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Dr Martyn | [ovG-Jor les Gn ses DOUTRINE RIBLIGKC Pa oe | ty) Ultimo volume de uma série de trés pelo famoso pregador GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS A Igreja e as Ultimas Coisas Martyn Lloyd-Jones — magistral! Este € 0 tltimo volume de uma nova e impor- tante série de grandes obras escritas por Martyn Lloyd- -Jones, o destacado pregador, no qual ele explora a Biblia a fim de encontrar as esséncias da fé crista. Nossa atencao é agora voltada para o ponto de vista biblico da Igreja e das tiltimas coisas. O autor comega com uma detalhada investigacdo da Igreja e das ordenangas, especialmente com uma compreensao correta do batismo e da Ceia do Senhor. Os capitulos subsequéntes focalizam a segunda vinda de Cristo, 0 juizo final ¢ a ressurreigao do corpo. Além de uma andlise detalhada do ensino biblico contido no capitulo 9 de Daniel e do Apocalipse, Dr. Lloyd-Jones também examina os diferentes pontos de vista susten- tados sobre esse assunto e considera a maneira de Deus cumprir Seu plano para os judeus. Dr. Lloyd-Jones foi um eficiente médico cirugiao que em 1927 deixou a pratica da medicina e tornou-se ministro duma igreja no sul de Gales. Posteriormente, por trinta anos, até 4 sua aposentadoria em 1968, ele ministrou na Capela de Westminster, em Londres. PES PUBLICACOES EVANGELICAS SELECIONADAS Rua 24 de Maio, 116 — 3° andar — salas 14-17 01041-000 - Sao Paulo —- SP GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS Volume 3 A Igreja e as Ultimas Coisas D. Martyn Lloyd-Jones PES PUBLICACOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 — Sao Paulo — SP Titulo original The Church an Editora: Hodder and Stoughton Ltd., Primeira edicao em inglés: 1998 Copyright: Lady E. Catherwood Ann Desmond z 5S PranRinroilEs O direito de Dr. MartymLloyd-Jones de ser identificado como o obra tem sido assevetado de acordo com 0 ato de Copyright, Patents 1988 ° Traducdo do inglé: Valter Graciano Mat Revisao: Antonio Poccinelli Capa: Sergio Luiz Menga Primeira edic4o em portugués: 1999 Impressao: Imprensa da Fé INDICE PrefACiO veeceescssesssesstesssecssessneessesstenuesseccssessneesnsessecsssesnsesneete 7 WONDMNARWNE Ree WN OS 14 1S 16 17 18 19 20 21 22 23 A I greja eesessesesessesssesesssessesiecsesseesesneenesseenecseseeanenses As Marcas e 0 Governo da Igreja As Ordenangas — Sinais e Selos O Batismo A Ceia do Senhor .... Morte e Imortalidade Imortalidade Condicional ou Segunda Chance A Segunda Vinda — Introducao Geral . O Tempo de Sua Vinda — os Sinais O Plano de Deus para os Judeus .. O Anticristo A Interpretagao de Daniel 9:24-27 Conclusao do Capitulo 9 de Daniel e o Arrebatamento Secreto O Livro do Apocalipse ~ Introdugao Os Pontos de Vista Preterista ¢ Futurista O Ponto de Vista Historicista Espiritual . O Sofrimento e a Seguranca dos Redimidos . As Trombetas .. O Juizo Final . O Ponto de Vista Premi Pés-milenismo ¢ o Ponto de Vista A Ressurreigao do Corpo O Destino Definitivo PREFACIO Nas noites de sexta-feira, apés a guerra, o Dr. Lloyd-Jones passou a manter reunides de debates numa das salas da Capela de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam sobre quest6es praticas da vida cristaé, e as reunides eram freqiientadas por um grande ntimero de pessoas. As questdes que surgiram demandavam um s6lido conhecimento de todo tipo de ensino biblico. As vezes surgiam também problemas doutri- narios, com os quais “o Doutor” tinha que tratar, geralmente em sua conclusao, no encerramento do debate. Em parte era resultado disso, e em parte porque o numero foi se tornando grande demais para a sala comportar, ¢ talvez também porque as pessoas que lhe pediam informacoes sobre as doutrinas biblicas eram tantas, que ele comecou a sentir a necessidade de mudar a “reuniao noturna de sexta-feira” para a propria Capela, e ali ministrar uma série de prelegdes sobre esses grandes temas. Ele fez isso de 1952 a 1955, e entao deu inicio 4 sua magistral série sobre a Epistola aos Romanos, a qual deu seguimento até sua aposentadoria em 1968. As prelegoes doutrindrias eram muitis- simo apreciadas pelas grandes congregac6es que as ouviam; ¢, ao longo dos anos, muitos tém dado testemunho da maneira como, por meio delas, sua vida crista se fortaleceu. Mais tarde, o proprio Doutor se sentiu mais satisfeito em pregar sobre doutrinas como parte da exposic&o regular, como certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina em particular, poderao encontra-la nos manuais de doutrina”. Mas a grande orga de seus estudos doutrinarios consiste em que eles nao sao dridos compéndios de prelegoes. FE) tudo um pregador, c isso se salict uas prelegdes. Ele era também pastor, ¢ desejava que homens e mulheres compartilhassem de seu senso de admiragao ¢ de sua gratidao a Deus pelos fatos poderosos do evangelho, Dai sua linguagem clara > era acima de wom todas e destituida daquela complexa fraseologia académica. A semelhanea de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de palavras “compreensiveis ao povo”. Outro desejo seu era que o ensino nao ficasse s6 na cabega, por isso ha em cada prelegdo uma aplicagao para que se assegurasse que 0 corac&o e a vontade também fossem tocados. A gléria de Deus era sua principal motivagao na ministracdo destas prelecdes. ~ Os que conhecem a pregacao e os livros do Dr. Lloyd-Jones, ao lerem as prelegées, haverao de se lembrar que seus pontos de vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo dos anos, e que suas énfases provavelmente nem sempre eram as mesmas. Todavia esta constitui parte da riqueza de seu ministério, como o foi do ministério de muitos dos grandes pregadores do passado. Nao obstante, no tocante as verdades essenciais e fundamentais da Palavra de Deus, ndo ha qualquer mudanca em sua proclamagao, e nenhum som incerto tem-se emitido. Temos encontrado certa dificuldade na preparagdo destas prelecées para a publicagdo. Elas foram haé muito tempo pronunciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas se perderam. Além disso, s6 uma pequena parte das prelecdes foi taquigrafada, e assim, num ou dois casos, nao temos nem fita nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou suas anotaces pessoais de todas as prelegdes, e assim as temos usado, embora, naturalmente, significa que esses capitulos nao se acham tao completos quanto os demais. As fitas do Doutor sao distribuidas pelo Martyn Lloyd-Jones Recording Trust, e de todas as suas fitas 0 maior nimero de pedidos consiste nestas prelegdes doutrinarias. A caréncia de conhecimento das verdades vitais da fé crista é maior agora do que antes — com certeza ainda maior agora do que na década de 1950! Portanto nossa oracao é para que Deus use e abencoe estas prelecdes novamente, para o nosso fortalecimento e para a gléria dEle. Os Editores 1 A IGREJA Chegamos agora a sexagésima prelecao em nosso estudo das doutrinas biblicas, portanto é provavel que este seja um bom lugar para lembrar-lhes dos varios passos e estagios pelos quais ja passamos. Tendo comegado com nossa consideragaéo do homem neste mundo, e tendo notado a futilidade de confiarmos somente em nosso préprio entendimento, chegamos a perceber, como as pessoas tém sempre percebido, a necessidade de uma revelacao. Deus nos deu essa revelacdo: é uma revelacaéo de Si proprio em Sua Palavra. Entéo, havendo considerado 0 que a Palavra