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Gn ses DOUTRINE RIBLIGKC
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Ultimo volume de uma série
de trés pelo famoso pregadorGRANDES DOUTRINAS BIBLICAS
A Igreja e as Ultimas Coisas
Martyn Lloyd-Jones — magistral!
Este € 0 tltimo volume de uma nova e impor-
tante série de grandes obras escritas por Martyn Lloyd-
-Jones, o destacado pregador, no qual ele explora a
Biblia a fim de encontrar as esséncias da fé crista. Nossa
atencao é agora voltada para o ponto de vista biblico da
Igreja e das tiltimas coisas.
O autor comega com uma detalhada investigacdo
da Igreja e das ordenangas, especialmente com uma
compreensao correta do batismo e da Ceia do Senhor.
Os capitulos subsequéntes focalizam a segunda vinda de
Cristo, 0 juizo final ¢ a ressurreigao do corpo. Além de
uma andlise detalhada do ensino biblico contido no
capitulo 9 de Daniel e do Apocalipse, Dr. Lloyd-Jones
também examina os diferentes pontos de vista susten-
tados sobre esse assunto e considera a maneira de Deus
cumprir Seu plano para os judeus.
Dr. Lloyd-Jones foi um eficiente médico cirugiao
que em 1927 deixou a pratica da medicina e tornou-se
ministro duma igreja no sul de Gales. Posteriormente,
por trinta anos, até 4 sua aposentadoria em 1968, ele
ministrou na Capela de Westminster, em Londres.
PES
PUBLICACOES EVANGELICAS SELECIONADAS
Rua 24 de Maio, 116 — 3° andar — salas 14-17
01041-000 - Sao Paulo —- SPGRANDES DOUTRINAS BIBLICAS
Volume 3
A Igreja
e as Ultimas Coisas
D. Martyn Lloyd-Jones
PES
PUBLICACOES EVANGELICAS SELECIONADAS
Caixa Postal 1287
01059-970 — Sao Paulo — SPTitulo original
The Church an
Editora:
Hodder and Stoughton Ltd.,
Primeira edicao em inglés:
1998
Copyright:
Lady E. Catherwood
Ann Desmond
z
5S
PranRinroilEs
O direito de Dr. MartymLloyd-Jones de ser identificado como o
obra tem sido assevetado de acordo com 0 ato de Copyright,
Patents 1988
°
Traducdo do inglé:
Valter Graciano Mat
Revisao:
Antonio Poccinelli
Capa:
Sergio Luiz Menga
Primeira edic4o em portugués:
1999
Impressao:
Imprensa da FéINDICE
PrefACiO veeceescssesssesstesssecssessneessesstenuesseccssessneesnsessecsssesnsesneete 7
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A I greja eesessesesessesssesesssessesiecsesseesesneenesseenecseseeanenses
As Marcas e 0 Governo da Igreja
As Ordenangas — Sinais e Selos
O Batismo
A Ceia do Senhor ....
Morte e Imortalidade
Imortalidade Condicional ou Segunda Chance
A Segunda Vinda — Introducao Geral .
O Tempo de Sua Vinda — os Sinais
O Plano de Deus para os Judeus ..
O Anticristo
A Interpretagao de Daniel 9:24-27
Conclusao do Capitulo 9 de Daniel e
o Arrebatamento Secreto
O Livro do Apocalipse ~ Introdugao
Os Pontos de Vista Preterista ¢ Futurista
O Ponto de Vista Historicista Espiritual .
O Sofrimento e a Seguranca dos Redimidos .
As Trombetas ..
O Juizo Final .
O Ponto de Vista Premi
Pés-milenismo ¢ o Ponto de Vista
A Ressurreigao do Corpo
O Destino DefinitivoPREFACIO
Nas noites de sexta-feira, apés a guerra, o Dr. Lloyd-Jones
passou a manter reunides de debates numa das salas da Capela
de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam
sobre quest6es praticas da vida cristaé, e as reunides eram
freqiientadas por um grande ntimero de pessoas. As questdes que
surgiram demandavam um s6lido conhecimento de todo tipo de
ensino biblico. As vezes surgiam também problemas doutri-
narios, com os quais “o Doutor” tinha que tratar, geralmente
em sua conclusao, no encerramento do debate. Em parte era
resultado disso, e em parte porque o numero foi se tornando
grande demais para a sala comportar, ¢ talvez também porque as
pessoas que lhe pediam informacoes sobre as doutrinas biblicas
eram tantas, que ele comecou a sentir a necessidade de mudar a
“reuniao noturna de sexta-feira” para a propria Capela, e ali
ministrar uma série de prelegdes sobre esses grandes temas. Ele
fez isso de 1952 a 1955, e entao deu inicio 4 sua magistral série
sobre a Epistola aos Romanos, a qual deu seguimento até sua
aposentadoria em 1968. As prelegoes doutrindrias eram muitis-
simo apreciadas pelas grandes congregac6es que as ouviam; ¢,
ao longo dos anos, muitos tém dado testemunho da maneira
como, por meio delas, sua vida crista se fortaleceu.
Mais tarde, o proprio Doutor se sentiu mais satisfeito em
pregar sobre doutrinas como parte da exposic&o regular, como
certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina
em particular, poderao encontra-la nos manuais de doutrina”.
Mas a grande orga de seus estudos doutrinarios consiste em que
eles nao sao dridos compéndios de prelegoes. FE)
tudo um pregador, c isso se salict uas prelegdes.
Ele era também pastor, ¢ desejava que homens e mulheres
compartilhassem de seu senso de admiragao ¢ de sua gratidao a
Deus pelos fatos poderosos do evangelho, Dai sua linguagem clara
> era acima de
wom todase destituida daquela complexa fraseologia académica. A
semelhanea de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de
palavras “compreensiveis ao povo”. Outro desejo seu era que o
ensino nao ficasse s6 na cabega, por isso ha em cada prelegdo
uma aplicagao para que se assegurasse que 0 corac&o e a vontade
também fossem tocados. A gléria de Deus era sua principal
motivagao na ministracdo destas prelecdes.
~ Os que conhecem a pregacao e os livros do Dr. Lloyd-Jones,
ao lerem as prelegées, haverao de se lembrar que seus pontos de
vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo dos anos, e
que suas énfases provavelmente nem sempre eram as mesmas.
Todavia esta constitui parte da riqueza de seu ministério, como
o foi do ministério de muitos dos grandes pregadores do passado.
Nao obstante, no tocante as verdades essenciais e fundamentais
da Palavra de Deus, ndo ha qualquer mudanca em sua
proclamagao, e nenhum som incerto tem-se emitido.
Temos encontrado certa dificuldade na preparagdo destas
prelecées para a publicagdo. Elas foram haé muito tempo
pronunciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares
houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas
se perderam. Além disso, s6 uma pequena parte das prelecdes
foi taquigrafada, e assim, num ou dois casos, nao temos nem fita
nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou
suas anotaces pessoais de todas as prelegdes, e assim as temos
usado, embora, naturalmente, significa que esses capitulos nao
se acham tao completos quanto os demais.
As fitas do Doutor sao distribuidas pelo Martyn Lloyd-Jones
Recording Trust, e de todas as suas fitas 0 maior nimero de
pedidos consiste nestas prelegdes doutrinarias. A caréncia de
conhecimento das verdades vitais da fé crista é maior agora do
que antes — com certeza ainda maior agora do que na década de
1950! Portanto nossa oracao é para que Deus use e abencoe estas
prelecdes novamente, para o nosso fortalecimento e para a gléria
dEle.
Os Editores1
A IGREJA
Chegamos agora a sexagésima prelecao em nosso estudo das
doutrinas biblicas, portanto é provavel que este seja um bom
lugar para lembrar-lhes dos varios passos e estagios pelos quais
ja passamos. Tendo comegado com nossa consideragaéo do
homem neste mundo, e tendo notado a futilidade de confiarmos
somente em nosso préprio entendimento, chegamos a perceber,
como as pessoas tém sempre percebido, a necessidade de uma
revelacao. Deus nos deu essa revelacdo: é uma revelacaéo de Si
proprio em Sua Palavra. Entéo, havendo considerado 0 que a
Palavra nos diz sobre Deus, prosseguimos considerando o que
ela nos diz sobre homens ¢ mulheres em suas necessidades,
bem como a causa de suas necessidades — a qual introduziu a
doutrina do pecado. Isso conduz a necessidade de salvacgaéo que
consideramos na Pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, e em
seguida na aplicacao de tudo isso a nés mediante a operagéo do
Espirito Santo.
