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FLAVIA PIOVESAN DIREITOS HUMANOS e Justica Internacional Um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano Prefacio de Celso Lafer 5* edigao revista, ampliada e atualizada 2 tiragem 2014 6 ce (CB ee isan 5788507718901 {on sige Shoo, 270, Ct és — Sn flo — St eros Pa (36133000, $4: 80011 7875 De Hoot dss 1930 weeded feral eels ~ St Pal: Sar, 201 tha nse nn to phi — pare! ae Indices para cotdlogo sistestico; ime ean atom ‘Wes ee Bames Brat Bess0 > sey ioternacona ets ‘Arte « dagramaxée Coudvene de Moro Santas So ALAGSAT.A2LL inate rad Pete red Tron sactaa Tt) nse ect aj Sm ce Ingen: oi Sk Pas Tal spe orate (my i slat in Gogh (a 189) aa CAPITULO I INTERNACIONALIZACAO DOS DIREITOS HUMANOS, E HUMANIZAGAO DO DIREITO INTERNACIONAL, a) Introdugao Compreender o processo de internacionalizagio dos direitos humanos seu reflexo imediato, a humanizagao do Direito Internacional, constitui 0 propésito central deste primeiro capitulo. E a partir deste contexto que sero, posteriormente, destacados os principais desafios e perspectivas do proces- so de internacionalizacao dos direitos humanos na ordem contemporanea. Para tanto, preliminarmente, sera enfocada a concepgao contempora- nea de direitos humanos, & luz do sistema internacional de proteco, ava- liando seu perfil, seus objetivos, sua l6gica e sua principiologia. O sistema internacional de protegao dos direitos humanos constitui o legado maior da chamada “Era dos Direitos”, que tem permitido a internacionalizagao dos direitos humanos e a humanizagao do Direito Internacional contemporaneo'. Em um segundo momento, serio examinados os principais desafios para a implementagao desses direitos, a fim de que o valor da dignidade humana assuma a centralidade ética a orientar a ordem contemporanea. }b) Concepeio contempordnea de direitos humanos Na condigdo de reivindicagdes morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem naszer. Como realca Norberto Bobbio, 0s direitos humanos nao nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todas*, Para 1. Thomas Buergenthal, prélogo do livro de Antonio Augusto Cangado Trindade, A protecdo internacional dos dreito: humanos: fundamentosjuridicos e instrumentos basicos, 1. XXXI No mesmo sentido, afirma Louis Henkin: “O Direito Internacional pode ser clas- sificado Como o Diteto anterior 42 Guerra Mundial e 0 Direito posterior a ela. Em 1945, {8 vitSria dos aliados introduziu uma nova ordem com importantes transformagdes no Direito Intemacional” (Louis Henkin eta, International law: cases and materials, p. 3. 2. Notberto Bobbio, Era dos direitos, p. 32. Hannah Arendt, os direitos humanos nao sao um dado, mas um construfdo, ‘uma invengiio humana, em constante processo de construcao e reconstrugao’. Refletem um construfdo axiol6gico, a partir de um espago simbélico de luta € agio social. No dizer de Joaquin Herrera Flores‘, os direitos humanos compdem uma racionalidade de resisténcia, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espagos de luta pela dignidade humana. Invocam, nesse sentido, uma plataforma emancipat6ria voltada & protego da dignidade humana. Para Carlos Santiago Nino, os direitos humanos so ‘uma construcdo consciente vocacionada a assegurar a dignidade humana e a evitar softimentos, em face da persistente brutalidade humana’. Para Luigi Ferrajoli, os direitos humanos simbolizam a lei do mais fraco contra a lei do mais forte, na expresso de um contrapoder em face dos absolutismos, advindos do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica’. O victim centric approach € a fonte de inspiragao que move a arquitetura protetiva intemacional dos direitos humanos, destinada a conferir a melhor ‘mais eficiente protecao as vitimas reais e potenciais de violagao de direitos. Considerando a historicidade dos direitos, destaca-se a chamada con- cepedo contemporanea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela Declaragdo Universal de 1948 e reiterada