nos diz sobre Deus, prosseguimos considerando o que ela nos diz sobre homens ¢ mulheres em suas necessidades, bem como a causa de suas necessidades — a qual introduziu a doutrina do pecado. Isso conduz a necessidade de salvacgaéo que consideramos na Pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, e em seguida na aplicacao de tudo isso a nés mediante a operagéo do Espirito Santo. E assim chegamos a uma nova seg4o: nova simplesmente no sentido em que reconhecemos certas divisdes 4 guisa de conveniéncia do pensamento; obviamente, porém, nova em nenhum outro sentido. Além disso, devemos observar nova- mente 0 maravilhoso modo no qual cada uma dessas doutrinas conduz 4 préxima, de uma forma totalmente inevitavel. A verdade é uma sé € 0 propésito de Deus é um todo, de tal maneira que, ao terminarmos de discutir uma doutrina estamos, necessariamente, nos introduzindo na proxima. Na prelecao anterior, estivemos analisando juntos 0 ensino da Biblia concernente aos dons espirituais. Consideramos como Deus concede 4 Igreja apdstolos e profetas, pastores e mestres, os quais possuem os dons necessdrios. E vimos que varios outros dons especiais sao concedidos ao povo cristo, tanto dons temporarios para os primeiros cristéos quanto outros dons que sao de cardter permanente e s40 concedidos a todos os cristaos em todos os tempos. Em todos esses casos, porém, observamos que os dons eram concedidos a Igreja e aos membros da Igreja. E assim chegamos, por meio de uma légica inevitavel e pela forca da propria verdade, a uma consideracao da doutrina biblica da natureza da Igreja. Cra, esta doutrina costuma ser totalmente omitida nos livros que tratam das doutrinas biblicas, embora seja dificil de se descobrir o porqué. Isso é muitissimo lamentével, pois se real- mente estamos interessados em discutir as doutrinas que aparecem na propria Biblia, entéo precisamos analisar a doutrina da Igreja. A maioria das Epistolas neotestamentarias foi escrita a uma igreja, e seu ensino se volta mais para a Igreja. Por isso nao basta considerar as doutrinas da Biblia que tratam mais de nossas necessidades ¢ experiéncias pessoais ¢ individuais. Grande parte do Novo Testamento nao se destinaria a verdades concernentes 4 Igreja a nao ser que isso fosse algo de vital importancia. O proprio carater das Escrituras por si mesmo nos compele a considerar esta doutrina. Outra razao, sem diivida, é a grande proeminéncia que esta doutrina ja teve na historia da propria Igreja. Tomemos, por exemplo, a histéria da Bretanha. Distingue-se proeminente- mente toda a questao da natureza da Igreja. Notamos isso na Reforma Protestante — uma daquelas grandes questées decisivas acerca das quais todo mundo conhece—e em tudo 0 que aconteceu no século dezessete, inclusive certos aspectos da Guerra Civil. Ora, vocés nao podem visualizar essas coisas, mesmo pelo prisma secular, sem perceber que a doutrina é muitissimo importante. Nossos pais a consideraram como algo de importancia tao vital que estavam preparados para enfrentar as maiores dificuldades e sofrer a perda de quase todas as coisas em decorréncia de sua preocupacao pela doutrina da natureza da Igreja. Para eles, ela nao era algo que pudesse ser considerado com indiferenga. Qualquer que fosse a persegui¢ao, ainda com 0 risco de suas vidas, muitos deles fundaram conventiculos e insistiam em reunir-se 10 neles. Portanto, se nao tivéssemos nenhuma outra razao para considerar esta doutrina, seriamos compelidos a estuda-la por respeito aos nomes e 4 grandeza de nossos antepassados distantes. As pessoas n4o sofreriam assim pela verdade e por uma causa se ela fosse uma questao indiferente. Eevidente que h4 ainda outra razao que nos levaa considerar esta questao, e é justamente a grande proeminéncia que esté sendo dada na atualidade 4 Igreja Crista em conexéo com o que é conhecido pelo nome de movimento ecuménico. Os noticidrios religiosos dedicam grande espaco a isso e esta sendo propagado pelos expoentes do ecumenismo quea funcao particular da Igreja no século vinte é chamar a atencdo para a natureza da Igreja. Portanto, se porventura quisermos entrar em discuss4o com tais pessoas e sermos capazes de nutrir um inteligente interesse por essas discussdes, cabe-nos conhecer algo acerca desta doutrina neotestamentaria. Além disso, porém, ha uma razo que, em certo sentido, é muito mais importante do que todas as outras juntas. Suspeito que ela constitui a deficiéncia do povo evangélico, particu- larmente durante os tltimos sessenta a setenta anos, de levar a sério 0 ensino biblico concernente a natureza da Igreja, o que explica a maioria dos problemas que estamos enfrentando na atualidade. Por uma razao ou outra, nossos pais e avés imediatos sentiam que era suficiente formar movimentos sem pensar em termos da Igreja, com 0 resultado de que 0 testemunho evangélico se diluiu entre as grandes denominagées e 0 povo cristao evangélico s6 se reune em movimentos em vez de reunir-se em igrejas. E assim, olhando por esse prisma, isso se constitui num tema de muita importancia. Se é verdade que nutrimos profundo interesse pela mensagem cvangélica ¢ sua vital importaéncia no mundo atual, entéo somos compelidos a considerar a doutrina da Igreja. Uma vez introduzidos no ensino biblico concernente 4 natureza da Igreja, permitam-me fazer minha costumeira observacdo introdutéria. Este é um tema em extremo contro- vertido — praticamente tem sido assim com todas as doutrinas. I Acaso nao tem? A hist6ria, porém, por si sé, assegura-nos que esta é, provavelmente, a mais controvertida de todas. E no entanto é pura covardia deixar de tratar um tema simplesmente por ser controvertido. Qualquer que tenha sido nossa educacao ou histéria; quaisquer que sejam nossos preconceitos, é preciso que tentemos avaliar, com a mente mais aberta possivel, o que as Escrituras tém a nos dizer. Que todos nos nos esforcemos em fazer isso, orando para que Deus nos livre dos preconceitos para os quais todos nds nos inclinamos. Aproximemo-nos, portanto, de algumas palavras prelimi- nares de definigao. A primeira pergunta que devemos encarar é esta: qual éa relacao da Igreja com o reino de Deus? Encontramos na Biblia ensino sobre o reino e ensino acerca da Igreja. Hé entre os cristos, com freqiiéncia, muita confusao acerca desses dois assuntos. Isso se deve grandemente ao fato de como a igreja catélica romana identifica os dois. No ensino catélico-romano, a Igreja é o reino de Deus, e os catélicos romanos sao absolutamente coerentes na maneira como resolvem isso, reivindicando o direito de governar e dominar toda a vida das pessoas em todos os seus aspectos. Vocés se lembram como, na Idade Média, a igreja romana costumava governar os reis, os senhores, os principes, as provincias e as autoridades com base na alegacao de que ela era 0 reino de Deus, de que ela era suprema. E tal idéia tende, em certa medida, a persistir. Por isso temos de ser claros sobre a relacao entre Igreja e reino. O que € 0 reino de Deus? Ele é melhor definido como o governo de Deus. O reino de Deus esta presente onde quer que Deus esteja reinando. Eis a razdo por que nosso Senhor podia dizer que, em virtude de Sua atividade e Suas obras, “o reino de Deus esta dentro de vés” (I.uc. 17:21). Disse ainda: “Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os deménios, logo é chegado a vos o reino de Deus” (Luc. 11:20). Portanto, se