E assim chegamos a uma nova seg4o: nova simplesmente
no sentido em que reconhecemos certas divisdes 4 guisa de
conveniéncia do pensamento; obviamente, porém, nova em
nenhum outro sentido. Além disso, devemos observar nova-
mente 0 maravilhoso modo no qual cada uma dessas doutrinas
conduz 4 préxima, de uma forma totalmente inevitavel. A
verdade é uma sé € 0 propésito de Deus é um todo, de tal maneira
que, ao terminarmos de discutir uma doutrina estamos,
necessariamente, nos introduzindo na proxima.
Na prelecao anterior, estivemos analisando juntos 0 ensino
da Biblia concernente aos dons espirituais. Consideramos como
Deus concede 4 Igreja apdstolos e profetas, pastores e mestres,
os quais possuem os dons necessdrios. E vimos que varios outros
dons especiais sao concedidos ao povo cristo, tanto donstemporarios para os primeiros cristéos quanto outros dons que
sao de cardter permanente e s40 concedidos a todos os cristaos
em todos os tempos. Em todos esses casos, porém, observamos
que os dons eram concedidos a Igreja e aos membros da Igreja.
E assim chegamos, por meio de uma légica inevitavel e pela
forca da propria verdade, a uma consideracao da doutrina biblica
da natureza da Igreja.
Cra, esta doutrina costuma ser totalmente omitida nos livros
que tratam das doutrinas biblicas, embora seja dificil de se
descobrir o porqué. Isso é muitissimo lamentével, pois se real-
mente estamos interessados em discutir as doutrinas que
aparecem na propria Biblia, entéo precisamos analisar a doutrina
da Igreja. A maioria das Epistolas neotestamentarias foi escrita
a uma igreja, e seu ensino se volta mais para a Igreja. Por isso
nao basta considerar as doutrinas da Biblia que tratam mais de
nossas necessidades ¢ experiéncias pessoais ¢ individuais. Grande
parte do Novo Testamento nao se destinaria a verdades
concernentes 4 Igreja a nao ser que isso fosse algo de vital
importancia. O proprio carater das Escrituras por si mesmo nos
compele a considerar esta doutrina.
Outra razao, sem diivida, é a grande proeminéncia que esta
doutrina ja teve na historia da propria Igreja. Tomemos, por
exemplo, a histéria da Bretanha. Distingue-se proeminente-
mente toda a questao da natureza da Igreja. Notamos isso na
Reforma Protestante — uma daquelas grandes questées decisivas
acerca das quais todo mundo conhece—e em tudo 0 que aconteceu
no século dezessete, inclusive certos aspectos da Guerra Civil.
Ora, vocés nao podem visualizar essas coisas, mesmo pelo prisma
secular, sem perceber que a doutrina é muitissimo importante.
Nossos pais a consideraram como algo de importancia tao vital
que estavam preparados para enfrentar as maiores dificuldades
e sofrer a perda de quase todas as coisas em decorréncia de sua
preocupacao pela doutrina da natureza da Igreja. Para eles, ela
nao era algo que pudesse ser considerado com indiferenga.
Qualquer que fosse a persegui¢ao, ainda com 0 risco de suas vidas,
muitos deles fundaram conventiculos e insistiam em reunir-se
10neles. Portanto, se nao tivéssemos nenhuma outra razao para
considerar esta doutrina, seriamos compelidos a estuda-la por
respeito aos nomes e 4 grandeza de nossos antepassados distantes.
As pessoas n4o sofreriam assim pela verdade e por uma causa se
ela fosse uma questao indiferente.
Eevidente que h4 ainda outra razao que nos levaa considerar
esta questao, e é justamente a grande proeminéncia que esté sendo
dada na atualidade 4 Igreja Crista em conexéo com o que é
conhecido pelo nome de movimento ecuménico. Os noticidrios
religiosos dedicam grande espaco a isso e esta sendo propagado
pelos expoentes do ecumenismo quea funcao particular da Igreja
no século vinte é chamar a atencdo para a natureza da Igreja.
Portanto, se porventura quisermos entrar em discuss4o com tais
pessoas e sermos capazes de nutrir um inteligente interesse por
essas discussdes, cabe-nos conhecer algo acerca desta doutrina
neotestamentaria.
Além disso, porém, ha uma razo que, em certo sentido, é
muito mais importante do que todas as outras juntas. Suspeito
que ela constitui a deficiéncia do povo evangélico, particu-
larmente durante os tltimos sessenta a setenta anos, de levar a
sério 0 ensino biblico concernente a natureza da Igreja, o que
explica a maioria dos problemas que estamos enfrentando na
atualidade. Por uma razao ou outra, nossos pais e avés imediatos
sentiam que era suficiente formar movimentos sem pensar em
termos da Igreja, com 0 resultado de que 0 testemunho evangélico
se diluiu entre as grandes denominagées e 0 povo cristao
evangélico s6 se reune em movimentos em vez de reunir-se em
igrejas. E assim, olhando por esse prisma, isso se constitui num
tema de muita importancia. Se é verdade que nutrimos profundo
interesse pela mensagem cvangélica ¢ sua vital importaéncia no
mundo atual, entéo somos compelidos a considerar a doutrina
da Igreja.
Uma vez introduzidos no ensino biblico concernente 4
natureza da Igreja, permitam-me fazer minha costumeira
observacdo introdutéria. Este é um tema em extremo contro-
vertido — praticamente tem sido assim com todas as doutrinas.
IAcaso nao tem? A hist6ria, porém, por si sé, assegura-nos que
esta é, provavelmente, a mais controvertida de todas. E no
entanto é pura covardia deixar de tratar um tema simplesmente
por ser controvertido. Qualquer que tenha sido nossa educacao
ou histéria; quaisquer que sejam nossos preconceitos, é preciso
que tentemos avaliar, com a mente mais aberta possivel, o que
as Escrituras tém a nos dizer. Que todos nos nos esforcemos em
fazer isso, orando para que Deus nos livre dos preconceitos para
os quais todos nds nos inclinamos.
Aproximemo-nos, portanto, de algumas palavras prelimi-
nares de definigao. A primeira pergunta que devemos encarar é
esta: qual éa relacao da Igreja com o reino de Deus? Encontramos
na Biblia ensino sobre o reino e ensino acerca da Igreja. Hé
entre os cristos, com freqiiéncia, muita confusao acerca desses
dois assuntos. Isso se deve grandemente ao fato de como a igreja
catélica romana identifica os dois. No ensino catélico-romano,
a Igreja é o reino de Deus, e os catélicos romanos sao
absolutamente coerentes na maneira como resolvem isso,
reivindicando o direito de governar e dominar toda a vida das
pessoas em todos os seus aspectos. Vocés se lembram como, na
Idade Média, a igreja romana costumava governar os reis, os
senhores, os principes, as provincias e as autoridades com base
na alegacao de que ela era 0 reino de Deus, de que ela era suprema.
E tal idéia tende, em certa medida, a persistir.
Por isso temos de ser claros sobre a relacao entre Igreja e
reino. O que € 0 reino de Deus? Ele é melhor definido como o
governo de Deus. O reino de Deus esta presente onde quer que
Deus esteja reinando. Eis a razdo por que nosso Senhor podia
dizer que, em virtude de Sua atividade e Suas obras, “o reino de
Deus esta dentro de vés” (I.uc. 17:21). Disse ainda: “Mas, se é
pelo dedo de Deus que eu expulso os deménios, logo é chegado a
vos o reino de Deus” (Luc. 11:20). Portanto, se considerarmos 0
reino de Deus como 0 governo e 0 reinado de Deus, entao o
reino esteve aqui quando nosso Senhor esteve aqui pessoalmente.
Ele esta presente onde quer que o Senhor Jesus Cristo é
reconhecido como Senhor. O reino vira, porém, com maior
12plenitude quando tudo e todos tiverem reconhecido Seu senhorio.