pela Declaragaio de Direitos Hu- manos de Viena de 1993. Essa concepedo ¢ fruto da internacionalizagao dos direitos humanos, {que constitui um movimento extremamente recente na hist6ria, surgindo, a 3. Hannah Arendt, As origens do torlitarismo. A respeito, ver também Celso Lafer, A reconstrucdo dos direitos humanos: um didlogo com o pensamento de Hanviah Arendt, p. 134, No mesmo sentido, arma Ignacy Sachs: “Nao se insistiré nunca o bastante sobre 0 fato de que a ascensio dos direitos ¢ fruto de Iutas, que 0s diteitos sfo conquistados, as vvezes, com barricadas, em um processo hist6rico cheio de vicissitudes, por meio do qual as nnecessidades e as aspiragdes se articulam em reivindicagdes e em estandartes de luta antes, 4e serem reconhecidos como direitos” (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, direitos humanos e cidadania, in Direitos humanos no século XXI, p. 156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos € sempre progressivo. (...) O debate a respeito do que sio os direitos ‘humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa hist6ria, de nosso passado ede nosso presente” (Allan Rosas, So-called rights ofthe third generation, in Asbjorn Fide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, social and cultural rights, p. 243). 4, Joaquin Herrera Flores, Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistencia, p. 7. 5. Carlos Santiago Nino, The ethics of human rights. 6. Luigi Ferrajoli, Dirt fondamentali — Um dibattito tedrico, a cura di Ermanno ‘Vitale, Roma, Bari, Laterza, 2002, p. 338 42 partir do P6s-Guerra, como resposta as atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direi- tos humanos, a Fra Hitler foi marcada pela logica da destruigdo e da descar- tabilidade da pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhdes de pesso- asa campos de concentragao, com a morte de 11 milhes, sendo 6 milhoes de judeus, além de comunistas, homossexuais e ciganos. O legado do nazis- ‘mo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condigao de sujeito de direito, ao pertencimento A determinada raga — a raga pura ariana. Para Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genozidio concebido como projeto politico e industrial”. E nesse cenério que se vislumbra 0 esforgo de reconstrugao dos direi- tos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem inter- nacional contemporéinea. Com efeito, no momento em que os seres humanos se tommam supérfluos ¢ descartaveis, no momento em que vige a légica da destruigio, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necesséria a reconstrugio dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a légica do razoavel. A barbérie do totalitarismo signifi- cou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negacao do valor da pessoa humana como valor-fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pés-Guerra deveria signi- ficar a sua reconstrugao, Nas palavras de Thomas Buergenthal: “O moder- no Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenémeno do pés- -guerra, Seu desenvolvimento pode ser atribufdo &s monstruosas violagées de direitos humanos da era Hitler ¢ & crenga de que parte destas violagdes poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de protecao internacional de direitos humanos existisse”* 7. Ignacy Sachs, O desenvolvimento enguanto apropriago dos direitos humanos, Estudos Avangadas, 12 (33), p. 148. 