitas pela opinijo nem vingaram contra o principio da liberdade jd radicado, ¢, guerreando os gailombos de indios, apenas serviram para legalizar as violéncias das chamadas ban- deiras, que se organizayam a pretexto de repelir as agressies dos selvagens.»7 Caracteriza-s¢ ésse dilatado perfode, que vai dos dltimos lus- tros do século XVI até os fins do século xvii, por néle terem expirado as formas pré-histéricas da propriedade tctritorial em nosso. pais. Dai por diante a luta pela apropriacio ¢ exploragio da terra prossegue com téda a violéncia e crueldade dos primeizos tem- pos; cntretanto, ela ndo mais se travatd, em nome da civilizacio contra a barbaric ¢ 4 sombra de pretextas supostamente filan- trépicos, entre duas instituigdes histdricamente antagénicas. ‘A comecar do século XIX, a propricdade privada continuard impondo-se a ferro e fogo, mas o que ela destrdi ¢ esmaga pela férea € a propria ordem juridica instituida pelo homem civilizado. Sob o signo da violéncia contra as populagées nativas, cujo direito congénito 4 propriedade da terra nunca foi respeitado ¢ muito menos exercida, € que nasce e se desenvolve o lati- fiindio no Brasil, Désse estigma de ilegitimidade que € 0 seu pecado ariginal, jamais éle se redimiria. 7 Rodolfo Garcia, Basaio Sébre 2 Histéria Politica ¢ Administrativa do Brasil, Rio, 1936, pigs, 151/152. 20 CAPITULO It 0 REGIME ECONOMICO COLONIAL: FEUDALISMO OU CAPITALISMO? Portugal, & epoca do descobrimento, como de resto todo o continente europeu, achavase em pleno florescimento do mer- cantilismo. © regime feudal desagregava-se, o poder abso- luto da aristocracia agréria entrava em decomposicio e os senhores de tertas qué escapavam a ruina buscavam, nas ati- vidades urbanss, novos caminhos para a conservacio de seus ptivilégios. A aristocracia rural trocava os podéres da nobreza pelos do dinheito. Mes nao se conclua dai que, nas novas tertas da América, Portugal prolongaria ininterruptamente sua historia. Nesse érro incorreram muitos historiadores daqui e dalém-mar. Trans- plantando para o Brasil o quadro de fendmenos da sociedade portuguésa, foram levados a admitir o mesmo desenvolvimento aqui, sem qualquer interrupe3o no seu curso. A colonizagio, com fruto da expansio do comércio maritimo e da desagrega- cao do regime feudal, deveria, de acétdo com ésse ponto de vis- ta incorreto, seguir aqui os moldes da nova sociedade que ger- minava na metrépole. Nesse caso, nas relacdes sociais implan- tadas no Brasil haveriam de predominar nao os tragos da eco- nomia feudal decadente, mas os da economia mercantil em for- magao; e, por conseguinte, a exploracdo latifundidria, aqui, nao teria as caracteristicas fundamentais do feudalismo, mas as do capitalismo. Percebe-se o contetido apologética dessa concepeao errénea, pois com éla se admite que o sistema colonial, ao invés de ttanspor- tar para o territério conquistado os elementos regressivas do pais dominante, como de fato inevitivelmente acontece, abandonaria & sua sorte ésses elementos, selecionaria os fatéres novos deter- minantes da evolugao social e déles se serviria pata fundar, onde quer que fdsse, sociedades de um tipo mais ayangado que as metropolitanas. Ao contratio désse imaginoso quadro, incorporado ao fa- buldrio do colonialismo, a Histéria nos mostra, ndo sé em re- lacio colonizagSo portuguésa como no que se refere a thdas as outras, que as metrdpoles exportam para as colénias processas 21 econémicos ¢ instituigdes politicas que assegurem a perpetuacio de seu dominio, Por isso, sempre que a emprésa colonial pre- cisa utilizar processos econémicos mais adiantados, ela recorre, como contrapartida obrigatéria, a instituiches politicas e juridicas muito mais attasadas ¢ opressivas. Déssc modo, quando os ins- trumentos de coagdo econdmica se mostram incapazes de atender aos objetivos preestabelecidos, o sistema de coagio extra-econd- mica € acionado com o maximo rigor ¢ levado as dltimas con- seqiiéncias. O exemplo brasileiro ilustta e confirma ésse imperative his- ‘rico. A despeito do importante papel desempenhado pelo ca- pital comercial na colonizago do nosso pals, éle nao péde des- frotar aqui a mesma posi¢So influente, ou mesmo dominante, que havia assumido na metrépole; nio conseguin impor a sociedade colonial as caracteristicas fundamentais da economia mercantil eé teve de subinetet-se e amoldar-se a estrutura tipicamente no- bilidrquica e a0 poder feudal institufdos na América Porruguésa. Por conseguinte, o processo evolutivo em curso na sociedade lusa nfo veio continuar-se no Brasil-Colénia, onde o regime eco- némico instaurado significou um recuo de centenas de anos em relago aa seu ponto de partida na metrépole. Para que assim acontecesse, a classe senhorial, despojada ali de seus recursos materiais, empenhou-se a fundo na tarefa de fazer girar em sen- tido inverso a roda da Histéria, embalada pelo sonho de ver re- constituido o seu passado. A grande ventura, para os fidalgos sem