E assim podemos dizer que o reino ja veio, o reino esta entre
nés € 0 reino ainda esta por vir.
Qual, pois, é a relagéo da Igreja com o reino? Seguramente
é esta: a Igreja € uma expressdo do reino, mas nao deve ser
equiparada a ele. O reino de Deus é mais amplo e mais poderoso
que a Igreja. Na Igreja, onde ela é verdadeiramente a Igreja, 0
senhorio de Cristo é reconhecido e confessado e Ele habita ali.
Portanto, o reino esta ali nesse sentido. E assim a Igreja é uma
parte do reino, mas apenas uma parte. O reino de Deus é muito
mais amplo do que a Igreja. Deus governa em regides além da
Igreja, em regides onde Ele nao é reconhecido, porquanto todas
as coisas estao em Suas mios e a histéria esta em Suas m4os. Por
isso a Igreja nao € co-extensiva com o Reino.
Examinemos agora alguns dos termos que sao usados. A
palavra grega que se traduz para “igreja” é 0 termo ekklesia, ¢
ekklesia significa “aqueles que sao chamados”, nao necessaria-
mente chamados do mundo, mas chamados da sociedade para
alguma fung4o ou propésito particular; sido “chamados
conjuntamente”. Podemos traduzir ekklesia pela palavra
“assembléia”. Se vocés lerem 0 relato em Atos, capitulo 19, sobre
a extraordindria reunido que se deu na cidade de Efeso, reuniao
que quase se transformou em motim, descobrirao que o secretario
municipal da cidade a denominou de uma assembléia, uma
ekklesia, pela qual ele quiz dizer que certo numero de pessoas se
reuniram conjuntamente. Da mesma forma, em seu discurso em
Atos, capitulo 7, Estévao refere-se a Moisés como estando “na
igreja no deserto” (v.38). E assim os filhos de Israel eram uma
igreja, um ajuntamento, uma assembléia do povo de Deus. Era a
ekklesia, a igreja do Velho Testamento. Esse € 0 significado
fundamental da palavra “igreja”.
Ora, nossa palavra “igreja”, e todos os termos e nomes
cognatos, inclui um significado ligeiramente diferente. Usamos
a palavra para significar que pertencemos ao Senhor. Nossa
palavra “igreja” vem da palavra grega kurios, que significa
“senhor” — tem a mesma derivacao das palavras Imperador ¢
13César. E importante termos isso em mente, visto que devemos
manter estes dois significados juntos: a Igreja consiste daqueles
que pertencem ao Senhor, que se retinem conjuntamente.
Avancemos, porém, mais um passo. Analisemos algumas
afirmagGes que as Escrituras fazem sobre a Igreja, e que sao
realmente importantes. Na Biblia, a palavra ekklesia, quando
aplicada aos cristaos, geralmente se usa em referéncia a um local
de reuniao. A distingdo que ora facgo é quanto a diferenca entre
a Igreja considerada como uma idéia geral e a igreja considerada
como idéia de localidade e particularidade. O termo que € quase
invariavelmente usado nas Escrituras inclui este sentido de
localidade. Por exemplo, em Romanos, capitulo 16, quando Paulo
envia suas saudag6es a Aquila ¢ Priscila, ele faz uma referéncia a
“a igreja que esta na casa deles” (v.5). Um grupo de cristaos se
reunia na casa de Aquila e Priscila, e o apéstolo Paulo nao hesita
em chamar de igreja aquele local de reuniao. Ele nao esta
pensando em termos da idéia moderna ecuménica, segundo a
qual a Igreja € 0 grande elemento.
Em seguida, Paulo também enderega sua Epistola, por
exemplo, “a igreja de Deus que esta em Corinto”. Ele escreve a
Epistola aos Galatas “As igrejas da Galacia” (Gal. 1:12), nao “a
Igreja da Galdcia”. Paulo nao esta pensando numa sé unidade
dividida em ramos locais, mas nas igrejas, um grupo dessas
unidades, na Galdcia. Esta € uma questao muitissimo
significativa e importante.
Ora, se vocés percorrerem as Escrituras, descobrirao ser esse
o método apostélico comum de lidar com 0 tema. Temos, porém,
que observar que ha dois ou trés exemplos em que a palavra
“igreja” € usada em vez de “igrejas”, e um deles é bastante
interessante. Ele se encontra em Atos 9:31. HA certa diferenca
aqui entre a Authorised (King James) Version e a Revised
Version. A Authorised Version tem a redagao: “Entao as igrejas
tinham descanso por toda a Judéia, a Galiléia e a Samaria, e
eram edificadas.” A Revised Version, porém, traz o singular,
“igreja”, e esta é indubitavelmente a melhor tradugao. Sim, mas
mesmo assim devemos lembrar-nos que a referéncia € quase com
4toda certeza aos membros da igreja em Jerusalém que haviam
sido espalhados por toda parte em decorréncia da perseguicao.
Portanto é provavel que Lucas no estivesse se referindo a idéia
de “a Igreja” como diferente de “as igrejas”, mas estivesse
pensando numa sé igreja dispersa por varias regides e em paz.
Entretanto, este nao € um ponto vital. Além disso, lemos em 1
Corintios 12:28: “E a uns pés Deus na igreja, primeiramente
apéstolos, e em segundo lugar profetas”. Paulo nao diz que Deus
os pés “nas igrejas”, e, sim, “na igreja”.
HA ainda outra forma na qual se usa o termo “igreja”. Em
certas passagens, como aquelas grandes passagens na Epistola
aos Ef€ésios, Paulo esté obviamente pensando na Igreja como
incluindo n4o s6 os que estao na terra, porém também os que
estao no céu. No final do primeiro capitulo, ele diz: “E sujeitou
todas as coisas debaixo dos seus pés, e para ser cabeca sobre
todas as coisas 0 deu 4 igreja, que € 0 seu corpo, o complemento
daquele que cumpre tudo em todas as coisas” (Ef. 1:22,23).
Semelhantemente, em outra parte da Epistola, ele diz: “Para que
agora a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada, por meio
da igreja, aos principados e potestades nas regides celestiais”
(3:10). E Paulo escreve a mesma coisa também em Efésios
5:23-32.
Até aqui, pois, vimos que, geralmente falando, 0 termo
ekklesia € usado no plural, e os escritores estao obviamente
pensando nas igrejas individuais; nuns poucos exemplos, porém,
hé uma concepgao mais ampla em que se usa o termo “a Igreja”.
E em seguida devemos analisar os varios quadros ou
ilustragdes que s4o usadas a fim de ensinar a doutrina concer-
nente a Igreja, e hd um bom ntimero delas muito interessantes.
A primeira é a analogia de um corpo. Em diversas das Epistolas
neotestamentarias somos informados que a Igreja é 0 “corpo de
Cristo”. O classico exemplo, sem dtivida, esté em 1 Corintios,
capitulo 12, mas 0 encontramos também em Romanos, capitulo
12, em Efésios, capitulo 4, e noutros lugares.
Outro quadro € o da Igreja como um templo ou como um
edificio, onde o apéstolo se compara com um sdbio construtor
1s(1 Cor. 3:10). Em Efésios 2:20 ele fala da Igreja sendo edificada
sobre o fundamento dos apéstolos e profetas; portanto ele pensa
nela ali como um edificio que esta sendo erigido.
Em Efésios, capitulo 5, Paulo se refere a Igreja como a noiva
de Cristo, e essa imagem reaparece no livro do Apocalipse.
Ainda outro conceito é aquele de um império. Em Efésios,
capitulo 2, Paulo fala de nds como “concidadaos dos santos e da
familia de Deus” (v.19). Essa, obviamente, foi uma analogia que
de repente surgiu na mente do apéstolo. Provavelmente ja fosse
um prisioneiro em Roma no tempo em que escreveu essa
Epistola, e estivesse pensando nesse admiravel Império Romano.
Ele sentia que havia algo no Império que era andlogo a Igreja,
com todas as partes dispersas e ainda com uma unidade central.