8. Thomas Buergenthal, ntemational human righ, p. 17. Para Henkin: “Por mais de meio século, o sistema internacional tem demonstado comprometimento com valores que sranscendem os valores puramente ‘statis’, notadamente os direitos humanos, tem desea vol¥ido um impressionante sisema normativo de protego desses direitos” (International am P. 2). Ainda sobre o process de interacionalizagio dos direitos humanos, observa Celso afer: "Configurou-se como a primeira respostajuridica da comunidade internacional a0 fato de que o dteito ex parte popui de todo sex humano hosptalidde universal s6 comegaria a viablizarse so ‘dirito ater direitos’, para flar com Hannah Arenct, tvesse uma tue in temacional,homologadora do ponto de vita da humanidade. Foi assim que comegou efetva- mente a ser delimitada a 'rezio de estado’ e corofda a competénciareservada da soberania dos govemantes, em matria de direitos humanos, encetando-s a sua vinculagHo aos temas da democracia eda paz” (pretico ao lvro Os direitos humanos como tema global, p. XXVD, a Sob essa perspectiva se manifesta a aguda critica © o reptidio & con- cepstio positivista de um ordenamento jurfdico indiferente a valores éticos, confinado & 6tica meramente formal — tendo em vista que 0 nazismo e 0 fascismo ascenderam ao poder dentro do quadro da legalidade e promove- ram a barbarie em nome da lei. Hi um reencontro com o pensamento kan- tiano, com as ideias de moralidade, dignidade, Direito cosmopolita ¢ paz perpétua. Para Kant as pessoas, ¢ em geral qualquer espécie racional, deve existir como fim em si mesmo e jamais como meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propésito. Os objetos tém, por sua vez, um valor condicional, por serem irracionais, por isso so chamados “coisas”, substi- tuiveis que so por outras equivalentes. Os seres racionais, ao revés, so chamados “pessoas”, porque constituem um fim em si mesmo, tém um valor intrinseco absoluto, sao insubstitufveis e tinicos, nao devendo ser to- mados meramente como meios’. As pessoas so dotadas de dignidade, na medida em que possuem um valor intrinseco. Desse modo, ressalta Kant, trate a humanidade, na pessoa de cada ser, sempre como um fim mesmo, nunca como um meio. Adiciona Kant que a autonomia'® é a base da digni- dade humana e de qualquer criatura racional. Lembra que a ideia de liber- dade € intimamente conectada com a concepgao de autonomia, por meio do principio universal da moralidade, que, idealmente, ¢ 0 fundamento de todas as acdes de seres racionais"'. Para Kant, o imperativo categ6rico universal dispoe: “Aja apenas de forma a que a sua méxima possa converter-se a0 ‘mesmo tempo em uma lei universal”. ‘9. A teoria moral kantiana exerceu enorme influéncia nos fundamentos de diversas teorias sobre direitos. A respeito, consultar Jeremy Waldron (ed.), Theories of rights 10. Significativasteorias sobre direitos humanos tendem a enfatizar a importancia € 0 valor da autonomia pessoal. Para J. Raz: “Uma pessoa autGnoma é aquela que € autora de sua prspria vida. Sua vida 6 o que que ela faz dela (..) Uma pessoa € autOnoma somente se tem uma variedade de escolhas aceitveis disponiveis para serem feitas e sua vida se torna 0 te sultado das escolhas derivadas destas opgdes. Uma pessoa que nunca teve wma escotha efe- tiva, ou, tampouco, teve consciéncia dela, ou, ainda, nunca exercen o diseto de escolha de forma verdadeira, mas simplesmente se moveu perante a vida nfo € uma pessoa autOnoma” G. Raz, Right-based moralities, in Jeremy Waldron (ed.), Theories of rights, p- 191). J. Raz, cm critica ao enfoque moral individualista da autonomia pessoal, acentua que: “A existéncia de diversas escolhas consiste, em parte, na exist@ncia de certas condigdes sociais.(..) {deal da autonomia pessoal é incompativel com o individualismo moral” (p. 192-193). 11. A respeito, ver Immanuel Kant, Fundamental principles of the metaphysics of morals, in Allen W. Wood (ed), Basic writings of Kant, p. 185-186, 192-193, 12. Ver Immanuel Kant, Fundamental principles of the metaphysics of morals, in Basic writings of Kant, p. 78. om No esforgo de reconstrugao dos direitos humanos do P6s-Guerra, ha, de um lado, a emergéncia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e, de outro, a emergéncia danova feigdo do Direito Constitucional ocidental, aberto a princfpios e a valores, com énfase no valor da dignidade humana, Vale dizer, no ambito do Direito Intemacional, comeca a ser delineado o sistema normativo internacional de proteco dos direitos humanos. E como se se projetasse a vertente ce um