fortuna, seria reviver aqui os tempos dureos do fendalismo classico, reintegrar-se no dominio absoluto de Iatifindios intermindyeis como nunca hou- vera, com vassalos ¢ servos a produzitem, com suas m@os e scus proprios instrumentos de trabalho, tudo o que ao senhor pro- porcionasse riqueza e poderio, ‘Cedo se desvaneceriam as esperancas nesta reconstituigao inte- gral das instituigdes jd caducas na sociedade portuguésa. A pro- priedade da terra era, ainda nesse tempo, um cabedal de nobreza, ¢ a participagio da Ordem de Cristo nos frutos da exploracio vinha actescentar aos dons nobilidrquicos a origem mistica do direito: dominial. Isso, porém, nao bastaria, come nao bastou, para que a em- présa colonial produzisse os rendimentos que dela era licito ¢s- perar. Daf o fracasso das primeiras tentativas de colonizacio, o qual poderia muito bem explicar-se pela impossibilidade de uma pura e simples transposicao para o Névo Mundo de todos os componentes da estrututa produtiva da economia medieval. Onde nio havia o servo da gleba a produzir renda com seus bracos, seus animais ¢ instrumentos de trabalho préprios, onde 23 a mio-de-obra nativa se mostrava cada vez mais rebelde ¢ reagia violenta ou passivamente contra o cativeiro, a explora- $0 agrdria exigiria outros recursos de que a nobreza nao dis- punha. Naturalmente, em um mundo jd invadido pelo poder da moeda, o dominio da terta, nobte, mistico, absolute como fésse, nfo se transformatia em fonte de riqueza sem um com- plemento indispensayel: o capital-dinheiro. Os «homes de calidades», provindos da fidalguia peninsu- lar endividada ou arruinada, ndo estavam preparados para co- lhér, sdzinhos, os pomos de ouro que deveriam nascer da ter- aa, «Esses fidalgos — escreveu Oliveira Viana — vém de uma sociedade ainda modelada pela organizagio feudal: sé ¢ servico das armas é nobre, sé éle honra e classifica. Falra- Ihes aquéle sentimento da dignidade do labor agricola, tio profundo entre os romanos do tempo de «Cincinnatus».» Mas o que Ihes faltava, realmente, era dinheiro. Por tédas essas razGes, a emprésa colonial teve de tealizar- se mediante a associagio de fidalgos sem fortuna e plebeus enriquecidos pela mercdncia e pela usura, mas sob uma condi- ¢o: 0 predominia dos «homes de calidades» sébre os «homes de posses», Recordemo-nos de que na Peninsula, Portugal inclusive, mais que noutra qualquer parte, as formas politicas, os costumes, as idéias relipiosas, tadas as fércas ideoldégicas do medievalismo estavam profundamente arraigadas. As aventuras maritimas, principal fonte de acumulagio primitiva do capital comercial, tinham possibilitado a formagio de uma burguesia jf bem nu- trida de recursos monetdrios, & qual n@o se havia, contudo, transferido parcela substancial e decisiva da poder do Estado. Diogo de Gouveia, que tinha inspirado ec formulado os pla- nos da colonizacio portuguésa da América, nfo era, positiva- mente, um idedlogo da burguesia, mas da nobreza. «A ver- dade eta dat, Senhor, as tertas a vossos vassalose — acon- sélhara éle em sua carta datada de 1532 a eltei D. Joao | A posicio dominante dos «homes de calidades» na empri sa colonial ¢ um fato bastante explicito em nossa Histdria. Prova-o, sem deixar lugar a dividas, o espitito de casta que presidiu a divisio do vasta tertitério conquistade ao gentio, particularmente daqueles quinhées maiores e melhores, Desde © instante em que a mettépole se decidira a colocar nas mos da fidalguia os imensos latifindios que surgiram des- sa partilha, tornar-se-ia evidente o seu propdsita de langar, no Névo Mundo, os fundamentos econdmicos da ordem de produgio feudal. E nao poderia deixar de assim ter proce- dido, porque o modélo original, de onde necessiriamente te- 23 tia de partir — a ordem de producio peninsular no século da Descoberta — continuava a ser, por suas caracteristicas es- senciais, a ordem de producio feudal. E cetto que o feudalismo do Portugal sciscentista no guar- dava mais o mesmo grau de pureza dos primciros tempos: jé havia passado do estddio da economia natutal pata o da eco- nomia mercantil, Mas nenhuma mudanca na estrutura eco- némica se dera em Portugal que pudesse justificar sua asse- melhagdo a outro regime histéricamente mais avancado. Eis por que falharam irtecusavelmente alguns historiadores @ economistas notdveis ao classificarem como capitalista o re- gime econémico colonial implantado no coninente americano. A extraordinaria expansio do comércio maritima e, como sua decorréncia, o enorme incremento da economia mercan- til no seio do Portugal feudal do século xv! levaram o Sr. Ro- berto Simonsen a perfilhar tao grave equivoco e a introduzir na historiografia brasileira a tese que influenciou numerosos setores de nossa intelectualidade: «Na verdade — afirmou Simonsen — Portugal, em 1500, jf nao vivia sob o regime feudal. D, Manuel, com sua polf- tica de navegagio, com seu regime de monopdlios internacionais, com suas manobras econémicas de