Fazendo uso de outro termo, podemos falar, como se tem
feito ao longo de todos os séculos, da “Igreja militante” e da
“Igreja triunfante” (a Igreja terrena esta Jutando por sua vida,
pela doutrina e por cada elemento) a Igreja que se encontra além
do véu, jubilosa e triunfante. Tomem, por exemplo, a grandiosa
forma na qual isso é expresso em Hebreus 12:22-24.
E assim, tomando todas essas idéias juntas, que conclusao
tiramos? Obviamente, a Igreja é espiritual e invisivel. Todos os
exemplos que tenho lhes apresentado da palavra empregada no
singular pressupdem algo que nao pode ser visto, mas que possui
uma realidade como entidade espiritual. Ao mesmo tempo,
porém, a Igreja € também visivel e pode ser vista externamente
e pode ser descrita como existindo em Corinto, em Roma ou em
algum outro lugar particular. E muito importante que tenhamos
em mente essas duas coisas. O invisivel tem suas manifestacgdes
locais.
Uma boa analogia aqui é a alma. Nao podemos ver as almas
humanas, mas sabemos que cada pessoa possui uma alma e
expressa esse fato através do corpo, através do comportamento
e da vida, o invisivel manifestando-se através do visivel. E isso
€ obviamente verdadeiro no que tange a Igreja Crista. Além das
igrejas locais ha aquilo que se chama a Igreja. O corpo de Cristo
€ uma entidade, é algo real e vivo.
16E muito importante que delineemos essas distingdes para
que, 4 luz do que tenho dito, eu possa prosseguir e acrescentar 0
seguinte: ninguém pode ser cristao sem ser membro da Igreja
espiritual e invisivel. E impossivel. Todos os cristaos sao mem-
bros do corpo de Cristo. No entanto, é possivel ser membro da
Igreja sem ser membro de uma parte visivel da Igreja — embora
devesse ser. Alguém pode estar numa sem estar na outra. E
possivel igualmente ser membro da Igreja visivel, de sua
manifestacao externa, e nao ser membro da Igreja invisivel,
espiritual. E assim vocés podem ver como € muito importante
essa distincdo biblica entre Igreja universal, que é Seu corpo, e
suas manifestagdes visiveis e locais.
Portanto, em resumo: 0 sentido usual de “igreja” apresentado
nas Escrituras é de um local de encontro dos santos onde sao
reconhecidos a presenga e 0 senhorio de Cristo. Além de tudo
isso, porém, nas igrejas locais, todas as pessoas que realmente
nasceram de novo e s4o espirituais, séo também membros da
Igreja espiritual invisivel, o genuino corpo de Cristo. Como ja
disse, isso € algo de grande importancia caso queiramos entender
a presente discussao sobre a Igreja. E assim chegamos pr6xima
questo referente 4 unidade da Igreja. E este é o grande tema de
hoje.
Com toda seguranga, aqui se pode dizer certas coisas sem
qualquer receio de contradigao. Se é para sermos guiados pelo
ensino biblico, entéo devemos concordar prontamente que a
unidade com a qual as Escrituras se preocupam é a unidade
espiritual. O décimo-sétimo capitulo do Evangelho de Joao é
com freqiiéncia citado equivocadamente! As pessoas
simplesmente retiram uma frase de seu contexto. Dizem, citando
o versiculo 21: “Para que todos sejam um”, ¢ ficam nisso.
Insistem também que divisao na Igreja € 0 maior de todos os
pecados. Ora, por certo que todos nés concordamos que divisao
€ algo deploravel; cisma ¢ certamente pecado. Entretanto, quando
interpretamos isso no sentido cm que todo aquele que se chama
cristao, nao importa qual a condigéo ou forma, é alguém com
quem devemos manier uniao absoluta em todos os aspectos,
7entao isso é uma contradigao do que Joao, capitulo 17, ensina.
Certamente, Joao, capitulo 17, faz o carater dessa unidade
muito simples e claro. Os termos de nosso Senhor sio estes:
“Para que todos sejam um; assim como tu, 6 Pai, és em mim, e
eu em ti, que também eles sejam um em nos ... E eu lhes dei a
gléria que a mim me deste, para que sejam um, como nés somos
um” (vv. 21,22). Isso é totalmente espiritual. Nosso Senhor esta
falando da relacao entre 0 Paice o Filho e os que estao em Cristo,
Os quais est4o no Pai e no Filho, e Ele ja nos disse certas coisas
sobre essas pessoas. Diz Ele: “Porque eu lhes dei as palavras que
tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram
que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (v.8). Por isso as
palavras de nosso Senhor acerca da unidade sao aplicaveis
unicamente as pessoas que créem nessa doutrina particular; e se
alguém me diz que é cristao, porém diz que Jesus era unicamente
homem, entao eu nao tenho nenhuma uniao com ele. Nao
pertenco ao mesmo grupo dele. Pode chamar-se de cristaéo, mas
se n&o creu nem aceitou isso, nao existe nenhuma base para a
unidade. A unidade é de carater espiritual.
Também em Efésios 4:3 Paulo fala acerca de “a unidade do
Espirito no vinculo da paz”. Aquele grande capitulo 12 de 1
Corintios apresenta a mesma questao. Para a analogia do corpo
ser absolutamente correta, deve haver uma unidade essencial,
organica e espiritual. As partes néo podem funcionar em
harmonia se nao se pertencerem reciprocamente, se nfo tiverem
em si a mesma vida, se 0 mesmo sangue nAo fluir através delas.
Ainda em Efésios, Paulo diz: “Porque por ele ambos temos acesso
ao Paiem um mesmo Espirito” (2:18). Portanto, o primeiro ponto
que deve receber énfase é 0 Espirito. A unidade é espiritual. Nao
€ uma mera unido biolégica de uma porgao de organismos nem
um mero consentimento formal. Tampouco é uma liga de pessoas
que divergem, mas que se uniram em favor de algum propésito
comum. Isso nao é 0 que encontramos nas Escrituras. Esta
unidade é algo mistico, algo espiritual; é vital; é uma comunidade
cheia de vida.
O segundo principio, porém, é igualmente claro nas
18Escrituras, a saber: que essa unidade deve basear-se na doutrina;
deve ser doutrinal. Ja lhes mostrei isso 4 luz de Joao, capitulo 17.
Diz nosso Senhor: “Agora sabem que tudo quanto me deste
provém de ti; porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e
eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti,
e creram que tu me enviaste” (Joao 17:7,8). Ora, as “palavras” as
quais nosso Senhor Se referiu significam as palavras sobre ser
Ele o unigénito Filho de Deus. Sao palavras acerca da encarnagao,
acerca da Palavra que Se fez carne. Sao palavras nas quais Ele
alega: “Antes que Abraao existisse, eu sou” (Joao 8:58). Sao
palavras que ensinam Sua miraculosa vinda ao mundo, Seu
nascimento virginal. Referem-se aos Seus milagres, porque Ele
mesmo faz referéncia a Seus milagres (Joao 14:11), ao sobre-
natural, ao propésito de Sua morte — dando Sua vida em resgate
por muitos (Mat. 20:28) — e as palavras que Ele falou acerca da
Pessoa do Espirito Santo, e assim por diante. E no entanto exige-
-se que entremos em alguma grande uniao com pessoas que negam
Sua deidade singular, as quais nao créem que Ele é 0 unigénito
Filho de Deus, nao créem no Seu nascimento virginal e nao
créem que Ele tenha alguma vez operado milagre - dizem que
milagres séo impossiveis e que nao passam de folclore. Tais
pessoas néo créem na expiagao substitutiva nem na Pessoa do
Espirito Santo. Destacam bem esta afirmagao: “as trés Pessoas
sao uma 86”, e ignoram todo este rico ensino doutrinal
precedente. Falar de unidade com tais pessoas nada mais é que
uma negacao de Jodo, capitulo 17.