constitucionalismo global, vocacionado a proteger direitos fundamertais ¢ a limitar 0 poder do Estado, mediante a criagio de um aparato intemacional de protecao de direitos. Por sua vez, no ambitodo Direito Constitucional ocidental, testemunha- ~se a elaboragao de textos constitucionais abertos a prinefpios, dotados de clevada carga axiolégica, com destaque ao valor da dignidade humana. A respeito, ressaltam as lig6es de Canotilho: “Se ontem a conquista territorial, a colonizagio ¢ o interesse nacional surgiam como categorias referenciais, hoje os fins dos Estados podem e devem ser os da construgao de ‘Estados de Direito Democriticos, Sociais e Ambientais’, no plano interno e Estados abertos ¢ internacionalmente amigos e cooperantes no plano externo. Estes parmetros fortalecem as imbricagdes do Direito Constitucional com 0 Direito Internacional. (...) Os direitos humanos articulados com o relevan- te papel das organizagdes internacionais fornecem um enquadramento razodvel para 0 constitucionalismo global. O constitucionalismo global compreende néo apenas o classico paradigma das relagGes horizontais entre Estados, mas 0 novo paradigma centrado nas relagdes Estado/povo, na ‘emergéncia de um Direito Internacional dos Direitos Humanos e na tenden- cial elevagdo da dignidade humana a pressuposto ineliminavel de todos os constitucionalismos. Por isso, o Poder Constituinte dos Estados e, conse- quentemente, das respectivas Constituigées nacionais, esté hoje cada vez mais vinculado a princfpias e regras de direito internacional. E como se 0 Direito Internacional fosse transformado em pardmetro de validade das proprias Constituigdes nacionais (cujas normas passam a ser consideradas nulas se violadoras das normas do jus cogens internacional). O Poder Cons- tituinte soberano criador de Constituigdes esté hoje longe de ser um sistema auténomo que gravita em torno da soberania do Estado. A abertura ao Direito Internacional exige a observancia de princfpios materiais de politi- cae direito internacional tendencialmente informador do Direito interno”. 13, Jos6 Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituigdo, p. 1217. as O Dat a primazia do valor da dignidade humana, como paradigma referencial ético, verdadeiro superprincipio a orientar 0 constitucionalismo contemporiineo, nas esferas local, regional e global, doando-Ihe especial racionalidade, unidade e sentido. No dizer de Cangado Trindade: “Nao se pode visualizar a humanidade como sujeito de Direito a partir da ética do Estado; impée-se reconhecer 0s limites do Estado a partir da ética da humanidade” Fortalece-se a ideia de que a protegao dos direitos humanos no deve reduzir-se ao dominio reservado do Estado, porque revela tema de legitimo interesse internacional. Por sua ver, essa concep¢io inovadora aponta a duas importantes consequéncias: 1*) a revisio da nogio tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativizagdo, na medida em que so admitidas interveng6es no plano nacional em prol da protegdo dos direitos humanos — isto é, transita-se de uma concepg40 “hobbesiana” de soberania, centrada no Estado, para uma concepgio “kan- tiana” de soberania, centrada na cidadania universal"; e 2#) a cristalizagio da ideia de que o individuo deve ter direitos protegidos na esfer: nacional, na condigao de sujeito de direitos. Prenuncia-se, desse modo, o fim da era em que a forma pela qual 0 Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdiga0 doméstica, decorréncia de sua soberania, Para Andrew Hurrell: “O aumen- 10 significativo das ambig6es normativas da sociedade internacional é par- ticularmente visfvel no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na ideia de que as relagdes entre governantes ¢ governados, Estados cidadaos, passam a ser suscetiveis de legitima preocupacao da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadaos e a inexisténcia de regimes democréticos devem demandar agio internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas sio politicamente ordenadas”*, 14, Antonio Augusto Cangado Trindade ¢ Manuel E. Ventura Robles, El futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, p. 206. 