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<—_> eS all HNC: a Oy A N OMI oe Lt i i AUD RNG ee S = (Ur ~ MARILDA C. CAVALCANTI e STELLA MARIS BORTONI-RICARDO (ORGS.) CAPITULO 1 TRANSCULTURALIDADE E TRANSGLOSSIA: PARA COMPREENDER O FENOMENO DAS FRICGOES LINGUISTICO-CULTURAIS EM SOCIEDADES CONTEMPORANEAS SEM NOSTALGIA Maria Inés Pagliarini Cox Ana Anténia de Assis-Peterson Aproximar-se da Cuiaba deste inicio de século é aproximar-se de uma ia lingiifstica que mescla muitos timbres. A hist6ria de sua formacao, nos s dos séculos XVIII, XIX e XX, e a sua histéria recente, nas tiltimas quatro s, entrelagam-se e resultam numa composi¢ao matizada singular, mas imune aos processos de globalizagao cultural que, através dos meios joldgicos de comunicagao a distancia, alcangam os cantos mais remotos do so planeta Terra. A hist6ria s6cio-lingiiistico-cultural de Cuiabé comega a ser contada a da interagdo entre as sociedades indigenas locais e os bandeirantes ilistas, que chegaram a regido no inicio do século XVIII, trazendo na em a cultura e o dialeto caipira. Insulado pela lonjura e bastante rural até ira metade do século XX, Mato Grosso apresentava uma cultura prépria diferente daquela do sul do pais, que vinha se urbanizando e modernizando o final do século XIX. Janelas e portas abertas dia e noite, cadeiras na , Muitos “causos”, folgar e sesta nas horas de sol a pino compunham o io da vida em Cuiabé. Gina caltorn pred antemente oral, um ritmo. TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM EEDUCACAO 23 descansado e uma tranqiiilidade impensdvel em outras capitais brasileiras timbravam a sociedade cuiabana até bem pouco tempo. Contudo, desde os primeiros anos da década de 1960, sob o signo dos programas governamentais que, orientados para a proteg¢ao da Amazonia Bra- sileira, empurravam o pais para dentro, incentivando financeiramente 0 povoa- mento das regides Centro-Oeste e Norte do pais, o Estado de Mato Grosso vive sob o influxo de uma gigantesca onda migrat6ria vinda principalmente do Sul e Sudeste. Hoje, a populacao do Estado é formada, em sua maioria, por migrantes, os chamados “paus-rodados”. Esse fato agita tudo 0 que de sedimen- tado havia na regiao, alterando profundamente sua configuragao cultural e sociolingiifstica De um cendrio lingiifstico aparentemente homogéneo, Cuiaba, na sua condigao de Portal da Amaz6nia, converteu-se num cendrio altamente polif6ni- ® co. Escutamos, em Cuiabé, nao mais apenas as notas do falar cuiabano, mas | também as do gaticho, do paranaense, do catarinense, do goiano, do mineiro, do: \ paulista, do nordestino, entre outros. Além de palco da interagao entre as variedades dialetais do portugués, interacdo possibilitada por esse intenso processo migratério, Cuiabé, a semelhanga de outras sociedades contempora- neas complexas, também € atravessada por fluxos culturais que, via satélite, nao cessam de expandir e colocar em circulagao 0 inglés, a lingua da globalizagao. Afinal, como insiste Canclini (1995), a globalizagao cultural nada mais € do que a americanizagao da cultura, sob a égide do triunfo do capitalismo e do liberalismo em sua verso estadunidense. Para que 0 nosso leitor possa experimentar, ainda que sugestivamente. a sensagao de circular no cenério lingiifstico-cultural da Cuiaba contemporanea, transcrevemos aqui um episédio exemplar:' Uma aluna do Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso, que estava cursando a disciplina LingUiistica IV, cuja ementa prevé o estudo da 1. Este epis6dio € extraido do artigo “Crique aqui: um signo mestigo” de autoria de Maria Inés Pagliarini Cox (2001) 24 EDITORA MERCADO DE LETRAS articulagao entre linguagem e sociedade, encontra num banheiro publico, por uma dessas felizes obras do acaso, uma folha de papel sulfite caprichosamente dobrada em quatro partes. Movida pela curiosidade natural de toda mulher, desdobrou a folha e se deparou com o seguinte texto: “Window Explorer Para passar os arquivos do disquete no computador = cricar Disquete (ird aparecer os arquivos) Para passd-los para o Meu Documento cricar nos arquivos e jogar na pasta de Meus Documentos (todas as pastas) Para colocar os arquivos na lixeira cricar nos arquivos e apertar em delete aparecerd uma tela (sim) Para restaurar os arquivos, selecionar os arquivos e ir no arquivo (restaurar) Disquete Arquivo Novo (pasta) escrever um novo nome (curso) enter Cricar em (curso do lado Todas as pastas. embaixo de Disquete. enter e depois dar 2 criques) Cricar em cursos (arquivo — novo — pasta) escreve 0 nome ~ enter = 2 criques (cursos) Para formar uma pasta no Word cricar em Word — arquivo — novo — pasta escrever nome enter => 2 on!” [Transcric&o na integra do texto andnimo encontrado em banheiro ptiblico em 2001.) Um aprendiz andnimo de computagao havia esquecido no banheiro as notas de suas primeiras ligdes e a aluna que, recentemente, havia estudado o fendmeno do rotacismo na perspectiva da sociolingtiistica variacionista, foi perspicaz o bastante para perceber os rastros do fenémeno deixados no manuscrito por esse transeunte qualquer, provavelmente, a julgar pelo seu desempenho textual, um cuiiabano bem letrado que havia passado por ali momentos antes. A aluna, supondo que sua professora de lingiiistica se agradaria em ter um tal texto em mos, dele se apropriou, compartilhando-o com a classe na primeira oportunidade, [Cox 2001, pp. 82-83] TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM EEDUCAGAO 25 Esse epis6dio pareceu-nos especialmente apropriado para ser lido como um fenémeno de sincretismo, hibridagéo ou mestigagem lingiiistica entre o inglés — a lingua global -, 0 portugués — a Iingua nacional — e 0 cuiabanés” — a lingua local. Fez-nos