desbancamento do comét- cio de especiarias de Veneza, é um anténtico capitalista.»l E partiu daf para as seguintes conclusies: «Nao nos parece razodvel que a quase totalidade dos his- totiadores pdtrios acentuem, em demasia, o aspecto feudal do sistema das donatarias, chegando alguns a classilicd-lo como um retrocesso em relagio As conquistas politicas da época. Por- tugal, desejando ocupar ¢ colonizar a nova terra € nao tendo recursos para fazé-lo a custa do erdrio real, outorgou para isso grandes concessies a nobres e fidalgos, alguns déles ricos pro- prietdrios, e outros j4 experimentados nas expedicdes das In- dias. (...) Sob o ponto de vista ecandmico, que nao deixa de ser basico em qualquer empreendimento colonial, nfo me parece razodvel a assemelhagio désse sistema ao feudalismo.> Como se vé, Simonsen nao se contentara em nepar o cardter feudal do regime econémico implantado no Brasil-Colénia; e, indo mais além, deu por extinto, jf no comégo do século XVI, o feudalismo em Portugal. No entanto, os argumentos aduzidos pelo eminente histo- riador sdo insuficientes para a comprovagio de sua tese. A ima- gem por éle tracejada do Portugal sciscentista revela uma so- 1 Roberto C. Simunsen, Hiséria Eeowdmica do Brasil, 1937, Editéta Na- cional, pags. 124 ¢ seguintes, 24 ciedade onde a produgio comercial havia alcancado elevado ni- vel de evolugao, onde as trocas monetdrias tinham atingido apre- cidvel desenvolvimento © onde era copioso o capital-dinheiro, condigées cssas peculiares, em proporgGes crescentes, a téda a longa histéria vivida pela economia mercantil, desde os primér- dios da civilizagio.2 Nao bastaria a presenca de tais categorias econémicas, por maiores que féssem sua amplitude ¢ significagiio na época, para caracterizar como capitalista 0 tegime econdmico de Portugal. Se tomdssemos como ponto de referéncia, para definir e clas- sificar os regimes econémicos, os fendmenos inerentes 4 cir- culacdo, acabarfamos por aceitar a absurda isualdade entte to- dos os sistemas sociais por que passou a Humanidade, a con- tar do momento em que abandonou a vida primitiva. Nao te- riamos, pois, como estabelecer distinggo entre os perfodos cor- respondentes a escravidio, ao feudalismo ¢ ao capitalismo, de 2 A cese de Simonsen softeu judiciosas refutagies da parte de virlos pos quisadores de nosso passado, © Sr. Nestor Duarte, respendende aos ar- gumentos manejadns pelo autor da Mistdeta Evowdmiea do Brasil, demonstra exaustivamente que as catacteristicas feudais aia apenas cstio presentes a0 periodo imicial da colonizagdo de nosso pais, como se fixaram 20 longa dos jos seguintes: “O sistema das donatattas nus transmitia o estilo ¢ a forma de uma ocupacdo do solo que é uma das comstantes de nossa so- ciedade © a propria condigda de suas lindes territuriais que ainda hose perduram na configuracio de muitos dos nossos Estados federsdas.” ( “Donatarias, donos de sesmarias, senhores de engenhos ¢ de fazenda ¢ de currais, embora s6 os primeitas. detivessem, por autora legitima, a jutis- digo civil e a governunca, cuntinuaram a desenvolver longe ¢ indiferentes, ou refratdrios a um poder do Fstado tho distante, a indole fendal ow feudalizante da saciedade.” (A Orden Privada ¢ @ OrganizacSo Politica Nacienal, Editéra Nacional, 1939, pigs. 43 ¢ seguintes.) Revela visio igualmente esclarecida do problema, a Sr. Alberto Ribeiro Tamego: “Roberto Simonsea opina que nio o feudalismo, ¢ sim o capi- talismo caracterize o sistema de donalarias na Bresil, desde os tempos mais remotos. Dw panto de vista financeico, pode ser corteto. Considerando-o, poréa, iategralmente, com tide 2 sua complexibilidade de repercussies sociais, marmente is compressivas co pequeno proprietirio que se proletasiza ca erescente contragéo do capital em meia diizia de mos afoctunalas ante a Stande massa pauperizada, o verdadeito capitalismo é um fenfimeno que, larmente em Campos, s6 penetra em nossa civilizagin rural com © advento dos engenhos 2 vapor, ¢ 36 atinge mesmo om cheio a indistria agucareira com a elasticidade artificial do crédito bancério durante a Grande Guerra.” (0 Homem e 2 Brejo, Rio, 1945, pag. 107.) Nelson Werneck Sedeé que em trebalhos anterieres admitira a tese do “capitalise colonial” para classificar o regime econdmico da Auigtica Pore tuguésa (Ar Claes Soetais no Brasil, pdge, 26 2 27) reformulou seu pon- to de’ vist, aduzindo com admirdvel Icides azgumentos irtefutiveis para comprovar 2 enisténcia das ciracteristicas feudais da econamia © da socie~ dade do Brasil-Col6nia, em seu magnifico livra Pormacaa Histdrica do Brat}, Ed. Brasilicnse, 2° ediglo, 1963, pigs. 27 © seguiates, vez que, em todos ésses regimes, com maior ou menot grau, o sistema mercantil estd presente. Acertara o Sr. Roberto Simonsen ao afirmar que «nfo dei- xa de ser bésico em qualquer empreendimento colonial» o ponto de vista econdmico. Entretanto, se € certo que o ponto de vista econémico fornece a base para interpretacao do