considerarmos 0 reino de Deus como 0 governo e 0 reinado de Deus, entao o reino esteve aqui quando nosso Senhor esteve aqui pessoalmente. Ele esta presente onde quer que o Senhor Jesus Cristo é reconhecido como Senhor. O reino vira, porém, com maior 12 plenitude quando tudo e todos tiverem reconhecido Seu senhorio. E assim podemos dizer que o reino ja veio, o reino esta entre nés € 0 reino ainda esta por vir. Qual, pois, é a relagéo da Igreja com o reino? Seguramente é esta: a Igreja € uma expressdo do reino, mas nao deve ser equiparada a ele. O reino de Deus é mais amplo e mais poderoso que a Igreja. Na Igreja, onde ela é verdadeiramente a Igreja, 0 senhorio de Cristo é reconhecido e confessado e Ele habita ali. Portanto, o reino esta ali nesse sentido. E assim a Igreja é uma parte do reino, mas apenas uma parte. O reino de Deus é muito mais amplo do que a Igreja. Deus governa em regides além da Igreja, em regides onde Ele nao é reconhecido, porquanto todas as coisas estao em Suas mios e a histéria esta em Suas m4os. Por isso a Igreja nao € co-extensiva com o Reino. Examinemos agora alguns dos termos que sao usados. A palavra grega que se traduz para “igreja” é 0 termo ekklesia, ¢ ekklesia significa “aqueles que sao chamados”, nao necessaria- mente chamados do mundo, mas chamados da sociedade para alguma fung4o ou propésito particular; sido “chamados conjuntamente”. Podemos traduzir ekklesia pela palavra “assembléia”. Se vocés lerem 0 relato em Atos, capitulo 19, sobre a extraordindria reunido que se deu na cidade de Efeso, reuniao que quase se transformou em motim, descobrirao que o secretario municipal da cidade a denominou de uma assembléia, uma ekklesia, pela qual ele quiz dizer que certo numero de pessoas se reuniram conjuntamente. Da mesma forma, em seu discurso em Atos, capitulo 7, Estévao refere-se a Moisés como estando “na igreja no deserto” (v.38). E assim os filhos de Israel eram uma igreja, um ajuntamento, uma assembléia do povo de Deus. Era a ekklesia, a igreja do Velho Testamento. Esse € 0 significado fundamental da palavra “igreja”. Ora, nossa palavra “igreja”, e todos os termos e nomes cognatos, inclui um significado ligeiramente diferente. Usamos a palavra para significar que pertencemos ao Senhor. Nossa palavra “igreja” vem da palavra grega kurios, que significa “senhor” — tem a mesma derivacao das palavras Imperador ¢ 13 César. E importante termos isso em mente, visto que devemos manter estes dois significados juntos: a Igreja consiste daqueles que pertencem ao Senhor, que se retinem conjuntamente. Avancemos, porém, mais um passo. Analisemos algumas afirmagGes que as Escrituras fazem sobre a Igreja, e que sao realmente importantes. Na Biblia, a palavra ekklesia, quando aplicada aos cristaos, geralmente se usa em referéncia a um local de reuniao. A distingdo que ora facgo é quanto a diferenca entre a Igreja considerada como uma idéia geral e a igreja considerada como idéia de localidade e particularidade. O termo que € quase invariavelmente usado nas Escrituras inclui este sentido de localidade. Por exemplo, em Romanos, capitulo 16, quando Paulo envia suas saudag6es a Aquila ¢ Priscila, ele faz uma referéncia a “a igreja que esta na casa deles” (v.5). Um grupo de cristaos se reunia na casa de Aquila e Priscila, e o apéstolo Paulo nao hesita em chamar de igreja aquele local de reuniao. Ele nao esta pensando em termos da idéia moderna ecuménica, segundo a qual a Igreja € 0 grande elemento. Em seguida, Paulo também enderega sua Epistola, por exemplo, “a igreja de Deus que esta em Corinto”. Ele escreve a Epistola aos Galatas “As igrejas da Galacia” (Gal. 1:12), nao “a Igreja da Galdcia”. Paulo nao esta pensando numa sé unidade dividida em ramos locais, mas nas igrejas, um grupo dessas unidades, na Galdcia. Esta € uma questao muitissimo significativa e importante. Ora, se vocés percorrerem as Escrituras, descobrirao ser esse o método apostélico comum de lidar com 0 tema. Temos, porém, que observar que ha dois ou trés exemplos em que a palavra “igreja” € usada em vez de “igrejas”, e um deles é bastante interessante. Ele se encontra em Atos 9:31. HA certa diferenca aqui entre a Authorised (King James) Version e a Revised Version. A Authorised Version tem a redagao: “Entao as igrejas tinham descanso por toda a Judéia, a Galiléia e a Samaria, e eram edificadas.” A Revised Version, porém, traz o singular, “igreja”, e esta é indubitavelmente a melhor tradugao. Sim, mas mesmo assim devemos lembrar-nos que a referéncia € quase com 4 toda certeza aos membros da igreja em Jerusalém que haviam sido espalhados por toda parte em decorréncia da perseguicao. Portanto é provavel que Lucas no estivesse se referindo a idéia de “a Igreja” como diferente de “as igrejas”, mas estivesse pensando numa sé igreja dispersa por varias regides e em paz. Entretanto, este nao € um ponto vital. Além disso, lemos em 1 Corintios 12:28: “E a uns pés Deus na igreja, primeiramente apéstolos, e em segundo lugar profetas”. Paulo nao diz que Deus os pés “nas igrejas”, e, sim, “na igreja”. HA ainda outra forma na qual se usa o termo “igreja”. Em certas passagens, como aquelas grandes passagens na Epistola aos Ef€ésios, Paulo esté obviamente pensando na Igreja como incluindo n4o s6 os que estao na terra, porém também os que estao no céu. No final do primeiro capitulo, ele diz: “E sujeitou todas as coisas debaixo dos seus pés, e para ser cabeca sobre todas as coisas 0 deu 4 igreja, que € 0 seu corpo, o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas” (Ef. 1:22,23). Semelhantemente, em outra parte da Epistola, ele diz: “Para que agora a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regides celestiais” (3:10). E Paulo escreve a mesma coisa também em Efésios 5:23-32. Até aqui, pois, vimos que, geralmente falando, 0 termo ekklesia € usado no plural, e os escritores estao obviamente pensando nas igrejas individuais; nuns poucos exemplos, porém, hé uma concepgao mais ampla em que se usa o termo “a Igreja”. E em seguida devemos analisar os varios quadros ou ilustragdes que s4o usadas a fim de ensinar a doutrina concer- nente a Igreja, e hd um bom ntimero delas muito interessantes. A primeira é a analogia de um corpo. Em diversas das Epistolas neotestamentarias somos informados que a Igreja é 0 “corpo de Cristo”. O classico exemplo, sem dtivida, esté em 1 Corintios, capitulo 12, mas 0 encontramos também em Romanos, capitulo 12, em Efésios, capitulo 4, e noutros lugares. Outro quadro € o da Igreja como um templo ou como um edificio, onde o apéstolo se compara com um sdbio construtor 1s (1 Cor. 3:10). Em Efésios 2:20 ele fala da Igreja sendo edificada sobre o fundamento dos apéstolos e profetas; portanto ele pensa nela ali como um edificio que esta sendo erigido. Em Efésios, capitulo 5, Paulo se refere a Igreja como a noiva de Cristo, e essa imagem reaparece no livro do Apocalipse. Ainda outro conceito é aquele de um império. Em Efésios, capitulo 2, Paulo fala de nds como “concidadaos dos santos e da familia de Deus” (v.19). Essa, obviamente, foi uma analogia que de repente surgiu na mente do apéstolo. Provavelmente ja fosse um prisioneiro em Roma no tempo em que escreveu essa Epistola, e estivesse pensando nesse admiravel Império Romano. Ele sentia que havia algo no Império que era andlogo a Igreja, com todas as partes dispersas e ainda com uma unidade central. Fazendo