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© CONCEITO ANTROPOLOgICO DE CULTURA E dificil definirmos cultura de modo tinico, visto que esta abrange diversas acepc6es. Em linhas gerais, podemos definir esse termo como 0 conjunto de saberes, comportamentos, crengas e costumes adquiridos e transmitidos por um processo coletivo de aprendizagem. No senso comum, o termo cultura confunde-se com a ideia de sabedoria, conhecimento ou condig¢ao social. Hoje em dia, nao é rara acrenga de que a cultura é algo restrito a individuos ou grupos sociais que moram na cidade, tém ensino superior, dominam mais de uma lingua, tém um emprego bem remunerado etc. E comum sermos levados a crer que europeus ou norte-america- nos sio mais “desenvolvidos” que nds, brasileiros, tanto em termos econémicos quanto culturais. Esse tipo de concep¢ao deriva, em boa parte, de uma compreensao do social baseada fundamentalmente no desenvolvimento material. Assim, regides ou paises considerados economicamente pobres acabam por ser entendidos como cultural- mente pobres. Esse entendimento equivocado costuma desconsiderar que aqueles individuos que nao sabem ler ou escrever, por exemplo, também tém sua propria “cultura”. Uma das importantes misses da antropologia ¢ desfazer esse tipo de perspectiva, levando-nos a compreender que QUALQUER iNDi- viDUO OU GRUPAMENTO HUMANO E, ANTES De TUDO, CULTURAL. Outro desdobramento fundamental dos estudos antropolégicos é permi- tir-nos observar que a cultura é um dos principais ELEMENTOS DE DIFERENCIAGHO DAS SOCIEDADES, ou seja, cada grupo apresenta uma dinami interna - maneiras de pensar, fazer e interpretar o mundo a sua volta — que é compartilhada entre seus membros e com outros grupos. Para alguns autores, a andlise das sociedades humanas em sua diversidade pode também enfocaras relagées entre antropologia e his- téria. Um estudo clissico nessa direcao é Casa-grande e senzala', livro escrito por Gilberto Freyre em 1933. Esse autor, ao tentar compreender a formacao da sociedade brasileira, analisou o processo de colonizacéo de nosso pais, problematizando as relagées entre as culturas indigenas, europeias e africanas — e as herangas resultantes dessa mistura — luz das abordagens histérica e antropolégica. Nesse sentido, a cultura esta- beleceria vinculos com a dinamica das sociedades, com base em suas transformagées no tempo e nos contatos com o outro. Um exemplo disso é a alimentagio. O que comemos, por que comemos, como preparamos nosso alimento e em que ocasides sociais nos alimentamos sao aspectos que sofrem a interferéncia de diver- SOS processos sociais e econdmicos, além dos contatos culturais ao longo do tempo. Se pensarmos nos alimentos basicos dos brasileiros, torna-se dificil estabelecer um padrao geral para todo o pais, uma vez que em cada regiao os habitos se diferenciam nao somente em funcao do clima - que predispée ao cultivo de determinados produ- tos -, mas também por influéncias culturais diversas, Para nos aprofundarmos ainda mais nesse exemplo, podemos citar a mandioca, uma planta utilizada ha séculos por varias tribos indigenas brasileiras antes da colonizagao portuguesa e que se disseminou por praticamente todas as regides do pais. Seu uso, porém, é diferenciado de acordo com cada regio brasileira: no Nordeste € outras regides, 41. Essa obra foi editada no inicio da década de 1930 e, desde entéo, passou por dezenas de edigdes, sendo até hoje lida e debatida em universidades brasileiras e de outros paises fe Pard, prepara-se 0 tacacé (caldo feito com a goma da mandioca) ea se 0 bolo de puba (massa de mandioca fermentada) e o beiju’s no manicoba (prato feito por meio de um longo cozimento das folhas da planta); em Minas Gerais, o polvilho transformou-se em pao de queijo, alimento que se tornou conhecido por varias regides do pais e passou a ser industrializado e vendido no exterior; a farinha de mandioca, tal- vez o subproduto mais conhecido, é utilizada