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GILLES DELEUZE NIETZSCHE E A FILOSOFIA leira: traducao de Ruth Joffily Dias e Edmundo Fernandes Editora Rio, 1976 sche et la philosophie. Paris, Presses Gilues DeLeUze — NiETZSCHEERFLOSOFIA 2 SUMARIO 1 0 Tragico a 1. 0 CONCEITO DE GENEALOGIA.. a4 2. 0 SENTIDO 5 3. FILOSOFIA DA VONTADE. ‘ 4. CONTRA A DIALETICA 7 5. 0 PROBLEMA DA TRAGEDIA..... svtisnntinnesintisininieitinntetsnatinnesintninsaieniisateseseasssee 8 6, A EVOLUGAO DE NIETZSCHE ....sntssntnstnintnieintnennnneinatinnenniennenenenmneaianenneneanennesnse 9 7. DIONISIO E CRISTO. 10 £8. AESSENCIA DO TRAGICO. " 9. 0 PROBLEMA DA EXISTENCIA. 2 10. BASTENCIAE INOCENCIA.... 11, O LANCE DE DADOS, evvisnntnnninntisnnnninnnnnninintniennnesinsannnnnnntnnesate 12, CONSEQUENCIAS PARA O ETERNO RETORNO..j.crsvntsinstntstnnnstistnnninatinnennnesnnnanennnaanesnassee 13, SIMBOLISMO DE NIETZSCHE 16 14, NIETZSCHE E MALLARNE: 7 15. 0 PENSAMENTO TRAGICO, .sesnstsestnisetsnintstntnntsintninnintntnseventniesisesintatesinsatseseseetsee 18 16, APEDRA DE TOQUE ...csrststesnieintnnntinintinnennnenneneneniieninnenannnenenenneneeneiennasnee 9 2 Ativo e Reativo 2 1. 0 CORPO a 2. ADISTINCAO DAS FORCAS 3. QUANTIDADE E QUALIDADE.... 4, NIETZSCHE E A CIENCIA... sststntninesnntnienenesinsee 5. PRINEIRO ASPECTO DO ETERNO RETORNO: COMO DOUTRINA COSMOLOGICA F FISICA .cavnrssnstntstnsnnnntnnnsentnee 4 6. 0 QUEE A VONTADE DE PODER? 8 7.ATTERMINOLOGIA DE NIETZSCHE 2% 8. ORIGEM E IMAGEM INVERTIDA...sstssussstsintnttntvtntnitientnietentsinteteninestnsesentseesesesenesees 28 9. PROBLEMA DA MEDIDA DAS FORGAS ...cucstssnteteintntntnntinatnneneinennnteneneinatnneinanneenennnseses 29 10, AHIERARQUIA. ors sets nntinnninntisnnnnininninnennntinnatnneinnennnenninaianesasnee DD 11. VONTADE DE PODER E SENTIMENTO DE PODER. 20 12, 0 DEVIR REATIVO DAS FORCAS, ” 13. AMBIVALENCIA DO SENTIDO E DOS VALORES, 2 14, SEGUNDO ASPECTO DO ETERNO RETORNO: COMO PENSAMENTO ETICO E SELETIVO 3 15, 0 PROBLEMA DO ETERNO RETORNO, svcentnnnsenenns 4 3. ACritica 36 1. TRANSFORMACOES DAS CIENCIAS DO HOMEM 6 2. A FORMULA DA QUESTAO EM NIETZSCHE ..... scteneiettnetentineneneitennneneientieneeneineseee 3. O METODO DE NIETZSCHE ...essnsnisnsninetennnnetnntnintiannnnstatinennatinenntiinaesnianenesasse: 38 4. CONTRA SEUS PREDECESSORES «onsen seni nntisnnnnntisnnnnnninninnnnneinaninennnennetsenssnse 3 5. CONTRA O PESSINISMO E CONTRA SCHOPENHAUER 40 6. PRINCIPIOS PARA A FILOSOFIA DA VONTADE 0 7. PLANO DE “A GENEALOGIA DA MORAL". svtistatnnesintsnnsiientnneseststntianesteniseeseseseis AL 8 NETZSCHE € KANT 00 PONTO DE VISTA DOS PRINCPIOS ss vsnesnssnnnsnsnransonnennnnnnneaneane a 9. REALIZAGAO DA CRITICA “a (0. NIETZSCHE E KANT DO PONTO DE VISTA DAS CONSEQUENCIAS 4“ 11. 0 CONCEITO DE VERDADE 45 12, CONHECIMENTO, MORALE RELIGIAO .... M6 13, 0 PENSAMENTO F A VIDA 14, ARTE 15, NOVA IMAGEM DO PENSAMENTO. 0 4.:Do Ressentimento & MA Consciéneta. 33 Giles DeLeuze — NiETzSCHEERFLOSOFIA 3 1, REAGRO E RESSENTIMENTO v.cssnnsstsnntntnintsnntnnnsintannnnsnistnnainnnisnenniesnsnanennnnananesatsee 5B 2. PRINCIPIO DO RESSENTIMENTO. 3 4, CARACTERES DO RESSENTIMENTO 35 5. ELE € 80M? ELE E MAU? 6. 0 PARALOGISNO so sotntnnennnsesente 7. DESENVOLVIMENTO DO RESSENTIMENTO: 0 SACERDOTE JUDAICO .ssvrsvntssnstntotniintntntnnntnintonesinea £8. WA CONSCIENCIA E INTERIORIDADE. oo 9. 0 PROBLEMA DA DOR. 6 10. DESENVOLVIMENTO DA MA CONSCIENCIA: O SACERDOTE CRISTAQ....ssestnsntentstntnststntntnsesentnsesentsee 64 11. ACULTURA CONSIDERADA DO PONTO DE VISTA PRE-HISTORICO ..snstsestnsesentnietsentsintetentseatenesenesee 12, ACULTURA CONSIDERADA DO PONTO DE VISTA POS-HISTORICO ssn usestnnesnntinintnntnintatnsnsnannneseatsses 8 13, A CULTURA CONSIDERADA DO PONTO DE VISTA HISTORICO 64 14, MA CONSCIENCIA; RESPONSABILIDADE, CULPA 66 15, O IDEAL ASCETICO E A ESSENCIA DA RELIGIAO 6 10. TRIUNFO DAS FORGAS REATIVAS. 5.0 Super-Homem Contra a Dialética.... svnisnntinnntnntsinnsininnnnnnnnnsnatniennnenineannntnesa 1. ONILISMO. o 2. ANALISE DA PIEDADE 6 4. DEUS ESTA MORTO. n 4. CONTRA © HEGELIANISMO ss stistntinnesintisintnientntntnsevnatnnesenenteseseseneaess TS 5. 05 AVATARES DA DIALETICA....snestnsnststinnisnintnietnitiniatsnnnststinnennntnietanesneatesesestnseses 74 6. NIETZSCHE E A DIALETICA a sevvisnntinnennntisnnnnnnnnnnnnnnnsnaninnennnennanenennssssan TS 7. TEORIA DO HOMEM SUPERIOR 1% £8. HOMEM & ESSENCIALMENTE “REATIVO"? n 9. NIILISMO E TRANSMUTACAO: 0 PONTO FOCAL. 79 10, AAFIRMAGAO E ANEGAGAO sossnseee seeientinnennnennnnnenmeananenenenennennaenneneenne: BL 11. 0 SENTIDO DA AFIRMACAD a 12. ADUPLA AFIRMAGAO: ARIANA 5 13. DIONISIO E ZARATUSTRA. a7 Conclusio.. Giles DeLeUZE — NiETZSCHE ER FiLOSOFIA 4 10 Trégico © CONCEITO DE GENEALOGIA © projeto mals geral de Nietzsche consste em introduair na filosofia 0s canceltos de sentido e de valor. € evidente que a filesoia, rmaderna, em grande parte. viveu e vive ainda de Nietzsche, Mas talvez no da maneira como ele teria desejado. Nietzsche nunca tescondeu que a filsofia co sentida © dos valores deveria ser uma critica. Kant no conduziu a verdadeira critica porque no soube colocar seu problema ern termos de valores; este é entio um dos principals mévels da obra de Nietzsche. Ora, aconteceu que na filosofia moderna a teoria dos valores gerou um novo conformisma e novas submissées. Mesmo a fenomenologia contribu, com seu aparetho, para colocar uma inspiracio nietzscheana, frequentemente nela presente, a servigo do confarmismo moderna. Entretanto, ‘quando se trata de Nietzsche, devemos, a0 contrério, partir do seguinte fato: a fllosofia dos valores, tal como ele a instaura € a concebe, & a verdadeira realizarao ca critica, a nica maneira de realizar a critica total, ito é, de fazer a filosofia a “marte\adas Com efeto, a nocto ée valor implica uma irversie critica. Por um lado os valores aparecem, ou se dio, coma principios: uma avaliagio supde valores a partir dos quais aprecia os fendmenos. Porém, por outro tado e mais profundamente, sio os valores que supaem avaliagdes, “pontos de vista de apreciagSa” dos quals deriva seu prépria valor. O problema eritica é @ valor des valores, a avaliagdo da qual procede o valor deles, portanto, o problema da sua crlagdo, A avaliagho se define como o elemento diferencia dos valores correspondentes: elemento critica e criador 20 mesmo tempo. As avaliagdes, referidas a seu elemento, néo sao valores, mas ‘manelras de ser, modos de existéncia daqueles que julgam e avaliam,servinco precisamente de prinipios para os valores em relaco 05 quais eles julgam. Por isso temas sempre as crencas, 0s sentimentos, os pensamentos que merecemas em funglo de nossa rmaneira de ser au de nosso estilo de vida. Ha coisas que 36 se pode dizer, sentir ou conceber, valares nos quais 86 se pode crer cam a condigao de avaliar “balxamente”, de viver e pensar "babkamente”. Eis 0 essencia: 0 alto ¢ 0 baixo, o nobre e o vil nfo sio valores ‘mas representam o elemento diferencial do qual deriva o valor dos prépros valores. A flosofia critica tem dois movimentos inseparavels: referir todas as colsas ¢ toda origer de alguma coisa a valores; mas também refer esses valores a algo que seja sua origem e que decida sobre o seu valor. Reconhecemas a dupla luta de Nietzsche. Contra aqueles que subtraem os valores & critica cont valoces estabelecidos: os “operaris da filesofia", Kant, Schopenhauer’. Mas também contra aqueles que critieam ou respeltam os valores fazendo-os derivar de simples fatos, de pretensos fatos objetvos: of utititaristas, os “erudites™ Nos dois casos a filosofia ntando-se em inventariar os valores existentes ou em criticar as coisas em nome de flutua no elemento indiferente daquilo que vale em si ou daquilo que vale para todos. Nietzsche se dirige ao mesmo tempo contra a elevaca idéia de fundamento, que deika os valores indferentes & sua prépria origem, e contra a idéia de uma simples derivacao causal ou de comeco insipido que caloca uma origem indiferente aos valores. Nietzsche forma 0 conceito novo de genealogia. O ‘lisofo & 0 genealogista, no um julz de tribunal A maneira de Kant, nem um mecinico & maneira utiitarista, O flsofe & Hesiodo, Nietzsche substitui © principio da universalidade kantiana, bem como 0 principio da semethanca, caro aos utiltaristas, pelo sentimento de diferenga ou de distancia (elemento diferencial). “Do alto deste sentimento de distancia arrogaram-se o direito de cra valores ou de determind-los: que thes importa a utilidade’?” GGenealogia quer cizer ao mesma tempo valor da origem e origem dos valores. Genealogia se opée ao carder absoluto dos valores tanto quanto a seu caréter relativo ou utilitirio. Genealogia significa © elemento diferencial dos valores do qual decorre o valor estes. Genealogia quer dizer, portanto, origem ou nascimento, mas também diferenca ou distancia na origem. Genealogia quer dizer nobreza e baixeza, nobreza e vilania, nabreza e decadéncia na origem. O nobre e 0 vil, 0 alto e 0 baixo, este é o elemento propriamente genealégico ou critico. Was assim compreendida, a critica é a0 mesmo tempo o que hi de mais positive. 0 elemento diferencial ndo & a critica de valor dos valores sem ser também 0 elemento positivo de uma criacéo, Por isso a critica nunca & concebida por Nietzsche como uma reacdo, mas sim como uma ajdo. Nietzsche opde a atvidade da critica & vinganga, ao rancor ou ‘20 ressentimento, Zaratustra sera seguido por seu “macaco”, por seu “buf8o", por seu “deménio", do comego ao fim do tivro; mas 0 ‘macaco se distingue de Zaratustra assim como a vinganca e o ressentimento se distinguem da prépria critica. Confundi-se com seu macaco é 0 que Zaratustra sente como uma das horriveis tentagdes que the so armacas*. A critica nao una re-agio do re- sentimento, mas @ expresso ative de um moco de existencia ative: 0 ataque e no a vinganca, a agressvidade natural de uma ‘maneira de ser, a maldade diva sem a qual néo se poderia imaginar a perfeicic’. Esta maneira de ser &a do filésofo porque ele se rope precisamente a manejar 0 elemento diferencial como critico e criador, portanto, como um martelo. Eles pensan baixamente”, diz Nietzsche sobre seus adversiros. Nietzsche espera muitas coisas dessa concepcio de genealogia: uma nova organizagio das cléncias, uma nova organizacio da flosoia, uma determinacio dos valores 60 futuro. 1M, 21 2 BM, VIPate >GM,2, 42 -De passage PE, 67 Giles DeLeUZe — NiETZSCHE ER FLOSOFIA. 5 2. 0 SENTIDO Jamals encontraremos o sentido de alguna coisa (fendmeno humano, bioligico ou até mesmo fisco) se ndo sabemos qual é a forca {que se apropria da coisa, que a explora, que dela se apodera ou neta se exprime. Um fenémeno no é uma aparéncia, nem mesmo uma aparicio, mas um signa, un sintoma que encontra seu sentido numa forga atual. A filosofia intelra é uma sintomatologia, uma seinologia. As cléncias sio um sistema sintomatolégico e semiolégico, A dualidade metafisica da aparénciae da esséncia e, também, a relacio cientifica do efeito © da causa sto substituidas por Nietzsche pela correlagio entre fenémeno e sentido, Toda forca & apropriagio, dominacio, exploragSo de uma quantidade da realidade. Mesmo a percepcio em seus aspectos diversos é a expressio de forcas que se apropriam da natureza, Isto quer dizer que a prépria natureza tem uma histia, A historia de uma coisa é geralmente a sucessio das forgas que dela se apoderam e a co-exsténcia das forcas que lutam para delas se apoderar. Um mesmo ‘objeto, um mesmo fendmeno muda de senti¢o de acordo com a forsa que se apropria dela. A historia € a variagao dos sentidos, isto 6 "a sucessio dos fendmenos de dominagéo mais ou menos vilentos, mais ou menos independentes uns dos outros”. © sentido & centdo uma nocio complexa: hé sempre uma pluralidade de sentidas — uma constelasdo, um complexe de sucessées, mas também de coexisténcias — que faz da interpretacio uma arte, “toda subjugagio, toda dominacio, equivale a uma interpretacio nova”. A fllosotia de Nietzsche s6 6 compreendida quando levamos em conta seu pluralisma essencial. E, na verdade, 0 pluralisme (também chamado empirismo) ¢ a filosofia sto uma Gnica coisa. 0 pluralismo a maneira de pensar propriamente flasfica, inventada pela filosofia: nico fiador da verdade no espirito concreto, Unico principio de um violento atelsmo. Os Deuses morreram, mas eles ‘morreram de rir ouvindo um Deus dizer que era o nico. “Néo seré precisamente isto a divindade, que haja deuses, que nao haja un Deust™ Ea morte deste Deus que se dia nico é, ela mesma, plural: a morte de Deus é um acontecimento cuja sentido é milcplo. Els porque Nietzsche ndo acredita nos “grandes acontecimentos” ruldosos, mas na pluralidade silenciosa dos sentidos de cada acontecimento’. Nao existe sequer um acontecimento, um fendmeno, uma palavra. nem um pensamento cujo sentido no seja riitipo, Alguma coisa é ora isto, ora aquilo, ora algo de mais complicado segunda as forgas (as deuses) que delas se apoderam. Hegel quis ridicularizar o pluralismo identificancoo a uma consciéncia ingénua que se contentaria em dizer: “Isto, aquilo, agu, agora” como uma crianga balbuciando suas mais humildes necessidades. Na idéia plualista de que uma coisa ter varios sentdos, a fdéia de que ha varias coisas, © “sto © depois aquilo” para uma mesma caisa, vemos a mais alta conquita da flasofia, a conquista o verdadeiro conceito, sua maturidade e nao sua renincia e sua infincia, Pols a avaliagao disto e daqullo, a deticada pesagem das coisas © dos sentidos de cada uma, a avaliacio das forcas que definem a cada instante os aspectos de uma coisa e de suas relacées com as outras, tudo isto (ou tudo aquile) pertence & arte mals elevada da filosfia, ada interpretacso. Interpretar, e mesma avaliar, pesar. A nogto de esséncia néo se perde ai, mas gana uma nova signiicasao; pois nem todos os sentics se equivalem. Uma coisa ‘tem tantos sentidos quantas orem as forcas capazes de se apoderar dela. Mas a prépria coisa néo é neutra e se acha mais ou menos fem afinidade com a forga que se apodera dela atualmente. Ha forcas que $8 podem se agoderar de alguma coisa dando-the un sentido restrtivo © um valor negativo, Ao contrario, chamar-se-d esséncia, entre todos 0s sentidos de uma coisa, aquele que the da a orga que apresenta mais ainidade com ela. Assim, num exemple que Nietzsche gosta de citar, a rliglio ndo tem um sentido Unico, Visto que dela serve sucessivamente a moltiplas forgas. Mas qual & a forca em afinidade maxima com a reiigio? Qual & a forca da qual nio se sabe mais quem domina, se é ela prépria que domina a eligi ou se é a religifo que a domina!? “Pracurem H,” Para todas as cosas tudo isso 6 ainda questio de pesagem, a arte delicada mais rigorosa da filosofia, a Interpretagdo pluralista, A interpretacio revela sua complexidade quando pensamos que uma nova forca sé pode aparecer © se apropriar de um objeto Usando, no inicio, a mascara das forgas precedentes cue J8 0 ocupavam. A méscara ou a artimanha sio leis da natureza, portanto, algo mais do que uma mascara ou uma artimanha. A vida, no inicio, deve imitar a matéria para ser simplesmente possvel. Uma forca nao sobreviveria se, iniciamente, no tomasse emprestada a aparéncia das forcas precedentes contra as quais uta’. € assim que 0 ‘lisofo 6 pade nascer e erescer, com alguma chance de sobrevivéncta, aparentando 0 ar cantemplativo do sacerdate, de homer ascético € religoso que dominava 0 mundo antes de seu aparecimento, A imagem ridicula que se tem da filosofia, a imagem do ‘ilésof sdbio amigo da sabedoriae da ascese, ndo 6 0 nico testemunho de que tal necessidade pesa sobre nés. Mas ainda, aprépria, filosofia ndo se desfaz de sua mascara ascética & medida que cresce; deve acreditar rela de uma certa maneira, s6 pode conguistar sua mascara éando-the um novo sentido no qual, finalmente, exprime-se a verdadeira natureza de sua forca anti-rligisa*. Vernos entretanto que a arte de interpretar deve ser também uma arte de romper as mascaras, ¢ de descobrir quem se mascara e porque, & ‘com que sentido se conserva uma mascara remadelando-a. Isto quer cizer que a genealogia nao aparece no inicio © que nos arriscamos a muitos contra-sensos procurando, desde © nascimento, qual é o pai da crianca. A diferenca na origem nao aparece desde a origem, exceto, talvez, para um olho especialmente preparado, 0 olho que vé Longe, o olho do Presbiope, do genealogist S6 se pode captar a esséncia ou a genealogia da Filosofia e distingur esta Gltima de tudo aquilo com que na inicio tisha muito "eM 1.12 22 Doe rng’ 22, Dos grandes acorieemenis. «Nitzoheporgunia qual 6a ferga que deli a possbidade "se gir soberanament por simesma’? (BM, 52, * GM 6.980 G4 I 10, Gilues DELEUZE — NIETZSCHE ER FILOSOFIA. 6 {nteresse em se confundir quando ela cresce. isto se di com todas as cosas. “Em todas a coisas $6 0s graus superiores importam’.” Nao que 0 problema ndo seja 0 da origem, mas porque a origem concebida como genealogia $6 pode ser determinada em relacio ‘om os graus superioes. Nao temas cue nos perguntar @ que os gregos dever a0 Oriente, diz Nitzsche®, A filosofia & grega na medida em que é na Grécia ‘que ela atinge pela primeira ver sua forma superior, que testemunha sua verdadelra forca e seus objetivos que nao se confundern ‘com 5 do Oriente-sacerdte, nem mesmo quando ela os utiliza. Philosophas no quer cizers&bio, mas amigo da sabedoria Ora, que ‘manetra estranha é preciso interpretar “amigo” : 0 amigo, diz Zaratusra, & sempre um terceio entre eu € min, que me leva a me superar e a ser superado para viver’, 0 amigo da sabedoria é aquele que se vale da sabedoria, mas do modo como alguém se vale de uma méscara dentro da qual nda se sabreviveria; aquele que faz a sabedoria sem ira novos fins, estranhos e perigosos, mutto poucos sibios na verdade, Ele quer que ela se supere € que seja superada. E certo que 0 povo se engana sempre com isto; ele pressente a cesséncia do filésofo, sua anti-sabedor'a, seu imoralismo, sua concepso de amizade. Humildade, pobreza, castidade, adivinhemos 0 sentido que tomam essas virtudes sibiase ascéticas quando sto retomadas pela filosofia como por uma forga nova * FILOSOFA DA VONTADE [A genealogia nao interpreta simplesmente, ela avalia, Até agora apresentamos as coisas como se lutassem @ se sucedessem em relagio a um objeto quase inerte. Maso préprio objeto &forca, expressio de uma forca. E é por iso que ha mais ou menos ainidade entre o objeto e a forca que dele se apodera. Nao ha objeto (fendmeno) que j& nfo seja possuico, visto que, nele mesmo, ele é, nto uma aparéncia, mas © aparecimento de uma forea. Toda forca esta, portanto, numa relacdo essencial com urna autraforca. O ser da orga € © plural; seria rigorasa mente absurdo pensar a forca no singular. Uma forca & dominacdo, mas & também o objeto sobre o qual uma dominacdo se exerce. Fis 0 principio da flosotia da natureza em Nietzsche: uma pluralidade de forcas agindo e sofrendo & distancia, onde a distdncia &0 elemento dierencial compreendido em cada forga e pelo qual cada uma se relaciona com as outras. A critica ao atomismo deve ser compreendida a partir deste principio: consiste em mostrar que 0 atomismo é uma tentativa de femprestar & matéria uma pluralidace e uma distancia essencias que, de fato, sé pertencem & forca. Sé da forca se pode dizer que seu ser refere-se a uma outra forga. (Como lz Marx, quando interpreta o atomismo: “Os étomas s4o os dnicos objetos para eles rmesmos e s6 podem se relacionar com eles préprios..". Mas a questio é a seguinte: a nocéo de tomo, em sua esséncia, pode prestar contas dessa relagdo essencial que se the atribu? O conceita sé se toma coerente ao pensarmas forga em algum lugar de ‘tomo, Isto porque a nacio de tomo no pode conter em si mesma a diferenca necessiria para a afirmacio de tal relacio, cliferenca na esséncia e segunda a esséncia, Senda assim, o atomisma seria uma mascara para o dinamismo nascente) © conceito de forca € portanto, em Nietzsche, 0 de uma forea que se relaciona com uma outra forga. Sob este aspecto a forca & , 488 ou 13, "Pill VP, 457-496 Giles DeLEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 14 Herdclito & 0 pensador trigica. O problema da justica atravessa sua obra, Hericlito € aquele para quem a vida é radicalmente ‘nacente e justa. Compreende a existéncia a partir de um instinto de jogo, faz da existencia um fensimeno estético, no un ‘enémeno moral ou religioso. Por isso Nietzsche 0 ope ponte por ponto a Anaximandro, come o préprio Nietzsche se opde a Schopenhauer '- Herdclito negou a dualidade dos mundos, “negou o préprio ser”. Mats ainda: fez do devir" uma afirmaci. Ora, & preciso refletir longamente para compreender 0 que significa fazer do devir uma afinmacao. Sem divida significa em primelro lugar, ‘que sé ho devir. Sem divica é afirmar devir. Mas afirma-se também o ser do devir, cise que o devir afirma o ser ou que 0 ser se afinna no devir. Heréclito tem dots pensamentos que sio como marcos: de acordo com um deles o ser nBo &, tudo esta em devi; de acordo com 0 outro 0 ser é 0 ser do devir enquanto tal, Um pensamento trabathador que afirma o devir, um pensamento contempativo que afirma o ser do devi. Estes dois pensamentos nao so separdvels, s4o o persamento de um mesmo elemento, ‘como Fogo e como Dike, como Phys e Logos. Pois no ha ser além do devir,ndo hi o um além do miktiplo; nem o maltipio, nem o evir sto aparéncias ou ilusdes. Mas também no hé realidades miltplas e eteras que seriam, por sua vez, como essénciasalém da aparéncia, O miltiplo é a manifestagio insepardvel, a metamorfose essenclal, © sintoma constante do nica. © miltiplo é a afirmacio do um, 0 devir, a afiemacao do ser. A afirmagSo do devir€, ela propria, 0 ser; a afirmacso do miitiplo é, ela propria, 0 um; a afirmagio méltipla é a maneira pela qual o um se afirma, “O um é 0 miltiplo”. Se o um, jus iitiplo, como o maltiplo sairia do um e continuaria a sair dele apés uma eternidade de tempo? “Se Heréclito s6 percebe um elemento nico é, portanto, num sentida diametralmente opeste a0 de Parménides (ou de Anaximando)... 