refletir sobre a suposta crenga de que a integridade e a soberania do portugués estariam sendo ameagadas pela invasao do inglés. Essa crenga, razio de muita polémica,’ ancora-se na visio, primeiro, de que a mudanga resultante da interacéio entre duas ou mais Iinguas é unilateral e aculturadora e, segundo, de que a pureza e a eugenia lingiifstica sio melhores do que a mestigagem e a miscigenagao. A_aculturacio_é_ pensada.como a expansao vencedora da lingua hegem6nica, que se irradia eletronicamente (nao mais militarmente) num mundo de comunicacio sem fronteiras, do centro para a(s) periferia(s), provocando um lingilisticidio e ameagando, por conseqiiéncia, a identidade daqueles que se esquecem de sua lingua materna. Todavia, quando esse brasileiro sem face e sem nome diz “cricar”, ele realiza um “aportuguesamento” que rememora o que ha de mais essencial ¢ produtivo na gramatica do portugués: 1. Enquadra o verbo 10 clic na primeira conjugagio (cricar), a Gnica conjugacao atualmente produtiva no portugués; 2. Optamos aqui pelo termo cuiabanés, ao invés de falar “cuiabano”, para manter a simetria com inglés e portugués, onde o sufixo “8s” é uma designagio gentilica, 3. Nao € outra a visto que move deputados como Aldo Rebelo e Jussara Cony a propor projetos de leis (Projeto de Lei n® 1676/1999 e Projeto de Lei n° 65/2000, respectivamente) que pretendem regular 0 uso de estrangeirismos — leia-se anglicismos ~ no espago péblico, uma pritica “considerada lesiva ao patriménio cultural brasileiro”. Argumentam que 0 povo brasileiro preci de um instrumento legal para defender sua lingua, cuja desearacterizacio perda de identidade é iminente, a julgar pela voracidade com que os anglicismos so absorvidos na comunicagio cotidiana. Segundo os deputados, o uso desenfreado de tais termos pode comprometer a comunicagdo do homem comum, principalmente do homem do campo, “nao afeito as palavras e expressOes importadas, em geral do inglés norte-americano, que dominam © nosso cotidiano.” © uso de estrangeirismos seré considerado uma prética “abusiva”, uma pritica “enganosa” e uma prética “danosa”. (Rebelo 1999, pp. 177-185) 26 EDITORA MERCADO DE LETRAS 2. Forma, com o lexema clic, um substantivo (crique), que se flexiona em ntimero de acordo com aestrutura morfolégica do portugués (crique/criques); 3. Realiza o processo de concordancia nominal de acordo com as normas do portugués escrito culto (a marca de plural se repete em todos os termos do SN ~2 criques) e nao de acordo com as normas do portugués coloquial (amarca de plural se restringe ao primeiro termo do SN 2(dois) crique), evidenciando a capacidade de alternar variedades lingiifsticas em fungao do contexto e da modalidade de linguagem); 4. Reestrutura a silaba de acordo com a forma canénica do portugués. No portugués, nao se trava silaba com consoantes oclusivas. Assim, o monossflabo clic é transformado no dissflabo crique, com a introdugao de uma vogal neutra /e/ apds a consoante /k/; 5. Reescreve 0 termo segundo as convengées ortograficas do portugués, usando o grafema antes de a (cricar) e 0 grafema qu antes de (criques); 6. Rotaciza o /I/ do encontro consonantal, agregando A sua identidade de brasileiro, falante de portugués, aquelas de caipira e cuiabano de “chapa e cruz”. Esse epis6dio mostra que o verndculo corrdi os empréstimos, subjugan- : is ‘ tee eee as suas leis, leis do uso e nao de papel. Afinal, “o aportuguesamento de uma palavra ou expresso nao se faz por decreto” (Bagno 2001, p. 81). Cricar €, pois, um signo mestigo, fruto de multiplos entrecruzamentos. Nele coexistem 0 passado e o presente, o estrangeiro ¢ 0 nativo, 0 global, o nacional e o local, 0 rural e o urbano, o caipira e 0 cosmopolita, 0 outro e o mesmo. Em cricar agita-se o sentido do sincretismo. E, como afirma Canevacci (1996, p. 25), “o sincretismo é glocal. E um territério marcado pelas travessias entre correntes ‘opostas e freqiientemente mescladas, com diversas temperaturas, salinidades, se sabores”. A palavra glocal, resultante da mistura entre global e local, foi ‘ada para captar a complexidade dos processos atuais de mutagao cultural 10 algo que nao pode ser reduzido A homologacao globalizante. “O sincre- 10 € o resultado de um contato intercultural e interlingiiistico,_por isso é uo, pidgin, crioulo: é um contégio, um virus” (Cavenacci 1996, p. 21). Com itkumar, 0 autor vé o processo de globalizagiio nio como “simplesmente Sr 2 ee << aquele em que as culturas indfgenas sao modernizadas, mas também aquele em que a modernidade se indigeniza” (1996, p. 21). Nada menos apropriado para lidar com as interacdes culturais e lingiifs- ticas desencadeadas nos cendrios das migracGes e da globalizagao do que fazé-lo a partir de um ponto de vista purista e conservador, interpretando a relacdo entre a cultura e a lingua do centro e as culturas e linguas das periferias como uma sentenca de morte para as tiltimas. A maneira de Canevacci, nao se pode subestimar 0 potencial mutante das linguas locais, aqui metonimicamente representadas pelo falar cuiabano. No fluxo do verndculo, um fluxo antropofé- gico, as palavras estrangeiras sao devoradas, remastigadas, absorvidas e vomi- tadas ndo como palavras casti¢as, mas palavras mesticas. Para estudar a multiplicidade das prdticas linguageiras, envolvendo linguas e dialetos em contato em contextos semelhantes a esse aqui emblema- ticamente evocado,' assim como para estudar os dizeres sociais sobre as dife- rengas lingiifsticas, vemos como necessdrio um deslocamento de nossos habituais pontos de vista acerca do que seja cultura e lingua. Apesar de ha pelo menos trinta anos estarmos pensando e falando em diversidade cultural e | diversidade lingiifstica, a diversidade €, nessa retorica, sempre vista como um 4. Estamos aqui fazendo alusao a dois projetos de pesquisa recentemente propostos por nés. O projeto Fricedes lingiifstico-culturais no escopo de ensino e aprendizagem de inglés - ouvindo ¢ observando participantes da escola, familia e comunidade, coordenado por Ana Antonia de Assis-Peterson, que focaliza nés de tensio © contradigo decorrentes de fricgdes lingitfstico-culturais, tem como pergunta norteadora da investigagao a seguinte: como contextos sociais ¢ culturais dentro e fora da escola forjam atitudes e préticas favordveis ou desfavordveis a0 ensino-aprendizagem da lingua inglesa’ J4 0 projeto Prdticas e atitudes de profissionais da palavra em relagdo ao fendmeno das fricgdes lingiltstico-culturais em sociedades complexas —0 caso da cidade de Cuiabé, coordenado por Maria Inés Pagliarini Cox, tem como objetivo investigar o fendmeno das fricgdes lingtifsticas, tal como se configura nas préticas discursivas de profissionais da palavra, que atuam no mercado de bens simbélicos no estado de Mato Grosso € mais particularmente na cidade de Cuiabé. Tais projetos encontram-se cadastrados no Grupo de Pesquisa registrado sob o nome de “Transculturalidade e Educagao Lingiifstica”, no Diret6rio de Pesquisa do CNPq 28 EDITORA MERCADO DE LETRAS movimento que deriva da unidade, enfim, da norma e nao 0 contrario. Destarte, vamos experimentar pensar tais quest6es a partir da nggo de “transculturalida- de”, que, por analogia, incita-nos a propor a no¢ao de “transglossia”’. ~~ A nogdo de transculturalidade figura numa constelacao de termos cujas especificidades e fronteiras se embaralham. Gravitando em torno da nogao de cultura, ha uma profusdo de termos como: diferenga ou alteridade cultural, multiculturalismo, pluralismo cultural, comunicagao intercultural. A nogado de cultura, assim como a nogao de lingua no campo da Lingiifstica, é hoje matéria de muita controvérsia entre cientistas sociais. As criticas incidem sobre seu cardter redutor: “a nogdo reduz complexidades sécio-histéricas em caracteriza- gdes simples e oculta as contradigdes morais e sociais que existem dentro e através das comunidades” (Duranti 1997, p. 23). A despeito de tais criticas, a nogio de cultura ainda parece indispens4vel para o estudo das maneiras pelas quais as pessoas ao redor do mundo se constituem em agregados e coletividades éculo XX, proliferaram conceitos de cultura em todas as disciplinas das ciéncias sociais. Revisitar todos seria tarefa incompativel com a dimensao e a natureza deste estudo. Vamos parafrasear aqui os seis conceitos de cultura resenhados por Duranti (1997, pp. 24-48), acatando o argumento do autor de que neles a lingua desempenha um papel particularmente relevante. de varios tipos. Ao longo do s A visio mais comum é a de que a cultura é algo distinto da natureza, ou seja, é transmitida através das geragdes. Nao nascemos com uma cultura, aprendemo-la convivendo com as pessoas que nos criam. Assim, 0 processo de socializagao, incluindo a aquisi¢Ao lingiifstica, molda os modos de pensar, falar e agir das criangas de acordo com os padrées aceitéveis numa comunidade. Nesse sentido, lingua ¢ parte de cultura, ou seja, a lingua categoriza o mundo natural e cultural e fornece pistas importantes sobre como estudar praticas e crengas culturais particulares. O segundo conceito abordado por Duranti envolve uma visdo cognitiva de cultura. A cultura é pensada como conhecimento de mundo. Nao deve ser vista apenas como a capacidade de reconhecer objetos, lugares pessoa como a capacidade de compartilh compreender o mundo, fazendo inferéncias e predigdes. O autor. denough (1964), afirma que cultura nado é um fendmeno material, nado consiste . mas os padroes de pensamento e modos de citando Goo- TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM £ EDUCAGAO 29 | () y de coisas, pessoas, comportamentos ou emogoes, mas é uma organizagao dessas coisas. Sao as formas das coisas que as pessoas tém em mente, seus modos de perceber, relacionar e interpretar. Conhecer uma cultura € como conhecer uma . Descrever uma cultura é como descrever lingua. Ambas sao realidades mentai: ‘Ima lingua. E as descrigées etnogrificas sdo descrigdes de “idiomas culturais”. Nos desdobramentos dessa concepgio cognitiva de cultura, passa-se a enfatizar que © conhecimento nao é algo que mora nas mentes individuais, mas é socialmente_distribufdo. Isso significa que certas solugdes sao construidas através do concurso de varias mentes e corpos voltados para o mesmo fim. Se pensamos no conhecimento como algo distribuido, temos de ressignificar 0 conceito de membro de uma cultura. A luz dessa teoria, ser membro de uma mesma cultura nao significa ter conhecimento idéntico. Pessoas de uma mesma comunidade ¢ até de uma mesma familia podem ter idéias diferentes sobre crengas culturais, habilidades diferentes nas praticas cotidianas e estratégias diferentes para interpretar e resolver problemas. Nesse quadro conceitual, as praticas lingiifsticas podem contribuir para perpetuar uma visio homogénea de cultura. A lingua fornece rétulos ane sfo aceitos como dados. Falamos de “americanos”, italianos”, “japoneses”, como se fossem grupos monoliticos. terceiro conceito, pautando-se pela visdo semidtica, define cultura como comunicagao, ou seja, como um sistema de signos. Nessa perspectiva, mitos, rituais, classificages do mundo natural e social podem ser vistos como exemplos da apropriagao da natureza pelos homens através de sua habilidade para estabelecer vinculos simbélicos entre individuos ou grupos. Isso significa que a teoria de mundo das pessoas deve ser compartilhada. Atualmente, 0 conceito semiético de cultura mais lembrado é 0 de Geertz (1989), inspirado na hermenéutica, que enfatiza o interminavel processo interpretativo caracteristico da experiéncia humana. O autor, na companhia de Max Weber, postula que: b. mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua andlise, o homem € um animal amarrado a teias de significados que ele portanto, no como uma ciéncia experimental em busca de leis, mas como uma ciéncia interpretativa, a procura do significado. [Geertz 1989, p.15.] 