Joao, capitulo 17, porém, nao é o tinico exemplo desta
verdade de que a unidade deve ser baseada na doutrina. Em Atos
2:42 somos informados que imediatamente apés o dia de
Pentecoste, “perseveravam nia doutrina dos apéstolos e na
comunhiao, no partir do pao ¢ nas oragoes”. As Escrituras s0
verbalmente inspiradas. As pahivras tem valor; o lugar ¢ a posigéo
das palavras num versiculo sao de tremenda importéncia. Nao
nos € dito que os primeiros crentes perseveravam firmemente
na comunhao ¢ na doutrina dos apostolos. Nao! Perseveravam
na doutrina c na comunhao dos apéstolos, no partir do pao e nas
19oragées. Noutros termos, antes que possa haver comunhao é
preciso haver aceitacao geral da doutrina. A comunhao tem por
base a mesma fé, a mesma verdade, o mesmo discernimento. Se
vocé pretende uma coisa ao falar de Cristo, e outra pessoa
pretende outra coisa, seria possivel vocés terem comunhio real?
Como seria possivel vocés irem a Deus através da mesma Pessoa,
se uma pessoa cré que Ela é simplesmente homem, ¢ a outra diz:
“Nao, nao, essa Pessoa é a substancia eterna que Se fez carne”?
E preciso que haja a unidade de crenga, do contrario vocé se
sentira pesaroso acerca da outra pessoa e cheio de dtivida quanto
ao que ela pretende com seus termos. Atos 2:42 tem a doutrina
dos apéstolos, em seguida a comunhdo; hoje, porém, a comunhao
€ posta em primeiro lugar. Diz-se: “Cheguemos todos a um
acordo. Entéo podemos decidir sobre questées de fé”. Nés,
porém, nao podemos ter comunhao a parte desta unidade de
doutrina.
Ha ainda uma declaragdo muito forte na Segunda Epistola
de Joao: “Se alguém vem ter convosco, e nao traz este ensino,
n4o o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem
o satida participa de suas mas obras” (2 Joao 10,11). Isso procede
de Joao, 0 apéstolo do amor. A importancia que ele atribui 4
doutrina ea verdade € tao grande que na verdade ele esta dizendo:
“Vocés nao devem receber um homem em sua casa, porque, se 0
fizerem, estaréo estimulando-o. Se lhe derem comida e 0
despedirem em sua viagem, estarao estimulando sua falsa
doutrina. Nao facam isso”. E se vocés lerem a Primeira Epistola
de Joao, entéo descobrirao que toda a sua preocupacao gira
em torno da mesma coisa. Havia determinadas pessoas, diz
ele, esses anticristos e seus seguidores, que “sairam de nosso
meio”. Estavam entre nés, mas se foram. Evidentemente nao
eram dos nossos (1 Joao 2:19). Lembrem-se que essa é uma
questao de doutrina, e que doutrina é essencial e vital 4 genuina
comunhao.
Portanto, quando estivermos discutindo a questao da unidade
da ‘Igreja, é preciso que coloquemos nas primeiras posigdes 0
carater espiritual e doutrinal da unidade. Nunca é coisa dificil
20reunir um grupo de pessoas que nao créem em nada em par-
ticular. Isso, porém, nao é unidade. Unidade € algo positivo. Nao
és6 0 caso de pessoas se reunirem, visto que ninguém se preocupa
muito com o que € dito ou crido. Unidade é uma vida, é um
poder, é um entusiasmo. E 0 povo unido que se junta pelo que
tem em comum. Isso é supremamente verdadeiro na Igreja de
Deus.
Se vocés retrocederem ao longo da histéria da Igreja,
descobrirao que ela amitide tem sido mais valiosa e mais usada
por Deus quando tem havido apenas um punhado de pessoas
que concordavam em espirito e em doutrina. Deus as tomou e
as usou e fez algo poderoso através delas. Quando, porém, havia
apenas uma Igreja em toda a Europa ocidental, que rumo ela
tomou? A Era das Trevas. E no entanto, parece-me que essa
grande ligao da historia esta sendo inteiramente esquecida e
ignorada neste tempo presente. Digo essas coisas, nao porque
me sinto animado pelo espirito de controvérsia, mas porque sinto
zelo pela verdade como a encontro nas Escrituras, e considero
algo tragico notar como as Escrituras estao sendo deturpadas e
pervertidas no interesse de uma unidade que nao é unidade
nenhuma.
Finalmente, qual € a relacao da Igreja com 0 Estado? Aqui,
uma vez mais, esta um assunto extremamente controvertido. A
idéia catélico-romana sempre foi que a Igreja € o Estado e
controla tudo no Estado e, como lembrei-lhes no inicio, essa
igreja sempre fez isso. No extremo oposto esta 0 assim chamado
ponto de vista “erastiano”, uma idéia inicialmente proposta por
um homem chamado Erasto, o qual, lamento dizer, foi médico.
Sinto o dever, em alguma ocasiao, de apresentar-lhes a hist6ria
das desditosas intervengées de médicos na histéria doutrinal da
Igreja! Erasto, infelizmente, foi o homem que deu origem a
perniciosa doutrina de que a Igreja é um ramo do Estado. Ora,
esse €, naturalmente, o ponto de vista na Inglaterra com respeilo
a Igreja Anglicana.
A Igreja da Inglaterra é erastiana, e a maioria das Igrejus
Luteranas defende a mesma posicdo. A Igreja Luterana wa
21Alemanha era erastiana, e creio que um bom argumento pode
ser estabelecido, dizendo que, provavelmente, jamais teriamos
ouvido a respeito de Hitler, nao fosse o erastianismo da Igreja
Luterana na Alemanha. Entretanto, esse é um ponto passivel de
debate.
O erastianismo, reitero, é a crenga de que a Igreja € uma
espécie de departamento do Estado, e que ela é administrada e
governada pelo Estado, de forma que a cabeca do Estado designa
bispos e outros dignitdrios e funciondrios da Igreja. Na Inglaterra,
em 1928, houve uma grande controvérsia na Casa dos Comuns
sobre a proposta de um novo Livro de Oragao. A Igreja decidiu
té-lo, porém o Parlamento tinha poder para indeferi-lo. Talvez
vocés digam que foi algo muito bom que o Parlamento possuisse
tal autoridade! De um ponto de vista, sim, mas olhando por outro
prisma, n4o, pois isso constitui uma espada que pode cortar de
ambos os lados. Em 1928 deu certo, no entanto, 0 que dizer se 0
Parlamento de repente decidisse agir erroneamente? Nao nos
esquecamos de que ele ainda tem o poder de agir assim.
Eis, pois, os pontos de vista catélico-romano e erastiano da
Igreja e do Estado. Mas contra estes sem diivida devemos
concordar, se percorrermos cuidadosamente as Escrituras, que
ha um terceiro ponto de vista que pode set descrito como “os
dois Estados”. As pessoas que defendem este ponto de vista créem
que Deus é dono de tudo. Deus € 0 Senhor do universo, tanto
quanto o Senhor da Igreja. Deus ordenou o Estado. Diz Paulo:
“Porque nao ha autoridade que nao venha de Deus; e as que
existem foram ordenadas por Deus” (Rom. 13:1). Os magistrados
e outros tipos de governantes n§o foram instituidos pelo homem,
mas por Deus. Sim, porém ha este outro Estado, a Igreja, e os
dois existem lado a lado. Um nao controla 0 outro. Ambos sao
separados e ambos se acham sujeitos a Deus.
Esse, sugiro-lhes, é o quadro apresentado pelo Novo
Testamento. Nao existe qualquer indicacao de algo vindo de
algum lugar que se assemelhe a uma Igreja-Estado. Os primeiros
crentes eram independentes dos governos. Reuniam-se sob 0
senhorio e na presenca de Cristo. De fora estava 0 grande Estado
22ao qual pertenciam. Embora permanecessem cidaddos desse
Estado, haviam entrado numa esfera que, em certo sentido, nao
tinha absolutamente nada a ver com o Estado. E pelos séculos a
fora esse tem sido 0 ponto de vista reformado da relagdo entre o
Estado e a Igreja.
Precisamente da mesma forma, nao podemos encontrar nas
Escrituras tal coisa como Igreja “nacional”, sendo precisamente
0 inverso. Paulo escreve: “Onde nao ha grego nem judeu,
circuncisdéo nem incircuncisao, barbaro, cita, escravo ou livre,
mas Cristo é tudo em todos” (Col. 3:11). A Igreja é algo diferente,
éconstituida daqueles que nasceram de novo e tém vida espiritual,
os quais sdo, como ja vimos, membros do corpo mistico de Cristo
e se retinem em sua assembléia local — igreja — chame-a do que
vocés quiserem, com Cristo como cabeca. Diferengas de nacio-
nalidade, juntamente com distingées sociais e raciais, sio
irrelevantes e jamais devem ser mencionadas em conexéo com
a Igreja. Acrescentar tais qualificagdes é seguramente fazer-se
culpados de algo que nao é biblico. A Igreja é, nesse sentido,
una, € seu povo é o mesmo em todos os lugares.