0 nico deve afrmar-se ni se afirmasse no a geragdo e na destruicdo.” Herdclito olhou profundamente, nio viu neshum castigo do miitiplo, nenhuma expiagao do devir, rrenhurna culpa da existéncia, Nada viu de negative no devir, ao contraro, viu a dupla afirmacio do devir e do ser do devir, em summa, a justificacdo do ser. Herdclito & 0 obscuro porque nos conduz as prtas do obscure: qual & o ser do devir? Qual & 0 ser inseparivel do que esti em devir? Tornar a vir € 0 ser do que devém. Tomar a vir € 0 ser do proprio devir, 0 ser que se afirma no evir, 0 eteme retorne come lei do devir, como justica e como ser Dai se segue que a existéncia nada tem de responsivel e nem mesmo de culpada, “Heréclito chegou mesmo a gritar: a luta dos seres ‘numerdvels & pura justcalE, alés, o um € o méltipto.” A correlacio do miltipto © do um, do devire do ser forma um jogo. Aimar © devir, afar 0 ser do devir séo os dois tempos de um jogo que se compaem com um terceira termo, 0 jogacor, 0 artista ou a crlanea’. 0 jogador-atista-crianca, Zeus-crianga: Dionisio, que 0 mito nos apresenta rodeado por seus brinquedos divinos. 0 jogador abandona-se temporariamente & vica e temporariamente nela fixa 0 olhar: o artista se coloca temporariamente em sua obra & temporariamente acima dela: a cranca joga,retirase do jogo e a ele volta. Ora, & 0 ser do devir que joga 0 jogo do devir consigo mesmo: 0 Ain, diz Herdctito, & uma crianca que Joga, que Joga malha. 0 ser do devir, 0 eterno retomnar, é 0 segundo tempo do jogo, mas também 0 terceiro terma idéntico aos dois tempos e que vale para o conjunto, Isto porque o etemo retomo & o retorna dlstinto do ir, a cantemplacto distinta da aco, mas também o retomo do prépro ir eo retomo da a¢io, simultaneamente momento «© ciclo do tempo. Devemos compreender 0 segredo da interpretacao de Heréclito: & hybrs ele opse o instinto de jogo. “No é um corgulho culpado, & 0 nstinto do jogo sempre (espertado que cria novos mundes.” Nao uma teodicia, mas uma cosmodicéia; nao uma soma de injustigas a serem expiacas, mas a justica come lei deste munco; no a hybris, mas o jogo, a inocéncia, “Esta palavra Perigosa, a hybris, €@ pedra de toque de todo heracliteana.€ ai que ele pode mostrar se cornpreenceu ou nato seu mestre.” 11. O LANCE DE DADOS 0 joge tem dois momentos que sio 0s de um lance de dads: os dades lancados e os dads que caem. Nietzsche chega a apresentar 0 lance de dados como sendo jogado sobre duas mesas distintas, a terra eo céu. A terra onde se lancam os dados, 0 céu onde caem os dos: * Se alguma ver joguei dados com os deuses, na mesa divina da terra, fazendo com que a terra tremesse € se quebrasse, projetanco ries de chamas — pois a terra é uma mesa divina, que treme com novas palavras criadoras e com um ruido de dados diving..." — “0 céu acima de mim, céu puro e alto! Tua pureza consiste agora para mim em ndo existir nenhuma eterna aranha, rem teia de ararha da race: que tu sejas una pista de danca para os acasos divines, que sejas uma mesa divina para os dados © as Jogadores divinos..”," mas essas duas mesas nio so dols mundos. S40 as duas horas de um mesmo mundo, os dois momentos do ‘mesmo mundo, meia-noite © meio-dia, a hora em que se langam os dados, a hora em que caem os dados. Nietzsche insiste nas duas esas da vida que sio também os dois tempos do jogador ou do artista: “Abandonaronos temporariamente a vida para fixarmos ‘emporariamente o olhar sobre ela.” 0 lance de dados afima o devire firma a ser co devi. Nao se trata de véris lances de dacos, que devida a seu ndmmero, chegariam a repraduzir a mesma combinagio. Ao contréto, trata se de um 35 lance de dados que, devide ao nimero da combinacdo produzida, chega a reproduzirse como tal. Nao & um grande Para udo qua so Segue, rota a Herd, of. NE * Segundo o Novo Dison da Lingua Potguesa de Auda Buarque de Holanda Ferea:“. nt. ira ser tomarse,deven Sm, Deven Utlzamos mts vezeso subsanvo eo verbo devi ovras vezes seus snimos, NT. "Nietzsche madca sua ntrpretago malzardo-a Perum ldo, Heracles ndo se desprendeucarpletarents das prspectias do castigo e da cuba sua eof a combust oa pal fo). Per ut lo, ol aparas presser vrai sana do era vette, Por ssa, or NF, Nitasche fala do ero tema er Hetil por alse e, em EH (ILA origem da vapéi3) se uament nto deta de ser retcent 2NF:"A Dike ou gram eranens; 0 Pleas qv és ga, canuns visto como um ogee jugandoo todo, o arta cade, le prpri tbr sus br, 42-08 sete see. ZI Anos do rane: do sa Giles DeLeUze — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 15 rimero de lances que produz a repeticio de uma combina¢o, & 0 nimero da combinacio que produ a repeticio do lance de dados. Os dados langados ua sé vez sio a afirmagio do acaso, a combinagio que formam a0 calr é a afirmacio da necessidade. A necessidade se afirma com 0 acaso no sentido exato em que o ser se afirma no devir e o um no miltipl. Em vio dir-se-a que os dados, lancados ao acaso, ndo produzem necessariamente a combinacio vitoriosa, © doze que traz de volta o lance de dados. € veréade, mas apenas na medida em que o jogador no soube iniciaimente aflrmar 0 acaso, Isto porque, do mesmo modo que o um nao suprime ou nega © miltipla, a necessidade néo suprime ou abole 0 acaso. Nietzsche identifica © acaso ao miltiplo, aos fragmentos, aos membros, a0 caos: ca0s dos dados que sacudldos e que lancamos. Nletasche faz do acaso uma aflrmacdo. 0 proprio céu é chamado de “céu acaso", “céu inocéncia™; 0 reino de Zaratustra é chamado ce “grande acaso” * “Por acaso, esta é a mais antiga nobreza do mundo, eu a resttui a todas as cosas eu as libertel da servidio da finalidade... Encontrel em todas as coisas esta certeza bem-aventurada de que elas preferem dancar sobre os pés do acaso”. “Minha palavra é: delxem vir a mim o acaso, ele & ‘nocente como uma criancinha *." 0 que Nietzsche chama de necessidade (destino) nunca é, portanto, a abolisSo do acaso, mas sim sua prépria combinagao. A necessidade é afirmada com o acaso conquanto 0 proprio acaso seja afirmado. Pots ha apenas uma dnica combinagio do acaso enquanto tal, uma Gnica maneira de combinar todos os membros do acaso, maneira que é como um do riitiplo, isto 6, nimero ou necessidade. Hé muitos nimeros segundo probabilidades crescentes ou decrescentes, mas um énico rnimero do acaso enquanto tal, um Ginico ndmero fatal que redna todos os fragmentos do acaso, como o meio-dia reine todos os ‘membros esparsos ce meia-nite. Por isso basta a0 jogador afirmar 0 acaso uma s6 vez para produzir o nimero que traz de volta 0 lance de dados' Saber afimmar 0 acaso & saber jogar. Mas nés sabemos jogar: “Timido, envergonhado, desajeitado, semethante a um tigre que errou seu bote: é assim, 6 homens superiores, que freilentemente os vi fugir. Vocés haviam errada um lance de dados. Mas que thes importa, & vocés jogadores de dados! Vocés nao aprenderarn a jogar © a desafiar como se deve jogar e desafia”." 0 mau jogador conta com varios lances de dados, com um grande nimera de tances; assim ele cispe da causalidace © da probabilidade para trazer uma combinagdo que declara desejével: ele coloca essa propria combinagdo como um objetivo a ser obtido, oculto atrés da causalidade. € 50 que Nietzsche quer dizer quando fala da etema aranin, da tela de aranha da razio. “Uma espécie de aranha de lmperativo e de finalidade que oculta atrés da grande tela, a grande rede da causalidade — poderiamos dizer como Carles, 0 Temerario, em luta com Luis XI: “Eu combato a aranha universal,” Abotlr 0 acaso pegando-o cam a pinga da causaldade; em (ugar de afinar 0 acaso, contar com a repetiglo dos lances; em lugar de afirmar a necessidade, contar com uma finalidade; todas esses so operagées do mau jogador.Elas tém sua raiz na razio, mas qual é a ralz da razio? O espirto de vinganca, nada mats do que o espirto da vinganca, a aranha ' O ressentimento na repeticao dos lances, a ma conscigncia na crenga numa finalidade, Mas assim 56 sero obtides nimeros relatives, mais ou menos provaveis. © universo no tem finaidade, nao existe finalidace a esperar, assim como nie hi causas a conhecer, é esta a certeza para jogar bern. Perde-se o lance de dados porque nao se afirmou bastante 0 acaso fem uma dinica vez. Ele nfo foi bastante afirmaco para que se produzisse o nimero fatal que redne necessariamente todos os seus fragmentos e que, necessariamente, traz de volta a lance de dades, Devemos portanto conceder a maior importincia & seguinte conclusio: 0 par causalidade-finalidade, probabllidade-finalidade, a oposicdo e a sintese desses termos, a tela desses termos sta substituidos por Nietzsche pela correlagio acaso-necessidade, pelo par dionsiaco acaso-cestine. Nao uma probabilidade repartida ‘em muitas vezes, mas todo © acaso em uma s6 vez; ndo uma combinagéo final desejada, queriéa, aspirada, mas a combinagio fatal, fatal e amade, © amor fati; néo o retorno de uma combinacio pelo nimero de lances, mas 2 repetigio do ance de dados pela natureza do nimero obtida fatalmente 12, CONSEQUENCIAS PARA O ETERNO RETORNO Quando 0s dads lancados afirmam uma vez 0 acaso, os dados que caer afinmam necessariamente o nimero ou 0 destino que traz de volta lance de dados. € nesse sentido que 0 segundo tempo do jogo € também 0 conjunto dos dois tempos ou o jogador que vale 12 “Anies do rasce: do st 22,1, olerenda dome”. —E I, "Das vena eds nves bias Zarausta se noi "edertar do caso ZI -Antes do rane’ do sa "No morte das OWveras + Noo acodtars portant que, segundo Netzsne, 0 acaso saa agate pula nocesiade. Numa cpwrago como atransmuago muss coisas sto negates cu abodas, pr exer, oespto de Peso &negado pea canc, A emul gral de Nistzsche a esse respatn & a squire E rege too que pode se regedo {isto propa negatvo, nile suas expresses. Mas o aca no &. com oexpiie de pest, uma exaressodonifo el @ bjt de aka pre Na péaawarerlago exo uma comolacae do alragées: cate erecessdade, devo er, mil © Un. Nao se confuse b afmado corelatvanans camo que &rapado cu sumio pel vansmulgao 2,1, "Do home superior: Ge 8 2d arte. VP i A, * Em dois lets da Vontade de Poder, Nitscheapresera o stomo rena na prspectva ds probabilades e coe detuznd-se de um garde nimare de larcs:" See supde ua massa enama de cass, a repato fori de um mesmo lance de dagoe& mais provave do que uma no-eriade abel (VP, 324) mundo sendoelocado como granaza de fora defnids eo lepo coe mel ints, ota cana possvel seria elvada pe mencs ua vz, als ‘inde, sera realasda um nero iniito de vezes" (VP, I 329), — Was, 1) ess taxos do ums exposeao 60 stem relma apenas pec”: 2) 530 “apolgecs’, rum sor balan préxina do que se alibi aposia de Pascal. Trle-s de tomar 209 dalea o mezaricisro, mostado que ele desonbaca ana cencluso que no & neoeeaamante mecanicea’ ales se Polbmcn’ de ago agressvo, alas da vance o may jogader em seu propo, Gilues DELEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 16 para o conjunte. 0 eterno retorno & 0 segundo tempo, o resultado do lance de dados, a afirmacio da necessidade, o nimera que redne todos 0s membros do acaso, mas também o retomo do primeiro ternpo, a repeticao do lance de dados, a reproducio e a re afirmacio do préprio acaso. 0 destino no eterna retomo é tamivém a “boa-vinda” do acaso: "Fag ferver em minha marmita tudo 0 que & acaso. E somente quando o acaso esté no ponto, eu the desejo boas-vindas para com ele fazer minha alimentagao, E na verdade, muito acaso se aproximou de mim como senhor; mas minha vontade the falou mais imperiosamente ainda e logo ele estava de joethos diante de mim e me suplicava — suplicava para que lhe desse asi.oe acolhida cordial, e me falava de maneira aduladora veJa entio, Zaratustra, s6 um amigo vem assim a ui amigo '.” Isto quer dizer que existem muitos fragmentos Go acaso que pretendem valer por si mesmas; eles invocam sua probabilidade, cada um solicita do jogador varios lances de dados; repartdos em Vitios lances, tomades simples probabilidades, os fragmentos do acaso sio escravos que querem falar como senhores?; mas Zaratustra sabe que nio é assim que se deve jogar nem se debxar jogar; é preciso, 20 contrario, afimar todo o acaso numa tnica vez (fazé-to portanto fervere corinhar como 0 jogador que esquenta os dados em sua mio}, para reunir todos os seus fragmentos e para afiemar o nimera que nio é provavel, mas fatal e necessiro; somente enti o acaso & um amigo que vern ver seu amigo e que este ‘az vltar, un amigo do destino, do qual o destino assegura o etemo retomo enquanto tal Num texto mais obscura, carregada de significagio histérica, Nietzsche escreve: “O caos universal, que exclu toda atvidade de caréter finalista, ndo & contraditério com a idéia do ciclo; pois esta idéia é apenas uma necessidade itracional’.” Isso quer dizer: freqientemente 0 ca0s 0 ciclo, 0 devir ¢ 0 eterno retorne foram combinados, mas como se pusessem em jogo dois termos opostos. Assim, para Patio, o devir & ele préprio um devi Kimitado, um devir louce, um devir hybrica e culpado que, para ser colocado em circulo, precisa sofrer a ago de um demiurgo que 0 envergue pela fra, que the imponha o limite ou 0 modelo da idéia; 0 devir ou 0 caos s80 repelides para o lado de uma causalidade mecinica obscura eo ciclo é referido a uma espécie de finalidade que se impde de fora: 0 ca0s ndo subsiste no ciclo, o ciclo exprime a submissio forcada do devir a uma lei que nio & a sua. Herdcito era talvez 0 Unico, mesmo entre os pré-socréticos, que sabia que o devi no é “julgado", que ndo pode ser julgado e nao & para ser julgado, que ele nfo recebe sua lei de fora, que & “justo” € possui em si mesmo sua propria lt. SS Heréclito pressentiu que o cans eo ciclo em hada se opunham. E, na verdade, basta afirmar 0 caos (acaso € nao causalidade) para afimar ao mesmo tempo o nimero ou a rnecessidade que o traz de volta (necessidade irracional e née finalidade). “Nao houve inicialmente um caos, éepois pouco @ pouco lum movimento regular e circular de todas as formas; tudo isso, 20 contriio, & etemmo, subtraido ao devi; se algum dia houve un 205 das forgas era porque o caos era etemo e reapareceu em todos 0s ciclos. O movimento circular nko deveio, ele é a tei origina, do mesmo mode que a massa de forca é ale original sem exceso, sem infracio possivel. Todo devir se passa ne interior do ciclo & dda massa de forga’.” Compreence-se que Nietzsche nao reconhesa de modo algum sua idéia do eter retomo em seus predecessores antigos. Estes no viam no etemo retome o ser do devir enquanto tal, © um do miltiplo, isto é, 0 nimero necessério, saido necessariamente de todo o acaso. Eles ai viam até meso 0 oposto: uma submissio do devir, una confissio de sua injustica © a cexpiagao desta injustica. Com excegao de Heréclito, talver, eles no tinham visto “a presenca da lei no devire a presenca do joao na necessidade" 13, SINBOLISMO DE NIETZSCHE ‘Quando 0s dados s30langados sobre a mesa da terra, esta “estremece e se quebra”, pois 0 lance de dados é a afirmagio malts, a afinmasao do miltiplo. Mas todos os membros. todos os fragmentos sao langados de um golpe: todo 0 acaso de uma sé vez. Esse poder, nto de suprimir © miitiple, mas de afirmacio de uma s6 vez, € como 0 fogo: 0 fogo ¢ o elemento que jogs, o elemento das rmetamorfases que ndo tem contriro. A terra que se quebra Sob os dados projeta entSo “rios de chamas”. Como éiz Zaratustra, 0 iit, o acaso, 56 s30 bons cazidos e fervides. Fazer ferver, pr no fogo, no significa abolr 0 acaso, nem encontrar o um por etrés do miltilo. Ao contro, a ebuligéo na matmita & como o chaque de dados na mio do ogador, o tinica melo de fazer do riitip'o ou do acaso uma afirmacio. Os dados tangados formam entao o nimero que traz de Volta o lance de dados. Ao trazer de volta lance de daces, 0 nimera recolaca © acaso no foga, mantém 0 fogo que torna a cozer o acaso. O nimero & 0 ser, o.um ea ecessidade, mas © um afitmado do miltiplo enquanto tal, 0 ser aflrmado do devir enquanto tal, o destino aflrmado do acaso cenquanto tal. 0 nimero esta presente no acaso coma 0 ser e a Iei esto presentes no devir. E este nimero presente que mantém 0 ‘ogo, este um afirmado do miltipla quando o miltiploé afirmado, & a estrela dancarina, ou methor, a constelacio saida do lance de dados, A formula do jogo é a seguinte: gerar uma estrela dangarina com 0 caos que se traz em si’. E quando Nietzsche se interrogar sobre as razées que o levaram a escolner © personagem de Zaratustra, encontrard trés, muito diversas e de valor desiqual. A primeira Zaratustra coma profeta do eterno retorna'; mas Zaratustra nio é 0 nico profeta, nem mesmo aquele que melhor pressentiu a verdadeira natureza daquilo que arunciava. A segunda razao é polémica: Zaratustra foi 0 primeiro a introduzir a moral na 2, Da veudo que di. + somenienasse seid que Netzshe fala dos “rgmenos” com “acasos eves, “Da eden ph 2. Oe 5 VI, 325 movimento cular = cl, massa de for = acs. Ne, 2, Prog, 5 IV 56, Giuues DeLeuze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 17 metatisica, fez da moral uma forga, uma causa, um objetivo por exceléncia; portanto é ele quem esti methor colocado para denunciar a mistiticagao, 0 erro dessa prépria moral’. (Mas uma razio andloga valeria para Cristo: quem melhor que Cristo est apto para representar o papel do anticrsto.. ¢ de Zaratustra em pessoa?) A terceira razBo, retrospectiva, mas a ‘nica suficiente, é a bela razio do acaso: “Hoje aprendi, por acaso, o que significa Zaratustra, a saber, estrela de ouro. Este acaso me encanta ™. Este jogo de imagens caos-fogo-constelacio rete todos os elementos do mito de Dionisio, Ou melhor, estas imagens formam 0 jogo propriamente dionisfaco. Os brinquedos de Dionisio crianca; a afirmacio miltipla e os membros ou fragmentos de Dionisio laceraco; a cocgéo de Dionisio ou 0 um afirmanderse do multiple; a constelacdo levaca por Dionisio, Ariana no Céu como estrela dancarina; 0 retorno de Dionisio, Dionisio “senor do eterno retorno”. Teremos, por outro lado, a oportunidade de ver como Nietzsche concebia a clénciafisica, a energética e a termodindmica de seu tempo. € claro, desde agora, que ele sonha com uma méquina de fogo, bem diferente da maquina a vapor. Nietzsche tem uma certa concepeio da fisica, mas nenhiuma ambicao de fsico. Concede-se o direito ostico e filosético de sonhar com maquinas que a ciénciatalver um cia seja levada a realizar por seus préprios meios. A maquina de afirmar 0 acaso, de cozinhar 0 acaso, de compor o nimero que traz de volta 0 lance de dados, a méquina de desencadear forgas imensas a partir de pequenas solicitacées miltiplas, a méquina de brincar com os astros, em resume, a maquina de fo30 heraciteana! Mas nunca um jogo de imagens substituiu para Nietzsche um Jogo mais profundo, © dos conceites e do pensamento filaséfico. 0 poema eo aorismo sao as duas expressdes metaféricas de Nietzsche; mas estas expressées esto numa relacéo rmindvel com 2 ‘ilosofia. Um aforismo considerada formalmente se apresenta camo um fragmento, é a forma do pensamenta pluralsta; e, em seu contetido ele pretende dizer e formular um sentido. 0 sentido de um ser, de uma aco, de uma coisa é 0 objeto do aforsmo. Apesar de sua admiracio pelos autores de maximas, Nietzsche vé bem o que falta @ maxima como género: ela 56 esta apta a descobrir ‘motives e por iso, em geral, ela s6 se refere aos fendmenos hurnanes. Ora, para Nietzsche, mesmo os motives mais secretos ndo sto apenas um aspecto antropomérfico das coisas, mas também um aspecto superficial da ativdade humana. 