30 EDITORA MERCADO DE LETRAS Cultura é, entao, produto de interagao humana, ptiblica, produzida pelos isponivel a interpretagao dos homens. Nesse sentido, manifestagdes culturais atos de comunicagao. Na quarta acepgio, a cultura é vistacomo um sistema de mediagdo. Nessa , a interago humana com o ambiente fisico ow social € mediada pelo uso OY _de instrumentos e artefatos produzidos pelo trabalho humano. Esses instrumen- tos, estando sempre “entre” o homem e 0 mundo fisico ou social, podem ser ‘objetos materiais (flechas, martelos, serras, cadeiras, construgdes, papel, cane- “fas, rédios, disquetes, carros), bem como objetos idealizados ou simbolos (emogées humanas, cédigos lingiifsticos, sistemas de crengas). Todos esses produtos s&éo modos de representar e de lidar com o mundo; sao interpretagdes do mundo ¢ interpretagoes sao instrumentos para agir no mundo. Se os sistemas de mediagao variam de acordo com os grupos que os usam e de acordo com as diferentes situagdes em que sao usados, o conceito de cultura perde sua forga para representar uma populacao inteira ou um grupo. Cultura como uma atividade mediadora entre os homens e 0 mundo em que vivem (mental e é mais do que uma expansao da nogao de lingua como ui fisicamente) nad sistema mediador. Expressdes lingiifsticas sao ferramentas que nos permitem conceituar ¢ refletir acerca de eventos enquanto nos fornecem os meios para interagir com outros. Falar de lingua como uma atividade mediadora significa falar de lingua como uma ferramenta para fazer coisas.nomundo, tanto para 4. __ Feproduzir.como transformar a realidade. © quinto conceito de cultura, descrito por Duranti, é concebido a partir 2 das idéias defendidas pelo movimento intelectual conhecido como pés-estrutu- ralismo, cujos postulados criticam generalizagdes acerca de culturas como entidades unificadas e abstragdes baseadas em oposi¢des simbélicas como “essencialistas” ou “metafisicas” (postulados do paradigma estruturalista). Um retorno a diacronia ¢ historicidade desestabiliza o pressuposto da estabilidade e fechamento de sistemas culturais. Dentro dessa visao, um amplo reconhecimen- to do carater fluido das culturas, de sua natureza inerentemente contaminada, toma o lugar da busca por sociedades onde alguém poderia encontrar formas “primitivas” de organizag4o e pensamento intactos. Tais idéias tem fomentado 0 interesse contemporaneo pelo multiculturalismo e pelas comunidades trans- eee TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM E EDUCAGAQ 31 nacionais. Cultura se define, entéo, como um sistema de praticas. O sujeito ou ator humano existe culturalmente e funciona como um participante numa série de atividades que sao pressupostas e reproduzidas pelas suas ages individuais sem serem, porém, totalmente deterministas. Hd uma relagdo entre conhecimen- to e ago-no-mundo, condigdes passadas e presentes. Cultura nao ¢ algo.sim- plesmente externo ao individuo (como por exemplo, em rituais ou simbolos passados pelos mais velhos) nem algo simplesmente interno (na mente indivi- dual); de preferéncia, é algo que existe através da agdo rotineira que inclui condigGes materiais e experiéncia dos atores sociais em usar seus corpos enquanto se movimentam num espaco familiar. Similarmente, lingua nao é um sistema aut6nomo, como proposto pelos estruturalistas, mas é um_ sistema definido por processos sécio- politicos. Uma lingua somente existe como um habitus (Bourdieu 1983), a ser entendido como sistemas recorrentes de dispo- sigdes e expectativas compartilhadas na comunidade. Tais sistemas, reproduzi- dos nos atos de fala cotidianos, séo organizados e adquirem significados institucionalizados pela escola, familia, ambiente de trabalho, constitufdos nao somente para excluir outros, como também para manté-los sob controle, e assegurar que os atos que eles desempenham e os sentidos que atribuem a eles sejam aceitaveis. O sexto e tiltimo conceito — cultura como sistema de participagao — relaciona-se com o conceito de cultura como sistema de praticas e contém o pressuposto de que toda aco no mundo, incluindo a comunicagao verbal, é inerentemente social, coletiva e participativa. Essa nogao de cultura permite estudar como.as_linguas sao usadas, j4 que falar uma lingua é ser capaz de Participar em interagdes com um mundo maior do que nés prdprios_como individuos e maior do que aquilo que podemos ver ou tocar. E através do uso da lingua que nos tornamos membros de uma comunidade de i idéias e praticas. O carater indiciario da lingua é parte constituinte de todo ato de fala como um ato de participacdo numa comunidade de usudrios de Ifnguas. Nessa perspectiva de cultura, podemos abordar variagio, dado que podemos manter em vista a compreensao dos grupos diferentes envolvidos, bem como reconhecer 0 fato de que eles existem socialmente como parte de uma unidade mais abrangente. 