Sabemos historicamente como as igrejas nacionais tém
surgido em varios paises. Se estivermos, porém, preocupados
com 0 conceito biblico, entao repito que eu, pessoalmente, nao
consigo encontrar nada correspondente a tal condigdo referida
em algum lugar nas paginas das Escrituras. Nao é argumento
valido dizer que a nacio de Israel era a Igreja do Velho Testa-
mento. Esse era 0 caso naquele tempo; agora, porém, disse Cristo
aos judeus: “Portanto eu vos digo que vos ser4 tirado 0 reino de
Deus, e ser dado a um povo que dé os seus frutos” (Mat. 21:43).
Portanto, o que fica? E a Igreja, como Pedro nos comprova no
capitulo 2 de sua Primeira Epistola, onde aplica a Igreja as palavras
que foram ditas a nagao de Israel. A Igreja é agora supra-nacional;
ela tem 0 seu povo em todas as nagées. Ela é constituida pelo
redimidos de Deus que vivem na terra em varias condigdes, mas
que sao também cidadaos daquele reino que nao é deste mundo.
232
AS MARCAS E
GOVERNO DA IGREJA
Nosso pr6éximo tema, ao continuarmos com a doutrina da
Igreja, é o que geralmente se chama as marcas da Igreja, ou as
caracteristicas da Igreja. Para qué a Igreja existe aqui? O que ela
faz quando demonstra que é a Igreja? Eis ai uma importante
pergunta, e varias respostas tém sido proferidas.
O ensino protestante comum é que hé trés marcas principais
da Igreja. A primeira é a pregacdo da Palavra. Essa € a tarefa
principal da Igreja Crista: ela foi criada e chamada 4 existéncia
para esse propésito. A pregacdo da Palavra é efetuada em dois
aspectos principais. A Palavra é pregada na Igreja para edificar e
estabelecer os santos, os crentes. Eles se reunem, como vimos,
para a comunhio. A Igreja é a comunhao daqueles que sao crentes
em Cristo e confessam Sua lideranca e Seu senhorio, e a Palavra
€ pregada a fim de que sejam fortalecidos na fé.
As Epistolas do Novo Testamento foram escritas para os
crentes com esse objetivo especifico em vista, e os apéstolos e
os profetas tinham o mesmo propésito em sua pregacao. Quando
homens e mulheres foram convertidos, isso era apenas 0 comego.
Nasciam como criancinhas em Cristo, ¢ careciam de instrugao;
careciam de ser advertidos contra o erro e protegidos contra a
heresia. Por isso a Igreja é essencial aos crentes.
O segundo objetivo da pregagao é sem diivida a evangeli-
zacio. E a tarefa especifica da Igreja Crista pregar aos que nao
sao crentes. Nosso Senhor, em Sua oracao sacerdotal em Joao,
capitulo 17, diz bem especificamente que, como o Pai O enviara
ao mundo, assim também Ele estava cnviando Seus seguidores
imediatos e os que creriam nElc através deles. Eram enviados
ao mundo como Ele fora. Ele veio trazendo a mensagem do reino,
24e nds somos enviados portando a mesma mensagem. Faz parte
da obra da Igreja pregar 0 evangelho aos que sao de fora a fim de
que sejam convencidos e convictos do seu pecado, e para que
sejam guiados a uma fé viva e vital em nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo. Essa, pois, a primeira marca da Igreja—a pregagao
da Palavra.
A segunda marca e caracteristica da Igreja ¢ a genuina
administracao das ordenang¢as. Nao me deterei aqui agora porque
pretendo tratar da doutrina das ordenangas em seu proprio lugar.
Devo, porém, mencionar o assunto agora, visto ser ele uma das
marcas da Igreja. A Igreja é um lugar onde as ordenangas so
correta e genuinamente administradas em conexdéo com a
pregacao da Palavra.
A terceira marca da Igreja, aquela a que anseio mais enfa-
tizar, uma vez que é tao lamentavelmente negligenciada, é 0
exercicio da disciplina. Ora, se tivéssemos perguntado no inicio:
“Quais s4o as trés marcas essenciais da Igreja?”, fico pensando
quantos teriam mencionado o exercicio da disciplina? Nao ha a
menor dtvida de que esta doutrina é gravemente negligenciada.
Alias, se me fosse pedido que explicasse por que as coisas sao
como sao na Igreja; se me fosse pedido que explicasse por que a
estatistica revela os ntimeros decrescentes, a falta de poder e a
falta de influéncia sobre homens e mulheres; se me fosse pedido
que explicasse a razao de tantas igrejas parecerem incapazes de
sustentar a causa sem recorrerem a jogos, dangas e coisas
semelhantes; se me fosse pedido que explicasse por que a Igreja
se acha em condicao tao lamentavel, minha resposta teria de ser
que a causa principal é a falha de exercer a disciplina.
Quando foi que vocés ouviram pela ultima vez uma
referéncia feita de um pulpito cristao sobre o tema da disciplina?
Quantas vezes vocés tém ouvido sermées ou discursos sobre 0
assunto? O termo ja foi quase riscado completamente da
existéncia, e o que ele significa e representa jd caiu no desuso.
E, infelizmente, nao é sé a disciplina que é negligenciada, mas
hA um grande ntiimero de pessoas que até mesmo tentariam
justificar a negligéncia, e € por causa disso que quero tratar
25detalhadamente do assunto.
Ora, é com base biblica que sugiro que a disciplina deve ser
exercida. Tomemos a passagem de Mateus, capitulo 18,
comegando com o versiculo 15: “Ora, se teu irm4o pecar, vai, e
repreende-o entre ti e ele s6; se te ouvir, terés ganho teu irmao;
mas se nAo te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela
boca de duas ou trés testemunhas toda palavra seja confirmada.
Se recusar ouvi-los, dize-o a igreja; e, se também recusar ouvir a
igreja, considera-o gentio e publicano” (vv. 15-17). Essas sao
palavras de nosso préprio Senhor.
Semelhantemente, em Romanos 16:17 lemos: “Rogo-vos,
irm4os, que noteis os que promovem dissensdes e escandalos
contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles”. A
disciplina € 0 tema de todo o capitulo 5 de 1 Corintios, que
termina com estas palavras: “Tirai esse iniquo do meio de vos”.
Nada pode ser mais explicito que isso. Vemo-la novamente em 2
Corintios, capitulo 2, especialmente os versiculos 5 a 10, onde
Paulo fala sobre receber de volta uma pessoa que havia sido
disciplinada; e também em 2 Tessalonicenses, capitulo 3, onde
ele da instrugdes quanto ao que se deve fazer com membros de
igreja que vivem de maneira desordenada. Entao em Tito 3:10
ha esta ordem explicita: “Ao homem faccioso, depois da primeira
e segunda admoestacao, evita-o”. Como vimos na prelecao
anterior, este ensino também se encontra em 2 Joao, versiculo
10. E € natural que nas varias cartas as igrejas individuais no
livro do Apocalipse haja exortacgdes sobre o exercicio da
disciplina.
Apesar disso, porém, ha os que amitde tentam justificar a
auséncia ou a falta de disciplina na igreja local; e, estranhamente,
muitos agem assim com base na parabola do joio em Mateus,
capitulo 13. “Vocé nao deve disciplinar os cristaos”, eles dizem.
“Se tentar exercer a disciplina, e puser as pessoas para fora da
igreja, vocé estar4 violando as instrucdes de nosso proprio
Senhor, pois quando os servos disseram: “Queres, pois, que
vamos arranca-lo?”, o Mestre disse: “N&o, para que, ao colher o
joio, nado arranqueis com ele também o trigo. Deixai crescer
26ambos juntos até a ceifa.” Além do mais, exatamente pelas
mesmas razoes, alguns contestam qualquer separagéo do povo
cristao de uma igreja que possa ser considerada apéstata.