co- lonialismo, o que € que é bdsico para a classificagzo de um regime econémico ? O basico num regime econdmico é o sistema de pto- dugio, isto é, o modo por que, numa detetminada formagio social, os homens obtém os meios de existéncia. Assim, a modo por que os homens produzem os bens materiais de que necessitam para viver € que determina todos os demais pr cessos econdmicos ¢ sociais, inclusive os processos de distri- buicio ou circulagio désses bens. No Portugal seiscentista, a principal fonte de produgio de bens materiais era a agricultura, embora, como talvez sucedes- se, fésse j4 superior & dos senhores de tertas a parcela da tiqueza acumulada nas aventuras maritimas pela burguesia co- mercial que emergia da sociedade como uma classe de forte potencial econdmico. Tssa classe repartia com a realeza o poder do Estado, ha- via jé mais de um século, mas ndo ocupava ali uma posicio dominante ¢ nao dispunha de {areas suficientes para destruir a ordem de producio vigente, que continuava a ser a ordem feudal. Tal estado de coisas nao era exclusivo da sociedade penin- sular, onde, se por um lado, o capital-dinheiro abundava, por outro lado, a tradigo exercia, como em nenhuma outra parte, o seu papel de «grande fOrca retardadotas de «vis ivertiae da histéria». Em téda a Europa, & altura do Descobrimento, ainda nao aleancara sua etapa final e decisiva © nao se colocata na ordem do dia a derrubada da ordem feudal, que demotou nada menos de trés centirias. «A longa uta da burguesia contra o feudalismo — disse Engels — foi marcada por trés gtandes e decisivas betalhas.» A primeira foi a Reforma protestante na Alemanha. («Ao grito de guerra de Lutero contra a Igreja, responderam duas insurreigdes politicas: a insutreiggo da pequena nobreza di- tigida por Franz de Sickingen (1523) e a grande guerra dos Camponeses (1525).») A segunda foi a explosio do calvinis- mo na Inglaterra (1648), E a terceira, a Revolucio Francesa (1789), que travou tédas as suas batalhas no terreno poli- tico, sem as anteriores roupagens religiosas, e de que resul- 26 tou, pela primeira vez, a destruigiio de uma das classes com- batentes, a atistocracia, e o completo triunfo da outra, a bur- guesia3 A ordem feudal vigente na sociedade portuguésa de 1300 tinha sua base interna no monopdlie territorial. E como a terra era, entio, indiseutivelmente, o principal e mais impor- tante dos meios de produgio, a classe que possuia sdbre ela © dominio absoluto estava habilitada a sobrepor as demais classes 0 seu poderio, por todos os meios de coagao cconémica, €, notadamente, de coacio extra-econdmica, Quando a Metrépole decidiu lancat-se na emprésa colonial, nfo lhe restava outra alternativa politica senéo a de trans- plantar para a América Portuguésa 0 modo de producdo do- minante no além-mar. E o féz cénscia de que a garantia do estabelecimento da ordem feudal deveria repousar no monopé- Tio dos meios de produgio fundamentais, isto é, no monopé- lio da terra. Uma vez assegurado o dominio absoluto de imen- sos Jatifiindios nas mios dos «homes de calidades» da con- fianca de el-rei, tados os demais elementos da produgao seriam a éle subordinados, E assim aconteceun, © monopélio feudal da terra impés so- lugdes especificas para os problemas que teve de vencer, sem contudo perder as caracteristicas essenciais da formacio social que tomara por modélo. © feudalismo clissico havia dado um passa 4 frente s6bre © regime econémico que o antecedeu, com 2 transformacio do escrayo em servo da gleba e obteve déste, A custa do es- timulo proporcionade por sua condigio mais livre, uma pro- dutividade no trabalho bastante superior. Na impossibilidade de contar com o servo da gleba, o feu- dalismo colonial teve de tegtedir ao escrayismo, compensando a tesultante perda do nofvel de produtividade, em parte com a extraordindria fertilidade das tertas vireens do Névo Mundo e, em parte, com o desumano rigor aplicada no tratamento de sua mao-de-obra. Teve, ainda, de dar outros passos atrds, em telagao ao estddio mercantil que correspondia ao seu mo- délo, restabelecendo muitos dos aspectos da economia natural. Mas, em compensagio, pdde desenvolver o cardter comercial de sua produgio, nfo para o mercado interna, que nao exis- tia, mas para o mercado tundial. E, com o agtcar, vinculou- se profundamente A marufatura. Nenhuma dessas alteragdes, a que ptecisou amoldarse o latifiindio colonial, foi bastante para diluir o seu cardter feu- 43 Friedrich Engels. 0 Alates mo Histérice, Londres, abril 1992. 