32 EDITORA MERCADO DE LETRAS Agrada-nos a idéia de pensar a cultura como conjunto colidente e conflituoso de praticas simbélicas ligadas a processos de formagao e transfor- macio de grupos sociais, uma vez que, por esse angulo, podemos aninhar a heterogeneidade, o inacabamento, as fricgdes e a historicidade no Amago do conceito. Contudo, cada uma das seis teorias aqui revisitadas ilumina bem um aspecto da cultura e deixa outros na sombra, 0 que nos incita também a imaginar a possibilidade de uma conyergéncia epistemolégica, nao aniquiladora das divergéncias, entre as visdes de cultura como algo distinto da natureza, como conhecimento, como sistema de signos, como mediagio, como sistema de praticas e como participagao. Fazer 0 percurso com autores como Clifford (1999), Gruzinski (2001), Hall (2002), Canevacci (1996), Serres (1993), dentre outros, que esto refletindo sobre 0 conceito de cultura situado entre o final do século XX e 0 comego do século XXI, no cendrio da globalizagao, com sua ideologia capitalista, possibi- litada, sobremaneira, pela comunicagdo em tempo real, que comprime e supera as distncias espaciais e as separagdes entre os povos, necessariamente nos desloca da visdo ortodoxa de cultura como um sistema fechado, confinado a um grupo social nos limites de um territério. O virgem, o nativo, 0 auténtico, 0 original, o puro, o nao-misturado nao existe mais. Alias, nunca existiu, insiste Gruzinski (2001, pp. 30-31), lembrando que “a imagem de sociedades iméveis na tradi¢ao” é produto de monografias e teorias académicas. A esse respeito, 0 autor, sem deixar de reconhecer as contribuig6es da antropologia estruturalista, observa que ela, por exemplo, ao fazer da Amaz6nia 0 reservatério do “pensa- ‘mento selvagem”, esconjura as amaz6nias mais misturadas, contaminadas. De modo semelhante, Clifford (1999, p. 38) enfatiza que os nativos nunca existi- ram: “Os nativos, a gente confinada aos lugares aos quais pertence e por eles determinada, os grupos intocados pelo contato com um mundo mais amplo, provavelmente nunca existiram”. Clifford ilustra sua tese com as conclusdes de Boon (1990, p. ix) acerca do que se denomina “a cultura bali”: “a cultura bali é uma inyengio de mitiltiplos autores, uma formagio histérica, uma promulgagao, uma ~ construco politica, um paradoxo cambiante, uma tradugao continua, um emblema, "uma marca, uma negociag3o sem consenso de identidades contrastantes”. Mesmo sem sermos exaustivas na revisdo do conceito de cultura, perce- Demos que a idéia de vé-la como uma totalidade fechada, homogénea e estavel TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM EEDUCAGAO 33 revela-se problematica. Tal conceito teve sua fortuna enquanto cientistas sociais deixavam suas plagas familiares para erguerem suas tendas no coragao de comunidades distantes e exoticas, que desejavam preservar a margem dos fluxos ocidentais. Porém, no seu regresso para casa, deparam-se com realidades sociais complexas, indefinidas, instaveis e conflituosas, véem-se diante de uma espécie de desordem que atrapalha os “conjuntos impecavelmente estruturados e tidos como auténticos” (Gruzinski 2001, p. 52). O conceito classico de cultura, assentado na idéia de um nicleo duro, definido e inalteravel, instigava a pensar no contato entre culturas como um encontro de outros culturais encerrados em seus prdprios sistemas. Como afirma Gruzinski, Insistindo nas especificidades e diferengas, em detrimento do que liga cada cultura a outros conjuntos, préximos ou distantes, logo se chega as retéricas da alteridade e depois 4s do multiculturalismo, o qual defende “a coabitagzio a coexisténcia de grupos separados e justapostos, decididamente voltados para 0 passado que convém proteger do encontro com os outros.” Ora, basta examinar ahist6ria de qualquer grupo humano para perceber que esse arranjo de praticas e crengas, admitindo-se que possua uma autonomia qualquer, mais se aparenta a uma nebulosa em perpétuo movimento do que a um sistema bem definido. [Gruzinski 2001, pp. 51-52.] Se, por um lado, esse conceito de cultura sustenta o discurso relativi em defesa da alteridade e do multiculturalismo ¢ tem 0 mérito de colocar em questo praticas etnocéntricas e, nao raro, etnocidarias (Clastres 1978), por outro lado, ele ainda fomenta a crenga nos sistemas culturais estéveis ou invariantes, negligenciando as contaminag6es, as interpenetrag6es, as mesti¢a- gens, as desterritorializagées, as fronteiras, as encruzilhadas, as indefinigses. Para dar conta dessas realidades mescladas e transit6rias e dos processos culturais engendrados nas praticas e interagdes fronteirigas, Clifford (1999, p. 38) propde que usemos a metafora da viagem: Se repensamos a cultura e sua ciéncia, a antropologia, em termos de viagem, atendéncia organica, naturalizante, do termo cultura— vista como um corpo, 34 EDITORA MERCADO DE LETRAS r . enraizado que cresce, vive e morre ~ é questionada. Péem se em relevo e véem-se mais claramente as historicidades construidas ¢ disputadas, bem como os locais de deslocamento, interferéncia e interagao. Consoante Clifford, a metéfora da viagem, em cujo campo semantico figuram também outros signos como fronteira, imigragdo, migragdo, peregrina- Gao, exilio, diaspora, turismo etc.; ela traduz de modo adequado 0s processos culturais contemporaneos. Os lugares, dantes pensados como o continente, 0 chao, onde a cultura se enraizava, agora tendem a ser interpretados como locais de transito, de circulagao de fluxos culturais, de interagao face-a-face ou mediatizada. Ao traduzir a cultura através do termo viagem, o autor nao esta se referindo apenas A viagem em sentido literal, que implica em deslocamento fisico de pessoas, mas sim a diferentes modalidades de conexao dentro-fora, incluindo forgas que atravessam espagos a exemplo da comunicagao e da navegacao via satélite, das mercadorias, que tém o poder de provocar desloca- “mentos culturais sem que alguém saia do lugar. Com que conceitos traduzir essa realidade dos mundos mesclados, das culturas mestigas, de “tupis tangendo alatides”, que j4 no inicio do século XX tocava a sensibilidade