15. Para Celso Later, de uma vislo ex parte principe, fundada nos deveres dos sditos ‘com relagdo ao Estado, passa-se a uma visio ex parte populi,fundada na promoglo da nog de direitos do cidade (Comércio, desarmamento, direitos humanos: reflexdes sobre uma experiéncia diplomatica, p. 145). 16. Andrew Hurrell, Power, principles and prudence: protecting buman rights in a deeply divided world, in Tim Dunne e Nicholas J. Wheeler, Human rights in global polities, 1999, p. 277. 46 Nesse cenério, a Declaragio de 1948 vem a inovar ao introduzir a chamada concepgio contemporinea de direitos humanos, marcada pela universalidade € indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensao universal dos direitos humanos, sob a crenga de que a condigio de pessoa € 0 reqtisito tinico para a titularidade de direitos, con- siderando o ser humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrinseco & condigao humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e politicos é condigio para a observancia dos direitos sociais, econémicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o sto. Os direitos humanos compdem, assim, uma unidade indivisfvel, interdependente ¢ inter-relacio- nada, capaz de conjugar 0 catélogo de direitos civis e politicos com 0 caté- ogo de direitos sociais, ecenémicos e culturais. ‘A partir da Declaragao de 1948, comega a se desenvolver 0 Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adogao de intimeros ins- trumentos internacionais de protegao. A Declaragio de 1948 confere lastro axiol6gico e unidade valorativa a esse campo do Direito, com énfase na universalidade, indivisibilicade e interdependéncia dos direitos humanos, O processo de universalizagao dos direitos humanos permitiu a forma- do de um sistema internacional de protegdo desses direitos. Tal sistema é integrado por tratados intemacionais de protegdo que refletem, sobretudo, a consciéncia ética contemporénea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam 0 consenso internacional acerca de temas centrais aos di- reitos humanos, na busca de salvaguarda de pardimetros protetivos mfnimos — do “minimo ético irredutivel”. Nesse sentido, cabe destacar que, até setembro de 2013, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Politicos con- tava com 167 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Eeon6mi cos, Sociais ¢ Culturais contava com 160 Estados-partes; a Convengio contra a Tortura contava com 153 Estados-partes; a Convengio sobre a Eliminagao da Discriminagao Racial contava com 176 Estados-partes; a Convengéo sobre a Eliminccdo da Discriminagao contra a Mulher contava com 187 Estados-partes; e a Convencao sobre os Direitos da Crianga apre- sentava a mais ampla adeséo, com 193 Estados-partes'”. ‘Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de protegio, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos T7-Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nag6es Unidas, Status of Ratifications of the Principat International Human Rights Treaties, www.amhha.ch/paffreport pal. 47 OF regionais, particularmente na Europa, América e Africa. Consolida-se, assim, a convivéncia do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez integrado pelos sistemas interamericano, europeu € africano de protegao aos direitos humanos, Os sistemas global e regional nao so dicotémicos, mas complemen- tares. Inspirados pelos valores e princfpios da Declaragao Universal, compoem 0 universo instrumental de protegao dos direitos humanos no plano internacional. Nessa 6tica, os diversos sistemas de protegao de di- reitos humanos interagem em beneficio dos individuos protegidos. Ao adotar 0 valor da primazia da pessoa humana, tais sistemas se comple- ‘mentam, somando-se ao sistema nacional de protegao, a fim de propor- cionar a maior efetividade possivel na