27 dal. Muito freqiientemente as formas escravistas entrelagaram- se com as formas setvis de produgdo: o escravo provia o seu sustento dedicando cetta parte do tempo a pesca ou 3 lavoura em pequenos tratos de terra que lhe eram reservados. Désse moda, o regime de trabalho esctavo se misturava com @ re gime medieval da renda-trahalho e da renda-produto, além de outras variantes da prestagdo pessoal de trabalho, Nio faltava aos senhorios coloniais a massa de motadores «livres» ou de agregados, utilizados nos servicos domésticos ou em atividades acessérias desligadas da produgao, os quais coloriam o pano de fundo do cendrio feudal. Fruto dessa estrututa, o sistema de plantagdo, que varios eco- nomistas ¢ historiadores pretendem apontar come uma unidade econémica do tipo capitalista, constituiu, de fato, e sem qual- quer diivida, a expressio realizada do feudalismo colonial. Que © poderia configurar como «capitalistas ? O cardtcr comercial da praducio ? Certas formas atipicas de salariado ? Mas, como jd tivemos ocasiio de ver, o cardter comercial da pro- ducdo no € uma catactetistica do capitalismo, mas do mercan- tilismo. «Q estédio da ptodugio mercantil — esereveu Engels — com o qual comera a civilizagio, distinguc-sc, do ponto de vis- ta econémico, pela introdugio: 1.°) da moeda metélica ¢ com ela o capital-dinheiro, 0 empréstimo, o jura e a usura; 2.°) dos mereadores, como classe intermedidria entre os produtores; 3.°) da propricdade territorial e da hipoteca; ¢ 4.") do trabalho es- cravo, como forma dominante da produgio.»4 Data de cérca de 7.000 anos o reinado do metcantilismo; e em téda cssa longa existéncia, os germes do capitalismo, na acepcio moderna e cientifica déste, buscavam as condigGes necessdrias para a sua concretizagfo histérica, que sé se tor- nou plenamente possivel com o advento da reyolugio indus- trial. A passagem do feudalismo pata o capitalismo verificou- se quando a tédas as condigGes acumuladas gradualmente, veio acrescentar-se aquela que possibilitou o salto qualitativa: o fim da coacio feudal, da coagio extra-econémica sobre o tra- balhador, para que éle pudesse vender livremente sua férca de trabalho, como assalariado, ao capitalista, E claro que o momento em que se efetivou ésse salto de qualidade se entende sct aquéle que as formas capitalistas de pro- ducao deixaram de ser exceches na sociedade em causa e ' pas- Saram @ constituir a regrd. 4) Friedrich Engels, A Origem da Familia, dz Propriedade Privada e do Estado, cap. EX, 28 Antes que isso sc dessc, as formas capitalistas de produgéo foram tornando-se, gradualmente, menos raras, até se trans- formatem em formas predominantes. O cardter comercial da produgiio e as ocorréncias esporddicas do saldrio coexistiram com a escravidéo ¢ com o feudalismo, mas somente adquiriram sua plenitude com o mado de produgao capitalista, ou seja, com o capitalismo industrial. No sistensa de plantagéo, como aliés no conjunto de econo- mia pré-capitalista do Brasil-Colénia, o elemento fundamen- tal, a caracteristica dominante & qual estavam subordinadas t6- das as demais relagGes econémicas, é a propriedade agrdria feudal, sendo a terra o principal e mais importante dos meios de produgio. O fato de se destinarem ao mercado exterior, soh o contréle da metrépole, os produtos obtidos através désse mesmo. sis- tema, s6 contribui para juntar Aquele um ndvo elemento: a condigzo colonial, Em trabalhos de Leo Weibel ¢ Setgio Bagu, que tivetam sig: nificativa repercusséo no Brasil, e nos quais foram analisados detidamente os aspectos caracteristicos do regime econémico colonial «¢ do sistema de plantagio, podemos encontrar atgu- mentos objetivos que, se tivessem ocupado lugar de relévo na ordem de raciocinio, por éles seguida, havetiam de possi- bilitar conclusdes muito diferentes daquelas a que chegaram. Weibel, pot exemplo, depois de criticar as definigoes de Hehn e Weber e de reconhecer que o sistema nao € exclu- sivo das culturas tropicais, concorda em que «esta grande par- ticipagio das plantages na produgiio de matétias-primas estran- geiras e, de modo geral, das plantas cultivadas introduzidas € por si compreensivel ¢ pode ser explicada pelo cardter colo- nial desta forma de economia». Noutro trecho de seu estudo3, valendo-se de afirmages feitas por Brentano e outros, estabe- Iece que «a forma econémica da plantage pode ser relacionada espacial © cronolégicamente com o aparecimento do sistema na Mesopotamia, nos primérdios da Idade Média». Todavia,, por iio data essts- suas pidprias observaghes a importincia que mereciam, chegou apenas a seguinte defini- cao: «Uma plantage € um grande estabelecimento agro-indus- trial, que, via de regra, sob direcio de europeus, produz, com grande emptégo de trabalho e de capital, produtos agricolas valorizadas para o mercado mundial,» 3 Leo Weibel, “A Fostta Evondmica da “Plantago" “Tropical”, conferéncia pronunciada em 1932 na Alemanha e incluida em Cupirwlos de Geagrafia Tro- pical ¢ do Brasil, Rio, 1958, pigs. 31 ¢ seguintes, 29 Em estudo posterior, Weibel, que, pelo visto, menospre- zara o exame dos processos de prodncio e também se deixata impressionar pelo papel que nesse tipo de exploracio desem- penha o capital comercial, passa a conceituar a plantage como um «sistema ecunémico capitalista>.6 Menos compreensiveis ¢ explicdveis sio as conclustes do Professor Sergio Bagu? que, partindo de premissas bastante hicidas, ¢ tendo admitido, relativamente a colonizagio do ter- ritérig americano, que «jamais as metrépoles se desligaram da ideologia feudal», chega, por fim, & formulagio da tese de que «o regime econémico luso-espanhol do periodo colonial nao € feudalismo» mas sim «capitalismo colonial». ‘Ao enumerar, com inegével exatidio, o que chama de ¢cle- mentos de configuragio feudal» no processo de colonizagio da maioria dos paises americanos, Setgio Bagu principia pela grande propriedade territorial apontando as semelhangas na formago da estrutura Jatifundidria em todo o névo centinente. E acrescenta: «OQ conceito feudal da propriedade do solo apa- rece tio fortemente — e talvex mais — na colonizagio bri- tanica do século 17 quanto na luso-espathola do século 16.» Mas no confronto entre os vdrios componentes feudais por @le examinadas ¢ o que chama de eelementos de configutacio capitalista», Bagu cai em evidente exagéro e comete os mes- mos equivocos de outros historiadores, confundindo as cate- gorias econémicas do mercantilismo com as do capitalismo moderno. Para éle «desde o século 16 circula nas colénias hispano-lusas um capital financeiro originado na acumulacio capitalista produzida nas mesmas colénias», afirmacio esta inaceitavel, quer do ponto de vista econdmico quer do ponto de vista histético. O que de fato circulava nas coldnias era © capital comercial, em sua forma mais elementar, o capital- dinheiro acumulado por meios que se distinguem nitidamente dos processos de acumulacio capitalistas, os quais sé muito mais tarde, com o desenvolvimento industrial, itiam possibilitar d aparceimento do capital financciro. Fotam essas incompreensGes que levaram Bagu, de analogia em analogia, a uma outra afirmagio ainda mais absurda: «a escravidac nfo tem nada de feudal e sim tudo de capitalista, como acreditamos haver provado no caso de nossa América». 6 Leo Weibel, As Zonas Pioneiray do Brasil, 1933, op. cit, pag. 263 € seguintes. 7 Sergio Baga, Eronomia de La Sociedad Colanial, Buenos Aizes, 1949, cap. Vv. 30 Deter-se nessa conttavérsia em busca de um ponto de vista firmado sébre a classificaggo do regime econémico colonial pode parecer, aos menos avisados, uma intitil perda de tempo e um esférco desnecessdério. Entretanto, odo sc trata de um debate meramente académico e desligado de qualquer sentido pratico, Néle estio enyolvidas questées de enorme significagio pata o desenvolvimento econdmico ¢ social de nosso pais, bem como intetésses politicos da mdsxima relevincia, como ire. mos. ver. A simples eliminag3o em nossa Histéria da esséncia feudal do sistema Jatifundidrio brasileiro ¢ a conseqiiente suposigao de que iniciamos nossa vida econémica sok o signo da forma- a0 social capitalista significa, nada mais nada menos, conside- var uma excrescéncia, tachar de supérflua qualquer mudancga ou reforma profunda de nossa estrutura agrdria. Supondo-se inicialmente capitalista o regime econémico im- plantado no Brasil-Colénia, estaria implicita uma solugao in- teiramente diversa daquela preconizada pelos partiddrios da reforma agrdria, Se a estrutura agrdria brasileira sempre teve uma «configuracio capitalistas, por que revolucioné-la? Por que reformé-la ? Fartindo désse ponte de vista, evidentemente falso, conce- bese uma estratégia politica nao-reformista ou no-revolucio- ndria, uma estratégia evoluciowista: o desenvolvimento gradual, sem reformas. De acérdo com éle, acrescentando-se 4 atual estrutura agrdria alguns ingredientes — mais adubagiio, mais mecanizacio, numa palavra: mais capital — alcancarfamos a férmula milagrosa para acelerar o progresso agricola em geral, sem precisarmos apelar para qualquer reforma de base.® A teoria do capitalisma colonial nio é, assim, um achado histérico to inocente quanto parece, FE uma teoria conserva- dora, reaciondria que, bem arrumada, se encaixa perfeitamen- te nos esquemas politicos mais tetrégtados. A negagio ou mesmo a subestimacio da substancia feudal do latifundismo brasileiro tetita da reforma agratia sua vin- culagio histérica, seu conteddo dinamico ec revoluciondrio. Esse contetido dinimico e revaluciondrio, na presente etapa da vida brasileira, expressa-se pelo objetivo principal do mo 8 ssa férmula foi aplivada, como complemento do derenvialvimentisma, pelo govérng da Sr. Juscelino Kubistchek. O conjunto de medidas que compu- ham a “meta agricola” d&sse govémo tinha por obietivo “a expansio de producio e a melhoria dos niveis gerais de produtividad=", como se dizia no Programe de Meras (tomo mm, pdg 10), pata o que se previam macigas injegex de dinheiro na compra de tratores, etc, 3 resultadas nio se fit zeram esperat: © fracasso da cultura do uigo ea crise do feijio. vimento pela reforma agraria, que é o de extirpar e destruir, em nossa agricultura, as relagGes de producio do tipo feu- dal e nao as relagdes de produgio do tipo capitalista. Por af se vé que, ao admitir-se que a estrutura agrdria exis- tente cm nosso pais foi, desde os