poética de Mario de Andrade? Conceitos como pluralis- mo cultural, diversidade cultural, multiculturalismo ou interculturalidade nao nos parecem ser capazes de traduzir essas realidades. Eles nomeiam a existéncia de grupos culturais diversos, contudo silenciam acerca de suas contaminacdes © seu permanente estado de fluxo. Para itainda que aproximativamente realidades, optamos pelo terMno transculturalidade}O pretixo trans, dentre muitos sentidos, veicula aqueles de “movim« a ire vir”, “movimento perpétuo”, “transito”, ‘movimento ‘circulagao”, culturalidade nos remete ao termo transculturacdo, cunhado pelo cubano ando Ortiz. (1983), na década de 1940, para descrever 0 processo de ‘igo de uma cultura para outra. Segundo Ortiz, este processo nao consiste nte em adquirir uma cultura diferente no sentido coberto pelo termo ituragao. A transculturacao envolve dois movimentos: um de desculturagio izamento parcial de uma cultura anterior) e outro de neo-culturagao (cria- de novos fen6émenos culturais). O autor explica o enlace de culturas, fazendo analogia com a geragdo de um filho: a crianga tem algo de seus pais, mas TRANSCUI | 35 sempre algo de diferente de cada um dos dois. O conceito de transculturacao Ihe parece, pois, indispensvel para compreender a hist6ria de Cuba: Nao houve fatores humanos mais transcendentes para cubanidade do que essas continuas, radicais e contrastantes transmigragdes geog cas, econdmicas e sociais dos seus povoadores, do que essa perene transitoriedade dos propésitos, do que essa vida sempre desenraizada da terra habitada, sempre em desajuste com a sociedade sustentadora. Homens, economias, culturas e desejos, tudo aqui se sentiu foraneo, provisorio, mutavel, “aves passageiras” sobre o pais, em sua costa, contra si e contra sua vontade. [Ortiz 1983, p. 3] Se o conceito de transculturagdo, tal como proposto por Ortiz, implica a perda de uma cultura anterior (desculturag4o), o de transculturalidade nao. A transculturalidade é aqui entendida como tradugao, no sentido que lhe é atribui- do por Hall (2001). Para ele, nao ha perda ou assimilagao, mas negociagao e mudanga cultural. As pessoas nao apagam seus vinculos quando se deslocam, mas também nunca viveram ou viverao num continente-culturalmente-unifica- do. De acordo com Hall, as pessoas esto irrevogavelmente traduzidas. Com Salman Rushdie (1989), Hall (2001, p. 89) recorda o sentido etimolégico do termo traduzir, entendido como “transferir”, “transportar” entre fronteiras. Quer dizer, nio ha o original, e, por mais que se afunde na histéria, é sempre o misturado que se reencontra. No limite, 0 que estamos querendo dizer é que 0 nticleo duro da cultura é sempre transcultural. Assim como sinalizamos de que lugar falamos de cultura, vamos sinali- zar de que lugar falaremos de lingua. Controvérsias semelhantes aquelas que gravitam em torno do conceito de cultura como um sistema fechado e estével gravitam também em torno do conceito de lingua. No escopo da gramitica tradicional, a lingua confunde-se com a norma padrao e tudo o que escapa ao conjunto das prescrigdes é considerado erro, desvio, barbarismo, corrup¢io, nao-lingua, formas dialetais sem direito 4 existéncia. No inicio do século XX, a Linglifstica entra em cena, reescrevendo a historia da concepgdo de lingua numa visada descritiva. Esse tratamento descritivo, buscando apreender dos 36 EDITORA MERCADO DE LETRAS dados lingilisticos a norma objetiva que, efetivamente, preside os usos de uma™ lingua, tem o poder de desvelar a natureza regular, sistematica, estrutural, de tudo aquilo que ha milénios vinha sendo condenado como erro, como destruigao edesordem da gramatica. Contudo, para desembaracar os sistemas dos usos, os lingiiistas formais escamoteiam a empresa de definir lingiiisticamente wna gua em toda sua natureza proteiforme. Ocupam-se em dela abstrair a lingua. A lingua é, assim, um objeto ideal falado por ninguém. Saussure (1975, p. 17) assim se pronuncia sobre a dificuldade de lidar com as manifestagdes de uma lingua, fendmeno que ele designa como linguagem: Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme ¢ heterdclita; a cavaleiro de diferentes dominios, a0 mesmo tempo fisica, fisiolégica e psiquica, ela pertence além disso ao dominio individual e ao dominio social; nao se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois ndo se sabe como inferir sua unidade. Para nao se perder nas ambivaléncias de wma lingua — vocal e actistica, ioldgica e mental, individual e social, involuntéria e voluntaria, estdtica e ite, atual e passada —, Saussure usa a navalha do método. Dicotomiza a agem em duas dimensées: lingua (langue) ¢ fala (parole). A partir de entao, giiistica passa a ser definida como a ciéncia da lingua, um objeto definido mmogéneo no conjunto indefinido e heterogéneo dos fatos de linguagem, , cumpria escolher entre dois caminhos que nao podiam ser trilhados ltaneamente. A lingua situa-se no circuito em que uma imagem auditiva ia-se a um conceito. E uma espécie de contrato social — um cédigo — lecido entre os membros de uma comunidade de fala. Sua sede é océrebro, ‘0 cérebro de cada falante individualmente, mas “os cérebros dum conjunto ividuos, pois a lingua nao est4 completa em nenhum deles, e s6 na massa de modo completo” (Saussure 1975, p. 21). E comparada a um dicionério, exemplares, idénticos, encontram-se distribuidos entre os individuos, de existéncia passivel de ser representado através da formula 1+1+1+1.. 