Essa, porém, é uma grave e ma interpretacdo das Escrituras,
uma vez que a parabola do joio obviamente nAo se refere 4 Igreja,
e sim, ao reino. Todas as parabolas de Mateus, capitulo 13 sao
pardabolas do reino, e é bom que vocés se lembrem que na prelecaio
anterior enfatizei que a Igreja e 0 reino nao sao idénticos. A
Igreja é uma expressao do reino; 0 reino, porém, é maior que a
Igreja. E, por certo, nosso préprio Senhor diz explicitamente,
em Sua interpretagao particular desta parabola, que o campo no
qual 0 trigo € 0 joio sao semeados nao é a Igreja, e, sim, 0 mundo
(Mat. 13:38). A boa semente sao os filhos do reino, mas 0 joio
sao os filhos do maligno. Portanto, a parabola do joio nado tem
relagao nenhuma com a questao da disciplina no seio da igreja
local. Ela constitui um quadro do mundo inteiro que, uma vez
que o mesmo pertence a Deus, pode, nesse sentido geral, ser
considerado como sendo Seu reino. No bojo do mundo, porém,
ha dois grupos — os que sao cristaos, os quais pertencem ao reino
eterno, e os que pertencem ao diabo.
Aplicar a parabola do joio a Igreja é, com toda certeza, cair
no mesmo erro dos catélicos romanos; e é um erro no qual a
maioria das igrcjas que seguem essa igreja tem também se
inclinado a cair. Kis por que, em certo sentido, nao ha disciplina
na igreja catolica romana. Raz4o por que se torna possivel que
pessoas sejam consideradas cristas perfeitamente boas, mesmo
quando suas vidas sao dissolutas. Nao sao disciplinados; nao sao
postos para fora da igreja. E, de fato, a mesma coisa é verdade
com respeito a Igreja Anglicana. A Igreja Anglicana, também
por causa da viséo que tem de si mesma, nao cré que deva
disciplinar 0 membro individual. A imagem da Igreja, porém,
que apresentamos na prelecao anterior, exige que haja disciplina.
Além do mais, como ja vimos, a pratica da disciplina é algo acerca
do qual somos exortados reiterada e veementemente nas proprias
Hscrituras.
Ora, a di
lina deve ser exercida por duas formas princi-
27pais. Antes de tudo, deve-se exercé-la em relacéo 4 doutrina,
Lemos: “O homem faccioso, depois da primeira e segunda
admoestagio, evita-o” (Tito 3:10). O apdstolo Joao diz que, se
um homem nfo trouxer a verdadeira doutrina, ele nao deve ser
de forma alguma recebido, nem mesmo em casa, muito menos
na igreja. Deixem-me tornar isso bem claro. Isso nao significa
que os cristéos nunca devam admitir um incrédulo em sua casa.
Por certo que nao significa nada disso! O que significa é que, se
um homem que alega nao sé ser cristéo, mas também mestre,
est4 ensinando erro, com certeza vocés nao devem recebé-lo em
suas casas. E claro, porém, que vocés recebem 0 incrédulo em
suas casas para que possam falar-Ihe das verdades cristas. Paulo
expressa isso perfeitamente em 1 Corintios 5:11, onde, por assim
dizer, ele diz: “Em todas estas questées de disciplina, nao estou
me referindo aqueles que estao 14 fora no mundo, pois se vocés
vao separar-se de todos desse tipo, significaria que teriam de
sair totalmente do mundo! Nao. Nao estou dizendo isso, porém
eu digo que se um homem que é um irmdo for culpado dessas
coisas, entaéo nado devem conviver com ele”.
Portanto o Novo Testamento nos diz que realmente devemos
estar preocupados pela doutrina na Igreja, e que devemos fazer
algo acerca da falsa doutrina. E creio que toda a situagéo com
que nos defrontamos hoje é prova abundante das terriveis
conseqiiéncias de nao exercer a disciplina com respeito a
doutrina. Nao hesito em asseverar que nossos avés e bisavés do
século dezenove nao exerceram a disciplina que deveriam ter
exercido quando a fatal Alta Critica comegou a chegar aqui,
vinda da Alemanha. Foi em decorréncia de nao terem
disciplinado as pessoas que creram e ensinaram tais coisas que
estamos enfrentando a presente situacao. Com equivocada
tolerancia e, freqiientemente, com uma falsa compreenséo do
ensino da parabola do joio, permitiram entrar esse ensino
erréneo, esperando que as coisas logo melhorassem; e falaram
em manter um testemunho positivo e nao negativo! Nesta atual
geracdo, estamos acumulando as conseqiiéncias dessa tragica
falacia por parte dos lideres da Igreja.
28Devemos, pois, exercer disciplina no tocante 4 doutrina, e
devemos igualmente exercé-la no tocante a vida e a maneira de
viver porque, se os membros da Igreja Crista forem negadores
da doutrina dela em suas vidas e em sua pratica, quem ir4 crer
nela? Sera a negacao das palavras de nosso Senhor: “Para que
vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que esta
nos céus” (Mat. 5:16). Inconsisténcia ou vida pecaminosa por
parte de um crente faz incalculdvel dano 4 causa de Cristo. Nao
importa quao ortodoxas sejam tais pessoas, se ndo estéo
controlando e disciplinando seu temperamento, seus desejos, suas
paix6es, suas luxtirias, estao, em palavra e ac&o, negando a fé
que pregam, e se tornam um obstaculo e um escandalo aos que
sao de fora.
O ensino biblico consiste em que, se um irmao desobediente
nao se corrige nem atenta para a correcdo, entao precisa
realmente ser afastado da igreja. E preciso “entrega-lo a satands”,
frase usada por Paulo, “para a destruigdo da carne, a fim de que
0 espirito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Cor. 5:15). Nao
sei exatamente o que isso significa, mas provavelmente signi-
fique algo mais ou menos assim: vocés nao sé o eliminam do rol
de membros, mas param de orar por ele. Vocés o cedem a satands,
por assim dizer, e satands o fara sofrer, provavelmente em seu
corpo. Ele se tornara ignobil e miseravel, o que podera despertar
seus sentidos e salvar sua alma.
Este é um assunto importante. Leiam a hist6ria da Igreja
em qualquer época de reavivamento e despertamento — nao
importa quando — e descobrirdo que, invariavelmente, uma
notavel caracteristica de tal época é o exercicio da disciplina.
Leiam, por exemplo, sobre Jodo Wesley. Se j4 houve um
disciplinador na Igreja, foi esse homem! Em seu Journals, ele
registra que em determinada ocasiao saiu para visitar uma igreja
— certas reunides em Dublin — e quando chegou 14, encontrou
cerca de seiscentas pessoas. Entéo comegou a examinar os
membros da igreja, um a um; e quando terminou, alguns dias
depois, a igreja tinha trezentos membros! Alguém poderia
perguntar: se Joao Wesley voltasse hoje, o que ele faria?
29Isso, porém, nao aconteceu sé com Wesley. Durante os
periodos de avivamento e despertamento, os lideres de todos os
ramos da Igreja se preocupavam sempre com a pureza —
necessariamente. Voltavam-se para o Novo Testamento e
simplesmente tentavam viver uma vida de acordo com 0 ensino
neotestamentario; e o Novo Testamento nos diz que 0 vaso, 0
instrumento, o canal que Deus usa deve seguramente ser puro.
Portanto, 0 ensino nao é apenas de uma igreja “reunida”, mas
também de uma igreja “pura”. Como seria possivel uma igreja
misturada com 0 mundo em varios aspectos ser um canal do
Espirito Santo? E algo quase inconcebivel! Por isso, a terceira
marca da Igreja € a disciplina.