uso de outro termo, podemos falar, como se tem feito ao longo de todos os séculos, da “Igreja militante” e da “Igreja triunfante” (a Igreja terrena esta Jutando por sua vida, pela doutrina e por cada elemento) a Igreja que se encontra além do véu, jubilosa e triunfante. Tomem, por exemplo, a grandiosa forma na qual isso é expresso em Hebreus 12:22-24. E assim, tomando todas essas idéias juntas, que conclusao tiramos? Obviamente, a Igreja é espiritual e invisivel. Todos os exemplos que tenho lhes apresentado da palavra empregada no singular pressupdem algo que nao pode ser visto, mas que possui uma realidade como entidade espiritual. Ao mesmo tempo, porém, a Igreja € também visivel e pode ser vista externamente e pode ser descrita como existindo em Corinto, em Roma ou em algum outro lugar particular. E muito importante que tenhamos em mente essas duas coisas. O invisivel tem suas manifestacgdes locais. Uma boa analogia aqui é a alma. Nao podemos ver as almas humanas, mas sabemos que cada pessoa possui uma alma e expressa esse fato através do corpo, através do comportamento e da vida, o invisivel manifestando-se através do visivel. E isso € obviamente verdadeiro no que tange a Igreja Crista. Além das igrejas locais ha aquilo que se chama a Igreja. O corpo de Cristo € uma entidade, é algo real e vivo. 16 E muito importante que delineemos essas distingdes para que, 4 luz do que tenho dito, eu possa prosseguir e acrescentar 0 seguinte: ninguém pode ser cristao sem ser membro da Igreja espiritual e invisivel. E impossivel. Todos os cristaos sao mem- bros do corpo de Cristo. No entanto, é possivel ser membro da Igreja sem ser membro de uma parte visivel da Igreja — embora devesse ser. Alguém pode estar numa sem estar na outra. E possivel igualmente ser membro da Igreja visivel, de sua manifestacao externa, e nao ser membro da Igreja invisivel, espiritual. E assim vocés podem ver como € muito importante essa distincdo biblica entre Igreja universal, que é Seu corpo, e suas manifestagdes visiveis e locais. Portanto, em resumo: 0 sentido usual de “igreja” apresentado nas Escrituras é de um local de encontro dos santos onde sao reconhecidos a presenga e 0 senhorio de Cristo. Além de tudo isso, porém, nas igrejas locais, todas as pessoas que realmente nasceram de novo e s4o espirituais, séo também membros da Igreja espiritual invisivel, o genuino corpo de Cristo. Como ja disse, isso € algo de grande importancia caso queiramos entender a presente discussao sobre a Igreja. E assim chegamos pr6xima questo referente 4 unidade da Igreja. E este é o grande tema de hoje. Com toda seguranga, aqui se pode dizer certas coisas sem qualquer receio de contradigao. Se é para sermos guiados pelo ensino biblico, entéo devemos concordar prontamente que a unidade com a qual as Escrituras se preocupam é a unidade espiritual. O décimo-sétimo capitulo do Evangelho de Joao é com freqiiéncia citado equivocadamente! As pessoas simplesmente retiram uma frase de seu contexto. Dizem, citando o versiculo 21: “Para que todos sejam um”, ¢ ficam nisso. Insistem também que divisao na Igreja € 0 maior de todos os pecados. Ora, por certo que todos nés concordamos que divisao € algo deploravel; cisma ¢ certamente pecado. Entretanto, quando interpretamos isso no sentido cm que todo aquele que se chama cristao, nao importa qual a condigéo ou forma, é alguém com quem devemos manier uniao absoluta em todos os aspectos, 7 entao isso é uma contradigao do que Joao, capitulo 17, ensina. Certamente, Joao, capitulo 17, faz o carater dessa unidade muito simples e claro. Os termos de nosso Senhor sio estes: “Para que todos sejam um; assim como tu, 6 Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles sejam um em nos ... E eu lhes dei a gléria que a mim me deste, para que sejam um, como nés somos um” (vv. 21,22). Isso é totalmente espiritual. Nosso Senhor esta falando da relacao entre 0 Paice o Filho e os que estao em Cristo, Os quais est4o no Pai e no Filho, e Ele ja nos disse certas coisas sobre essas pessoas. Diz Ele: “Porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (v.8). Por isso as palavras de nosso Senhor acerca da unidade sao aplicaveis unicamente as pessoas que créem nessa doutrina particular; e se alguém me diz que é cristao, porém diz que Jesus era unicamente homem, entao eu nao tenho nenhuma uniao com ele. Nao pertenco ao mesmo grupo dele. Pode chamar-se de cristaéo, mas se n&o creu nem aceitou isso, nao existe nenhuma base para a unidade. A unidade é de carater espiritual. Também em Efésios 4:3 Paulo fala acerca de “a unidade do Espirito no vinculo da paz”. Aquele grande capitulo 12 de 1 Corintios apresenta a mesma questao. Para a analogia do corpo ser absolutamente correta, deve haver uma unidade essencial, organica e espiritual. As partes néo podem funcionar em harmonia se nao se pertencerem reciprocamente, se nfo tiverem em si a mesma vida, se 0 mesmo sangue nAo fluir através delas. Ainda em Efésios, Paulo diz: “Porque por ele ambos temos acesso ao Paiem um mesmo Espirito” (2:18). Portanto, o primeiro ponto que deve receber énfase é 0 Espirito. A unidade é espiritual. Nao € uma mera unido biolégica de uma porgao de organismos nem um mero consentimento formal. Tampouco é uma liga de pessoas que divergem, mas que se uniram em favor de algum propésito comum. Isso nao é 0 que encontramos nas Escrituras. Esta unidade é algo mistico, algo espiritual; é vital; é uma comunidade cheia de vida. O segundo principio, porém, é igualmente claro nas 18 Escrituras, a saber: que essa unidade deve basear-se na doutrina; deve ser doutrinal. Ja lhes mostrei isso 4 luz de Joao, capitulo 17. Diz nosso Senhor: “Agora sabem que tudo quanto me deste provém de ti; porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (Joao 17:7,8). Ora, as “palavras” as quais nosso Senhor Se referiu significam as palavras sobre ser Ele o unigénito Filho de Deus. Sao palavras acerca da encarnagao, acerca da Palavra que Se fez carne. Sao palavras nas quais Ele alega: “Antes que Abraao existisse, eu sou” (Joao 8:58). Sao palavras que ensinam Sua miraculosa vinda ao mundo, Seu nascimento virginal. Referem-se aos Seus milagres, porque Ele mesmo faz referéncia a Seus milagres (Joao 14:11), ao sobre- natural, ao propésito de Sua morte — dando Sua vida em resgate por muitos (Mat. 20:28) — e as palavras que Ele falou acerca da Pessoa do Espirito Santo, e assim por diante. E no entanto exige- -se que entremos em alguma grande uniao com pessoas que negam Sua deidade singular, as quais nao créem que Ele é 0 unigénito Filho de Deus, nao créem no Seu nascimento virginal e nao créem que Ele tenha alguma vez operado milagre - dizem que milagres séo impossiveis e que nao passam de folclore. Tais pessoas néo créem na expiagao substitutiva nem na Pessoa do Espirito Santo. Destacam bem esta afirmagao: “as trés Pessoas sao uma 86”, e ignoram todo este rico ensino doutrinal precedente. Falar de unidade com tais pessoas nada mais é que uma negacao de Jodo, capitulo 17. Joao, capitulo 17, porém, nao é o tinico exemplo desta verdade de que a unidade deve ser baseada na doutrina. Em Atos 2:42 somos informados que imediatamente apés o dia de Pentecoste, “perseveravam nia doutrina dos apéstolos e na comunhiao, no partir do pao ¢ nas oragoes”. As Escrituras s0 verbalmente inspiradas. As pahivras tem valor; o lugar ¢ a posigéo das palavras num