10 coletivo). A fala, por outro lado, é um ato individual voluntario que Ive escolhas de recursos, combinagGes e fonagdes para a expressiio de um TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM EEDUCACAO 37 pensamento pessoal. A fala se subordina a lingua. Da soma dos atos individuais nao resulta um padrao coletivo, modo de existéncia que resulta na formula: (e474. dicotomia que viria nuclear toda a Lingiifstica Formal: “seria ilus6rio reunir, . © autor, assim, arremata sua argumentagdo em favor da sob o mesmo ponto de vista, a lingua e a fala. O conjunto global da linguagem € incognoscivel. j4 que nao é homogéneo, ao passo que a diferenciagio e subordinacdo propostas esclarecem tudo”. Argumenta ainda que se, no decurso de suas demonstrag6es, sentir necessidade de recorrer ao estudo da fala, cuidara “para jamais transpor os limites que separam os dois dominios” (idem, p. 26). Tais procedimentos, que abstraem a lingua dos usos reais de uma lingua por homens e mulheres de carne e osso em sua labuta ordinaria, foram necessa- rios 4 época em que se insistia em colar na Lingiifstica 0 rétulo de ciéncia, afinal a ciéncia, em seu sentido classico, assenta a investigagio nos postulados da ordem, da uniformidade e do categérico, esconjurando toda sorte de variagao como “excegao a regra” ou como “insignificante”. Desse modo, a fala vira a lixeira da Lingiifstica, abrigando a infinda variagao em que resulta wma lingua ao ser usada pelos seus falantes. Como afirma Rajagopalan (1998, p. 23), “quando uma lingua é submetida a uma anilise de microsc6pio percebe-se que é infinitamente diversificada”. Nao € outra a logica que preside a dicotomia “competéncia e desempenho”, postulada por Chomsky e adotada por seus discfpulos no quadro da teoria gerativo- transformacional, a partir da segunda metade do século XX. A competéncia é 0 conhecimento que o falante-ouvinte nativo ideal tem de sua lingua materna. Ea capacidade de, mediante um conjunto finito de regras, gerar € compreender um conjunto infinito de sentengas nunca antes ouvidas. O desempenho € 0 reservatério dos enunciados reais da lingua, produzidos por falantes efetivos. Os enunciados reais contém tracos irrelevantes, para nao dizer perturbadores, ao sistema abstrato de regras, como hesitagGes, incompletudes, variagdes ligadas a fatores sociais ou psicoldgicos. Assim, no gerativismo, é 0 desempenho que vira a lixeira para abrigar a movimentacao imprevisivel da lingua. Tanto num modelo como no outro, em nome da categoricidade da ciéncia, a lingua é “extraida da turbuléncia vertiginosa em que emerge a fala corh os usos sociais da linguagem” (Camacho 2001, p. 62). Ao desvencilhar-se 38 EDITORA MERCADO DE LETRAS da variagao, a Lingiifstica Formal faz uma anamnese, segundo Bakhtin (1979), da heranga filolégica com que pretendia romper, isto é, estuda uma lingua viva como se fosse uma lingua morta, encerrada num sistema autocontido, desvin- culado do contexto de uso. Embora uma das premissas da Lingiiistica tenha sido ade fundar-se enquanto ciéncia, privilegiando o estudo da oralidade das linguas, ao postular as dicotomias lingua/fala e competéncia/desempenho e eleger como seu objeto a lingua e a competéncia, as depura e mumifica. Referindo-se a essa purificacao e mumificagao, Bakhtin (1979, p. 85) assinala que: €alingua “morta-escrita-estrangeira” que serve de base & concepgao da Ifngua que emana da reflexao lingiifstica. A enunciagao “isolada-fe- chada-monolégica”, desvinculada de seu contexto lingiifstico e real, & qual se op6e, nao uma resposta potencial ativa, mas a compreensio passiva do fildlogo: este € 0 “dado” iiltimo ¢ 0 ponto de partida da reflexio lingiifstica Essa postura de esterilizagdio das linguas vivas, apontado por Bakhtin ainda na primeira do século XX, leva Duranti (1997, p. 75) a impacientemente se perguntar: “como relacionar o conhecimento abstrato dos membros idealizados das comunidades lingiifsticas ‘puras’ aos atos concretos do desempenho lingiiistico de Pessoas que vivern em comunidades reais?” Apenas no comego da década de 1960, com a Sociolingiifstica laboviana questionando o principio da homogeneidade e da invariancia do sistema, a heterogeneidade e a variagéio ganham visibilidade e se tomam relevantes como objeto de estudo. Labov afasta-se da concepgao de lingua como sistema monolitico, postulando que a heterogeneidade é inerente a uma comunidade de fala. Se para a Lingiifstica Formal a lingua é um sistema de invariantes, para a Sociolingiifstica é um sistema de variantes. Toda lingua é um mosaico, um compésito de normas que se correlacionam probabilisticamente a fatores sociais. A lingua nao é mais um um central, mas a justaposi¢ao de varios uns setorizados. A idéia de um, contudo, permanece. Se a heterogeneidade e o dinamismo sao tragos essenciais de uma lingua Viva, temos de pensar na coexisténcia ou convivéncia das muitas Iinguas — varie- dades — que ahabitam. Como interpretar essa convivéncia? Uma das possibilidades TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM E EDUCAGAO. 39. € filiar-se & tradigao inaugurada por Durkheim (1978), juntando-se aos tedricos da estrutura e da ordem. De acordo com essa tradi¢&o teGrica, a variagao lingiifstica existe, mas nao é imprevisivel, coordena-se com categorias sociais preexistentes (classe social, sexo, escolaridade, idade, estilo etc.), HA uma articula- cao entre as estruturas lingiifsticas ¢ as estruturas sociais, sendo a lingua sempre a varidvel dependente. A adogdio do conceito de lingua como conjunto de variedades desloca 0 conceito de corregao para o de adequagio — formas e normas lingiifsticas estdo em sintonia com fatores macro e microssociais. Nessa perspectiva, os conflitos sociais entre as variedades lingtifsticas tendem a ser silenciados. Cada variedade em seu lugar: é a ordem do caos que se poe em relevo. Outra possibilidade é filiar-se 4 tradigdo inaugurada por Weber (1979), juntando-se aos teéricos da agao e do