5é o aforismo & capaz de dizer 0 sentido, o aforismo & a interpretacso e a arte de interpreta; © poema igualmente é a avalacio e a arte de avaliar: ele diz os valores, mas, precisamente, valor e sentido de nocdes to complexas que o préprio poema deve ser avaliado e 0 aforismo interpretad, 0 poema e o aforisno séo, por sua vez, objetos de uma interpretacao, de uma avaliacdo. “Um aforismo, cuja fundicao «© a cunhagem sio 0 que dever ser, ndo basta ser ido para ser decifrado; falta muito ainda, pols a interpretacio apenas comecou’.” {sto porque, do ponte de vista pluralista, um sentido remete ao elemento diferencial de onde deriva sua sigificacio, assim como os valores remetem ao elemento ¢iferencial de once deriva seu valor. Esse elementa, sempre presente, mas também sempre implicito € aculto no poema ou no afarismo, & come que a segunda cimensio do sentido e dos valores. E desenvalvendo esse elemento € esenvolvend-se nele que a filosoia, em sua relagéo essencial com 0 poema e com 0 aforismo, consttui a interpretacdo e a avaliagio completas, isto é, a arte de pensar, a faculdade de pensar superior ov “aculdade de ruminar” *. Ruminagao € eterna retomo: dois estémagos no sio demais para pensar. Existem duas dimensies da interpretacio au da avaliagdo, sendo a segunda também a volta da primeira, a volta do afersmo ou © ciclo do poema. Todo aforisma deve portanto ser lide duas vezes. Com a lance de dados, comeca a interpretacao do eterno retorno, mas ela apenas comesa. E preciso ainda interpretar © prépro lance de dados ‘20 mesmo tempo que le retorna 14, NIETZSCHE E MALLARME Nao se pode exagerar as semelhancas evidentes entre Nietzsche e Mallarmé ’. Elas concernem quatro pontos principais © pem em Jogo todo o aparelho das imagens: 1) Pensar é emitir um lance de dados. S6 um lance de dados, a Partir do acaso, poderia afirmar a necessidade e produrir “o (nico nimero que no pode ser um outro”. Trata-se de um tinico lance de dados, no de um éxito em Vries lances; s6 a combinagdo vitoriosa em uma Gnica vex pode garantr a volta do langamentot. Os dados lancades s80 como 0 mar a vagas (mas Nietzsche diria: como a terra € 0 fogo). 0s dados que caem s8o uma constelagdo, seus pontos formam 0 riimero “descendente estelar”, A mesa do lance de dads & portanto dupla, mar co acaso e céu da necessidade, meia-noite-meio-dia. Meia- noite, ahora em que se langam os dados...2*) 0 homem no sabe Jogar. Mesmo @ homem superior ¢ impatente para produzir 9 lance Wa. 22, "Da more vonra’“Acradton., ima! Eh merou muta cad; ele prio ria aalago sua dau so wesse angio mink dade” 2 Cara a Gast 20 de mai de 183, ‘(38 sobre a guia a vpot} $0, 60, 61 (sobre 0 desencadeat de fras:"O home testomuna frgas inaustas que podem ser posts em ago por un oquono sar do natveza complet. Seres que bincam com as ass. "No tor da mola poeuaen-te exposes, mudanca do Seg do ads os atmos sitios desencadeamenos de fora. Todo nosso sistema slr poder, rum ic e bev insane, sent una exctagéo comgarivel 4 que onenvo exec sobre misc, Gu Prt. GU, Prac. IBAUDET, em La pose de Stiphane Malar (p 424), assina esa sereana. El exci com raz, qualquer nade um score ote, " Tinael, em ura estanka pga (33), cbsan qu ore de datos, segundo Nala, faz se em ura vez, mas parece lrertéo actanda mas creo prin de varies ncas de dats. ‘Dado mule que oéesarvererta de sua medtago oa lovato aescover un poara soba esse amv aoas do {dos atom o aca, Enlai, so @ cor e cla, Que ela mba aki dos grandes nimeres.”—E cho, sore, que sli dos grandes numeres no inodurtarenhum eesenvoWeraronarradegs, ras sorente un corasero, Hyppots tam ua sto mas pounds quan apoxa olarcs de dade de Nallam, rao da os grandes mers, as da maquina cerntica (Estudos Fos, 1056) A mesma apcxmagio vara pare Netzzche ede acato coma que precede Giles DELEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 18 de dades. 0 senior & velho, nao sabe lancar os dados no mar e no céu. 0 velho senhor é “uma ponte”, alguma coisa que deve ser tultrapassada. Uma “Sombra pueri”, pluma ou asa, fba-se no gorro de um adolescente, “estatura midda, tenebrosa e de pé em sua ose de sereia”, apto a retomar 0 lance de dados. Seria 0 equivalente de Dionisio-crianca, au mesmo das criancas das ihas bem- aventurada, filhos de Zaratustra? Mallarmé apresenta Igitur criancainvocando seus ancestrais que no s8o © homem, mas as Elohim: raga que fol pura, que “tirou do absoluto sua pureza, para sé-o e debxar apenas uma idéia ela propria atingindo a necessidade”, 3*) Nao sé 0 lancamento dos dados 6 um ato insensato e irracional, absurdo sobre-humano, mas constitui a tentativa trégica e 0 ensamento tragico por exceléncla. A igéia malameana do teatro, as célebres correspondénclas € equagées entre “drama”, “istério",“hino”. “hers” s8o testemunhas de uma reftexdo aparentemente compardvel & da Origem da Tragéaf, pelo menos pela sombra eficaz de Wagner como predecessor comum, 4*} 0 nimero-constelacio é, au seria, tambémn 0 lio, a obrarde-atte, como coroamento e justficagio do mundo. (Nietzsche escrevia, a propdsito da justificacio estética da existéncia: observa-se no artista "como a necessidade e 0 jogo, o conflito e a harmonia se casam para gerar a obra-de-arte”), Ora, © nimero fatale sideral traz de volta o lance de dados de tal modo que o lio é, no mesmo tempo, dinico e mével. A multiplicidade dos sentides © das interpretacées & explicitamente afirmada por Mallarmé; mas ela é 0 correlativo de uma outra afirmacéo, a da unidade do livro ou 60 texto “incorruptivel como a le". 0 lvea é 0 ciclo e a lel presente no devi. Por mals precsas que sejam, essas semelhancas permanecem superficiais. Mallarmé sempre concebeu a necessidade como a abollcdo do acaso, Mallarmé concebe 0 lance de dados de tal maneira que 0 acaso @ a necessidade se op6em como dois termes, sendo que 0 sequndo deve negar 0 primero e o primeira pode apenas imobilzar 0 segundo, lance de dados sé tem éxito se o acaso & anulado; ete fracassa precisamente porque o acaso subsiste de algum modo, “pelo simples fato de se realizar (a aco humana) toma os seus rmeios de empréstimo ao acaso.” Por iss, © nimero saido do lance de dados é ainda acaso. Frecientemente observou'se que 0 poeina de Mallarmé insere-se no velho pensamento metafisico de uma dualidade de mundos; o acaso & como a existéncia que deve ser negada, a necessidade & como o caréter da idéia pura ou da esséncia etema; de tal modo que a itima esperanca do lance de dados é 2 de encontrar seu madela inteligivel no autro mundo, uma constelagio que se responsabilize por ele “sobre alguma superficie vaziae superior” onde o acaso no exista. Enfim, a constelacdo é menos o produto do lance de dados do que sua passage 20 limite ou para um outro mundo. Néo perguntaremos que aspecto prepondera em Mallarmé, se a depreciacéo da vida ou a ealtacdo do inteligivel. Numa perspectiva nietzscheana esses dois aspectos sio Inseparsvels e constituem o préprio “nilismo”, isto 6, a maneira pela qual a vida é acusaca, julgada e condenada. Todo o resto decorre dat; araca de Igtur nfo é 0 super-homem, mas uma emanacéo do outro mundo. A estatura miida nao & a das criangas das lthas bern-aventuradas, mas a de Hamlet, “principe amargo do escalha", do qual Mallarmé diz em outra parte “senhar latente que no pode devir", Herodiada nao é Ariana, e sim a fia Criatura do ressentimento e da ma consciéncia,o espirite que nega a vida, perdido em suas amargas reprovacdes & Ama. & obra-de arte em Mallarmé é “Justa”, mas sua justiga ndo é a da existéncia, ainda uma justiga acusatéria que nega a vida, que supée seu fracasso e sua impoténcia’, Até mesmo o atefsmo de Mallarmé é um curiaso ateismo que vai buscar na missa um modelo do teatro sonhado: a missa, nfo 0 mistério de Dionisio... Na verdade, raramente levau-se to longe, em todas as drecdes, a etema tarefa de depreciar a vida. Nallarmé € o lance de dados, mas revisto pelo nilsmo, interpretado em perspectivas da ma consciéncia e do ressentimento, Ora, desligaco de seu contexto afirmativo e apreciativo, cestigado da inacéncia e da afirmaco do acaso,o lance de dados ni é mais nada, 0 tance de dados nao ¢ mais nada se nele 0 acaso é oposto & necessidade, 15. 0 PENSAMENTO TRAGICO Serd somente uma diferenca psicolégica? Uma citferenca de humor e de tom? Devemos colocar um principio do qual depende a ‘ilosofia de Nietzsche em geral: 0 ressentimento, a m4 conseiéncla, etc, ndo sio determinacées psicolégieas. Nietzsche chama de nilismo o empreendimento de negar a vida, de depreciar a existencia; analisa as formas principas co nism: ressentimento, ma conscinca, ideal ascético; chama de espirito de vinganga o conjunte do nltisma e de suas formas. Ora, a nilsmo e suas formas néo se reduzem absolutamente a determinacées pslcolégicas, multo menos a acontecimentas hstéricos ou a correntes idedlégicas e, menos ainda, @ estruturas metafiscas’, Sem divica 0 espirito de vinganga se exprime biologicamente, psicologicamente, historicamente © metafisicamente; 0 espirito de vinganca & um tipo, no & separivel de uma tipologia, peca central da filosofia nietzscheana. Mas todo 0 problema € 0 de saber qual 0 caréter desta tipologia. Longe de ser um trago psicoligco, o espirito de vinganca éo principio do qual depende nossa psicologia. Ressentimenta ndo é psicologia, mas, sem o saber, toda nossa psicologia é a do ressentimento. Do mesmo modo, quando Nietzsche mostra que o cristianismo esté chelo de ressentimento e de m& consciéncia, cle nao faz do nilismo um acontecimento histérico, mas antes 0 elemento da histéria enquanto tal, 0 motor da hstéria universal, 0 faroso “sentido histérico” ou “sentido da histéria”, que encontra no crstianismo, num determinade momento, sua manifestacio a * Quando Nitsch lava da ‘uscago eta da entice, alae, palo ca, daa camo state da via arte air a vida, a ia sear 3 Haidegger insist nesses ports, Por exemple: "Oilsmo move sista & manera do um proceso funda, pera econteiso nos destnos ds pvos do Ctignta.O nie rao &,potario, um enbmera hist ane culos, au ua caren esriual que, no quao da sti oiera, encanta a ado cus cers espa" (HOLZWEGE "A pala de Nese Das est mart’ rad anc, Arguments, 1), Gilues DeLEUze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 19 mats adequada. E quando Nietzache realiza a critica da metafisca, faz 0 nile o pressupesto de toda metafisica e ndo a expressio de uma retafsica particular: n3o ha metafisica que ndo julgue e no deprecie a existéncia em nome de um mundo supra-sensivl. Nao se dird nem mesmo que 0 niltsma © suas formas so categorias do pensamento pois as categorias do pensamento, como pensamento racional — a identidade, a causalidade, a finalidade — supdem, elas préprias, uma interpretacio da forca que & a interpretacio do ressentimento. Por todas essas razbes Nietzsche pode dizer: “O instinto da vinganca se apoderou de tal modo a hhumanigade no curso dos séculos que toda a metafisca, a psicologia, a histéria e sobretudo a moral trazem sua marca. No momento fem que © homem comecou a pensar, introduziu nas coisas o bacilo da vingancal.” Devernos compreender que o instinto de vinganca & © elemento genealégico de nosso pensamento, 0 principio transcendental de nossa maneira de pensar. A luta de Nietzsche contra o nilismo e © esptita de vinganca significars, portanto, a derrubada da metafsica, fim da histria come histérla do homem, transformagdo das cléncias. E, na verdade, nem mesmo sabemos 0 que seria um homem desprovido de ressentimento. Umm homer {que nio acusasse © nao depreciasse a exsténcia, seria ainda um homem, pensaria ainda como um homem? J4 no seria algo distinto {do homer, quase o super-homem? Ter ressentimento, nfo té-lo: para além da psicologia, da histéria, da metafisica, esta é a maior ciferenca. € a verdadeira diferenca ou tipologia transcendental — a diferenca genealégicae hierdrquica Nietzsche apresenta o objetivo de sua Filosofia: iberar o pensamento do nilismo e de suas formas. Ora, isto envolve uma nova ‘manelra de pensar, una convulsio no principio do ual depende o pensamento, uma retiicacio do préprio principlo genealdgico, uma “transmutagio". Ha muito tempo vimos pensanco em tetmos de ressentimento © de ma conscéncia, Nio tivemos outro ideal aldm do ideal ascético. Opusemas o conhecimento & vida, para julgar a vida, para fazer dela algo culpado, responsive e errado. Fizemos da vontace uma coisa ruim, atingida por uma contradiéo original, ciziamos que era retificvla, refreé-la, timité-la © até regia, suprimla, Ela 36 era boa a este prego. Nenhum filésofo, a0 descobrir aqui au ali a esséncia da vontade, deixou de gemer sobre sua prépria descoberta e delxou de ver ai, como o adivinho temeroso, a0 mesmo tempo © mau pressigio para o futuro © a fonte dos males no passado. Schopenhaver leva as dltimas conseqiléncias essa velha concepcio: a prio da vontade, diz ele, © a roda de Ixiéo, Nietzsche & 0 Unica que nao geme sobre a descoberta da vontade, que néo tenta conjuré-la, nem limitar seu efeito. “Nova maneira de pensar” significa um pensamento afirmativo, um pensamento que afimma a vida e a vontade da vida, um pensamento que expulsa enfim todo 0 negative. Acreditar na inacéncia do futuro e do passado, acreditar no eterna retorna, Nem a fexisténcla é colocada como culpada nem a vontade se sente culpada por exist: & isto que Nietzsche chama sua alegre mensagem. “"Yontade, & assim que se chama o liberador e o mensageiro da alegri’.” A mensagem feliz é 0 pensamento trigco. pois 0 tragico do estd nas recriminades do ressentimento, nos confites da ma consciéncia, nem nas cantradicdes de uma vontade que se sente culpada e responsive. 0 tragico nfo esta nem mesmo na luta contra o ressentimento, a ma consciéncla ou 6 nilismo. Nunca se ccompreendeu, segundo Nietzsche, 0 que era o tragico:tragico = alegre. Outra maneira de colocar a grande equacao: querer = criar Nao se compreendeu que o trégico era postividade pura e miltila, alegria cindmica. Trégica é a afitmacéo, porque afiama o acaso fe a necessidade do acaso; porque afirma o devir € 0 ser do devir, porque afirma o miltiplo e o um do miltiplo. Tragico é o lance de dados. Todo o resto & nilisma, pathos dalético e cristo, caricatura do trégico, comédia da mé cansciénca, 16. APEDRA DE TOQUE ‘Quando nos acomete a vontade de comparar Nietzsche com outros autores que chamnaram a si mesmes ou foram chamados “ilésofos trgicos” (Pascal, Kierkegaard, Chestov), no nos devemos contentar com a palavra tragéia. Devers levar em conta a iltima vontade de Nietzsche. Nao basta perguntar: — 0 que o outro pensa é compardvel com o que pensa Nietzsche? Mas sim: — como pensa esse outro? Qual é, em seu pensamento, a parte remanescente do ressentimento e da ma consciéncia? 0 ideal ascético,o esprito de vinganga subsistem no modo desse outro compreender 0 trégico? Pascal, Kierkegaard, Chestov souberam genialmente levar a critica ‘mais lange do que se havia feito. Suspenderam a moral, derrubaram a razio. Mas, presos nas armadilhas do ressentimento, ainda ‘tomavam suas forcas do deal ascético, Eram poetas deste ideal. 0 que eles opsem & moral, &razéo, ainda é este ideal no qual a raze mergutha, esse corpo mistica onde ela enraiza, a interioridade — a aranha. Precisaram, para filosafar, de todos os recursos & o flo da interioridade, angistia, gemico, culpa, todas as formas do descontentamento’. Eles prdprias se colocamn sob 0 signo do ressentimento: Abraao e J6, Falta-hes 0 senso da afirmacéo, o senso da exteriridade, a inacEncia€ 0 jogo, “Nao se deve esperar, diz Nietzsche, estar na inflicidade como 0 pensam aqueles que fazem a flesofia derivar do descontentamento. E na Felicidade que € preciso comecar, em plena maturidade viril, no fogo desta alegria arcente, que € a da idade adulta e vitoriosa.” De Pascal a Kierkegaard aposta-se e salta-se. Mas estes née sio os exercicios de Dionisio nem de Zaratustra:saltar nio & dancar e apostar ndo é brincar. Observar-se-a como Zaratustra, sem idéia preconcebida, opde Jogar a apostar e dancar a saltar: & ‘mau jogador quem apostae & sobretudo 0 bufao cuem salta, quem acredita que saltar significa dangar, superar, ultrapassar VP, 86 27 "Da redangio’. — EH, IV, 1:"Ev suo posi de um expo negad. Sou um alge mensagero como analsex 2 Vp" 1, AIG: "O que lacamos no erstansma? E que ele quara qatar os fees, desercorsar sa coagem tna seus maus momentos e suas fges, ‘ansormar em inguote ear emona de conscinca sua aropartaseguana.. hel desare do qual Pascal cal use exert" We 57,1. "Das vhas das novs tabs "0 homam 6 alguna cosa que dove Sor superate, Pse-s chogar a supers6 por numarosescaminos e meios abe a vcd consaguio, Mas 0 o ut pasa: pes arb star per ca co homam.” —Z, Prilope, 4: "kre aqua que tam vegorna a var odago ca em se favore que peguria endo: rapacea’” Gilues DeLeuze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 20 Se invocamos a apesta de Pascal para conclu Finalmente que ela nada tem de comum com @ lance de dados. Na aposta, nio se trata absolutamente de afirmar 0 acaso, todo 0 acaso, mas, a0 contrdrl, de fragmentivio em probabilidades, de trocé-o por “acasos de ganho e de perda”. Por isso € itil perguntar se a aposta tem um sentido realmente teoldgico ou somente apologético, A posta de Pascal ndo conceme em nada & existéncia au & nfo existéncia de Deus. A aposta é antropoléglea, refere-se apenas a dols ‘mados de existéncia do homem: a existéncia do homem que diz que Deus existe ¢ a existéncia do homem que diz que Devs no existe. Aexisténcia de Deus, néo estando em questéo na aposta, é, a0 mesmo tempo, a perspectiva que a aposta supée, 0 panto de Vista segundo o qual o acaso se fragmenta em acaso de ganho © acaso de perda. A alternativa ests intelramente sob 0 signo éo Ideal ascético e da depreciacio da vida, Nietzsche tem razio em opor seu préprio jogo & aposta de Pascal, “Sem a fé crista, pensava Pascal, vocés serio para vocés mesmas como a natureza e a histérs, um manstro e um eacs: nés realizamos esta profecial.” Nietzsche quer dizer: soubernos descobrir umm autro jogo, uma outra manelra de jogar; descobrimos o super-homem para além de ols modos de existéncia humanos — demasiado humanos; soubemos afirmar todo 0 acaso em lugar de fragmenté-lo e deixar um fragmento falar como senor; soubemos fazer do caos um objeto de afirmario em lugar de colocé-lo como algo a ser negade’... todas as vezes que Nietzsche & comparado com Pascal (ou Kierkegaard ou Chestov, impde-se a mesma conclusio: a comparagio 58 vale até um certo ponto, ist 6, abstraindo-se 0 que & essencial para Nietzsche, abstraindo-se a maneira de pensar. Abstraindo-se 0 equene bacilo, oespiito de vinganca que Nietzsche cagnostica no universo. Nietzsche dizia: “A hybris & a pedra de toque de todo heraciteano, é af que ele pode mostrar se compreendeu ou no seu mestre.” O ressentimento, a mé conscgncia, 0 ideal ascético, 0 nilismo, sto a pedra de toque de todo nietzscheano, € ai que ele pode mostrar se compreendeu au nio 9 verdadelro sentido do trigico. 1 A2 2.0 movimento rauguado po Pascal um mensvo wun caes, portant, ura cola &precko nagar (VP, 42) Gilues DeLeuze — NieTZSCHE EA FILOSOFIA 21 ATWO EREATWO 1. 0 CORPO Spinoza abriv um caminho novo para as ciéncias e para afilosofia, Nem mesmo sabemos 0 que pode un corpo, dizia ele; falamos da consciéncia e do espirito, tagarelamos sobre tuda isto mas no sabemos de que & capaz um corpo. quals sto suas forgas nem o que las preparam’, Nietzsche sabe que chegou a hora: “Estamos na fase em que o consclente se toma modesto’.” Chamar a consciéncia a mocéstia necessira, & toma-la pelo que ela é: um sintora, nada mais do que o sintonia Ge uma transformacio mais profunda e da atividade de forcas de uma ordem que néo é espritual, “Talvez se trate unieamente do corpo em tado desenwolvimento do espirito.” (que é a consciéncia? Como Freud, Nietzsche pensa que a consciéncia é a regido do eu afetada pelo mundo exterior» Entretanto, a consciéncia & menos definida em relacao & exteriordade, em termos de real, do que em relacéo & superioridade, em termos de valores, Essa diferena é essencial numa concepcae geral do consciente e da Inconsciente. Em Nietasche, a consciéncia & sempre conscincia de um inferior em retagdo a0 superior a0 qual ele se subordina ou “se incorpora”, A consciéncia nunca é consciéncia de si. mas conscigncia de um eu em relagio ao si que ndo é consciente. Ni & consciéncia do senor, mas consciéncla do escrava em relagio a um senhor que nfo tem que ser consciente. Habitualmente a conscigncta s6 aparece quando um todo quer subordinar-se a lum todo superior... A conscigncia nasce em relagdo a um ser do qual nés poderiamos ser fungaa'.” Este & 0 servilsma da consciénca, ela atesta apenas “a formacdo de um corpo superior” (0 que & 0 corpo? Nés no 0 definimos dizendo que é um campo de forcas, um meio pravedor disputado por uma pluraidade de forgas. Com efeito, ndo hi “melo", nao hi campo de forgas ou de batalha. Nao ha quantidade de realidade, toda realidade ja & ‘quantidade de forga. Nada mais do que quantidades de forca “em relagio de tensio” umas com as outras’, Toda forga esta em relacio com outras, quer para obedecer, quer para comandar. O que define um corpo é esta relacio entre forcas dominantes & forgas daminadas. Toda relagio de forgas constitui um corpo: quimico, biolégico, social, politico. Duas forgas qualsquer, senda siguats, consituem um corpo desde que entrem em relac8o; por isso 0 corpo ¢ sempre o fruto do acaso, no sentido nietzscheano, fe aparece coma a coisa mais “surpreendente”, muito mais surpreendente na verdade do que a consciéncia eo espiritat. Maso acaso, relagio da forga com a forca, é também a esséncia da forga; nfo se perguntaré entBo como nasce um corpo vivo, posto que toda corpo & vive como produto “arbitrério” das forcas que © compéem’. 