versiculo sao de tremenda importéncia. Nao nos € dito que os primeiros crentes perseveravam firmemente na comunhao ¢ na doutrina dos apostolos. Nao! Perseveravam na doutrina c na comunhao dos apéstolos, no partir do pao e nas 19 oragées. Noutros termos, antes que possa haver comunhao é preciso haver aceitacao geral da doutrina. A comunhao tem por base a mesma fé, a mesma verdade, o mesmo discernimento. Se vocé pretende uma coisa ao falar de Cristo, e outra pessoa pretende outra coisa, seria possivel vocés terem comunhio real? Como seria possivel vocés irem a Deus através da mesma Pessoa, se uma pessoa cré que Ela é simplesmente homem, ¢ a outra diz: “Nao, nao, essa Pessoa é a substancia eterna que Se fez carne”? E preciso que haja a unidade de crenga, do contrario vocé se sentira pesaroso acerca da outra pessoa e cheio de dtivida quanto ao que ela pretende com seus termos. Atos 2:42 tem a doutrina dos apéstolos, em seguida a comunhdo; hoje, porém, a comunhao € posta em primeiro lugar. Diz-se: “Cheguemos todos a um acordo. Entéo podemos decidir sobre questées de fé”. Nés, porém, nao podemos ter comunhao a parte desta unidade de doutrina. Ha ainda uma declaragdo muito forte na Segunda Epistola de Joao: “Se alguém vem ter convosco, e nao traz este ensino, n4o o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o satida participa de suas mas obras” (2 Joao 10,11). Isso procede de Joao, 0 apéstolo do amor. A importancia que ele atribui 4 doutrina ea verdade € tao grande que na verdade ele esta dizendo: “Vocés nao devem receber um homem em sua casa, porque, se 0 fizerem, estaréo estimulando-o. Se lhe derem comida e 0 despedirem em sua viagem, estarao estimulando sua falsa doutrina. Nao facam isso”. E se vocés lerem a Primeira Epistola de Joao, entéo descobrirao que toda a sua preocupacao gira em torno da mesma coisa. Havia determinadas pessoas, diz ele, esses anticristos e seus seguidores, que “sairam de nosso meio”. Estavam entre nés, mas se foram. Evidentemente nao eram dos nossos (1 Joao 2:19). Lembrem-se que essa é uma questao de doutrina, e que doutrina é essencial e vital 4 genuina comunhao. Portanto, quando estivermos discutindo a questao da unidade da ‘Igreja, é preciso que coloquemos nas primeiras posigdes 0 carater espiritual e doutrinal da unidade. Nunca é coisa dificil 20 reunir um grupo de pessoas que nao créem em nada em par- ticular. Isso, porém, nao é unidade. Unidade € algo positivo. Nao és6 0 caso de pessoas se reunirem, visto que ninguém se preocupa muito com o que € dito ou crido. Unidade é uma vida, é um poder, é um entusiasmo. E 0 povo unido que se junta pelo que tem em comum. Isso é supremamente verdadeiro na Igreja de Deus. Se vocés retrocederem ao longo da histéria da Igreja, descobrirao que ela amitide tem sido mais valiosa e mais usada por Deus quando tem havido apenas um punhado de pessoas que concordavam em espirito e em doutrina. Deus as tomou e as usou e fez algo poderoso através delas. Quando, porém, havia apenas uma Igreja em toda a Europa ocidental, que rumo ela tomou? A Era das Trevas. E no entanto, parece-me que essa grande ligao da historia esta sendo inteiramente esquecida e ignorada neste tempo presente. Digo essas coisas, nao porque me sinto animado pelo espirito de controvérsia, mas porque sinto zelo pela verdade como a encontro nas Escrituras, e considero algo tragico notar como as Escrituras estao sendo deturpadas e pervertidas no interesse de uma unidade que nao é unidade nenhuma. Finalmente, qual € a relacao da Igreja com 0 Estado? Aqui, uma vez mais, esta um assunto extremamente controvertido. A idéia catélico-romana sempre foi que a Igreja € o Estado e controla tudo no Estado e, como lembrei-lhes no inicio, essa igreja sempre fez isso. No extremo oposto esta 0 assim chamado ponto de vista “erastiano”, uma idéia inicialmente proposta por um homem chamado Erasto, o qual, lamento dizer, foi médico. Sinto o dever, em alguma ocasiao, de apresentar-lhes a hist6ria das desditosas intervengées de médicos na histéria doutrinal da Igreja! Erasto, infelizmente, foi o homem que deu origem a perniciosa doutrina de que a Igreja é um ramo do Estado. Ora, esse €, naturalmente, o ponto de vista na Inglaterra com respeilo a Igreja Anglicana. A Igreja da Inglaterra é erastiana, e a maioria das Igrejus Luteranas defende a mesma posicdo. A Igreja Luterana wa 21 Alemanha era erastiana, e creio que um bom argumento pode ser estabelecido, dizendo que, provavelmente, jamais teriamos ouvido a respeito de Hitler, nao fosse o erastianismo da Igreja Luterana na Alemanha. Entretanto, esse é um ponto passivel de debate. O erastianismo, reitero, é a crenga de que a Igreja € uma espécie de departamento do Estado, e que ela é administrada e governada pelo Estado, de forma que a cabeca do Estado designa bispos e outros dignitdrios e funciondrios da Igreja. Na Inglaterra, em 1928, houve uma grande controvérsia na Casa dos Comuns sobre a proposta de um novo Livro de Oragao. A Igreja decidiu té-lo, porém o Parlamento tinha poder para indeferi-lo. Talvez vocés digam que foi algo muito bom que o Parlamento possuisse tal autoridade! De um ponto de vista, sim, mas olhando por outro prisma, n4o, pois isso constitui uma espada que pode cortar de ambos os lados. Em 1928 deu certo, no entanto, 0 que dizer se 0 Parlamento de repente decidisse agir erroneamente? Nao nos esquecamos de que ele ainda tem o poder de agir assim. Eis, pois, os pontos de vista catélico-romano e erastiano da Igreja e do Estado. Mas contra estes sem diivida devemos concordar, se percorrermos cuidadosamente as Escrituras, que ha um terceiro ponto de vista que pode set descrito como “os dois Estados”. As pessoas que defendem este ponto de vista créem que Deus é dono de tudo. Deus € 0 Senhor do universo, tanto quanto o Senhor da Igreja. Deus ordenou o Estado. Diz Paulo: “Porque nao ha autoridade que nao venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus” (Rom. 13:1). Os magistrados e outros tipos de governantes n§o foram instituidos pelo homem, mas por Deus. Sim, porém ha este outro Estado, a Igreja, e os dois existem lado a lado. Um nao controla 0 outro. Ambos sao separados e ambos se acham sujeitos a Deus. Esse, sugiro-lhes, é o quadro apresentado pelo Novo Testamento. Nao existe qualquer indicacao de algo vindo de algum lugar que se assemelhe a uma Igreja-Estado. Os primeiros crentes eram independentes dos governos. Reuniam-se sob 0 senhorio e na presenca de Cristo. De fora estava 0 grande Estado 22 ao qual pertenciam. Embora permanecessem cidaddos desse Estado, haviam entrado numa esfera que, em certo sentido, nao tinha absolutamente nada a ver com o Estado. E pelos séculos a fora esse tem sido 0 ponto de vista reformado da relagdo entre o Estado e a Igreja. Precisamente da mesma forma, nao podemos encontrar nas Escrituras tal coisa como Igreja “nacional”, sendo precisamente 0 inverso. Paulo escreve: “Onde nao ha grego nem judeu, circuncisdéo nem incircuncisao, barbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo é tudo em todos” (Col. 3:11). A Igreja é algo diferente, éconstituida daqueles que nasceram de novo e tém vida espiritual, os quais sdo, como ja vimos, membros do corpo mistico de Cristo e se retinem em sua assembléia local — igreja — chame-a do que vocés quiserem, com Cristo como cabeca. Diferengas de nacio- nalidade, juntamente com distingées sociais