conflito que realgam o carater agonistico da vida social. Por esse viés, nao sao as estruturas, os padr6es coletivos de comportamento, subsumidos como exteriores e preexistentes, as referéncias para a compreensao da sociedade, mas sim a agao dos agentes sociais nas lutas que se estabelecem A guisa de formulagao e manutengao das normas sociais. A vida em sociedade precisa, ent&o, ser pensada como uma espécie de harmonia conflitual, resultante da interagdo e negociag4o entre os atores sociais nas praticas cotidianas, e nao como consenso resultante da adequacao as estruturas normativas preexistentes. A vida social é tecida todos os dias. Como afirma Bortoni-Ricardo (1999, p. 116), citando John Gumperz, “o proprio processo interativo € constitutivo da realidade social e, portanto, as ages nao esto inexoravelmente predeterminadas. Podem ser trabalhadas, confirmadas, desa- Esse modo de inter- fiadas, alteradas ou reinterpretadas pelos atores soci pretar o jogo das normas numa formagao social dada é parametro para a Sociolingiifstica Interacional. No campo da Sociolingiifstica, fendmenos de variedades e linguas em contato ou em conflito tém estado no centro das discussGes, investigagGes e teorizagdes. Conceitos como pluralismo lingiifstico, diversidade lingiiistica, multilingiiismo, bilingtlismo, diglossia, heteroglossia, dentre outros, tém sido usados para descrever sociedades que compreendem diferentes Iinguas ou variedades. Eles captam nuances diferentes do fenémeno da variagao lingiifstica presente nas comunidades de fala, 4 semelhanga dos conceitos de pluralismo 40 EDITORA MERCADO DE LETRAS cultural, diversidade cultural, multiculturalismo ou interculturalidade. Quando falamos de uma sociedade em termos de pluralismo lingiifstico, acentuamos a Presenga de muitas linguas (a partir de entéo sempre que nos referirmos a linguas, estaremos pensando também em variedades), mas nada dizemos acerca _ da natureza outra de cada lingua. Quando falamos de diversidade lingiitstica, acentuamos a existéncia de muitas linguas que sao diferentes, heterogéneas e freqiientemente incomensuraveis. Admitimos que as linguas sao muitas e qua- litativamente diversas. Essa suposi¢do ancorou a postura lingitisticamente rela- tivista que polemiza com a postura iluminista. Se, para os iluministas, dentre eles os gramaticos, as linguas se dividem entre civilizadas e barbaras, para os lativistas, dentre eles os lingilistas, as linguas so tinicas, cada uma com sua estrutura interna. O relativismo fomenta o discurso do direito a diferenga, da tolerancia e da democracia na sociedade. Também alimenta o discurso preser- ionista. Quando falamos de multiligiiismo, acentuamos que as linguas sao luitas, lingiiisticamente diferentes, mas igualmente estruturadas, porém desi- ais nos limites de uma sociedade. Trocando em mitidos, o multilingiiismo a diversidade lingitistica dentro das fronteiras do estado, distinguindo a ‘a majoritéria das linguas minoritarias. Como as linguas coexistem dentro s fronteiras do estado, o multiculturalismo levanta a questo da igualdade elas. Examina se as linguas minoritarias nao recebem tratamento desigual minat6rio na arena ptiblica e politica. A preocupacdo com a igualdade e -discriminagao das minorias lingiiisticas liga o multilingtiismo de modo ental 4 democracia. Regimes democraticos nao discriminam as mino- Se 0 conceito de diversidade lingiifstica levanta a bandeira do direito a ga, 0 de multilingiiismo levanta a dos direitos especiais as minorias. ndo falamos de bilingilismo e/ou diglossia, acentuamos, sem sair do campo itico do multilingiiismo, a desigualdade que ha entre duas linguas ou duas miedades — uma tida como alta e outra como baixa — usadas dentro das teiras de uma mesma comunidade em contextos discursivos diversos. Bakhtin designou como polifonia. TRANSCULTURALIDADE, LINGUAGEM EEDUCAGAQ 47 ‘Ceramente, todos esses conceitos nos serao titeis para refletir sobre as fricgdes lingiiistico-culturais percebidas na Cuiaba contemporanea. Contudo, ousamos juntar a essa constelag4o um novo conceito que estamos batizando de transglossia. Os conceitos acima parecem todos pressupor a l6gica dos sistemas inteiros, ainda que se pronunciem sobre suas relagdes. Afinal, no universo da ciéncia lingiifstica é inconcebivel pensar em sistemas esgargados ou em nao- sistemas. Parece-nos necessério inventar um conceito que agarre a vida de uma lingua em seu estado de fluxo, que nos permita pensa-la como liquido e nao como s6lido. Recordando, no prefixo trans, além dos sentidos de movimento, transito, ressoa aquele de debordamento de fronteiras entre as linguas que é 0 queremos apreender. A maneira de Rushdie (1989, p. 4), que fala dos homens misturados — todos nés — como se fossem negros, pardos e brancos, vazando um no outro tal e qual sabores quando se cozinha, queremos imaginar as linguas em contato como lfnguas que vazam uma na outra, a exemplo do episédio do signo mestigo crique, em que cuiabanés, portugués e inglés vazam uma na outra como. rios que correm e se misturam indistintamente com outros rios. Referéncias bibliograficas BAGNO, M. (2001). “Cassandra, Fénix e outros mitos”, in: C. A. FARACO (org.), Estrangeirismos: guerras em torno da lingua. Sao Paulo: Para- 4 bola. BAKHTIN, M. (1979). Marxismo e filosofia da linguagem. Sao Paulo: Hucitec. BOON, J. (1990). Affinities and extremes. Chicago: University of Chicago Press. BOURDIEJ, P. (1983). Questées de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero Ltda. BORTONI-RICARDO, S. M. (1999). “Interagao professor/aluno em sala de aula”, in: D. HORA e E. CHRISTIANO (orgs.), Estudos lingiifsticos: realidade brasileira. 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