0 corpo é fenémeno miltiple, sendo composto por uma pluralidade de forcas iredutivels; sua unidade é a de um fenémene miltiplo, “unidade de dominacda”. Em um corpo, as forgas superiores ou dominantes sto ditas ativas, as forcas inferiores ou dominadas so ditas reativas, Ativo e reativo sao precisamente as qualicaces originais que exprimem a relacdo da forca com a forga. As forcas que entram em relacao no tém uma quantidade sem ‘que, a0 mesmo tempo, cada uma tenha a qualidade que corresponde & sua diferenca de quantidade como tal. Chamar-se-8 de hierarquia esta diterenca das forcas qualficadas conforme sua quantidade: forcasativase reativs. 2. ADISTINGAO DAS FORCAS As forgas inferiores, apesar de obedecerem, no deixam de ser forcas, cistintas das que comandam. Obedecer & uma qualidade da {orga enquanto tale refere-se ao poder tanto quanto comandar: “Nenhuma forca renuncia ao seu préprio poder. De mesmo mada {que 0 comando supe uma concesséo, admite-se que a forga absoluta do adversério no é vencida, assmilada, disslvica, Obedecer fe comandar so as duas formas de um tornela." As forcas inferiares definems e camo reativas, nada perdem de sua forca, de sua uantidade de force, exercem-na assequrando os mecanismos e as finalidades, preenchendo as condigdes de vida © as funcdes, as tarefas de conservagio, de adaptacio e de utilidade. Este & 9 ponto de partida do canceite de reaglo cuja importdncia em Nietzsche és veremos: as acomodagées mecdnicas utlitérias, as regulacdes que exprimem todo 0 poder das forcas inferiores e dominadas. (ra, devemos constatar 0 gosto imoderado co pensamento modemo por este aspecte reativo das forcas. Acredita-se sempre j& ter feito muito quando se compreende 0 organismo a partir de forcas reativas. A natureza das forgas reativase seu estremecimento nos fascinam. Assim, na teoria da vida, mecanismo € finalidade se opdem, mas sio duas interpretacdes que valem apenas para as préprias foras reativas. € verdade, pelo menos, que compreendemas 0 organism a partir de forgas. Mas & verdade também que 56 demos captar as forcas reativas naqullo que s8o, isto é, como forgas € nio como mecanismos ou finaldades, se as referimos Aquela que as domina e nao é reativa, “Fecha-se os olhos para a preeminéncia fundamental das forcas de uma ordem espontinea, " SPINOZA, Eta, Il, 2 eso “Ja most que nose sabe o que o corpo pode, nemo que pode deduz-se apenas da consdeagso de sua naurezae que, conslata'se por expevérca, apenas das lls da nauezaprovem um grande rime d= coSBs qe nunca Se acedtarpoder profuse sem a deg do spin.” SY. 251, 2 VP, 258: 60, 387 “vp, 227. = Vr 373. * VP, 1750 capo hunano é um pereamento male supreandete do que aan de cua’ I 26 “0 mals supreendent &o cup; no ns cnsaros de !maravihe- cs com aii de ue o corpo humano toou se posse "Sob also robles da un comezo avid: VP I 6 a 68, Sobre o papel do case VP, 1.25224, poten Giles DeLeuze — NieTZsCHE ER FLOSOFIA 22 agressiva, conquistadora, usurpadora, transformadora e que dio incess submetida 8 influéncia delas; assim que a soberania das funcdes mais bres do organismo & negada’ Sem divida & mais dict caracterizaressas forgasativas. Por natureza elas escapam & consciéncia: “A grande atividade principal & inconsclente?.” A consciéncia exprime apenas a relacio de certas forcas reativas com as foreas ativas que as dominam. A conseiéncia € essencialmente reativa; por 80 no sabemos © que um corpo pode, de que atividade é capaz. E 0 que dizemos da consciéncia Cdevemos dito também da meméria e do hébite. Mais ainda: devemos dizé-to anda da nutrsio, da reproduco, da conservagio, da adaptacao. S20 funcbes reativas, especialzacdes reativas, expressies de tals ou quals frcas reativas' E Inevitavel que a consciéncia veja 0 organismo de seu ponto de vista e 0 compreenda a sua maneira, isto é, de maneira reativa. Ea ciéncia segue os caminhos da consciéncia, apolandosse sobre outras forcas reativas; sempre o organismo visto pelo lado menor, pelo lado de suas reacées. Segundo Nietzsche, o problema do organismo nio pertence ao debate entre o mecanismo € 0 vitalismo. o que vale o vitalismo enquanto cré escobrir a especificidade da vida em forgas reativas, aquelas mesmas que © mecanicisme interpreta de um outro mode? 0 verdadeiro problema é a descoberta das forcas ativas, sem as quais as préarias reagbes nao serlam forcas’. A atividade das forcas, necessariamente inconsciente, & 0 que faz do corpo algo superior a todas as reacSes, em particular, @ esta reacio do eu que é chamada de consciéncia: “Todo esse fendmeno do corpo &, do ponte de vista intelectual, tdo superior a nossa consciéncia, a nosso espirito, a nossas maneiras conscientes de pensar, de sentir e de querer, quanto a algebra & superior & tabuada'.” As forcasativas do corpo fazem do corpo um sie definem 0 si como superior e surpreendente, “Um ser mais poderaso, um sabio desconhecido — que se mente novas direcbes; a adaptagae esté, de inicio, chama si. Ele habita teu corpo, ele & teu corpo'.” A verdadeira ciéncia & a da atividade, mas a cléncia da atividade é também a ciéncia do inconsciente necessério. £ absurca a idéia de que a ciéncia deva caminhar a passo com a consciéncia e nas mesmas iregbes. Senterse nesta a idéia moral que aflora. De fato,s6 existe cléncia onde nde hi e no pode haver consciéncia, “0 que 6 ativo? Tender ao poder.” Apropriar-se, apoderar-se, subjugar, dominar sBo os caracteres da forgaativa. Apropriar-se quer dizer impor formas, criar formas explorando as circunstancias', Nietzsche critica Darwin por que este interpreta a evoluso @ 0 acaso ra evolucdo de maneira totalmente reativa. Admira Lamarck por que este pressentiu a existéncia de uma forca plastica veréadeiramente ativa, primeira em relago as adaptacGes, uma forca de metamorfose. Em Nietzsche, assim como na energética, chama-se “nobre” a energia capaz de se transformar. © poder de transformacio, © poder diontsiaco, & a primeira definigao da atividade. Mas cada vez que marcamos assim a nobreza da aco e sua superioridade sobre a reagao, no devemos esquecer que a reagZo designa um tipo de forcas tanto quanto a aco, com a ressalva de que as reacbes nfo podem ser captadas nem compreendidas centificamente coma forgas se no as retacionarmos com as forcas superiores que sdo precisamente de um outro tipo. Reativo é uma ‘qualidade original da forga mas que sé pode ser interpretada coma tal em relacSo com o ativo, a partir do ativo. QUANTIDADE € QUALIDADE As forgas tém uma quantidade, mas também tém a qualidade que corresponde & sua diferenca de quantidade; ativo e reatvo s8o as qualicaces das forgas Pressentimas que o problema da medida das forcas & delicado porque pée em jogo a arte das interpretacées qualitativas, © problema coloca-se assim: 1") Nietzsche sempre acrecitou que as forcas era quantitativas deviam definir-se ‘quantitativamente, “Nosso conhecimento, diz ele, tornau-se cientifico na medida em que pde usar 0 niimero e a medida. Seria preciso tentar ver se néo se poderia edificar uma ordem cientitiea dos valores segundo uma escala numeral quantitativa da forca Tosi 0s outros valores si0 preconceitos, ingenuidades, malentencides, Em toda parte elas sto redutives a essa escala numeral e quantitativa”" ". 2") — Entretanto, Nietzsche acreditou igualmente que uma determinacéo puramente quantitativa das foreas ermanecia ao mesmo tempo abstrata, incompleta, ambigua. A arte de medir as forgas faz Interv toda uma interpretagio © uma avaliagao das qualidades: “A concepcao mecanicistas6 quer admitir quantidades, mas a forca reside na qualiace; 0 mecanicismo s6 pode descrever fenémenos, néo pode esclarecé-los"'. “Néo seria possvel que todas as quantidades fossem os sintomas da ‘qualicace.. Quererreduzir todas as qualidades a quantidades ¢ loucura”.”| Existe contraciglo entre esses dts tipos de textos? Se uma forga no & separdvel de sua quantidade, muito menos é separivel das ‘utras forcas cam as qua esté em relagdo. A prépria quantidade no é portanto separdvel da aiferenga de quantidade. A dferenca de quantidace @ a esséncia da forca, a relacao da forca com a forca. Sonhar com cuas forgas iquais, mesma se hes concedemos uma S12 Ail 227 26,354 “3, 45, 187, 980, 5 0 plurals de Nitsch encanta aq sua rgnaldade. Em sua concep do ongarse sen seta a una prldadedefras census. O que he inoessa 6a diversdade ca fora aves eatas, a pesquisa das pros foes asas.Corparese com o pale adil de Sule. qua no ears sa Carona com a moda com abi "VPI 226 72, "Dos que desprezam a corp’ VP a8 * BN, 2596 VPI. 6 VP 352 ‘VPI 46, — Teta quas rico, 187 VPI Giles DeLeuze — NieTZsCHE ER FLOSOFIA 23, oposigdo de sentido, é um sono apraximativa e grosseiro, sonha estatistica no qual mergulha o ser vivo, mas que a quimica dssipa! (ra, cada vez que Nietzsche critica 0 concelto de quantidade, devemos compreender que a quantidade como conceito abstrato tende sempre e essencialmente a uma identiticacio, a uma igualarao da unidade que a compée, a uma anulacio da diferenca nesta Lnidade; o cue Nietzsche reprova em toda determinacao puramente quantitativa das forcas & que as diferencas de quantidade ai se anulam, se igualam ou se compensam. Ao contriio, toda ver que ele critica a qualidade, devemos compreender que as qualidades nada mais sie do que a diferenga de quantidade & qual correspondem en duas forgas supostas pelo menos em relacio. Er suma, 0 (que interessa a Nietzsche nunca é a irredutibiidade da quantidade, ou methor, isto s6 the interessa secundariamente e como sintonia, © que the interessa principalmente €, do ponto de vista da prépria quantidade, a irredutibilidade da diferenca de ‘uantidade &{gualdade. A qualidade distingue-se ca quantidade mas somente porque ela & 0 que ha de inigualével na quantidade, de rio anulivel na diferenca de quantiéade. A derenga de quantidade é pols, num sentido, o elemento irredutvel da quantidade, num coutro sentido, o elemento irredutivel & prépria quantidade. A qualidade no € outra coisa sendo a diferenca de quantidace e cortesponde a esta em cada forga em relacio. “Néo nos podemes impedir de sentir simples diferencas de quantidade como alguma coisa de absolutamente diferente da quantidade, ‘sto é, como qualidades que néo sto mais redutivels unas &8 outras’.” E 0 que ainda 6 antropomértico nesse texto deve ser corrigide pelo principio nietzscheano segundo o qual existe uma subjetividade do Universo a qual, precisamente, ndo & mais antropamérfica e sim césmica’. “Querer reduzir todas as qualidades a quantidades & toucura...” Com o acaso nés afirmamos a relacio de todas as forcas. E, ser divida, afrmamos todo 0 acaso numa dnica vez no pensarento do eterno retorna. Mas as forsas, por sua prépria conta, no entram todas em relaco ao mesmo tempo. Seu poder respectivo & preenchide, com efeite, na relagdo com um pequeno nimere de forcas. 0 acaso é o cantrario de um continuurn'. Os encontros de {orcas de tal e qual quantidades sho, portanto, as partes cancretas do acaso, as partes afirmativas do acasoe, como tals, estranhas a ‘qualquer lei: 0s membros de Dionisio, Ora, é neste encontro que cada forca recebe a qualidade que corresponde & sua quantidade, {sto 6, a afecgto que preenche efetivamente seu poder. Nietzsche pode dizer portanto, num texto obscure, que o universe supde “uma génese absoluta de qualidades arbitririas", mas que a propria génese das qualidades supde uma génese (relativa) das ‘quantidades’, A inseparabilidade das duas géneses significa que nie podemos calcula abstratamente as forsas; devemes, em cada caso, avallar concretamente sua qualidade respectiva ea nuanca dessa qualidade, NIETZSCHE € A CIENCIA (© problema das relagdes de Nietzsche com a cigncia foi mal colocado. Pracede-se correntemente como se essasrelacées dependessem da teoria do eterna retorno, como se Nietzsche se interessasse pela cgncia (e ainda vagemente) apenas enquanto eta favorece @ retomo eterno e se desinteressasse enquanto ela se the opde. Nio & assim; a origem da posigdo critica de Nietzsche em relacao & ciéncia Geve ser buscada numa diresfo totalmente distinta, se bem que testa civecdo abra-nas um ponto de visto para o eterna retomo. € verdade que Nietzsche tem pauca competéncia e pouco gosto pela ciéncia. Mas 0 que o separa da ciéacia & uma tendéncia, um modo de pensar. Com ou sem razio Nietzsche acredita que a ciénc! fem sua manipulagdo da quantidade, tende sempre a igualar as quantidaces, a compensar as desiqualdades. Nietzscne, critico a ciGncia, jamais invoca os direitos da qualidade contra a quantidade; ele invoca os direitos da diferenga de quantidade contra a ‘gualdade, os direitos da desigualdade contra a igualagio das quantidades, Nietzsche concede una “escala numeral e quantitativa” cujas divisées, todavia, ndo s80 0s miltiplos ou divisores uns das outros. O que precisamente denuncia na ciéncia € a mania cientiica de procurar compensagdes, 0 utilitarismo € o igualitarismo propriamente clentticos™. Por isso toda sua critica se exerce em trés planos: contra a identidade légica, contra a igualdaée matemética, contra o equilbria fisico. Contra as trés formas do indiferenciade!. Segundo Nietzsche, &inevitivel que a ciénciafracasse e comprometa a verdadeira teoria da forca (0 que significa essa tendéncia a reduzir as iferencas de quantidace? Ela exprime, em primeiro lugar, a maneira pela qual a ciéncia participa do nitismo do persamento moderno. O esforso em negar as diferencas faz parte desse empreendimento mais geral que conslste em negara vida, em deprecia a existéncla, em prometer-the uma morte (calarifia ou outra), em que o universo precipita s¢ no inciferenciado, 0 que Nietzsche reprova nos conceitos fisicas de matéria, peso, calor, & 0 fato de eles serem também os fatores de uma igualacio das quantidades, os principias de uma “adiaghorie”. E nesse sentido que Nietzsche mostra que a ciéncia Dertence ao ideal ascético © a ele serve a seu mado’. Mas na cigncia devemos também procurar qual é o instrumento deste Pensamento nillista. & resposta é a cléncia, por vocagdo, compreende os fenémenos a partir das forcas reativas © os interpreta "VP 86 67: No mundo cui ena a perepgo mas agua da renga das fogs. Mas Props que & uma ipciade de forgas quince, tr apanas wna percpglainota vag de uma reaade estar’. “Adm que ha perapgbes no mundo nogarco, «pecapgss de ura exaiode abst, ai rena vertade! Com o mundo orc cara aimprociso wa apartaca® VP, 108 2 ILS «Sabewo conto . P, I $56 VPI 338 #01, asaproiages sobre Mayernas cares @ Gas Ess 1 omas lim um ugar esserialem VP, lel uh 2. Gilues DeLeUze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 24 deste ponto de vista. A fisica é reativa pela mesma razio que a bilogia; vendo sempre as casas do lado menor, do lado das reagdes. 0 triunfo das forcas reativas & o instrumento do pensamento nilista. E & também o principio das manifestacées do nilismo: afisica reativa é uma fisica do ressentimento, como a biologi reativa é uma biologia do ressentimento. Mas nao sabemos ainda porque & precisamente a consideracio das foreas reativas que acaba por negar a diferenga na forga, nem como ela serve de principio para o ressentimento, {A ciéncia afirma ou nega 0 eterna retorno conferme © ponto de vista em que se coloca. Mas a afirmacéo mecanicista do eterna retomo e sua negagio fetmodiindmica tém algo em comum: trata-se da conservagdo da energia, sempre interpretada de tal manelra ‘que as quantidades de energia no tém apenas uma soma constante, mas anulam suas diferencas, Nos dois casos passa-se de um principio de finitude (constancia de uma soma) para um principio “nilista” (anulagdo das ditferencas de quantidades cuja soma & constante). A idéia mecanicsta afirma 0 eterno retomo supondo, porém, que as diferengas de quantidade se compensa ou se anulam entre o estado inicial e 0 estado final de um sistema reversivel. 0 estado final é idéntico ao estado inci o qual se supe Indiferenciado em relacdo aos intermediérios. A idéla termodindmica nega o etermo retorno, mas isto porque descobre que as diferencas de quantidade se anulam somente no estado final o sistema, em funco das propriedades do calor. A identidade € entéo colocada no estado final indiferenciado, & oposta & diferenciacio do estado inicial. As duas concepeBes comungam uma mesma hipétese que é a de um estado final ou terminal, estado terminal do devir, Ser ou nada, ser ou nio-ser igualmente indiferenciados: as duas concepcées se encontrar na idéia de um devir que tem um estado final. “Em termos metafsices, se o cevir pudesse chegar a0 ser ou a0 nada..." Por isso nem 0 mecanicismo chega a colocar a existéncia do eterno retorno nem a termodindmmica chega a regio, Ambos passam de lado, caem no indiferenciado, recaem no idtico, © temo retorno, segundo Nietzsche, no & absolutamente um pensamento do idéntico, mas sim um pensamento sintético, pensamento do absolutamente diferente que exige um princislo novo fora da cléncia. Esse principio € o da reproducto do diverso fenquanto tal, 0 da repeticéo da diferenca, o contrério da “adiaphorie™. F, com efeito, no compreendemos 0 eterno retorna cenquanto dete fazemos uma consequéncia ou uma aplicagio da identidade. Nao compreendemes eterno retorno enquanto no 0 ‘pornos de uma certa maneira a identidade. 0 eterno retorno nao & a permanéncia do mesmo, o estado do equilibrio, nem a morada o idéntico. No etemo retoma ndo é o mesmo ou a um que retornam, mas 0 préprio retome & 0 um que se diz somente do diverso & do que difere. PRINEIRO ASPECTO DO ETERNO RETORNO: COMO DOUTRINA COSMOLOGICA F FISICA [A exposigao do etemo retomo, tal como o concede Nietzsche, supde a critica do estado terminal ou estado de equilibri. Se 0 Lniverso tivesse uma posiglo de equiibrio, diz Nietzsche, se © cevir tivesse um abjetivo ou um estado final, ele j& o teria atingido, (ra, o instante atual, como instante que passa, prova que ele ndo atingido, portanto, o equlibria das forcas ndo & possvel”. Mas Porque 0 equilibrio, o estado terminal, deveria ser atingido se fosse possivel? Em virtude do que Nietzsche chama a infinidade do tempo passado. A infinidade do tempo passado significa apenas o que o devir nao péde comegar do devir, que ele no algo que se tommou. Ora, ndo sendo algo que se tornou, tambérm nao é um devir algo. Nao tendo sido tornado, jé seria aquilo que ele se toma e se se tomasse algo, Isto 6, 0 tempo passado sendo ininito, © devir teria atingido seu estado final se tivesse um estado final, E, com feito, & a mesma coisa dizer que o devir teria atingido o estaco final se tivesse algum e que ndo teria saido do estado inicial se ‘lvesse algum. Se o devir toma-se alguma coisa, porque no acabou de torar-se hi muito tempo? Se ele é algo que se tornou, coma de comecar a tomarse? "Se o universo fesse capaz de permanénciae fixer e se houvesse em todo seu curso um sé instante de ser no sentida estrito, ndo poderia mais haver devir, prtanto, no se poderia mais pensar nem observar um devir qualquer.” Este € © pensamento que Nietzsche declara haver encontrado “em autores antigos™, Se tuo o que se toma, dizia Plato, jamais pode {urtar-se ao presente por estar nele, péra de tomar-se e é entéo aquilo que ele estava em vias de tornar-se'. Mas esse pensamento antigo € comentado por Nietzsche: cada vez que © encontrei, “ele era determinado por outras segundas intengdes geralmente teoldgicas”. Ito porque, obstinando-se a perguntar como 0 devir pide comesar e porque ainda néo terminou, 0s filésofos antigos sio {alsos trgicos,invacando a Hybris,o crime, o castigo’. Com a excecto de Herdclito, eles nao se pdem em presenca do pensamento puro devir, nem da oportunidace desse pensamento. 