e raciais, sio irrelevantes e jamais devem ser mencionadas em conexéo com a Igreja. Acrescentar tais qualificagdes é seguramente fazer-se culpados de algo que nao é biblico. A Igreja é, nesse sentido, una, € seu povo é o mesmo em todos os lugares. Sabemos historicamente como as igrejas nacionais tém surgido em varios paises. Se estivermos, porém, preocupados com 0 conceito biblico, entao repito que eu, pessoalmente, nao consigo encontrar nada correspondente a tal condigdo referida em algum lugar nas paginas das Escrituras. Nao é argumento valido dizer que a nacio de Israel era a Igreja do Velho Testa- mento. Esse era 0 caso naquele tempo; agora, porém, disse Cristo aos judeus: “Portanto eu vos digo que vos ser4 tirado 0 reino de Deus, e ser dado a um povo que dé os seus frutos” (Mat. 21:43). Portanto, o que fica? E a Igreja, como Pedro nos comprova no capitulo 2 de sua Primeira Epistola, onde aplica a Igreja as palavras que foram ditas a nagao de Israel. A Igreja é agora supra-nacional; ela tem 0 seu povo em todas as nagées. Ela é constituida pelo redimidos de Deus que vivem na terra em varias condigdes, mas que sao também cidadaos daquele reino que nao é deste mundo. 23 2 AS MARCAS E GOVERNO DA IGREJA Nosso pr6éximo tema, ao continuarmos com a doutrina da Igreja, é o que geralmente se chama as marcas da Igreja, ou as caracteristicas da Igreja. Para qué a Igreja existe aqui? O que ela faz quando demonstra que é a Igreja? Eis ai uma importante pergunta, e varias respostas tém sido proferidas. O ensino protestante comum é que hé trés marcas principais da Igreja. A primeira é a pregacdo da Palavra. Essa € a tarefa principal da Igreja Crista: ela foi criada e chamada 4 existéncia para esse propésito. A pregacdo da Palavra é efetuada em dois aspectos principais. A Palavra é pregada na Igreja para edificar e estabelecer os santos, os crentes. Eles se reunem, como vimos, para a comunhio. A Igreja é a comunhao daqueles que sao crentes em Cristo e confessam Sua lideranca e Seu senhorio, e a Palavra € pregada a fim de que sejam fortalecidos na fé. As Epistolas do Novo Testamento foram escritas para os crentes com esse objetivo especifico em vista, e os apéstolos e os profetas tinham o mesmo propésito em sua pregacao. Quando homens e mulheres foram convertidos, isso era apenas 0 comego. Nasciam como criancinhas em Cristo, ¢ careciam de instrugao; careciam de ser advertidos contra o erro e protegidos contra a heresia. Por isso a Igreja é essencial aos crentes. O segundo objetivo da pregagao é sem diivida a evangeli- zacio. E a tarefa especifica da Igreja Crista pregar aos que nao sao crentes. Nosso Senhor, em Sua oracao sacerdotal em Joao, capitulo 17, diz bem especificamente que, como o Pai O enviara ao mundo, assim também Ele estava cnviando Seus seguidores imediatos e os que creriam nElc através deles. Eram enviados ao mundo como Ele fora. Ele veio trazendo a mensagem do reino, 24 e nds somos enviados portando a mesma mensagem. Faz parte da obra da Igreja pregar 0 evangelho aos que sao de fora a fim de que sejam convencidos e convictos do seu pecado, e para que sejam guiados a uma fé viva e vital em nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Essa, pois, a primeira marca da Igreja—a pregagao da Palavra. A segunda marca e caracteristica da Igreja ¢ a genuina administracao das ordenang¢as. Nao me deterei aqui agora porque pretendo tratar da doutrina das ordenangas em seu proprio lugar. Devo, porém, mencionar o assunto agora, visto ser ele uma das marcas da Igreja. A Igreja é um lugar onde as ordenangas so correta e genuinamente administradas em conexdéo com a pregacao da Palavra. A terceira marca da Igreja, aquela a que anseio mais enfa- tizar, uma vez que é tao lamentavelmente negligenciada, é 0 exercicio da disciplina. Ora, se tivéssemos perguntado no inicio: “Quais s4o as trés marcas essenciais da Igreja?”, fico pensando quantos teriam mencionado o exercicio da disciplina? Nao ha a menor dtvida de que esta doutrina é gravemente negligenciada. Alias, se me fosse pedido que explicasse por que as coisas sao como sao na Igreja; se me fosse pedido que explicasse por que a estatistica revela os ntimeros decrescentes, a falta de poder e a falta de influéncia sobre homens e mulheres; se me fosse pedido que explicasse a razao de tantas igrejas parecerem incapazes de sustentar a causa sem recorrerem a jogos, dangas e coisas semelhantes; se me fosse pedido que explicasse por que a Igreja se acha em condicao tao lamentavel, minha resposta teria de ser que a causa principal é a falha de exercer a disciplina. Quando foi que vocés ouviram pela ultima vez uma referéncia feita de um pulpito cristao sobre o tema da disciplina? Quantas vezes vocés tém ouvido sermées ou discursos sobre 0 assunto? O termo ja foi quase riscado completamente da existéncia, e o que ele significa e representa jd caiu no desuso. E, infelizmente, nao é sé a disciplina que é negligenciada, mas hA um grande ntiimero de pessoas que até mesmo tentariam justificar a negligéncia, e € por causa disso que quero tratar 25 detalhadamente do assunto. Ora, é com base biblica que sugiro que a disciplina deve ser exercida. Tomemos a passagem de Mateus, capitulo 18, comegando com o versiculo 15: “Ora, se teu irm4o pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele s6; se te ouvir, terés ganho teu irmao; mas se nAo te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou trés testemunhas toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o a igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o gentio e publicano” (vv. 15-17). Essas sao palavras de nosso préprio Senhor. Semelhantemente, em Romanos 16:17 lemos: “Rogo-vos, irm4os, que noteis os que promovem dissensdes e escandalos contra a doutrina que aprendestes; desviai-vos deles”. A disciplina € 0 tema de todo o capitulo 5 de 1 Corintios, que termina com estas palavras: “Tirai esse iniquo do meio de vos”. Nada pode ser mais explicito que isso. Vemo-la novamente em 2 Corintios, capitulo 2, especialmente os versiculos 5 a 10, onde Paulo fala sobre receber de volta uma pessoa que havia sido disciplinada; e também em 2 Tessalonicenses, capitulo 3, onde ele da instrugdes quanto ao que se deve fazer com membros de igreja que vivem de maneira desordenada. Entao em Tito 3:10 ha esta ordem explicita: “Ao homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestacao, evita-o”. Como vimos na prelecao anterior, este ensino também se encontra em 2 Joao, versiculo 10. E € natural que nas varias cartas as igrejas individuais no livro do Apocalipse haja exortacgdes sobre o exercicio da disciplina. Apesar disso, porém, ha os que amitde tentam justificar a auséncia ou a falta de disciplina na igreja local; e, estranhamente, muitos agem assim com base na parabola do joio em Mateus, capitulo 13. “Vocé nao deve disciplinar os cristaos”, eles dizem. “Se tentar exercer a disciplina, e puser as pessoas para fora da igreja, vocé estar4 violando as instrucdes de nosso proprio Senhor, pois quando os servos disseram: “Queres, pois, que vamos arranca-lo?”, o Mestre disse: “N&o, para que, ao colher o joio, nado arranqueis com ele também o trigo. Deixai crescer 26 ambos juntos até a ceifa.” Além do mais, exatamente pelas mesmas razoes, alguns contestam qualquer separagéo do povo cristao de uma igreja que possa ser considerada apéstata. Essa, porém, é uma grave e ma