mais remotos tempos, ¢ continua sendo, capitalista, estd-se admitindo, por coeréncia, a inoporvunidade e a desnecessidade de uma reforma revolu- diondtia, de uma modanga democrdtica dessa mesma cstrutura. Que restatia por fazer, se se tratasse de tormar mais capitalista nossa estrutura agrdria jd capitalista? Deixd-la como esta, inalterada, € injetar nela mais dinhciro, mais capital. A experiéncia brasileira encarregou-se de demonstrar que tém sido infrutiferas as tentativas de salvar nossa agricultura latifundidtia da crise crénica em que mergulha ha cérea de um sécula, & custa de transfusdes de recursos, privilégios ¢ favo- res, de <«valorizagdes» artificiais, da «fixagio do homem 4 tetra», de «reajustamentos ccondémicos» e€ outras panacéias do geneto. Agora, j4 penctrou na opiniio nacional a consciéncia de que hd, no campo, relagdes de producio caducas que precisam ser substituidas por novas rclagées de produgio, sem o que as férgas produtivas de nossa agticultura no estario desimpe- didas de desenvolver-se. Quais sdo essas relagies de produgao caducas ? Essas velhas relagGes de producio que travam o desenvol- vimento de nossa agricultura no sio do tipo capitalista, mas herangas do feudalismo colonial, A primeira e mais impor- tante dessas relacGes de produgio, cuja desiruigio se impéc, € 0 monopdlio feudal ¢ colonial da terra, o Jatifundismo fendo- colonial. Q manopélio feudal ¢ colonial € a forma particular, espe- cifica, por que assumiu no Brasil a propriedade do_ptincipal ¢ mais importante dos meios de produgdo na agricultura, isto &, a propriedade da terta. O fato de ser a terra o meio de pro- ducdo fundamental na agricultura indica um estédio inferior da produgio agricola, peculiar 4s condicdes histéricas pré-capi- talistas. A medida que o capitalismo penetra na agriculrura, vio-se desenvolvendo, e aumentando sua produgio no con. junto, os demais meios de produgdo, isto é, os meios meci- nicos de trabalho, as mdquinas ou os instrumentos de pro- dugio, as construgdes, os elementos técnicos e cientificos, etc., de tal mancita que numa agricultura plenamente capitalista, ésses passam a ser (¢ ndo mais a terra) os principais meics de produgio. Quanto 4 agriculrura brasileira, € fato comprovado pelos dados estatfsticos que continua a caber & terra aquéle 32 papel predominante no conjunto dos meios de producio.2 Por isso, na situacao objetiva de nossa apticultura, dominar a ter- za, acambarcé-la, monopolizé-la_ significa ter, praticamente, o dominio absoluto da totalidade dos meios de produgao agricolas, Acresce que 0 monopdlio da terra, nas condigdes pré-capita- listas de nossa agricultura, assegura A classe latifundidria uma férca maior do que o poderio econdmico, uma outra espécie de poder que freqiientemente supera e sobrevive aquele — o poder extra-cconémico, © poder extra-cconémico é uma caractetistica e uma sobrevi- véncia do feudalismo. Ele se exerce, ainda nos nossos dias, através do «govérno» das coisas e das pessoas dentro e em térno_dos latifindios. Aquilo que Antonil tecriminava no sé culo Xvitl («Quem chegou a ter tftulo de senhor, Parece que em todos quer dependéncia de servos») e Koster observaya no século XIX («QO grande poder do agricultor, no somente nos seus escravos mas sua autoridade sdbre as pessoas livres das classes pobres»), revive, no século XX, sob a forma do «co- ronelismo» de antes de 1930 e, com algumas modificagdes no estilo, nfo desapareceu até hoje, Gracas a ésse tipo de relacdes coercitivas entre os latifun- didtios ¢ scus «moradores», «agregados», «meeitos», «colonos», «camaradas» e mesmo assalariados, estendendo-se também aos vizinhos de pequenos e médios recursos, alguns milhoes de trabalhadores brasileitos yivem, inteiramente ou quase intei- Tamente, & margem de quaisquer garantias Icgais ou constitu- cionais e sujeitos & jurisdicao civil ou criminal e ao arbitrio dos senhores de tetras. Estes wltimos detetininam as condi- gées dos contratos de trabalho, as formas de remuneracio, os tipos de arrendamento, as lavouras e criagdes permitidas, os pregos das produtos, os horatios de trabalho, os setvicos gra- tuitos a prestar, ditam as sentengas judiciats & impdem as res- trigdes a liberdade que Ihes convém, sem o minimo respeito as leis vigentes, Tédas essas e outras relagdes extra-cconémicas derivam do monopdlio feudal da terra ¢ correspondem a um tipo de ex. ploracfo pré-capitalista que consiste em coagir os trabalhado- tes a lavrarem a terra que nao lhes pettence, por provessos Primitives ou rotineiros c mediante uma infima participacio no produto de seu trabalho, Mas nfo pdra af a configuracaa pré-capitalista do sistema latifundidrio existente no Brasil. Nossa estrutura latifundidria 9 De acérdo com a Conso Agricola de 1950, a ferra-capital representa 78% do total dos capitsis apliedos na agricultura, 33 Qs. se completa com uma conotagio colonial, que ¢ parte integran- te do sistema e uma das condigies que respondem pela sua resisténcia as transformagSes de cariter democrdtico e a sua evolugao para o tipo de producio capitalicta. Quando o monopdlio feudal da terra existe cm funcao do mercado interno, como no caso dos paises desenvalvides da Euro- pac da América (antiga Prissia, Sul dos Estados Unidos, etc.