tutela e promogao de direitos fun- damentais. Essa é, alids, a l6gica e a principiologia préprias do Direito dos Direitos Humanos. Ressalte-se que a Declaragao de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepgao da Declaracao de 1948 quando, em seu § 5°, afirma: “Todos 0s direitos humanos sao universais, interdependentes ¢ inter-relacio- nados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos global- mente de forma justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma én- fase”. A Declaragio de Viena afirma ainda a interdependéncia entre os va- lores dos direitos humanos, democracia e desenvolvimento. ‘Nao hi direitos humanos sem democracia, tampouco democracia sem direitos humanos. Vale dizer, o regime mais compativel com a proteco dos direitos humanos ¢ 0 democratico. Atualmente, 140 dos quase 200 Estados que integram a ordem internacional realizam eleiges periédicas. Contudo, apenas 82 Estados (0 que representa 57% da populagao mundial) so con- siderados plenamente democriticos. Em 1985, esse percentual era de 38%, compreendendo 44 Estados'*. De acordo com 0 Freedom House, hi apro- ximadamente 40 anos, mais da metade do mundo era governado por auto- cracias e milhdes viviam sob a violéncia do totalitarismo. A maioria do mundo hoje vive em Estados democréticos. Em 2010, todavia, 47 paises ainda cram considerados nao livres (tendo liberdades basicas sistematica- ‘mente violadas), 0 que abrange 35% da populagao global. Considerando 0 critério regional, na Europa ocidental 96% dos paises sto considerados livres (com pluralismo politico, respeito as liberdades civis uma imprensa 18. Consultar UNDP, Human Development Report 2002: Deepening democracy in a fragmented world 48 independente), enquanto que no norte da Africa apenas 6% o so”, Note-se que o pleno exereicio dos direitos politicos ¢ capaz. de implicar 0 “empo- deramento” das populagdes mais vulnerdveis, o aumento de sua capacidade de pressio, articulagao e mobilizagZo politicas. Para Amartya Sen, 0s di- reitos politicos (incluindo a liberdade de expressio e de discussio) sio néio apenas fundamentais para demandar respostas politicas as necessidades econdmicas, mas so centrais para a propria formulagao dessas necessida- des econdmicas® J4 0 direito ao desenvolvimento demanda uma globalizagio ética ¢ solidaria. No entender de Mohammed Bedjaqui: “Na realidade, a dimensio internacional do direito ao desenvolvimento € nada mais que o diteito auma reparticao equitativa concernente ao bem-estar social e econémico mundial. Reflete uma demanda crucial de nosso tempo, na medida em que os quatro quintos da populagdo mundial no mais aceitam o fato de um quinto da populagdo mundial continuar a construir sua riqueza com base em sua pobreza”. As assimetrias globais revelam que a renda dos 1% mais ricos supera a renda dos 57% mais pobres na esfera mundial”. Para a Organiza~ do Mundial de Satide: “A pobreza é a maior causa mortis do mundo. A pobreza dissemina sua influéncia destrutiva desde os primeiros estagios da vida humana, do momento da concepgio ao momento da morte” 19, Freedom House, Freedom in the World 2011 — Annual survey of political rights ‘and civic liberties ~ The authoritarian challenge to democracy. 20. Amartya Sen, prefécio ao livro Pathologies of power, de Paul Farmer, 21, Mohammed Bedjaqui, The right to development, in M. Bedjaqui (ed), nterna- tional law: achievements and prospects, p. 1182. Para Joseph E. Stiglitz: “Desenvolvimen- to significa transformagio social, com a melhoria das condigbes de vida das populagies mais pobres, assegurando a todos uma oportunidade de sucesso e acesso A satide e & educagio (Globatization and its discontents,p.252). 2. A respeito, consultar UNDP, Human Development Report 2002, p19. 