interpretacdo das Escrituras, uma vez que a parabola do joio obviamente nAo se refere 4 Igreja, e sim, ao reino. Todas as parabolas de Mateus, capitulo 13 sao pardabolas do reino, e é bom que vocés se lembrem que na prelecaio anterior enfatizei que a Igreja e 0 reino nao sao idénticos. A Igreja é uma expressao do reino; 0 reino, porém, é maior que a Igreja. E, por certo, nosso préprio Senhor diz explicitamente, em Sua interpretagao particular desta parabola, que o campo no qual 0 trigo € 0 joio sao semeados nao é a Igreja, e, sim, 0 mundo (Mat. 13:38). A boa semente sao os filhos do reino, mas 0 joio sao os filhos do maligno. Portanto, a parabola do joio nado tem relagao nenhuma com a questao da disciplina no seio da igreja local. Ela constitui um quadro do mundo inteiro que, uma vez que o mesmo pertence a Deus, pode, nesse sentido geral, ser considerado como sendo Seu reino. No bojo do mundo, porém, ha dois grupos — os que sao cristaos, os quais pertencem ao reino eterno, e os que pertencem ao diabo. Aplicar a parabola do joio a Igreja é, com toda certeza, cair no mesmo erro dos catélicos romanos; e é um erro no qual a maioria das igrcjas que seguem essa igreja tem também se inclinado a cair. Kis por que, em certo sentido, nao ha disciplina na igreja catolica romana. Raz4o por que se torna possivel que pessoas sejam consideradas cristas perfeitamente boas, mesmo quando suas vidas sao dissolutas. Nao sao disciplinados; nao sao postos para fora da igreja. E, de fato, a mesma coisa é verdade com respeito a Igreja Anglicana. A Igreja Anglicana, também por causa da viséo que tem de si mesma, nao cré que deva disciplinar 0 membro individual. A imagem da Igreja, porém, que apresentamos na prelecao anterior, exige que haja disciplina. Além do mais, como ja vimos, a pratica da disciplina é algo acerca do qual somos exortados reiterada e veementemente nas proprias Hscrituras. Ora, a di lina deve ser exercida por duas formas princi- 27 pais. Antes de tudo, deve-se exercé-la em relacéo 4 doutrina, Lemos: “O homem faccioso, depois da primeira e segunda admoestagio, evita-o” (Tito 3:10). O apdstolo Joao diz que, se um homem nfo trouxer a verdadeira doutrina, ele nao deve ser de forma alguma recebido, nem mesmo em casa, muito menos na igreja. Deixem-me tornar isso bem claro. Isso nao significa que os cristéos nunca devam admitir um incrédulo em sua casa. Por certo que nao significa nada disso! O que significa é que, se um homem que alega nao sé ser cristéo, mas também mestre, est4 ensinando erro, com certeza vocés nao devem recebé-lo em suas casas. E claro, porém, que vocés recebem 0 incrédulo em suas casas para que possam falar-Ihe das verdades cristas. Paulo expressa isso perfeitamente em 1 Corintios 5:11, onde, por assim dizer, ele diz: “Em todas estas questées de disciplina, nao estou me referindo aqueles que estao 14 fora no mundo, pois se vocés vao separar-se de todos desse tipo, significaria que teriam de sair totalmente do mundo! Nao. Nao estou dizendo isso, porém eu digo que se um homem que é um irmdo for culpado dessas coisas, entaéo nado devem conviver com ele”. Portanto o Novo Testamento nos diz que realmente devemos estar preocupados pela doutrina na Igreja, e que devemos fazer algo acerca da falsa doutrina. E creio que toda a situagéo com que nos defrontamos hoje é prova abundante das terriveis conseqiiéncias de nao exercer a disciplina com respeito a doutrina. Nao hesito em asseverar que nossos avés e bisavés do século dezenove nao exerceram a disciplina que deveriam ter exercido quando a fatal Alta Critica comegou a chegar aqui, vinda da Alemanha. Foi em decorréncia de nao terem disciplinado as pessoas que creram e ensinaram tais coisas que estamos enfrentando a presente situacao. Com equivocada tolerancia e, freqiientemente, com uma falsa compreenséo do ensino da parabola do joio, permitiram entrar esse ensino erréneo, esperando que as coisas logo melhorassem; e falaram em manter um testemunho positivo e nao negativo! Nesta atual geracdo, estamos acumulando as conseqiiéncias dessa tragica falacia por parte dos lideres da Igreja. 28 Devemos, pois, exercer disciplina no tocante 4 doutrina, e devemos igualmente exercé-la no tocante a vida e a maneira de viver porque, se os membros da Igreja Crista forem negadores da doutrina dela em suas vidas e em sua pratica, quem ir4 crer nela? Sera a negacao das palavras de nosso Senhor: “Para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que esta nos céus” (Mat. 5:16). Inconsisténcia ou vida pecaminosa por parte de um crente faz incalculdvel dano 4 causa de Cristo. Nao importa quao ortodoxas sejam tais pessoas, se ndo estéo controlando e disciplinando seu temperamento, seus desejos, suas paix6es, suas luxtirias, estao, em palavra e ac&o, negando a fé que pregam, e se tornam um obstaculo e um escandalo aos que sao de fora. O ensino biblico consiste em que, se um irmao desobediente nao se corrige nem atenta para a correcdo, entao precisa realmente ser afastado da igreja. E preciso “entrega-lo a satands”, frase usada por Paulo, “para a destruigdo da carne, a fim de que 0 espirito seja salvo no dia do Senhor Jesus” (1 Cor. 5:15). Nao sei exatamente o que isso significa, mas provavelmente signi- fique algo mais ou menos assim: vocés nao sé o eliminam do rol de membros, mas param de orar por ele. Vocés o cedem a satands, por assim dizer, e satands o fara sofrer, provavelmente em seu corpo. Ele se tornara ignobil e miseravel, o que podera despertar seus sentidos e salvar sua alma. Este é um assunto importante. Leiam a hist6ria da Igreja em qualquer época de reavivamento e despertamento — nao importa quando — e descobrirdo que, invariavelmente, uma notavel caracteristica de tal época é o exercicio da disciplina. Leiam, por exemplo, sobre Jodo Wesley. Se j4 houve um disciplinador na Igreja, foi esse homem! Em seu Journals, ele registra que em determinada ocasiao saiu para visitar uma igreja — certas reunides em Dublin — e quando chegou 14, encontrou cerca de seiscentas pessoas. Entéo comegou a examinar os membros da igreja, um a um; e quando terminou, alguns dias depois, a igreja tinha trezentos membros! Alguém poderia perguntar: se Joao Wesley voltasse hoje, o que ele faria? 29 Isso, porém, nao aconteceu sé com Wesley. Durante os periodos de avivamento e despertamento, os lideres de todos os ramos da Igreja se preocupavam sempre com a pureza — necessariamente. Voltavam-se para o Novo Testamento e simplesmente tentavam viver uma vida de acordo com 0 ensino neotestamentario; e o Novo Testamento nos diz que 0 vaso, 0 instrumento, o canal que Deus usa deve seguramente ser puro. Portanto, 0 ensino nao é apenas de uma igreja “reunida”, mas também de uma igreja “pura”. Como seria possivel uma igreja misturada com 0 mundo em varios aspectos ser um canal do Espirito Santo? E algo quase inconcebivel! Por isso, a terceira marca da Igreja € a disciplina. Quando chegamos ao governo da Igreja, descobrimos uma vez mais que ele constitui uma quest4o muitissimo discutivel e controvertida. E interessante observar que o Novo Testamento nao é muito especifico acerca do governo da Igreja. Ele nao nos ministra uma instrucao detalhada, como faz em relag&o a muitas outras doutrinas, e indubitavelmente essa foi a raz4o por que 0 Novo Testamento foi escrito enquanto a maioria dos apéstolos ainda vivia, e assim eles e os profetas puderam ensinar e governar a Igreja. Ao lermos aquelas partes do Novo Testamento que foram as tiltimas a serem escritas, como as Epistolas Pastorais, notamos um aumento definido no ensino com referéncia a ordem e 0 governo eclesidsticos, o que é, sem divida, precisamente 0 que esperariamos. Ainda no livro de Atos, porém, encontramos os apéstolos ordenando lideres e dando instrugdes sobre como a vida das igrejas seria ordenada. Portanto, embora tenhamos bem pouco ensino especifico, temos uma clara indicac&éo dessa ordem em conexao com a qual o governo era crescentemente necessario. O que nos causa confusaéo, em nossa época e geracd4o, € 0 fato de que, subseqiiente ao perfodo dos apéstolos e profetas, bem como subseqiiente ao ensino das Escrituras, a Igreja propriamente dita comegou a fazer coisas e acrescentar coisas, as quais nem sempre podem ser encontradas nas Escrituras, com isso criando uma tradigao que as vezes contradizia as Escrituras. 