0 instante atual néo sendo um instante de ser ou de presente “no sentido estrito”, sendo o instante que passa, forcarnos a pensar 0 devir, © a pensévlo precisamente como o que no pade comecar e o que into pode acabar de tomar-se. ‘Como o pensamente do puro devir funda o eterno retorno? Basta esse pensamento para parar de crer no ser dlstinto do devir, opesto ‘20 devir; mas basta também esse pensamento para crer no ser do proprio devir. Qual éo ser do que devém, do que nem comeca nem acaba de devi? Voltar, 0 ser do que devém. “Dizer que tudo volta é aproximar ao maximo o mundo do devir e o devir do ser, cume VP. 328 2 I, 374 "Goh alata, s bom que se possaimaginba* 2p 312, 322-32, 320990, “yp, 322. — Teale andlogo I, 390. VP. 328, *Plis,Paménes, ct, sgunds hptose, Err, Netzche pansa mis em Anaximendo, 1 NF, “Endo clos-s a atimante este problema: Porqe uso qua aa ndo peraceu hé mo apo, vo que fe pessou ua teisade de taps? De ode vara torania sere encvada do dev? Eas consepueescaar dsl prcblera or rvashipteses micas. Giles DeLeuze — NieTZsCHE ER FLOSOFIA 25 dda conterplacao'.” Esse problema da contemplagio devia ainda ser formulado de autra maneira: como 0 passado pode consttuirse 1 tempa? Como o presente pode passa’? 0 instante que passa jamais poderia passar se J& nde fosse passado ao mesmo tempo que presente, ainda por vir ao mesmo tempo que presente. Se o presente no passase por si mesmo, se fosse preciso esperar um novo presente para que este se tomasse passado, nunca o passado em geral se constituira no tempo, nem esse presente passaria; nio demos esperar, ¢ preciso que o instante seja ao mesmo tempo presente e passado, presente e futuro para que ele passe (e passe fem proveito de outros instantes). € preciso que o presente coexista consigo mesmo como passaco e como futuro. € a relacéo sintética do instante consigo mesimo come presente, passado e future que funda sua relacSo com os outros instantes. 0 eterna retomo é pots resposta para o problema da passagem’. €, nesse senti¢o, no deve ser interpretaco como o reterno de alguma coisa que &, que é um ou que € o mesmo. Na expressio “eterno retorno”, fazeras um contrarsenso quando compreendemas retorno do mesmo, Nao € 0 ser que retoma, mas proprio retornar constitu @ ser enquanto € afiemado do devir € daquilo que passa. Nio é 0 tum que retoma, mas 0 préprie retornar & o um afirmace do diverso ou do miltiplo. Em outros termos, a identidade no eterna retomo ndo designa a natureza do que retorna, mas, ao contréro, 0 fato de retomar para o que difere. Por isso 0 eterna retorna deve ser pensado como uma sintese: sintese do tempo e de suas dimensdes, sintese do civerso © de sua reproducto, sintese do devi do ser afirmado do devir, sintese da dupla afirmace, © préprio etemo retome depende entéo de um principia que néo & a {dentidade, mas que deve, em todos esses pontos de vista, preencher as exigéncias de uma verdadeira razio sufciente. Por que o mecanicisma é uma interpretasio tla ruim co eterno retorna? Porque no implica nem necessariamente nem diretamente © eter retorno. Porque acarreta somente a falsa consequéncia de um estado final, Este estado inal é colocado como idéntico a0 estado inicial e, nesta medida, conclui-se que 0 processo mecAnico passa de novo pelas mesmas diferencas. Forma-se assim a hipétese cictica tao crticada por Nietzsche’. No compreendemas como esse processo tem possibilidade de sair do estado incial, rem de sair de novo do estado final, nem de passar de novo pelas mesmas diferenas, ndo tendo nem mesmo o poder de passar uma Unica ver por quaisquer diferengas. Existem duas coisas das uais a hipétese ciclica é incapaz de prestar contas: a diversidade dos ciclos coexistentese, sobretudo, a existéncia do diverso no ciclo. Por is0 56 pademos compreender o préprio eterno retorno como a expressio de um principio que é a razio do diverso © de sua reproducio, da diferenca © de sua repetiga0. Tal principio é apresentado por Nietzsche como uma das descobertas mais importantes de sua filosofia. Ele the dé um nome: vontade de poténcia Por vontace de poténcia “exarimo o cardter que no pode ser eliminado da ordem mecdnica sem eliminar esta prépra orden”. (©. QUE € & VONTADE DE PODER? ‘Um dos textos mals importantes que Nietzsche escreveu para explicar o que entendia por vontade de poténcia é 0 seguinte: “Este conceito de forca vitoriso, gracas ao qual nosss isicos criararm Deus e o universo, precisa de um complemento; & preciso atribuir- Une um querer interno que chamarel a vontade de poténclat.” A vontade de poténcia & partanto atribuida a forga, mas de um modo muito particular: ela & ao mesmo tempo um complemento da forga e algo intemo, Ela néo the é atribuida & maneira de um predicado. Com efelto, se fazemos a pergunta: “Quern?", ndo podemos dizer que a forea seja quem quer. S6 a vontade de poténcia & quem quer, ela mo se debea delegar nem alienar num outro sujelto, mesmo que este seja a fora’. Mas, entdo, como pode ser “atrbuida"? Lembreme-nos de que a forca est& em relacdo essencial com a forca. Lembremo-nas de que a esséncia da forca 6 sua diferenca de cuantidade com outras forgas © que esta diferenca se exprime como qualidade da forca. Ora, a diferenca de uantidade, assim compreencida, remete necessariamente a um elemento diferencial éas forcas em relagio, o qual é também o elemento genética das qualidades dessas forcas. A vontade de poténcia é, entio, o elemento genealégico da forca, a0 mesmo tempo diferencial e genético. A vontade de poténcia ¢ 0 elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferenca de quantidade das orcas postas em relagdo e a qualidade que, nessa relagée, cabe a cada forca. A vontace de poténcia revela aqui sua natureza: ela é princino para a sintese das forcas. E nesta sintese, que se relaciona com @ tempo, que as forgas repastam pelas mesmas diferencas ou que o civerso se reproduz, A sintese é a das forcas, ce sua diferenca e de sua reproducSo; 0 eterno retomo é a sintese da qual a vontade de poténcia é o principio. Ninguém se espantaré com a palavra “vontade”. Quem, seno a vontade, & capaz de sentir de principio a uma sintese de orcas determinando a relacio da forga com a forga? Mas em que sentido & preciso considerar “principio”? Nietzsche reprova os principos por serem sempre muito gerais em relacdo ao que condicionam, por terem sempre as malhas muito abertas em relacio com o que pretendem capturar ou regular. Nietzsche gosta de opor a vantade de poténcia a0 quereroviver schopenhaueriano, mesmo que seja em funcio da extrema generalidade dest iltimo, Se a vontade de poténcia, a0 contrério, € un bom principio, se reconcilia © empirisma com os principies, se constitul um empirisma superiar, & porque ela é um principio lessencialmente pléstico, que nio é mais amplo do que aqullo que condiciona, que se metamorfoseia com 0 condicionado, que em cada caso se determina com 0 que determina. A vontade de poténcia nunca é, na verdade, separdvel de tais ou quais forcas +P, 7. = Rexposiio do etm retomo em fino do instante que pase chase em Zl, "Da visio e do enigma 2, 325634, 4. 34: "De ane via a averse ro tro de um cto?.. Addo que exsise uma ena de concentra gal moos os cartes de ras do nero, perguriase de onde ea poddonscer a menor suspeta de cvesase. 0] VP I, 374 SYP, 374 vr, 108 VI, 204. $4:“Quam eo quero pace? Quetio absurd se por reso vote da olin.” Giles DeLEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 26 determinadas, de suas quantidades, de suas qualidades, de suas direcdes; nunca é superior as determinagées que ela opera numa relagio de forcas, sempre plastica e em metamortose' Inseparavel nio significa idéntico. A vontade de poténcia nio pode ser separada da forca sem cair na abstracio metafisca. Mas confundir forga e vontade & um risco ainda maior, nio se compreende mals a forca enquanto forea, recal-se no mecanicismo, lesquece-se a diferenca das forgas que constitu seu se, ignora-se o elemento do qual deriva sua génese reciproca. A forga é quem pode, a vontade de paténcia & quem quer. O que significa esta distinc? O texto citaco anteriormente corviga-nos a comentar cada, palavra. 0 conceito de forca é, por natureza, vitorioso, porque a relacto da forca com a forga, tal como & compreendida no conceito, € a da dominacio: entre cuas forcas em relacio, uma é dominante, a outra é dominada, (Mesmo Deus e 0 universo estio uma relagio de deminacio, por mals discutivel que seja, neste caso, a interpretacio desta relacio.) Entretanto, esse conceito vitorioso precisa de um complemento e este complemento é algo interno, um querer intemo. Ele no seria vitorioso sem este acréscime, porque as relacées de forgas permanecem indeterminadas enquanto a prépria forca no se acrescenta um elemento capaz de determiné-as de um duplo ponto de vista. As forcas relacionadas remetem a uma dupla génese simultanea: génese reciproca de sua ciferenca de quantidade, génese absoluta de sua qualidade respectiva, A vontade de poténcia acrescenta-se portanto a forga, mas coma o elemento diferencial e genético, como o elemento interno de sua praducio, Ela nada tem de antropomérfico em sua natureza. als precisamente, ela se acrescenta & forca como o principio interno da determinacio de sua cualicace numa relacao (x + 6x), € come o principio interno da determinagao cuantitativa desta propria relacdo (4x/cy). A vontade de potincia deve ser considerada ao mesmo tempo como elemento genealégica da forca e das forcas. Portante, & semare pela vontade de poténcia que uma forca prevalece sobre outras, domina-as ou comanda-as. Além disso. & a vontade de poténcia (@y) ainda que faz com que uma forca obedeca numa relagdo; & pela vontace de poténcia que ela obedece’ Encontramos, de algum modo, a relagio do eterno retorno com a vontade de poténcia mas no a elucidames nem a analisamos, A vontade de poténcia é ao mesmo tempo o elemento genético da forcae 0 principio da sintese das forcas. Mas ainda néo temos meios para compreender cue esta sintese forma o eteme retorna, que as forcas nesta sintese, e de acordo com seu principio, repraduzem- se necessariamente, Por outro lado, 2 existéncia deste problema revela um aspecto historicamente importante da filosofia de Nietzsche: sua situagso complexa em relagao com 9 kantismo, O conceito de sintese esti no centro do kantismo, & sua descoberta (ra, sabe-se que os pés-kantianos reprovaram Kant por ter comprometido esta descoberta a partir de dots pontos de vista: do ponto {de vista do principio que regia a sintese © do ponto de vista da reproducto dos objetos na prdaria sintese. Exigit-se um principio que nao fosse somente condicionante em relacio acs abjetos, mas verdadelramente genético e produtor (principio de diferenca ou de seterminacio interna); denunciava-se em Kant a sobrevivéncia de harmonias miraculosas entre termos que permaneciam exteriores. ‘A.um principio de diferenca ou de determinacéo interna pedia-se uma razio nao somente para a sintese, mas para a reproducio co diverso na sintese enquanto tal’. Ora, Se Nietzsche se insere na histéria do kantisma, & pela maneira original pela qual participa estas exigéncias pés-kantianas. Fez da sintese uma sintese de forcas, porque a sintese ndo sendo vsta como sintese de Forgas, seu sentido, sua natureza e seu contetdo permaneciam desconhecids. Compreendeu a sintese de forsas como o eterno retorna, encontrou, portanto, no coragao da sintese, a reprodugdo do diverso. Estabeleceu o principo da sintese, a vontade ce poténcia, € determinou esta iltima como o elementa diferencial e genético das forcas em presenga. Embora mais tarde tenhamos talvez que verificar methor essa supesi¢do, acreditamas que no hi some: meio confessada, meio oculta. Nietzsche no tem, em relacio a Kant, a mesma posi¢ao que Schopenhauer, nao tenta, como Schopenhauer, uma interpretagao que se proporia arrancar o kantismo de seus avatares dialéticos @ abrirthe novas saidas. isto porque, para Nietasche, os avatares dialéticas no tém de fora e tém, como causa primeira, as insufciénclas da critica. Uma ‘ransformago radical do kantismo, uma reinvencio da critica que Kant trafa ao mesmo tempo que a concebia, uma retomada do projeto critica em novas bases e com noves conceltes, & © que Nietzsche parece ter procurado (e ter encontrado no “etemmo retorno” ena “vontade de poténcia"), [A TERMINOLOGIA DE NIETZSCHE fem Nietzsche uma descendéncia kantiana, mas uma rivalidade Mesmo antecipando as anélises que devem ainda ser feitas, € tempo de fixar certos pontos da terminologia de Nietzsche. Disso epende todo 0 rigor dessa fiosofia de cuja precisto sistemética desconfa-se erradamente, quer seja para alegrar-se cam ela, quer seja para lamenté-la, Na verdade, Nietzsche emprega novos termos muito precisos para novos conceltos muito precios: 1%) Nietzsche chama vontade de paténcia o elemento genealégica da forca. Genealégica quer dizer diferencial e genética. A vantade de potincia é o elemento diferencia das foreas, Isto é, o elemento de producdo da diferenca de quantidade entre duas ou varias forgas {que se supe em relacio. A vontade de poténcia é o elemento genético da forca, isto é, 0 elemento de producéo ca quatidade que "Pl, 23:"Mau pindpo bo de que a vortade dos pscélogos antares uma gneralzaco njsfcada, que esta votade nd exits, que on lugar de concober 5 diversas expresses de na voriade deteminada sob dvesesfornas apapcuse 0 caer da voniade amoulando- de sau coma, de sua oreo; & terirariementao cas am Schopennaver 0 que se Chama erage @ aperas una érrul ora” 22 "Davitsa sores mesma "De onde ero varisso? pergunis-me.O qu dca o seve a choca, a comanday, a ser bedinta mesa ao comandar? Esculam minhas palais 6 sibs ene 0 sis! Examine serarerts se ene! no crag da va, las ries de seu corpo! En loa pans em que ‘neon vid, enor = vorade de pln: e mesmo na verge do quam chedece encore vortade de sero” (VP. 81) > Sobre esses poblas auc se calocam deci 6 Kal, cM. GUEROULT, La phlosoohie Yascordaraks de Salonen Matron, La dete dea science chez Feta, VULLEMIN, Lag Karen el revolstencopeicienne Giles DeLeuze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 27 ‘abe a cada forga nessa relagdo, A vontade de poténcia coma principio nfo suprime o acaso mas, 20 contriro, implica-o porque sem ele, ela ndo teria nem plasticidade nem metamorfose. O acaso é 0 relacionamento das forgas; a vontace de poténcia, o principio eterminante dessa relacio. A vontade de poténcia acrescenta-se necessariamente 8s forcas, mas s6 pode acrescentar-se a forcas relacionadas pelo acaso. A vontade de poténcia compreende o acaso em seu coragio, s6 ela & capaz de afimnar todo acaso, 2") Da vontade de poténcia como elemento genealégico decorrem, ao mesmo tempo, a diferenca de quantidade das forgas em relagio e a qualidade respectiva dessas forcas. Segundo sua diferenca de quantidade as forcas sio referidas como cominantes ou dominacas. Segundo sua qualidade as forcas sio referidas como ativas ou reativas. Exste vontade ée poténcla na forga reativa ou {dominaca assim como na forca ativa ou dominante. Ora, a ciferenca de quantidade sendo irredutivel em cada caso, é initt querer media se nao se interpreta as qualidades das forgas em presenca. As forcas sio essencialmente diferenciadas qualiicadas Exprimem sua diferenca de quantidade pela qualidade que cabe a cada uma. € este 0 problema da interpretacao: sendo dado un ‘enémeno, um acontecimento, estimar a qualidade da forca que the d& um sentido e, a partir daf, mecir a relacdo das forcas em presenea. Nio esquecamos de que, em cada caso, a interpretagio se choca com todos os tipos de dificuldades © de problemas, delicados. Necessita-se ai de uma percepcio “extremamente fina”, do género daquela que se acha nos corpos quimicos 3°) As quaidades das forgas tém seu principio na vontade de poténcia. E se nés perguntamas: “Quem interpreta”, respendemos: & vontade de poténcla; a vontade de poténcia que interpreta. Mas para estar assim na fonte das qualidades da forca, & prectso que 2 propria vontade de poténcia tenha qualidades particularmente fluentes, ainda mais sutis que as da forga. “Quem rena é a qualidade totalmente momenténea da vontade de poténcia?.” Estas qualidades da vantade de poténcia que se referem pols imediatamente a0 elemento genético ou genealégico, esses elementos qualitativos fluentes, primorciais, seminals, nfo devem ser confundicos com as qualidades da forga. Por iso € essencial insistir nos termos empregados por Nietzsche: avo e reativo designarn 1s qualidades originals da forca, mas afirmativo e negativo designam as qualidades primordiais da vontade de poténcia. Afirmar € regar, apreciar © depreciar exprimem a vontade de poténcia assim como agir © reagir exprimem a forca. (E assim como as forcas reativas também sio forcas, a vontade de negar, 0 nilismo sto vontade de poténcla: “...uma vontade de aniguilamento, uma hostitidade para com a vida, uma recusa em admitir as condigBes fundamentals da Vida, mas pelo menos & e permanece sempre uma vontade”.) Ora, se devemos atribuir a maior importancia a esta distingao entre duas espécies de qualidades, & porque ela se encontra sempre no centro da filesofia de Nietzsche; entre a acio ¢ a afltmacio, entre a reacio e a negacdo, hi uma afinidade profunda, uma cumplicidace, mas nenfuma confusio. AlEm disso a ceterminagéo dessas afnidades pe em jogo toda a arte da filosofia. Por um lado é evidente que hi afirmacéo em toda acio, que hé negacio em toda reacio. Mas, por outro lado, a acdo e a reagao s80 antes meios, metos ou instrumentas da vontade de poténcia que afma e que nega: as forcas reativas, instruments do nilismo. Por outro lado ainda, a acio © a reagdo necessitam da afirmacso ¢ da negacio como algo que as ultrapassa, mas que & necessério para que realizem seus préprios objetivos. Enfim, mais profundamente, a afrmacdo © a negacdo transbordam a acdo e a reagao porque sto as qualidades imediatas do proprio devi: a afirmacao nao & a acto, e sim 0 poder de se tomar ativo, 0 devirativo fem pessoa; a negacio no é a simples reagdo, mas um devir reativa, Tudo se passa como se a afirmacio e a negacéo fossem a0, ‘mesmo tempo imanentes e transcendentes em relagdo a acio e & reagio; elas constituem a corrente do devir com a trama das forgas. € a afirmasio que nos faz entrar no mundo gloriso de Dionisio, o ser do devir; & a negacio que nos precipita no funco {nguletante de onde saem as forgas re 4. — Por todas essas razées, Nietzsche pode dizer que a vontade de poténcia nfo & apenas quem interpreta, mas quem avalia. Interpretar & determinar a forca que dé um sentido & coisa. Avaliar € determinar a vontade de poténcia que da um valor & coisa. Os valores ndo se deixam pois abstrair do ponto de vista de onde tram seu valor, assim também como o sentido nde se deixa abstrair do onto de vista de onde tira sua signiticacio. E da vontade de poténcia, como elemento genealégico, que derivam a signiticacao co sentido € o valor dos valores. Era dele que falavamos, sem nomeé-la, no inicio do capitulo precedente. A significagdo de um sentido consiste na qualidade da forca que se exprime na coisa: esta forga é ativa ou reativa?e de que nuanca? 0 valor de um valor consste ra qualidade da vontade de poténcia que se exorime na coisa correspondente: a vontade de poténcia é afirmativa ou negativa? e de ‘que nuanca? A arte da filosofia € ainda mais complicada porquanto esses problemas de interpretago e de avaliagdo remetem un a0 ‘outro, protongam-se um no outro. O que Nietzsche chama Ge nobre, alto, senhor & ora a forca ativa, ora a vontade afirmativa, 0 que ele chama de bolxo, vil, escravo é ora a forga reatva, ora a vontade negativa. Compreenderemos mais tarde 0 porcué desses ‘tetmos. Mas um valor tem sempre uma genealogia da qual dependem a nobreza e a baixeza daquilo que ela nos convica a acreditar, a sentir e a pensar. $6 0 genealogista esté apto a descobrir que baixeza pode encontrar sua expressio num valor, que nobreza pode encontré-la num outro, porque ele sabe manejar 0 elemento diferenclal, € 0 mestre da critica dos valores, Retiramos todo sentido & 1no¢ao de valor enquanto ndo vemos nos valores receptaculos que é preciso romper, estdtuas que é preciso quebrar para achar 0 que contém, 9 mats nobre ou 0 mais baixo. Assim coma os membros esparsos ce Dionisio, 58 as estétuas de nobreza se reformam. Falar {da nobreza dos valores em geral testemunha um pensamento que tem excessivo interesse em ocultar sua propria baixeza, como se 1,4, 204 e120, 20 38 2. 