}, cm virtude de ficar retida no pafs a totalidade do excedente econémico obtide na produgio e do préprio desenvolvimento industrial interno, © latiféndio é levado a incorporar processos técnicos mais adiantados, a adotar formas de trabalho ¢ de produgio do tipo capitalista, ¢ tem concigdes para moderni- zarse gradualmente, pata «aburguesar-se» ou convertet-sc em grandes propriedades capitalistas. Com o moanopélio feudal e colonial da terra (ou semifeudal e semicolonial), de que o sistema de plantagao é a forma ti- pica, isso sé pode acontecer muito lenta © dificilmente. Em primeiro lugar, porque o sistema latifundidrio feudal-colonial esti constituido para exportar téda a sua produgdo, « ao fa- zélo, pot definigde, exporta também parte da renda e dos lucros produzides, cedendo-os aos trustes compradores inter- nacionais. Para que tal mecanismo de succ’o funcione sem prejuizo da parte que cabe a classe latifundidtia, esta trans- fere, para os seus trabalhadores e para a populacio do pais onde se situa, as 6nus decarrentes désse proceso de espoliacao. Em segundo Ingat, porque o sistema latifundidrio feudal-co- lonial exige, como pega insepardvel de seu mecanismo, a or ganizagio de uma réde de intermedidrios-compradores ¢ inter- medidrios-usurdrios que atuam nfio sé no sentide de facilitar a transferéncia da parte dos lucros especulativos para as maos dos trustes internacionais, como no sentido de ainda mais re- duzir a remuneragio dos trabalhadores agricolas, Esse tipo de comercializa¢ia, vinculado ao sistema latifundidrio feudal- colonial, corresponde acs antigos moldes do capital mercantil ¢ exerce sdbre o desenvolvimento capitalista semclhante influén- cia tegressiva. E, em terceiro lugar, porque todo ésse apate- Tho pré-capitalista de producio e distribuicac, a medida que promove a evasdo de parte da renda gerada para o exterior, descapitaliza o pais e limita o desenvolvimento industrial; ¢, a medida que comprime o poder aquisitivo das massas rurais, limita a expansio do mercado interno. Em suma, a condigao colonial do monopélio feudal da terra acentua, fortemente, os fatéres regressivos, os elementos de atraso inerentes aquele. Com isso queremos dizer que no la- tifundismo brasileita sio mais fortes ainda os vinculos do tipo 34 feudal, tais como as relagdes de dominio sdbre as coisas € sobre as pessoas, as interligagdes com as formas ptimitivas do capital comercial, aos quais se acrescentam as particularidades da dependéncia aos trustes internacionais compradores da pro- ducao latifundiaria, Tédas essas caracteristicas, presentes em nossa atual esttu- tura latifundidria, sao herancas diretas do regime econémico colonial implantado em nosso pais logo a seguir ao periodo da descoberta, ou seja, do feudalismo colonial. Evidentemente, ao nos referirmos as caracteristicas feudais e coloniais do latifundismo brasileiro, nao pretendemos asse- vetar que elas existem agora com o mesmo grau de intensi- dade em que existiam no Brasil-Coldnia, nem que revestem as mesmas formas «puras» ou «integrais». Pouco importa, para as conclusées a que devemos chegat, o grau menos ou mais acentuado de suas manifestacdes; 9 que de fato importa é reconhecer sua presenca, sua sobrevivéncia, sua permanéncia ainda que residual, como vestigios de um passado que deveria estar morta, Nossa atual estratura latifundidria, verdadeiramente semi- feudal ¢ semicolonial, apresenta as catactetisticas fundamen- tais do pré-capitalismo. Tanto basta para que nos recusemos a aceitar como originiriamente «capitalistas, nfo no sentido vulgar, mas no sentido moderno e cientifico do térmo, 4 con- ceituagio do regime econdmico implantado no século XVI na América Portuguésa. A nfo ser que endossdssemos outta hi- pGtese nfo menos absurda: a de que, devido, talvez, a nossa «incapacidade» para o progresso, tenhamos regredido, em qua- tro séculos, do «capitalismos, para o pré-capitalismo agrétio. . Como vimos, a importancia dessas conclusdes nfo é mera- mente conceitual; elas tém grande signiftcacio prdtica, polf- tica, estratégica, para os destinos de nossa agricultura ¢ de nossa economia em geral. Mostram-nos, tais conclusdes, que a redistribuigig da terra, a divisio da propriedade latifundidria nao é uma simples ope- ragio aritmética, uma reparacao de injustigas ou uma medida de assisténcia social. Uma reforma agrdria democratica tem um aleance muito maior: seu objetivo fundamental é destruir pela base um du- plo sistema espoliativo e opressivo; romper ¢ extirpar, simul- tancamente, as relagdes semicoloniais de dependéncia ao im- perialismo ¢ os vinculos semifeudais de subordinacdo ao poder extra-econdmico, politico e

You might also like