30 Quais, pois, sao as idéias principais que, no transcurso dos séculos, tém sido correntes na propria Igreja com respeito a questéo do governo eclesidstico? Bem, antes de tudo sempre houve aqueles que nao créem absolutamente em qualquer governo eclesiastico, e ainda existem representantes desse ponto de vista na Igreja atualmente. Dizem que nado ha necessidade alguma de um governo desse tipo, porque todos os membros, quando se retinem, sdo obedientes ao Espirito. Isso geralmente surgiu como uma reacdo contra o que podemos denominar de eclesiasticismo, ou, se vocés o preferirem, é uma reagéo contra aquela terrivel idéia que se acha sumariada na palavra “cristandade”. Ora, admitamos com bastante franqueza que hé muito a ser dito em favor desse ponto de vista. Infelizmente, quando o Império Romano tornou-se cristao, a Igreja Crista decidiu chamar-se “cristandade”, e tomou por empréstimo muitas das idéias do Império Romano, inclusive seus sistemas de governo. E quanto a mim particularmente, permitam-me admiti-lo bem simples e claramente, nao consigo ver uma igreja cat6lica romana moderna nas Escrituras. Certa vez formulei esta questéo a um sacerdote catélico-romano com quem discutia estas coisas. Disse- -lhe: “Vocé pode dizer-me, bem honestamente, se vé sua igreja, como existe hoje, no Novo Testamento?” E ele admitiu que nao podia. Mas, naturalmente, acrescentou ele, como todos fazem: “Ah, sim, mas a revelacdo tem tido continuidade desde entio”. E para os catélicos romanos, a tradigao é igual as Escrituras. Ora, podemos entender perfeitamente uma reacdo contra todo eclesiasticismo, essa mescla de Igreja e Estado, bem como a elevacao de oficios, hierarquias e a busca de poder. E muito ficil de entender as pessoas reagindo tao violentamente contra isso, quando dizem: “Nao creio absolutamente em qualquer ordem; qualquer ordem é perigosa. Se vocés elevam um homem, ele logo acrescentara ao que lhe deram, e por fim teréo uma tremenda organizacao que esmagaré a vida do espirito”. Dizem que a maquina sempre mata 0 espirito, que a organizagho apaga o espirito. A Igreja tornou-se téo complexa, mesquinha ¢ 31 inflexivel, que ao Espirito Santo nao é dado qualquer oportu- nidade de operar. O resultado, historicamente, é que toda vez que ha um avivamento, quase que invariavelmente surge a formagao de uma nova denominagao, porque a antiga corporacao eclesidstica nao péde conter a nova. Esta era viva demais; tornou- se um elemento perturbador, e as pessoas, presas as velhas estruturas eclesidsticas, se viram fora. Portanto, ha muito a ser dito em favor dessa recusa em aceitar governo eclesidstico, e no entanto pergunto se este ponto de vista analisou bem tudo que é ensinado nas Escrituras, se os oficios definidos estéo indicados ali, e as funcées atribuidas a tais oficios. Provavelmente o argumento final seja que, uma coisa é dizer que nao devemos crer em lideranca alguma, e outra coisa muito diferente é termos uma igreja em que, na pratica, nao haja lideres. Lideranga é inevitavel, e se nao pusermos isso no papel, alguém logo cuidara que nela existam lideres autodesignados. Portanto, se € para termos na igreja lideranga e ordem, entéo que as fundamentemos no ensino das Escrituras. A teoria que vem a seguir com respeito ao governo da Igreja € formulada pelos que defendem 0 ponto de vista erastiano, 0 qual, como ja vimos, afirma que a Igreja é uma funcao do Estado, e€ que, portanto, o Estado governa a Igreja. O Estado designa os oficiais da Igreja, principalmente os altos dignitdrios, e estes, por sua vez, designam os demais. Poder algum é atribuido ao pregador local. Os membros comuns tém pouquissima participagao. A disciplina, em Ultima andlise, é exercida pelo Estado, e a Igreja nao tem nem mesmo poder para exercer excomunhao. A idéia erastiana é, como ja vimos, 0 ponto de vista da Igreja Luterana e da Igreja da Inglaterra. ~ O préximo ponto de vista, 0 qual tem alguma relagdo com 0 anterior, € 0 sistema episcopal: crenca no governo dos bispos. Os proponentes deste conceito ensinam que Cristo pessoal- mente delegou o cuidado da Igreja diretamente a determinados homens, uma “ordem” ou “colégio de bispos”, que sao descendentes dos apéstolos numa sucessdo espiritual direta. Esse 32 € 0 ensino que Cristo designou os apéstolos, e eles tinham que perpetuar-se a si mesmos e sua ordem pela designagao de bispos, e que o governo da Igreja devia ser confinado exclusivamente aos bispos. Isso é ensinado pelas Igrejas Episcopais. Aqui também os membros na realidade tém pouquissima participao na ordenagao da vida da Igreja. O que dizer sobre isso? Bem, tudo que posso dizer 4 guisa de comentario é que o homem que Jancou mais luz sobre o tema € indubitavelmente o grande Bispo Lightfoot, que uma vez foi bispo de Durham. O Bispo Lightfoot provou, para a satisfagao de todos, que no Novo Testamento néo ha qualquer diferenca entre 0 bispo e 0 anciao — que bispo, ancido e presbitero s40 termos intercambiaveis. Por exemplo, 0 apdstolo Paulo, escrevendo a igreja em Filipos, diz: “Paulo e Timéteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos em Cristo Jesus que estéo em Filipos, com os bispos e didconos” (Fil. 1:1). A palavra “bispos” é ai equivalente a presbiteros e anciaos, e vocés podem observar que na igreja em Filipos havia nao apenas um, mas havia diversos bispos. De forma que, longe de haver sé um bispo sobre uma grande diocese, um bispo responsdvel por um grande grupo de igrejas, no Novo Testamento havia varios bispos numa s6 igreja. Portanto nao eram bispos segundo nossa compreensao da palavra. Eram “anciaos” ou “presbiteros” — homens mais idosos a quem se delegava essa posicao e funcao. Também parece-me que — e sinto-me feliz em dizer que concordo inteiramente com os cavalheiros a quem se denominam “eruditos” - nao ha no Novo Testamento qualquer autorizacao para o ponto de vista episcopal do governo da Igreja Crista. Na verdade esta foi uma idéia que surgiu varios séculos depois do primeiro século, iniciada por um homem chamado Cipriano. E com isso, naturalmente, podemos facilmente perceber como ela veio 4 existéncia. Surgiram problemas na Igreja, acumularam-se as dificuldades e sentiu-se a necessidade de algum género de disciplina, algum género de corporacao para decidir as situagdes. E uma vez tendo tomado esse rumo, estamos no caminho do episcopado. E amitide se tem afirmado entre 33

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