28 «il, 28:"Tad vortade inpca uma avatar. * Gli, rouge, 6" Precisamos de ura cea dos vlogs mera @ aor dessaevabes deve, amen se oto em questi.” Giles DeLeUze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 28 sessem como sentido, precisamente, cama valor, servi de refgio e de manifestagio a tudo a que é baixo, vil, escrave, Nietzsche, criador da flasoia dos valores, se tivesse vivido mals tempo, teria visto a nogto mais critica servir @ evoluir para o conformismo ideolégico mais banal, mais babto; as marteladas da filosofia dos valores tomarem-se bajulacées; a polémica e a agressividade, substtuidas pelo ressentimento, guardiao minucioso da ordem estabelecida, cdo de guarda dos valores em curso; a genealogia,assumida pelos escravos: 0 esquecimento das qualidades, o esquecimento das orgens'. ORIGEM E IMAGEM INVERTIDA Na origem existe a diferenca entre as orcas ativas © as reativas. A acio e a reacio néo estio numa relacéo de sucessio, mas de coexistanc'a na prépria origer. De resto, a cumplicidade das forcas ativas com a afirmacio, das forgas reativas com a negacéo revela-se no seguinte principio: o negatvo ja esta inteiramente do lado da reaglo, Inversamente, s6 a forca ativa se afima, ela afirma sua diferenca, faz de sua diferenca um objeto de gozo e de afirmacio. A forca reativa, mesmo quando obedece, limita a forea ativa, impée-the limitagées e restricées parciats, {8 esti possuida pelo espirite do negative’. Por isso a prépria origern comporta, de algun mado, uma imagem invertida de si mesma: visto do tado das forcas reatvas, o elemento diferencial genealégico aparece a0 contrérie, @ diferenca tomou-se negagdo, a afirmagio tornou-se contradic. Uma imagem invertida da origer Aacompanha a origer: 0 que & “sim” do ponto de vista das forgas ativas torna-se “no” do ponto de vista das forgas reativas, o que & afirmas de si torna-se negacao do outro. A sto Nietesche denomina “a inversio do olhar aprectador”® As foreas ativas sfo nobres, ‘mas encontram-se diante de uma imagem plebéia refletida pelas forcas reativas. A genealogia& a arte da diferenca ou da distingSo, a arte ca nobreza, mas se vé ao contrério no espelno das forgas reativas. Sua imagem aparece entio como a de uma “evolucao”. E festa evolugdo € compreendida ora & maneira alema, como uma evolugio dlalética e hegetiana, como 0 desenvolvimento da contraciga0, ora a maneira inglesa, como uma derivagdo utiitéria, como o desenvoivimento do lucro € dos juros. Mas sempre a verdadeira genealogia encontra sua caricatura na imagem que cela faz 0 evolucionisme essenciatmente reativo: inglés, alemio, 0 levolucionismo & a imagem reativa da gencalogia’. Assim, & proprio das forgas reativas negarem desée a origem a diferenca que se constitui na origem, inverterem o elemento diferencial do qual derivam, dar-the uma imagem deformada, “Diferenca gera édio" Por essa razio elas no se compreendem como forgas e preferem voltar-se contra si mesmas a compreenderem-se como tais © aceitar a diferenga. & “mediocridade” de pensamento que Nietzsche denuncia remete sempre & mania de Interpretar ou de avaliar 105 fenémenos a partir de forcas reativas © cada espécie de pensamento nacional escolhe as suas. Mas esta prépria mania tem sua coriger na origem, na imagem invertida. A consciéncia eas conscigncias, simples aumento desta imagem reativa. Mais um passo: suponiamos que, com a ajuda de circunstancias favordveis externas ou internas, as forcas reativas sobrepujem & neutralize a forca ativa. Saimos da origem, nda se trata mais de uma imagem invertida, e sim de um desenvolvimento desta imagem, de uma inversdo dos préprios valores’; 0 baixo se ps em cima, as forcas reativas triunfaram. Se elas triunfam, & pela vontade negativa, pela vontade de nada que desenvolve a imagem; mas seu triunfo no é mais imaginério. A questio é: como as {orcas reativas trunfam? Ou seja, as forcas reativas, quando sabrepujam as forcas ativas, tomnamse elas préprias dominantes, agressivas e subjugadoras? Todas elas, em conjunto, formam uma forea maior que por sua vez seria ativa? Nietzsche responde que, mesmo se unindo, as forgas reativas no compem uma forsa maior que seria ativa. Pracecem de modo totalmente diferente, elas decompéern; elas separam a forga ativa do que ela pode; subtraem da forca ativa uma parte ou quase todo seu poder; © por esse ‘meio no se toram ativas, mas, a0 contrério, fazem com que a forca ativa se junte a elas, tome-se, ela prépria, reativa num novo sentido, Pressentimos que, a partir de sua origem e ao desenwolversse, o canceito de reacio muda de significagSo: uma farca ativa, forne-se reativa {num novo sentido) quando forgas reativas (no primeiro sentido) separam-na do que ela pode. Nietzsche analisaré como tal separacéo & possivel nos detalhes. Nas j& € preciso constatar que Nietzsche, cuidadosamente, nunca apresenta o triunfo das forgas reativas como a compasigao de uma forga superior A forga ativa, e sim como uma subtracio au uma divisio. Nietzsche consagraré todo um tivro & analise cas figuras do triunfo reativo no mundo humane: ressentimento, a ma consciéncia, o ideal ascética, Mastrard em cada caso que as forsas reativas ni triunfam compondo uma forga superior, mas “separando” a forca ativa’. E erm cada caso, essa separagio repousa sobre uma ficcio, mistificagdo ou falsiicagdo. E a vontade de nada que desenwolve a imagem negativa e ivertida, & ela que faz a subtracio. Ora, na operacao de subtrac3o, ha sempre algo ce imaginério testemunhaco pela utilizagdo negativa do nimero. Se queremos, entao, dar uma transcricdo numérica da vitéria das forcas reativas, nao devernos apelar para uma adigo pela qual as forsas reativas, todas juntas, tomar-se-iam mais fortes do que a forca ativa, mas para uma subtragdo que separa a forca ativa do que ela pode, que nega sua diferenca, para fazer dela uma forca reativa. Nao basta, desde * Quario mais a tora 6os valves pede ge vist 0 pincpo = car male dslarca-se de suas orens. A Inspagto rietzschesra revive especialmente em pestis covo as de Pl, concemeris a cso dos vales. Enlai, do poo deste de Netsch ocak da crag ds vars ao pede sr, er othur cao, sua cortemalara, mas doe sara ota adeal a tdos os valores ‘am oso ‘GM, 2 GM 10. (Em gar de afraren a i mesmas ede regaem por simples cosenini, a frgasreatras comegam pornegaro que & deren eles, opter-2e inner 30 quero faz parte des msm). * Sore a earcenedo iglosa da geneaoga como avludo: GN, Intedueo, 7 0 | 1-4 Sobre a medica dessa pensarents ings: SM, 252, Sobra a eancepgo ale da geneaoga como evolaoe sobre sua medocritade GC, 357 «BN, 244 5,253, fot GM, 7. "chasis disseragies da GM Giles DeLeUze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 29 lento, que a reagio venca para que deixe de ser uma reagio. Ao contrétia. A forgaativa & separada do que ela pode por uma ricco, rem por isso deixa de tomnar-se realmente reatva, é exatamente por este melo que ela se toma realmente reativa. Dai decorre, erm Nietzsche, 0 emprego das palavras “Vil”, “igndbil", “escravo". Estas palavras designam o estado das forcas reativas que se colocam ne alto, que atraem a forca ativa para uma armaditha, substituindo os senhores por escravos que ndo param de ser escraves. {9. PROBLEMA DA MEDIDA DAS FORGAS Por Isso no podemas medir as forgas com uma unidade abstrata, nem determinar sua quantidade e sua qualidade respectivas ‘tomando coma critério 0 estado real das forcas num sistema, Diziamos que as forcas ativas sio as forgas superiores, as forcas ominantes, as forcas mals fortes. Mas as foreas inferiores podem vencer sem debxarem de ser inferiores em quantidade, ser eixarem de ser reativas em qualidade, sem deixarem de ser escravos & sua maneira, Uma das malores afirmacdes de A Vontade de Poténcia é: “Sempre se tem que defender os fortes contra 0s fracos'.” Nao se pode apolar no estado de fato de um sistema de {foreas, nem no resultado da luta entre elas, para concluit: estas sto ativas, aquelas sho reativas. Contra Darwin e o evolucionisna Nietzsche observa: “Admitindo que essa luta exista (e ela se apresenta na verdade), ela termina infelizmente de modo contrério a0 que desejaria a escola de Darwin e que talvez se cusaria desejar com ela: termina infetizmente em detrimento dos fortes, dos privilegiados, das excecées felizes!." E esse sentido, em primeira lugar, que a interpretacio é uma arte to dif; devemes jlgar se as forcas que vencem sio inferiores ou superiores, reativas ou atvas; se elas vencem enquanta dominadas ou dominantes. Neste dominio ndo hi fates, s6 hd interpretacdes. Nio se deve conceber a medida das forgas como um procedimento fisica abstratoe sin como 0 ato fundamental de uma fsica concreta; ndo como uma técnica indferente, mas como a arte de interpretar a diferenca e a qualidade independentemente do estado de fato (Nietzsche diz 8s vezes: “Fora da order social existente’.”) Esse problema desperta uma antiga polémica, uma discussio célebre entre Célicles e Sécrates. Quanto a Nietzsche nos parece préximo de Citicles e Calicles imediatamente completado por Nietzsche! Célicles se esforsa por distinguir natureza e lei. Chama lei tudo 0 que separa uma forca do que ela pode; a lei, nesse sentido, exorime o triunfo dos fraces sabre os fortes. Nietzsche acrescenta: triunfo da reagio sobre a ato, Na verdade ¢ reativo tudo 0 que separa uma forca; é reativo ainda o estado de uma forca separada do que ela pode, Ao contrrio, &ativa toda forca que vai até o fim de seu poder. Ir até o fim ndo & uma le & até mesmo o contrério da lei. Sécrates responde a Cilicles que nio hé razio para distingui natureza e lel, pols se os fracos vencem & enquanto formam, reunides, uma orca mais forte do que a do forte; a lei triunfa do ponto de vista da prépria natureza, Célicles nao se queixa por nio ter sido compreendide, recomeca: 0 escravo ndo debxa de ser escravo a0 trunfar; quando os fracas trunfam ndo é formande uma forca ‘maior, mas separando a forca do que ela pode. Néo se deve comparar as forgas abstratamente; a forga concreta, do ponto de vista da natureza, é aquela que vai até as dltimas conseqiéncias, até o fim do poder ou do desejo. Sécrates objeta uma segunda vez: o ‘que conta para ti, Caliles, éo prazer... Defines todo bem pelo prazer. Observaremos 0 que se passa entre 0 sofista e 0 dialético, de que lado esté a boa-fé e também o rigor do racicinio. Calcles & agressive, mas nao tem ressentimento. Prefere renunciar a falar; & claro que na primeira vex Sécrates nao compreende e que na sequnda fala de outra coisa. Como explicar a Sécrates que 0 “desejo" nao é a associacio de um prazer e de uma dor, dor de senti-o, prazer de satisfaxé-o? Que o prazer e a dor séo somente reagbes, propriedades das forcas reativas, atestados de acaptacéo ou ce esadaptagaa? E como fazé-1o entender que os fracos no compéem uma forga mais forte? Por um lado Sécrates ndo compreendeu, or outro nio ouviu, excessivamente animado pelo ressentimento cialético € pelo espirito ce vinganca. Logo ele, tio exigente para om os outros, tao minuciaso quando the respondem. 10, AHIERARQUIA Nietzsche também encontra seus Socrates. S40 os lvres-pensadores. Eles dizem: “De que voc® se quetxa? como os fracos triunfariam s@ no formassem uma forca superior?” “Inclinemo-nes diante do fato consumaco.” Este & 0 positivism modemo: pretende-se realizar a critica dos valores, pretendesse recusar todo apelo acs valores transcendentes, declaranse que estdo fora de moda, mas apenas para reencontra-las, coma forgas que conduzem o mundo atval, lgreja, moral, Estado, etc.: sé se discute seu valor para admirar sua forca humana e seu conteido humana. 0 tivre-pensador tem a mania singular de querer recuperar todos os conteidos, tod o posto, mas sem nunca interrogar-se sobre a natureza desses contedos ditos pestves, nem sobre a origem au a qualidade cas forcas humanas correspondentes. € 0 que Nietzsche chama o “faitatisme” “. 0 livre-pensador cuer recuperar 0 contetido da religldo mas nunca se pergunta se a religide no conteria preclsamente as forcas mais baixas do homem as quais se deveria desejar que permanecessem no exteriar. Por isso ndo & possvel conflar no ateismo de um livre-pensador, mesmo que seja democrata ou 1 385, 2d, “Oagagbes de um manpestve, 1, SvP,I. “VPI 5: “Constata-se que em qumia, edo cargo estende seu pote to lange quarto pede’ I 374: "Noha le edo poder acaeta a todo instants suas ima consgincae’ I, 88. “Tene ocidado den ‘lar does quimias, a pala lem um essai mor. Tras ares de corstalar de mansra absolia relies de poe: St 18 3th, 24, NT. Em rnc no et lend — logo de paar: Flabsne falas (a, at), em potupuds por aaa factual, Gilues DeLeuze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 30 socialism: “A lreja nos repugna, mas ndo seu venenc...” © que caracteriza essencialmente o positivisme e o humanisma do livres ensador é 0 “faitalisme", a impoténcia em interpretar, a ignorancia das qualidades da forca. Desde que algo aparece come uma orca humana ou como um fato humano, © lvre-pensador aplaude, sem se perguntar se essa forca no é de baixa extracao e esse {ato 0 contrério de um fato elevado: “Humano, demasiado humane.” Por nda levar em conta as qualidades das forcas o livre ensador esta, por vocacio, a Servigo 63s forcas rativas € tradur seu triunfo, 0 fato & sempre o dos fracos contra os fortes; “o fato sempre extipido, tendo desce sempre se assemethado mais a um bezerra do que a um eus” Ao livre-pensador Nietzsche ope o cespirito Uvre, 0 proprio espirto de interpretagio que julga as forcas do ponto de Vista de sua origem e de sua qualidade: “Nao hi fatos, nada além de interpretagdes!.” A critica do livre-pensamento é um tema fundamental na obra de Nietzsche, Sem divida porque essa critica descobre um ponto de vista segundo o qual {deologias ciferentes podem ser atacadas ao mesma tempo: 0 Positivism, o humanismo, a dialética. 0 gosto pelo fato no positivism, a exaltacio do fato humana no humanismo, a mania de recuperar 0s conteidos humanos na calética, ‘A palavra hierarquia em Nietzsche tem do's sentidos. Signifca inicialmente a diferenca entre forcas ativas e reativas, a superioridade das forgas ativas sobre as forsas reatvas, Nietzsche pode entao falar de um “nivel imutavel e inato na hierarquia™ € © problema da hierarquia & ele préprio o problema dos espiritos livres’. Mas hierarquia designa também 0 triunfo das forcas reatvas, © contéglo das forcas reativas e a organizagao complexa que dal resulta, na qual os fracos venceram, na qual os fortes sto contaminados, na qual o escrave, que nfo ceixou de ser escravo, sobrepuja um senhor que deixou de lo: 0 reino ca let © da Virtue, Nesse segundo sentido a morale a rligita ainda sho teorias da hierarquia’. Se os dls sentdos s80 comparadas, vé-se que o segundo & como 0 inverso do primer. Fazemos da lgreja, da morale do Estado os seninores ou detentores de toda hierarqula, Temos ‘a hierarquia que merecemas, nés que somos essencialmente reativos, nés que tomamos os triunfos da reac por uma metamorfose da agdo e 0s escravos por novos senhores — nés que s6 reconhecemas a hierarquiainvertia, Nao € ao menos forte que Nietzsche chama de fraco ou escravo, mas aquele que, qualquer que seja sua forca, esta separado do que pode. O menos forte & tio forte quanto o forte se vai até o fim, porque a acistica, a sutileza, a espiritualidade, até mesmo 0 encanto, com 0s quais completa sua fora menor, pertencem precisamente a essa forga e fazer com que ela nao seja menor’. A medida das forgas e sua qualificagio ndo dependem em nada da quantidade absoluta, e sim ca efetuagio relativa, Nao se pode Julgar a forca e a fraqueza tornando como critéro o resultado da luta e o sucesso. Sto porque, repetimes, é um fato que os fracos triunfam, € até mesmo a esséncia do ato. S6 se pode julgar as forgas se se leva em conta em primeiro lugar sua qualidade: ativo ou reativo; em segundo lugar, a afinidade dessa qualidade com a pélo correspondent da vontade de poténcia: afrmativo ou negative; fem terceiro lugar, a nuanca de qualidade que a forca apresenta em tal ou qual momento de seu desenvolvimento em relagao com sua afinidade. Por conseguinte, a forca reativa é: 1%) forga utilitaria, de adaptagio e de \imitagéo parcial; 2") forga que separa a {orca ativa do que ela pode, que nega a forca ativa (triunfo dos fracos ou dos escravos); 3") forca separada do que ela pode, que nega a si mesma au se volta contra si (reino dos fracos ou dos escravos). E, paralelamente, a forca ativa é: 1%) forga plistca, dominante e subjugadora; 2" forga que vai até o fim do que ela pode; 3") forca que afirma sua diferenca, que faz de sua diferenca um abjeto de gazo e de afirmacao. As forgas $6 sto determinadas concreta e completamente se se leva em conta esses trés pares de caracteres 20 mesmo temp. 11. VONTADE DE PODER E SENTIMENTO DE PODER. Sabemos o que € a vontade de paténcia: elemento diferencial, elemento genealégico que determina a relacio da forga com a orca e que produz a qualidade da forca. Por is0 a vontade de poténcia deve manifestar-se na forca enquanto tal, 0 estudo das rmanifestagdes da vontade ce poténcia deve ser feito com o maior cuidado porque dele depende inteiramente 0 dinamismo das forgas. Mas o que significa dizer que a vontade de poténcia se manifesta? A relacio das forcas & determinada em cada caso na medida que uma forsa é afetada por outras, inferiores ov superiores, Dai se segue que a vontade de poténcia manifesta-se como un poder de ser afetada, Esse pocer no é uma possibilidade abstrata, é preenchido e efetuado a cada instante pelas outras fara com as quals esta em relagio. Nao nos espantaremas com 0 duplo aspecto da vontade de poténcla: ela determina a relagSo das forgas entre si, do ponto de vista da génese e da producio das forgas, mas é determinada pelas frcas em relacio, do ponto de vista de sua prépria manifestacio. Por isso a vontade de poténcia & sempre determinada ao mesmo tempo que determina, qualifcada ae mesma ‘tempo que qualifca, Em primeiro lugar, portanto, a vontade de poténcia manifesta-se como 0 poder de ser afetado, como o poder eterminado da forca de ser ela prépria afetada.E dic, aqui, negar em Nietzsche uma inspiracdo spinazsta. Spinoza, numa teoria, lextremamente profunda, queria que a toda quantidade de forca correspondesse um poder de ser afetado. Quanto maior © nimero de ‘maneiras pelas quais um corpo pucesse ser afetado tanto mais forga ele teria, Era esse poder que media a forca de um corpo, ou que cexprimia seu poder. Por um lado, esse poder no era uma simples possbilidade l6gica, era a cada instante efetuado pelos corpos vom 18 2 Can | "dade einconvenints dos esis hse’, 8 >, 138. “3,253, $s, Prac, 7. ri 385 381 "Os dos anmas do Zaratusta soa dpva ea srpnt: a dguia forte lira: masa srporte ro 8 mars foe 20 sr asa fascarte Prgo 10, Giles DeLeuze — NieTZSCHE EA FILOSOFIA 31 ‘com 05 quaisestava em relagio, Por outra lado, esse poder no era uma passividade fisica, sé eram passvas as afeccbes das quais o corpo considerado no era causa adequada’ (0 mesmo se diz em Nietzsche: 0 poder de ser afetado nlo significa necessariamente passvidade, mas ofetividade, sensibilidade, sensacdo, £ nesse sentido que Nietzsche, antes mesmo de ter elaborada o conceito de vontade de poténcia e ter-he dado toda sua significagdo, ja falava de um sentimento de poder; 0 poder fol tratado por Nietzsche como uma questio de sentimento © de sensibilidade, antes de sé-Io como uma questao de vontade. Mas quando elaborou o conceito completo de vontade de poténcia, essa primeira caracterstica nio desapareceu de modo algum, tornau-se a manifestagio da vontade de poténcla, Por Isso Nietzsche no para de dizer que a vontade de poténcia é “a forma afetiva primitiva”, aquela da qual derivam todos os outros sentimentos?. Ou melhor: “A vontade de poténcia ndo & um ser nem um devir, & um pathos.” Ito é, a vontade de potéacia manifestarse como a sensibilidade da forga; 0 elemento diferencia das forgas manifesta-se como sua sensibilidade diferencial. “A vontade de poténcia reina mesmo no mundo inorginico, ou methor, no ha munde inorganico. Nao se pode eliminar a acao a distancia: uma coisa atrai utra, uma colsa sente-se atraida. Eis o fato fundamental... Para que a vontade de poténcia possa manifestar-se ela precisa perceber as colsas que vé, ela sente a aproximasdo do que the ¢ assimilavet’.” As atecsées de uma forca séo ativas na medida que la se apodera daquilo que the opée resisténcia, na medida que se faz obedecer por forcas inferiores. Inversamente, elas sio sofridas, ou melhor, acionadas, quando a forga é afetada por forcas superiores as quals obedece. Odedecer é, ainda, al, uma manifestagdo da vontade ce poténcia. Mas uma forsa inferior pode acarretar a desagregacio de forcas superiores, sua ciséo, a ‘explosio da energia que haviam acumulado; nesse sentido. Nietzsche se apraz em aproximar os fendmenos de desagregacao Stoo, de cisto do protoplasma e de reproducio do ser vivo’. Mas desagregar, cdr, separar exorimem sempre a vontade de poténcia, tanto quanto ser desagregado, ser cinddo, ser separado: “A divisio aparece coma a conseaiiéncia da vantade de poténcia’.” Dadas das forcas, uma superior e outra inferior, vé-se como 0 poder de ser afetado de cada uma é necessariamente realizado. Mas esse oder de ser afetado néo é realizado sem que a propria forca correspondente entre numa histéria ou num devirsensivel 1") forca ativa, poder de agir ou de comandar; 2" forca reativa, poder de obedecer ou de ser acionado; 3) forca reativa desenvolvida, poder e cindir,dviir, separar; 4) forga ativa tomada reativa, poder de ser separado, de votar contra si”. Toda sensbiidade & apenas um devir das forgas: ha um circulo da forsa em cujo decurso a forsa “devém” (por exempla, a forca ativa devém reativa). Ha até mesmo varios vi-a-ser de forgas que podem lutar uns contra os outros’. Assim, no basta confrontar nem opor 05 caracteres respectivos da forca ativa e da forca reativa, Ativo € reativo sto as qualidades da forca que decorrem da vontade de poténcia. Mas a prdpria vontade de poténcia tem qualidade, sensbilc, que sio como os vieavser de forgas. A vontade de poténcia manitesta-se, em primeiro lugar, como sensibilidade das orcas e, em segunda lugar, como devi sensivel das forcas ~ 0 pathos € 0 fato mais elementar do qual resulta um devir *. 