2, Ver Paul Farmer, Pathologies of power, p. 50. De acordo com dads do relatério Sinais Vitais, do Worldwatch Institute (2003), a desigualdade de renda se reflete nos indi caadores de sate: a mortaidade infantil nos paises pobres & 13 vezes maior que nos paises ricos; a mortalidade materna é 150 vezes maior nos pafses de menor desenvolvimento com relagio aos pafses industralizados, A falta de 4gua limpa e saneamento bésico mata 1,7 rmilhao de pessoas por ano (90% criangas), 20 asso que 1,6 milo de pessoas morrem de doengas decorrentes da uilizago de combustiveis fésscis para aquecimento e preparo de ‘alimentos. O relat6rio ainda atenta para o fato de que a quase totalidade dos conflitos ar mados se concentra no mundo em desenvolvimento, que produziu 86% de refugiados na ‘ltima década, 49 O desenvolvimento, por sua vez, hé de ser concebido como um pro- cesso de expansao das liberdades reais que as pessoas podem usufruir, para adotar aconcepgao de Amartya Sen™. Actescente-se ainda que a Declaraco de Viena de 1993 consagra ser 0 direito ao desenvolvimento um direito universal e inaliendvel, parte integral dos direitos humanos fundamentais. Reitere-se que a Declaragao de Viena reconhece a relagdo de interdepen- déncia entre a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. Feitas essas consideragdes a respeito da concepgao contempordinea de direitos humanos, transita-se & reflexdo a respeito dos desafios centrais 20s direitos humanos na ordem internacional contemporanea. ) Desafios dos direitos humanos na ordem internacional contemporénea A luz do objeto maior desta investigago, que se atém aos direitos hhumanos e & justica internacional, considerando as experiéncias dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano, serdo destacados sete desafios centrais a implementago dos direitos humanos na ordem contemporéinea. Objetiva-se, assim, tecer 0 “estado da arte” dos direitos humanos na ordem ‘contempordnea, o que permitiré contextualizar 0 processo de justicializaga0 dos direitos humanos no Ambito internacional. 1) Universalismo ys. relativismo cultural O primeiro desafio refere-se a um dos temas mais complexos e insti- gantes da teoria geral dos direitos humanos, concemente & prdpria funda- mentagao desses dircitos. O debate entre os universalistas ¢ os relativistas culturais retoma 0 dilema a respeito dos fundamentos dos direitos humanos: por que temos 24, Ao conceber 0 desenvolvimento como liberdade, sustenta Amartya Sen: “Nesse sentido, a expansio das liberdades é vista concomitantemente como: 1) uma finalidade em si mesma; e 2) 0 principal significado do desenvolvimento. Taisfinalidades podem ser cha- madas, respectivamente, como a funcio constitutive a fungio instrumental da liberdade ‘em relagao ao desenvolvimento, A funglo consttutiva da liberdade relaciona-se com a im- portincia da liberdade substantiva para o engrandecimento da vida humana. As liberdades ‘substantivas ineluem as capacidades elementares, como a de evitarprivagses como a fome, 4 submutrigio, a mortalidade evitével, a mortalidade prematura, bem como as liberdades associadas com a educagio, a participagao politica, a proibicdo da censura... Nesta perspec- tiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansio destas e de outras liberdades fun- humanos na ordem internacional, merecem destaque as experiéncias do Tri- bunal de Nuremberg, bem como dos Tribunais ad hoc para a ex-Tugostaviae para Ruanda e, posteriormente, a criagao do Tribunal Penal Internacional 1) O legado do Tribunal de Nuremberg 0 Tribunal de Nuremberg, em 1945-1946, significou um poderoso impulso no processo de justicializagao dos direitos humanos. Ao final da ‘Segunda Guerra e apés intensos debates sobre as formas de responsabiliza- ‘¢do dos alemaes pela guerra e pelos barbaros abusos do perfodo, os aliados chegaram a um consenso, com 0 Acordo de Londres de 1945, pelo qual ficava convocado um Tribunal Militar Internacional para julgar os crimino- sos de guerra! 1. Como explica Henkin: “Em 8 de agosto de 1945, 0s Governos do Reino Unido, dos, Estados Unidos, Provisério da Repsiblica Francesa e da Unido das Rep6blicas Socialistas BA >

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