Quando chegamos ao governo da Igreja, descobrimos uma
vez mais que ele constitui uma quest4o muitissimo discutivel e
controvertida. E interessante observar que o Novo Testamento
nao é muito especifico acerca do governo da Igreja. Ele nao nos
ministra uma instrucao detalhada, como faz em relag&o a muitas
outras doutrinas, e indubitavelmente essa foi a raz4o por que 0
Novo Testamento foi escrito enquanto a maioria dos apéstolos
ainda vivia, e assim eles e os profetas puderam ensinar e
governar a Igreja. Ao lermos aquelas partes do Novo Testamento
que foram as tiltimas a serem escritas, como as Epistolas Pastorais,
notamos um aumento definido no ensino com referéncia a
ordem e 0 governo eclesidsticos, o que é, sem divida,
precisamente 0 que esperariamos. Ainda no livro de Atos, porém,
encontramos os apéstolos ordenando lideres e dando instrugdes
sobre como a vida das igrejas seria ordenada. Portanto, embora
tenhamos bem pouco ensino especifico, temos uma clara
indicac&éo dessa ordem em conexao com a qual o governo era
crescentemente necessario.
O que nos causa confusaéo, em nossa época e geracd4o, € 0
fato de que, subseqiiente ao perfodo dos apéstolos e profetas,
bem como subseqiiente ao ensino das Escrituras, a Igreja
propriamente dita comegou a fazer coisas e acrescentar coisas,
as quais nem sempre podem ser encontradas nas Escrituras, com
isso criando uma tradigao que as vezes contradizia as Escrituras.
30Quais, pois, sao as idéias principais que, no transcurso dos
séculos, tém sido correntes na propria Igreja com respeito a
questéo do governo eclesidstico? Bem, antes de tudo sempre
houve aqueles que nao créem absolutamente em qualquer
governo eclesiastico, e ainda existem representantes desse ponto
de vista na Igreja atualmente. Dizem que nado ha necessidade
alguma de um governo desse tipo, porque todos os membros,
quando se retinem, sdo obedientes ao Espirito. Isso geralmente
surgiu como uma reacdo contra o que podemos denominar de
eclesiasticismo, ou, se vocés o preferirem, é uma reagéo contra
aquela terrivel idéia que se acha sumariada na palavra
“cristandade”.
Ora, admitamos com bastante franqueza que hé muito a ser
dito em favor desse ponto de vista. Infelizmente, quando o
Império Romano tornou-se cristao, a Igreja Crista decidiu
chamar-se “cristandade”, e tomou por empréstimo muitas das
idéias do Império Romano, inclusive seus sistemas de governo.
E quanto a mim particularmente, permitam-me admiti-lo bem
simples e claramente, nao consigo ver uma igreja cat6lica romana
moderna nas Escrituras. Certa vez formulei esta questéo a um
sacerdote catélico-romano com quem discutia estas coisas. Disse-
-lhe: “Vocé pode dizer-me, bem honestamente, se vé sua igreja,
como existe hoje, no Novo Testamento?” E ele admitiu que nao
podia. Mas, naturalmente, acrescentou ele, como todos fazem:
“Ah, sim, mas a revelacdo tem tido continuidade desde entio”.
E para os catélicos romanos, a tradigao é igual as Escrituras.
Ora, podemos entender perfeitamente uma reacdo contra
todo eclesiasticismo, essa mescla de Igreja e Estado, bem como
a elevacao de oficios, hierarquias e a busca de poder. E muito
ficil de entender as pessoas reagindo tao violentamente contra
isso, quando dizem: “Nao creio absolutamente em qualquer
ordem; qualquer ordem é perigosa. Se vocés elevam um homem,
ele logo acrescentara ao que lhe deram, e por fim teréo uma
tremenda organizacao que esmagaré a vida do espirito”. Dizem
que a maquina sempre mata 0 espirito, que a organizagho apaga
o espirito. A Igreja tornou-se téo complexa, mesquinha ¢
31inflexivel, que ao Espirito Santo nao é dado qualquer oportu-
nidade de operar. O resultado, historicamente, é que toda vez
que ha um avivamento, quase que invariavelmente surge a
formagao de uma nova denominagao, porque a antiga corporacao
eclesidstica nao péde conter a nova. Esta era viva demais; tornou-
se um elemento perturbador, e as pessoas, presas as velhas
estruturas eclesidsticas, se viram fora.
Portanto, ha muito a ser dito em favor dessa recusa em
aceitar governo eclesidstico, e no entanto pergunto se este ponto
de vista analisou bem tudo que é ensinado nas Escrituras, se os
oficios definidos estéo indicados ali, e as funcées atribuidas a
tais oficios.
Provavelmente o argumento final seja que, uma coisa é dizer
que nao devemos crer em lideranca alguma, e outra coisa muito
diferente é termos uma igreja em que, na pratica, nao haja lideres.
Lideranga é inevitavel, e se nao pusermos isso no papel, alguém
logo cuidara que nela existam lideres autodesignados. Portanto,
se € para termos na igreja lideranga e ordem, entéo que as
fundamentemos no ensino das Escrituras.
A teoria que vem a seguir com respeito ao governo da Igreja
€ formulada pelos que defendem 0 ponto de vista erastiano, 0
qual, como ja vimos, afirma que a Igreja é uma funcao do Estado,
e€ que, portanto, o Estado governa a Igreja. O Estado designa os
oficiais da Igreja, principalmente os altos dignitdrios, e estes,
por sua vez, designam os demais. Poder algum é atribuido ao
pregador local. Os membros comuns tém pouquissima
participagao. A disciplina, em Ultima andlise, é exercida pelo
Estado, e a Igreja nao tem nem mesmo poder para exercer
excomunhao. A idéia erastiana é, como ja vimos, 0 ponto de
vista da Igreja Luterana e da Igreja da Inglaterra.
~ O préximo ponto de vista, 0 qual tem alguma relagdo com 0
anterior, € 0 sistema episcopal: crenca no governo dos bispos.
Os proponentes deste conceito ensinam que Cristo pessoal-
mente delegou o cuidado da Igreja diretamente a determinados
homens, uma “ordem” ou “colégio de bispos”, que sao
descendentes dos apéstolos numa sucessdo espiritual direta. Esse
32€ 0 ensino que Cristo designou os apéstolos, e eles tinham que
perpetuar-se a si mesmos e sua ordem pela designagao de bispos,
e que o governo da Igreja devia ser confinado exclusivamente
aos bispos. Isso é ensinado pelas Igrejas Episcopais. Aqui também
os membros na realidade tém pouquissima participao na
ordenagao da vida da Igreja.
O que dizer sobre isso? Bem, tudo que posso dizer 4 guisa
de comentario é que o homem que Jancou mais luz sobre o tema
€ indubitavelmente o grande Bispo Lightfoot, que uma vez foi
bispo de Durham. O Bispo Lightfoot provou, para a satisfagao
de todos, que no Novo Testamento néo ha qualquer diferenca
entre 0 bispo e 0 anciao — que bispo, ancido e presbitero s40 termos
intercambiaveis. Por exemplo, 0 apdstolo Paulo, escrevendo a
igreja em Filipos, diz: “Paulo e Timéteo, servos de Cristo Jesus,
a todos os santos em Cristo Jesus que estéo em Filipos, com os
bispos e didconos” (Fil. 1:1). A palavra “bispos” é ai equivalente
a presbiteros e anciaos, e vocés podem observar que na igreja
em Filipos havia nao apenas um, mas havia diversos bispos. De
forma que, longe de haver sé um bispo sobre uma grande diocese,
um bispo responsdvel por um grande grupo de igrejas, no Novo
Testamento havia varios bispos numa s6 igreja. Portanto nao
eram bispos segundo nossa compreensao da palavra. Eram
“anciaos” ou “presbiteros” — homens mais idosos a quem se
delegava essa posicao e funcao.
Também parece-me que — e sinto-me feliz em dizer que
concordo inteiramente com os cavalheiros a quem se
denominam “eruditos” - nao ha no Novo Testamento qualquer
autorizacao para o ponto de vista episcopal do governo da Igreja
Crista. Na verdade esta foi uma idéia que surgiu varios séculos
depois do primeiro século, iniciada por um homem chamado
Cipriano. E com isso, naturalmente, podemos facilmente
perceber como ela veio 4 existéncia. Surgiram problemas na
Igreja, acumularam-se as dificuldades e sentiu-se a necessidade
de algum género de disciplina, algum género de corporacao para
decidir as situagdes. E uma vez tendo tomado esse rumo, estamos
no caminho do episcopado. E amitide se tem afirmado entre
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