0 devir das forcas geralmente no deve confundir-se com as qualidades as forcas, & o devi dessas aréprias qualidades, a qualidade da vontade de poténcia em pessoa. Mas, justamente, ndo se pader& abstrair as qualidades da forga de seu devir assim como no se poderd abstrair a forga da vontade de poténcia, O estudo concreto das forgas implica necessariamente uma dindmica 12, 0 DEVIR REATIVO DAS FORCAS Mas, na verdade, a dindmica das forcas nos conduz a uma conclusdo desoladora. Quando a forca reativa separa a forca ativa do que la poce, esta iltima, toma-se, por sua vez, reativa. As forcas ativas tornam-se reativs. E a palavra devir deve ser tomada no sentido mais forte: o devir das fargas aparece cama um devireativa, Nao ha outros devir? € verdade, entretanto, que nés no sentimos, no experimentamas, no conhecemos outro devir a ndo ser 0 devir-reativo, No constatamos apenas a existéncia de ‘orcas reatvas, em tada parte constatamos seu triunfo. Através de que elas triunfam? Pela vontade de nada, gracas & afinicace éa reagdo com anegagio. 0 que é a negacdo? & uma qualidade da vontade de paténcia,é ela que qualifiea a vontade de poténcia coma nillsmo ou vontade de nada, é ela que constitui 0 devir-reativo cas forcas. No se deve dizer que a forca ativa tomna-se reativa porque as forcas reativas triunfam; ao contrério, elas triunfam porque, ao separarem a forgaativa do que ela pode, abandonam-na & vontade de nada como a um devi-reativa mais profundo do que elas mesmas. Por isso as figuras do triunfo das forgas reativas (ressentimento, ma consciénca, ideal ascético) sao incialmente as formas do nilsmo. © devir-reativo da forca, 0 devirnilista & 0 ‘que parece essencialmente compreendido na relagio da torca com a forca. Existe um outro devir? Tudo nos convida a “pensévio” talvez, Mas seria preciso uma outra sensiblidade, como diz Nietzsche com freqlgncia, uma outra maneira de sentir. NBo podemos alnda responder essa questio, pedemos apenas consideré-a. Mas podemos perguntar parque sé sentimos e s6 conhecemos um devir- * Se nossa iterpelado&exaa,Sphoza vu aes de Nietzsche que uma forga no era spare de um poder de se ata que est pode exorna seu poder Nitsche nem pr so dea decricarSpireza, mas num ot port: Spnaza no soue elvarse a concep de ua verte de olen, conunsu poset fam a singles fara ecarcebe a fg da mani reava (canals ea consevagio). Spa, veal 3 v.88, =. 45,77, 167. “VPI 73 "Pl, 171.88 fogs em sus pent que, votendose contra ses, uma vez que nade ms tom organiza, enorega sua fora om desopariza” "Il, 170:"Em agar da causa edo ets, La dos esos vasa, querer oaversiroeagado; os esse ndo soem rum canst." vil att Giles DeLeUze — NieTZSCHE ER FLOSOFIA 32 reative. Serd que © homem é essencialmente reative? Seré que 0 devirreativo & constitutive do homer? O ressentimento, a ma consciéncia, 0 nillisma ndo sto tragos de psicotogia, mas como que o fundamento da humanidade do homem. Sao 0 principio do ser humane como tal. © homem, “éoenca de pele” da terra, reacio da terra... & nesse sentido que Zaratustra fala do “grande ddesprezo” dos homens, e do “grande noje". Uma outra sensibilidade, um outro devi, seriam ainda do homer? Essa concigio do homem & da maior importancia para o eteme retorno. Ela parece comprometé-lo ou contaminélo tio gravemente ‘que ele préprio se tora objeto de angistia, de repuisie © de nojo, Mesmo se as forgas ativas voltarem, voltarsa reativas, cetemamente reativas, O eterno retorno das forcas reativas, mais ainda, 0 retormo do devit-reativo das forcas. Zaratustra nto apresenta o pensamento do etemo retomo apenas como misterioso secreto, mas como nauseante, dificil de suportar. A primeira ‘exposigdo do eteme retorno sucede uma estranha visio, @ de um pastor “que se cantorcia, engasgando convuisionado, o resto istorcido”, uma pesada serpente negra pendendo-the fora da boca’. Mais tarde, 0 préprio Zaratustra explica a vista: “O grande noja pelo homem, foi isso que me sufocau e entrou-me na garganta... Ele retorara etemamente, o homem do qual estas cansado, 0 hhomem pequens... Ail homem retornard eternamente... £0 etema retome, também do menor, era a causa do meu fastio par toda «a existéncia! Ail nojo, nojo, nojo't” 0 eterno retomo do homem pequenc, mesquinho, reativo ndo faz apenas do pensamento do eterno retorna algo de insuportével; faz do prépria eterno retorno algo impossvel, pée a contradic no etemo retorno. A serpente 6 um animal do eterno retommo; mas a serpente se desenrola, toma-se uma “pesada serpente negra” e pende fora da boca que se aprestava a falar, na medida que 0 eteme retomo & 0 das forcas reativas. Como, pois, 0 eterno retorno, ser do devir, poderia afirmar-se de um devir nillsta? Para afar 0 eterno retorno é preciso cortar e cuspir a cabeca da serpente. Entao o pastor no & mais nem homem nem pastor: “ele estava transformado, aureolaco, ele ria! Nunca ainda homem nenhum sobre a terra rira como ele "i." Um outro devir. uma outra sensibilidade: supershomem. 13, AMBIVALENCIA DO SENTIDO E DOS VALORES Um devir diferente do que conhecemos, um devir-ativo das forgas, um devir-ative das forgas reativas, A avallacio desse devir Levanta varias questées e deve servr-nos uma dltima vez para provar 2 coeréncia sistemstica dos conceitosnietzscheanos na teoria, ca forga. Uma primeira hipétese intervém. Nietzsche cama de forca ativa aquela que vai até 0 fim de suas conseqiéncias; uma {orga atira, separada do que pode pela forca reatva, tornase enti reativa por sua vez; mas esta prdpriaforca reativa nao id ela, a seu mado, até 0 fim do que pode? Se a forga ativa, estando separada, torna-se reativa, a forca reativa ~ que separa néo se tornaré, fnversamente, atva? Nao seria essa a sua maneira de ser ava? Concretamente, no ha uma baixeza, uma vilana, uma talice, etc, {que se tomam ativas por forga de rem até o fim do que podem? “Rigorosa e grandiosatolice...”, escrevera Nietzsche. Essa hipétese lembra a objecao socrética mas, de fato, dela se cistingue. Nao se diz mais como Sécrates, que as forcas inferiores s6 trunfam formando uma forga maior; diz-se que as forcas reativass6 triunfarn indo até o fim de suas consecuéncia, fermando, portanto, uma orga ativa. E certo que uma forga reativa pode ser considerada de pontos de vista diferentes. A doenea, por exemple, separarme do que posse; {orga reativa, toma-me reativo, reduz minhas possibilidades e condena-e a um meio diminuido ao qual desejo apenas adaptar-in. Mas, de um outro modo, ela me revela um nove poder, data-me de uma nova vontade que posso fazer minha indo até o fim de um testranho poder. (Esse poder extremo pie em jogo multas coisa, entre as quals a seguinte: “Observar conceitos mais sadios, valores mais sagios colocanco-se de um ponte de vista de doente....” Reconhece-se uma ambivaléncia cara a Nietzsche: todas as forcas cujo cardter reativo ele denuncia, exercem sobre ele, conforme confessa algumas paginas ou algumas linhas adiante, um fascino, & so sublimes pelo ponto de vista que nos abrem e pela inquietante vontade de poténcia que testemunham. Elas nos separam de nosso poder, mas dio-nos ao mesmo tempo um outro pader, quo “perigoso”, quao “interessante”. Trazem-nos novas afeccbes, fensinam-nos novas maneiras de sermos afetados. HS algo de admiravel no devir-reativo das (orcas, admiravele perigoso. Nao apenas ‘© homem doente, mas também 0 homem religioso apresentam esse duplo aspecto: por um lado, homer reativo; por outro lado, hemem de um nove poder’, ria da humanidade seria, na verdade, alguma colsa bem tola sem o espirite com a qual os limpotentes a animaram’,”" Cada vex que Nietzsche falar de Sécrates, de Cristo, do judaismo, do crstianismo, de uma forma de ecadéncia ou de degenerescéncia, descobrira essa mesma ambivalencia das coisas, cos seres e das forcas. 12 "Dos grandes acortacianis. 2 também VP. NV, 235 «246, 2, Das edo enigma. 42 IO camalescent Zl Davie edo enigma * Bi i, & " Gi, sobre o ptpia tren dessa oma de esti, essencalmnteporgoss, a eséncia sacedolal. qu o home comepou a toarse um animal Inoessant; 8 aqui qu, rum sentido subtme, a ara humana adquiiy a etude ea maliade.” — Score a arbalinca do sacard's, GOI, 15."E racso {ue ele pore eno deat, precso qu tela nimamene ago acs dents, 20s deserdacs, pra pode” oWlos, para poder entender com abs, nas € Procso quo ea fore, mais senor de s mesmo do qb dos ous, mablvel abetudo em sua vor de poténci fm 6 posut cofiang dos deores dos lige pr ek.” Pot 1. Giles DeLeUze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 33 Todavia, seré exatamente a mesma, a forca que me separa do que posso e a que me dota de um novo poder? Sera a mesma doenca, seri 0 mesmo 0 daente que & escravo de sua doenca e o que dela se serve como de um meio para explorar, para dominar, para ser oderoso? Seré a mesma a religiio dos fiis que s8o como cordeiros balindo e a de certos sacerdotes que s¥0 como novas “aves de rapina’? De fato as forcas reativas ndo s4o as mesmas e mudam de nuanga conforme desenvolvam mais ou menos seu grau de afinidade com a vontade de nada. Uma forca reativa que, ao mesmo tempo, obedece e resist; uma forca reativa que separa a forca ativa do que ela pode; uma forcareativa que contamina a forca ativa, que a arrasta até o fim do devir-reativo, na vontade do nada; ma forca reativa que fol iniclatmente atva mas que se tornou reativa, separada de seu poder, depois arrastada para o ablsmo € voltando-se contra si eis af nuancas diferentes, afeccdes diferentes, tipos diferentes que 0 genealogista deve interpretar e que ninguémn mais sabe interpretar. “Preciso dizer que tenho experiéncia de todas as questies que dizer respeito & decadéncia? Eu a soletrel em todos os sentidos, para frente e para tris. Esta arte de iigrana, este sentido do tato e da compreensio, este instinto da rhuanga, esta psicologia do desvio, tudo 0 que me caracteriza... Problema a interpretacao: interpretar em cada caso o estado das orcas reativas, isto é, 0 grau ce desenvolvimento que elas atingram na relago com a nega¢do, com a vontade de nada. 0 mesmo problema de interpretacao colacar-se-ia para as forcas ativas. Em cada caso interpretar sua nuanga ou seu estado, isto é, 0 grau de Cdesenvowimento ca relagéo entre a agio e a afirmagio. Ha forcas reativas que se tornam grandiosas e fascinantes por forca de sequirem a vontade de nada; mas ha forgas ativas que caem porque nao sabem seguir 0s poderes de afitmacio (veremos que é o problema do que Nietzsche chama “a cultura” ou “o homem superior"). Enfim, a avaliacéo apresenta ambivaléncias ainda mais profundas de que as da interpretacso. Julgar a prépria afkmagao do ponta de visa da prépria negacao e a negacda do ponto de vista «a afirmasio; julgar a vontade afirmativa do ponto de vista da vontade nilsta e a vontade nlista do ponto de vista da vontade que afirma: esta é a arte do genealogista e 0 genealogista & médico. “Observar conceitos mais saios, valores mais sadios, colocando-se do ponto de vista do doente e, inversamente, consciente da plenitude ¢ do sentimento de si que a vida superabundante possu, rmergulhar 0 olhar no trabalho secreto do instinto de decadéncia..." Porém, qualquer que seja a ambivaléncia do sentido e dos valores, ndo pademos concluir que uma forca reativa tomarse ativa indo até o fim do que ela pode. Pols “ir até o fim", “ir até as Lttimas conseqiéncias”, tem dois sentidos, conform se afirme ou se negue, conforme se afime sua prépria diferenga ou se negue o {que sifere. Quando uma forea reativa desenvolve suas tltimas consequéncias & em relagdo com a negacéo, com a vontade de nada que the serve de motor. 0 devir-ativo, ao contrirlo, supée a afinidade da acho com a afirmagio; para tomar-se ava, ndo basta que uma forga va até o fim do que ela pode, & preciso que fara daquilo que ela pode, um objeto de afirmagio, 0 devir-ativo é afirmador fe afirmativa, asim como o devirreativo é negadar e nilista 14, SEGUNDO ASPECTO DO ETERNO RETORNO: COMO PENSAMENTO ETICO E SELETIVO Um éevir-ativo, no sendo nem sentido nem conhecido, $6 pode ser pensado como © produto de uma selecdo. Dupla selecio simultinea: da atividade da forga e da afitmario na vontade. Mas quem pode operar a selecéc? Quem serve de principio seletivo? Nietzsche responde: 0 etemo retorno. 0 eterno retomo, apés ter sido objeto de nojo, supera o nojo e faz de Zaratustra un “convalescente”, um “consolado". Mas em que sentido 0 eterno retorno é seletive? Primeiro porque na qualidade de pensamento, uma regra prética & vontade’. 0 eterno retoma dé & vontade uma regra tao rigorosa quanto a regra kantiana, Haviamos observaco {que 0 eterno retomo, como doutrina fsica, era a nova formulacao da sintese especulativa. Como pensamento ético o eterno retomna € a nora formulacao ¢a sintese prética: O que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras seu eterno retorne, “Se er tudo o que tu quiseres fazer, comerares por perguntarste: & seguro que eu queira fazé-lo um nimero infinito de vezes, este serd para tio centro de gravidade mais lid.” Uma coisa no mundo enoja Nietzsche: as pequenas compensacdes, 0s pequenos prazeres, as pequenas alegria, tudo o que se concede uma vez, nada mais do que uma vez. Tudo o que s6 se pode refazer no dia seguinte com a condigdo de se ter dito na véspera: amanhé nio o farei mais ~ todo o cerimontal do obsessiva. Ends também somos como essas velhas senhoras que se permitem um excesso apenas uma vez, agimos como elas © pensamos como elas. “Ai! porque vacés nio se esfazem de todo meio-querer, porque no se decidem pela preguica ou pela acéo! ai, porque no compreendem minhas palavras: fagamm sempre 0 que quiserem mas sejamm primelramente dos que podem querer.” Uma preguica que desejasse seu eterno retorno, uma tolice, uma baixeza, uma covardia, uma maldade que desejassem seu eterno retorno, no seria mais a mesma preguica, néo seria mais a mesma tolice... Vejamas melhor como 0 eterna retorno opera aqui a selecio. € 0 pensamento do eterno retoma que seleciona, Faz do querer algo de completo, © pensamento do eterno retorno elimina do querer tudo © que cai fora do eterna retome, faz do querer uma criagdo, efetua a equagio querer = ria. E claro que tal selegdo permanece inferior &s ambigdes de Zaratustra. Ela se contenta em eliminar certos estados reativos, certos cestados de forcas reativas entre os menos desenvolvides. Mas as forcas reativas que vio até o fim do que a sua maneira, e que fencontram na vontade nilista um motor poderoso, resistem a primeira selecio. Longe de cair fora do eterno retorno entram no Th 2, 0 convalescent 2 VI, 29,21. °O grande persamento seat’ “viv, 22 2, Ds vinud qu driuT. I "Dos miseooriso' "0 que hi de por S80 os persamertes mesquns, Na vrdae, vale mals age mal o que pensar pouotamena, cts dzem, 6 verdad: a aogfa das pequeras malfaces nos peupa de mulls grandes dels. Mas, nessa domi, ndo se dovera querer Gilues DeLEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 34 retorno e parecem retorar com ele. E preciso, por isto, contar com uma segunda selecio, muita diferente da primeira, Mas essa segunda selegio ae em causa as partes mais obscuras éa flosafia de Nietzsche e forma um elemento quase inicético na dautrina do eterno retoo, Devemos portanto apenas recensear os temas nietzscheanos, com a possiilidade de desejar mais tarde uma cexplicagio conceitual éetalhada: 1") Porque se diz que o eterno retorno é “a forma excessiva do nillsmo"? E se o eterno retorno é a forma excessiva do nilismo, este, por seu lado, separado ou abstraido do eterno retorno, é sempre um “nilisme incompleto”, por ‘mais longe que v8, por mais paderoso que seja, Séo eterna retomo faz da vontade nista uma vontade completa e inteira. 2°) E que fa vontade de nada, tal como a estudamos até agora, sempre nes apareceu em sua allanca com as forcas reativas. AV estava sua cessEncia: ela negava a forca ativa, levava a forca atva a se negar, ase voltar contra si mesma, Mas, a0 mesma tempo, fundara assim ‘a conservacio, o triunfo o contigio das forcas reativas. A vontade de naca era o devirreative universal, 0 devir-reativo das forcas. Eis portanto em que sentido 0 nitismo por si mesmo é sempre incompleto, até mesmo 0 ideal ascético é o contririo do que se acredita, “é um expediente da arte de conservar a vida"; 9 niltismo é 0 principio ce conservacio de uma vida fraca, diminuida, reativa; a depreciagdo da vida, a negagio da vida formam 9 principio & sombra do qual a vida reativa se conserva, sabrevive, triunfa fe se toma contagiosa’. 3°) 0 que se passa quando a vontade de nada é relacionada com o etemo retome? E somente ai que ela ‘quebra sua alianga com as forgas reativas. Somente o eterna retorna faz da nilismo um mismo completo, porque far da negasao uma negasdo das préprias forcas reativas. 0 nilismo, por eno eterno retorno, ndo se exprime mais como a conservacio e a vitria, os fracos, mas como a destruiglo dos fracos, sua autodestruisdo, “Esse desaparecimento apresenta-se sob 0 aspecto de uma estruicdo, de uma selegio instintiva da forca destrutva... A vontade de destrur, expressio de um instinto ainda mais profundo da vontade de se destruir, expressio de um instnto ainda mais profundo da vontade de se destruir: a vontade do nada’.” Por isso, desde o prélogo, Zaratustra canta “Aquele que quer seu préprio dectini” : “pois ele quer perecer”, “pais nao quer se conservar”, “pois transpord a ponte sem estar”. 0 prélogo de Zaratustra contém coma que 0 segredo prematuro do eterno retomo. 4") Ndo se confundira 0 voltar-se contra si mesmo com esta cestruiggo desi, esta autodestruicéo, No voltar-se contra si, pracesso da reacio, a {orga ativa Lora-se reativa. Na autodestruigao as préprias forgas reativas sio negadas e conduzidas a0 nada. Por isso diz-se que a autodestruigao € uma operacao atva, uma “destruizdo ativa™,€ ela, somente ela, que exprime o devir-ativo das forcas: as forgas tormam-se ativas na medica que as forcas reativas se negam, suprimem-se em nome do principio que ainda outrora assegurava sua conservario € seu triunfo. A negacio ativa, a destruigao ativa, & o estado dos esprits fortes que destroem o que neles ha de reativo, submetendo-o & prova do eterna retomo e submetendo-se a si mesmos a esta prova, com risco de quererem o cectinio de 1 mesmos; "6 o estado dos espiitos fortes e das vontades fortes, no thes & possvel fixarse num juiza negativo, a negardo ative resulta de sua natureza profunda””. Esta € a Unica maneira pela qual as forcas reativas tornam-se ativas. Na verdade e alérn disso, a negacdo fazendo-se negacao das proprias forcas reativas nao & apenas atva, ela é como que transmudada. Ela exprime a afirmagio, lexprime o cevir-ativ como poder de afimar. Nietzsche fala entdo da “eterna alegria do devi, esta alegria que traz ainda nela a alegria do aniquilamento”; “a afimagéo do aniquitamento e da destrugao, 0 que ha de decisivo numa filosotia dionsiaca..."*. 5") A sequnda selegio no eterna retorna consist entio no seguinte: 0 eterna retorno praduz o devir-atvo, fasta referir a vontade de nada ‘a0 eterno retorno para aperceber-se de que as forcas reativas no retonam. Por mais longe que elas vio e por mals profundo que seja 0 devirreativo das forcas, as frcas reativas nio retornars, O homem pequena, mesquinho, reativa no voltar Pelo © no eter retorno, a negacto, como qualidade da vontace de poténcia, transmuta-se em afirmacio, tora-se uma afirmacao da propria rnegacio, torna-se um poder de afirmar, um poder afirmativo. & ito que Nietzsche apresenta como a cura de Zaratustra e também como 0 segredo de Dionisio: “O nila vencida por si mesmo", gracas ao eterno retorne'. Ora, esta segunda seleco & muito diferente da primeira: nao se trata mals de eliminar do querer, pelo simples pensamento do eterno retorno, o que cai fora desse Pensamento; trata-se ce fazer, pelo eterno retorno, entrar no ser 0 que nele néo pode entrar sem mudar de natureza. Néo se trata ‘mats de um pensamento seetiva, mas sim do ser seletivo, pois o eterno retomo é 0 ser © 0 ser é selecio. (Selec = hierarqula). 15, 0 PROBLEMA DO ETERNO RETORNO Tudo isso deve ser considerado comno um simples recenseamento de textos. Esses textos s6 sera elucidados em fungdo dos seguintes Pontos: a relacdo das duas qualidades de vontade de poténcia — a negacio e a afirmacio; a relacSo da prépria vontade de poténcia com 0 eterno retorno; a possibilidade de uma transmutagéo como nava maneira de sentir, de pensar e, sobretudo, como nova rmaneira de ser (o super-hamem). Na terminologia de Nietzsche, inverséo das valores significa 0 ativo no lugar do reativo (na verdade 6 a inversdo de uma inversio, visto que 0 reativo havia comegaco por tomar o lugar da ago}; mas a transmutaeéo dos valores ou PIL. pr. 2. 13 “Pil. 2, Boog, VI EH, py 02, EH I, “Oigom da tage’, 3 veri Giles DeLeUze — NieTzSCHE ER FLOSOFIA 35 transvaloragdo significa @afirmacao em lugar da negagi0, e mais ainda, a negag3o transformada em poder de afirmacio, suprema metamorfose dionisiaca. Todos esses pontos, ainda nio analisados, forram o Spice da doutrina do eterno retorn. eros a custo de longe onde esta esse apice. O etemo retoma & 0 ser do devir. Mas 0 devir & duplo: devir-ativa © devir-reativo, evir-ativo das forgas © devir-reatve das (orcas ativas. Ora, sé 0 devir-ativo tem un ser; seria que o ser do devir fosse afiemaco de um devir-reativo, isto &, de um éevir ele proprio nilista. © eterno retorno tomar-se-ia contraditria se foe o retorna das forcas reativas. 0 eterna retorno nos ensina que 0 cevi-reativa nfo tem ser. E, até mesmo, que é ele que nos ensina a existéncia de un evir-ativ, Reproduzindo 0 devi, ele produz necessariamente devir-ativo, Por isso a aflrmagio é dupla: ndo se pode afirmar plenamente o ser do devir sem afirmar a existencia do devir-ativo, 0 eterno retomo tem, portanto, um duplo aspecto ~ é 0 ser Universal do devi, mas o ser universal do devir diz-se de um sé devir. Somente o devit-ativo tem um ser, que & 0 ser do devir inter Retomar € 0 todo, mas todo se afma num sé momento. A medida que o eterno retomo & afirmado como o ser universal do devir, medida que, além isso, 0 devir-ative ¢ afirmado como o sintoma e 0 produto do etemo retore universal, a afirmago muda ce rhuanga € tora-se cada vex mais profunda. 0 etemo retorno coma doutrina fsica afirma o ser do devir. Mas, enquanto ontologia seletiva, arma esse ser do devir como “afirmando-se” do devir-ativo. Vé-se que, no seio da conivéncia que une Zaratustra © seus animais, eeva-se um mal-entendido, come um problema que os animais nio compreendem, no conhecem, mas que é 0 problema do ojo © da cura do préprio Zaratustra: “® marotos que vocés sio, 6 tocadores de realejo! respondeu Zaratustra sorrindo... voces j& fizeram um refrio!.” 0 refrdo é 0 ciclo e 0 todo, 0 ser universal. Mas a férmula completa da afirmacio é: 0 todo, sim, 0 ser Universal, sm, mas o ser universal & afrmado de um $6 devir, 0 todo & afirmado de um sé momento *2, 1-0 oanvaesent Giles DELEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 36 3. Acanca, 1. TRANSFORMACOES DAS CIENCIAS DO HOMEM (0 balango das ciéncias parece a Nietzsche um triste balango: em toda parte o esforco para interpretar os fenémenos a partir das {orcas reativas. J& vimos isto na fisica e na biologia. Mas & medida que mergulhamos nas ciéncias ca homem, assistimos 20 esenvolvimento 6a Interpretacio reativa e negativa dos fendmenos; “a utlidade”, “a adaptacio", a “regulagio”, até mesmo 0 "esquecimento” servem de conceitos explicativos'. Em toda parte, nas ciéncias do homem e até mesmo nas ciéncias da natureza, aparece a ignorfncia das origens e da genealogia das forcas. Dir-se-ia que o erudite tomou por modelo o triunfo das forcas reativas & a ele quer subjugar o pensamento. Invoca seu respeito pelo fato e seu autor pela verdad. Mas 0 fato € uma interpretacio; que tipo de interpretacao? 0 verdadeiro exprime uma vontade; quem quer 0 verdadeiro? E 0 que quer aquele que diz: Eu procura a verdade? [Nunca come hoje viu'se a cléncia levar tio longe, num certo sentido, a exploracio da natureza e do homer, mas também nunca se viu a ciéncia evar tao longe a submissio a0 ideal e & ordem estabelecidos. Os eruitos, mesmo os democratas e socialistas, nfo 10 desprovidos de piedade; s6 que inventaram uma teologia que no depende mais do coracio?. "Vejam na evolucao de um povo as épocas em que o erudito passa para o primero plano, s80 épocas de fadiga, mutas vezes, de crespisculo, de dectnio'.” 0 desconhecimento da ago, de tudo o que & ativo, irompe nas ciéncias éo homer. Por exemplo, julga-se a agdo por sua utilidade. Nao nos apressemos em dizer que o uiitarismo é hoje uma coutrina ultrapassada, Em arimeiro lugar, se ela 0 , em parte & gracas a Nietzsche, Em seguida, uma doutrina s6 se deixa ultrapassar com a condicao de estender seus prncipios, fazer deles postulados mais cescondides nas doutrinas que as ultrapassamn. Nietzsche pergunta: a que remete o conceito de utilidade? Isto &, para quem uma aco € Gtil ou nociva? Quem, por conseguinte, considera a agio do ponto de vista de sua utlidade ou nocividade, do ponto de vista de seus motivase de suas conseqiéncias? Nao & aquele que age, este nao “considera” a acao. Mas um terceiro, paciente ou espectador. E ele que considera a aco que ndo realiza iprecisamente porque no a realiza) como algo a ser avaliado do ponto de vista da vantagem que tira ou pode tirar dela; ele, que no age, estima possuir um direito natural sobre a aco, merecer recolher dela uma vantagem ou um lucrot, Pressentimas a fonte da “utiliade”: & a fonte de todos 0s canceitos passivos em geral, 0 ressentimento, ada mais do que as exigéncias do ressentimento, — A utilidade serve-nos aqui de exemplo, Mas 0 que parece de qualquer modo pertencer & ciéncia, © também a filosofi, € 0 gosto por substituir as relacdes reais de forcas por uma relacéo abstrata que se supe ‘exprimir todas elas, como uma “medida”. A este respeito, 0 espirito objetivo de Hegel ndo vale mals do que a utilidade, no menos “objetiva”. Ora, nessa relagio abstrata, qualquer que seja, sempre se é levado a substitur as atividades reais (car, falar, amar, etc... pelo ponte de vista de um terceira sobre essasatividades; confunde-se a esséncia da atividade com o lucro de um terceiro e retende-se que este deva tirar proveito deste lucro ou que tena direito de recother seus efeltos (Deus, 0 espirito objetivo, a humanigade, a cultura ou até mesmo 0 proietariado...) Vejamos um outro exemple, oda linguistca. Exste © habito de julgar a lnguagem do ponto de vista de quem uve. Nietzsche sonha ‘com uma outa filosofia, untafHlosofia ativa. 0 segreco do termo nfo esta do lado de quem owe, assim como 0 segredo da vontade no esta do laco de quem obedece, ou o segredo da farca do lado de quem reage. A flosfia ativa de Nietzsche 36 tem um principio tum termo s6 quer dizer alguma coisa na medida em que aquele que o diz quer alguma cosa ao dizé-o. E uma s6 regra: atar a palavra como uma atividade real, colocar-se do ponto de vista de quem fala, “Esse dieito do senhar, o direto de dar nomes, vai téo longe que se pode considerar a prégria origem da tinguagem como um ato de autoridade emanando des dominantes. Eles disseram: {sto € tal coisa, igaram tal vocdbulo a um objeto e a um fato e, deste mado, por assim dizer, deles se apoderaram’.” A ingUistica ativa procura descobrir quem fala e quem nomeia, Quem se serve de tat term, a quem ele a aplicainiciamente, a si mesmo, a alguém que auve, a alguma outra cosa, e com que intengdo? O que ele quer ao pronunclar tal palavra? A transformagio do sentico de um termo significa que um outro (uma outra forga e uma outra vontade) dele se apodera, aplica-o a outra coisa porque quer algo diferente. Toda a concepgéo nietzscheana da etimologiae da filologia, muitas vezes mal compreendida, depende deste principio e desta regra dos quais Nietzsche fara uma brithante aplicagao em A Genealogia da Moral onde se interroga sobre a etimotogia do termo “bom, sobre o sentido deste termo, sobre a transformacao deste senti¢o, como 0 termo “bom” foi criadoinicialmente pelos senhores que o aplicavam a si mesmos, posteriormente, captado pelos escravos que o tiravam da boca de seus senhores do quais diziam, ao contrério, “sao maus”. (© que seria uma ciéncia verdadeiramente ativa, penetrada de conceitos aves, como essa nova filologia? S6 uma ciéncia ativa & capaz de descobrir as forgas ativas, e também de reconhecer as forgas reativas como 0 que elas st, isto &, como forgas. Sé uma ciéncia & capaz de interpretar as atividades reais e também as relacBes reais entre as forcas. Ela se apresenta entéo sob trés formas. ‘Uma sintomatolosia, visto que interpreta os fenémenos tratando-as coma shtomas cujo sentid & preciso procurar nas forgas que os vot 4.2 2 GU I, 23:25.— Sobre a pscloia do eo, BM, 2067. >t 28. «M1, 26 10, BM, 280, rou 2 GM 4,5, 20,11 Giles DeLeuze — NiETZSCHE ER FLOSOFIA 37 produzem. Uma tipologia, visto que interpreta as préprias forgas do ponto de vista de sua qualidade, ativo ou reativa. Uma sgeneatogia, visto que avalia a origem das forgas do ponto de vista de sua nobreza ou de sua baixeza, visto que encontra a ascendéncia delas na vontade de poténcia e na qualidade dessa vontade, As diferentes ciéncias, mesmo as ciéncias da natureza, tém sua unidade nesta concepeao. Nais ainda, a filosotia e a ciéncia tém sua unidade'. Quando a ciéncia deixa de utilizar conceitos passivos, ela deixa de ser um positivism, mas afilosofia delxa de ser uma utopia, um devanelo sobre a aividade que compensa esse Positvisme, A filosfia enquanto tal é sintomatologsta, tipologsta, genealogista. Reconhece-se a trindade nietzscheana do “lésofo o futuro”: lésofo médico (é © médico que interpreta os sintomas), lésofo artista (¢ 0 artista que modela 0s tpes), llssofo legislador (é0 legislador que determina o nivel, a genealogia ‘A FORMULA DA QUESTAO EM NIETZSCHE [A metafisica formula a questio da esséncia da sequinte forma: Que é...? Talvez nos tenhamos habituade a considerar Sbvia essa pergunta; de fato, nés a devemos a Sécrates e a Platio. & preciso voltar a Platio para ver até que ponto a pergunta: “Que é..2" supde um modo particular de pensar. Platio pergunta: que é o belo, que € 0 justo, etc.? Preocupa-se em opor a essa forma de ergunta qualquer outra forma. Opée Sdcrates ora a rapazes bem jovens, ora a velhos telmases, ora aos famosas sofistas. Contudo, aarece comum a todos responderem a pergunta citando 0 que é justo, 0 que é belo: uma jovem virgem, uma égua, uma panel... Sécrates triunfa; nfo se responde & pergunta: “Que é o belo?” citanco © que é belo, Dai a cstinglo, cara a Plato, entre as cofsas belas, que s6 sd0 belas por exemplo, aciéentalmente e segundo o devir; eo Belo que & apenas belo, necessariamente belo, que é 0 belo segundo o ser € a esséncia, Por isto, em Platto, a oposiglo entre a esséncia © a aparéncia, entre o ser e 0 devir depende inicialmente de um modo de questionar, de uma forma de pergunta. Entretanto, cabe perguntar se 0 triunfo de Sécrates, uma vez mais, é merecido. Ndo parece que 0 método sacritico seja fruifero; precisamente porque ele domina os dilogos ditos aporéticos nos quais rena o nltismo, Sem divida, é uma tolice citar 0 que é belo quando thes perguntam: 0 que é o belo? Nas néo é tao seguro ‘que a propria pergunta: Que é o belo? ndo seja uma tolice. Néo & seguro que ela sejalegitima e bem colacada, mesmo (e sobretudo} fem funglo de uma esséncia a ser descoberta. As vezes, nos cidlogos,britha um lampejo Logo apagado, que nos indica por um instante qual era a idéia dos sofistas. Misturar os sofistas com os velhose os rapazolas é um procedimento de amalgama. O sofista Hipias nao fra uma crianga que se contentava em responder “o que” quando se the perguntava “que”. Ele pensava que a pergunta 0 que? era rmethor enguanto pergunta, a mais apta a determinar a esséncia, Ela no remetia, como acreditava Sécrates, a exemplosisolados & sim & continuidade dos objetos concretas tomades em seu devir, no devirbelo de todos os objetos citévels ou citados como exemplos. Perguntar 0 que é belo, o que & justo e nfo que é 0 belo, que é 0 justo, era entdo o fruto de um método elaborado que Jmplicava uma concepgao da esséncia originale tada uma arte sofistica que se opunha A dialética. Uma arte empirista e pluralist, “Que? gritel com curiosidade. — Quem? deverias perguntar! Assim falou Diensia, depois calou-se da maneira que the & peculiar, isto &, como sedutor." A pergunta “0 que?”, segundo Nietzsche, significa o sequinte: considerando-se uma determinada coisa, quats sto as forcas que dela se apoderam, qual ¢ a vontade que a possui? Quem se exprime, se manifesta, e mesma se oculta nela? Sé somos conduzids & esséncla pela pergunta: 0 que? Pols @ esséncia € somente o sentido e 0 valor da coisa; a esséncia & determinada pelas {orcas em afinidade com a coisa e pela vontade em afinidade com essasforsas, Mais ainda, quand colocamos a pergunta: “Que &2”, além de caizmos na pior metafisica, de fato apenas colocamos a pergunta: O que? de um modo indbil, cego, nconscient “A pergunta: Que é ito? € um modo de colocar um sentido, visto de um outro ponto de vista. A esséncia, o ser, & uma realidade perspectiva e supde uma pluralidade. No fundo esté sempre a pergunta: Que é para mim? (para nés, para tudo o que vive, etc.).” ‘Quando perguntamos 0 que é o belo, perguntamos de que ponto de vista as cosas aparecem como belas; © 0 que assim nBo nos aparece como belo, de que outro ponto ce vista torar-se-ia belo? F com respeito a determinada coisa, quaissio as forcas que a tommam au torné-lariam bela ao se apropriarem dela, quai sio as outras foreas que se submetem as primeiras ou, a0 contrario, que thes resister? A art pluraista nfo nega a esséncia, ela a faz depender em cada caso de ume afnidade de fendmenos ede forcas, de uma coordenasao de farsa e de vontade, A esséncia de uma colsa & descoberta na forga que a possui é que nela se exprime, desenvolvida nas forcas em afinidade com esta, comprometida ou destruda pelas forgas que nela se opdem e que podem prevalecer: a esséncia é sempre o sentido e o valor. €, assim, a pergunta “o que?” ressoa para todas as coisas e sobre todas as coisas: que forcas, cue vontade? £ a questéo trdgice. No grau mals prafundo ela esté estenclda interamente na ditecko de Dionsio, pas Dionisio é o deus que se esconde € se manifesta, Dionisio € querer, Dionisio € aquele que... A pergunta: 0 que? encontra sua instancia suprema fem Dionisio ou na vontade de poténcia; Dionisio, a vontade de poténcia, & quem a preenche todas vezes em que & colocada. Nao se erguntaré “quem quer?", “quem interpreta?”, “quem avalia?", pois sempre © em toda parte a vontade de poténcia é quem Dionisto & o ceus das metamorfoses, 0 um do miltipl, 0 um que afirma o mittiplo e se afirma do miltiplo. "Quem entéo?”, & sempre ele. Por iso Dioniso se cala sedutoramente, a tempo de ocultar-se, de tomar ua outra forma © mudar de forcas. Na obra e confuso "nota a 201 NEVP.W, 2, proj de petit, 10 rad. Al “Ph 208 VP, 204 Giles DeLEUZE — NIETZSCHE ER FLOSOFIA 38 de Nietzsche, © admiravel pooma Lamentacéo de Ariana exprime uma relacao fundamental entre um modo de perguntar © a personagem divina presente sob todas as perguntas — entre a pergunta pluralista e a airmagao dionisiacao (© METODO DE NIETZSCHE sical Desta forma de pergunta deriva un método, Sendo dados um conceito, un sentimente, uma crenga, sero tratados coma os sintomas de uma vontade que quer alguma coisa. O que quer aquele que diz iss0, que pensa ou experimenta aquilo? Trata-se de mostrar que no poderia dizé-o, pensévlo ou sent-lo se ndo tivesse tal vontade, tals forgas, tal manera de ser. O que quer aquele que fala, que lama ou que cra? E, inversamente, © que quer aquele que pretende 0 lucro de uma aio que nio faz, aquele que apela para o “desinteresse"? E mesmo o homem ascético? E os utltaristas com seu concelto de utilidade? E Schopenhauer, quando forma o estranho conceito de negardo da vontade? Seria a verdade? Mas 0 que querem enfim os procuradores da verdade, aquetes que dizem: eu procure a verdade®. — Querer no & um ato como os demais. Querer 6 2 insténcia ao mesmo tempo genética e critica de todas as nossas acdes, sentiments e pensamentos. 0 método consiste no sequinte: referir um conceito 8 vontade de poténcia para dele fazer © sintoma de uma vontade sem a qual ele no poderia nem mesmo ser pensaco (nem o sentiment ser experimentado, nem a acéo ser empreendida). Tal método corresponde & questao trigica. Ele préprio é o método trdgice. Ou, mals precisamente, se tramos do ‘tetmo “drama” todo 0 pathos dialético € cristo que compromete seu sentido, é © método da dramatizagdo. “O que queres?”, pergunta Ariana a Dionisio. 0 que quer uma vontade, eis 0 conteido latente da coisa corresponcente, Nao nos devemos enganar com a expressio: o que a vontade quer. 0 que uma vontade quer ndo é um objeto, um objetivo, um fim. (05 fins € 05 objetos, até mesma os motivos, sio ainda sintomas. 0 que uma vontade quer, segundo sua qualidade, & afirmar sua diferenca ou negar 0 que difere. 0 que se quer sto sempre qualidades: 0 pesado, o leve... 0 que uma vontade quer & sempre sua prépria qualidade © a qualidade das forcas correspondentes. Como diz Nietzsche, a respeito da alma nobre, afirmativa e leve: “Nao sei que certeza fundamental de si mesma, algo que & impossivel procurar, encontrar © tampouco, talvez, perder *.” Portanto, ‘quando perguntamos “o que quer aquele que pensa ssa? “, ndo nos afastamas da pergunta fundamental. “O qué, apenas the dames uma regra e um desenvolvimento metadicos. Pedimos, em verdade, que nao se responda a pergunta por meio de exemplos, mas pela eterminagio de um tipo, Ora, um tipo é consttuide precisamente pela qualidade da vontade ce poténcia, pela nuanga dessa qualicace e pela relacio de forcas correspondentes; toda o resto & sintoma, O que uma vontade quer nio é umn objeto, mas Um tipo, © tipo daquele que fala, daquele que pensa, que age, que no age, que reage, etc, Sé se define um tipo determinando o que quer a vontade nos exemplares desse tipo. O que quer aquele que procura a verdade? Essa é a Unica maneira de saber quem procura a veréade, © método da dramatizacio apresenta-se assim como o nico método adequado ao projeto de Nietzsche e & forma das perguntas que coloca: métode diferencil,tipoligico e genealégico, E verdade que esse método deve superar uma segunda objego: seu cardter antropolgico. Mas basta-nos considerar qual & 0 tipo do priprio homem. Se é verdade que o triunfo das forsas reaivas & consttutivo do homem, todo 0 método de dramatizacio tende para a éescoberta de uma outra qualidade da vontade de poténciacapaz de transmudar suas nuancas demasiado humanas. Nietzsche dz: © desumano e o sobre-humane, Uma coisa, um animal, um deus no so menos dramatizivels do que um homem ou do que eterminagies humanas, les também so as metamorfoses de Dionisio, os sintomas ce uma vontade que quer alguma coisa Também exprimem um tipo, um tipo de forcas desconhecido do homem. Uma vontade da terra; © que seria una vontade capaz de afirmar a terra? 0 que quer essa vontade na qual a prépria terra permanece um contra-senso? Qual é a sua qualidade, que se tora também a qualidade da terra? Nietzsche responde: “A lee... CONTRA SEUS PREDECESSORES (© que quer dizer “wontade de poténcia”? Acima de tudo néo significa que a vontade queira o poder, que ela deseje ou busque o oder como ur fim, nem que o poder seja seu mével. A expressio “Cesejar 0 poder” é to absurda quanto a expressio “querer viver": "Por certo ni encontrau a verdade quer falava da vontade de vida, essa vontade néo existe. Pots © que ndo existe nao pode ‘querer; € como o que esté na vida poderia ainda desejar a vida?”. “Desejo de domvinar, mas quem quereria chamar a isso un esejo"” Por isso, apesar das aparéncias, Nietzsche estima que a vontade de poténcia é um conceito inteiramente nove que ele préprio eriou e ntraduziu na filesofa, Ele diz, com a modéstia necessiria: “Conceber a psicologla, como eu 0 fago, cama uma ‘morfologia e uma genética da vontade de poténcia, & uma idéia que nem sequer tocou a pensamento de ninguém, admitindo-se que se possa, em tudo 0 que fol escrito, advinhar também © que fol deixado em silénco'." Entretanto, no faltam autores que, antes de Nietzsche, falaram de uma vontade de poténcia ou de algo anlogo; nao faltam autores que, depots de Nietzsche, tommaram a falar disso. Mas estes dltimos néo si0 os discipulos de Nietzsche, assim come aqueles néo s2o seus mestres. Falaram disso sempre no 1, ‘Lamentago de Arana’ + Eometnd constant de Metsche em tados os seus vos. Verio preserte de manera especaimensssteméica em GM 2,257 4, Prog, 3:°O supertomen & 0 sertdo da tara. Que ross vetade ga que o super-homem sj 0 send da tora" — I, “Da expo de pasadure “aque ae, um da ensiar 0 homens a vear deskeara des os Its para eos propos Inte var pes ars, batzar de novo a fra chamanéo-a dea lov. 52 I, "Da ita sores mesma I, "Doss alos +i 23,

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