nacionalmente no pre- paro de farofas, pagocas ou misturada ao arroz com feijao — plantas origindrias de outros continentes e que no Brasil sao preparadas de for- mas diversas das usadas pelos povos que originalmente as cultivavam. FigURA 1-1 ~ Barraca de tapioca na feira do Largo da Ordem. Curitiba, 2013 1m todo o Brasil, a mandioca, também conhecida como aipin ou macaxeira, ganha diferentes formas: as farinhas utilizadas em todas as regides do pais, o polvilho usado no pao de queijo, o tucupieo tacaca no Para 2 Obelju 6 basicamente, um bolo & base de massa de mandioca ou tapioca, podendo ser recheado ou nao, doce ou salgado, dependendo da regidio ou da receita. Cascudo (1967) cita 0s beljus-secos, de massa, moles e ‘de sola’, entre outros, como alimentos de amplo Uso, sobretudo nas Regides Norte e Nordeste do pais Estudar uma sociedade é penetrar num mundo que, se, de um lado, pode parecer familiar, de outro, pode ser muito diferente, Outra definicdo que nos estimula a pensar nessa diregéo nos é dada pela antropdloga Ruth Benedict, ao propor que a cultura é “uma lente através da qual o homem vé o mundo” (citada por Laraia, 2005, — ESTUDAR UMA SOCIEDADEE p. 69). Observar outer contatocom = PENETRAR NUM MUNDO QUE, habitos culturais diferentes, distan- SE, DE UMLADO, PODE PARE- tes dos nossos, gera um “estranha- CER FAMILIAR, DE OUTRO, mento”. A expressdo antropolégica = PODE SER MUITO DIFERENTE. depaysement (estranhamento) refere-se ao olhar que temos para o diferente, que, muitas vezes, pode nos chocar, mas também nos ajuda a compreender a nés mesmos. Ou seja, tudo aquilo que pensamos, fazemos ou sentimos é cultural, nao “nasceu” conosco. Ao conhecermos novas culturas, percebemos que as diferengas nao significam que “uma cultura é melhor que a outra”, mas que sao formas distintas de ver o mundo. Se refletirmos, por exemplo, sobre as no¢ées que os grupos sociais tém acerca de arquitetura, mais especificamente de moradias - cons- trugdes que mudam em relagao a forma, ao material de que sao feitas, as técnicas construtivas, entre ouros fatores —, perceberemos que em cada regiao, e de acordo com cada cultura, nao sé 0 produto final (a casa) é diferente, mas a interpretagao e o entendimento daqueles que observam as construgdes também sao diversos. Existem no Brasil casas de diferentes materiais (tabuas, troncos, bambu, barro, palha, tijolos crus ou cozidos), construidas de acordo com variadas técnicas (taipa, taipa de pilao, pau a pique, adobe) e seguindo padrées culturais diferenciados - portugueses, alemaes, italianos, poloneses, indigenas, caicaras ete. Essa enorme diversidade, no entanto, é muitas vezes observada com estranhamento: 0 QUE E UMA “BOA CASA” PARA OS MORRDORES URBANOS De UMA GRANDE CIDADE? Muitos talvez respondam que seja “um apartamento” ou “uma casa de alvenaria”, com as caracteristi- cas que cada um considera interessantes. Entretanto, esses mesmos individuos podem vir a considerar “ruins”, “feias” ou “pobres” cons- trugées feitas em madeira ou barro, mais comuns no interior do pais. Do mesmo modo, é possivel que parega muito complicado aos habi- tantes de uma pequena ilha ou de uma regido rural morar num edi- ficio onde nao se pode cultivar plantas a nao ser em vasos. As dife- rencas entre um tipo e outro de moradia, e entre o entendimento de cada individuo ou grupo, variam em fungao de “filtros” culturais e sociais. Contudo, é fundamental compreender que uma coisa nao é necessariamente melhor que outra, é diferente. Os individuos, em geral, tém uma profunda ligacio com o meio no qual foram socializados: herdam um conjunto de conhecimen- tose experiéncias que foram adquiridos e transmitidos em um longo processo cumulativo ao longo das geracées e agem de acordo com seus padroes culturais. ESSA HERANCA CONDICIONA NOSSA vishO DE MUNDO, identificando-nos, por um lado, com aqueles que comparti- Iham de nossos referenciais e, por outro, distanciando-nos de grupos com os quais nao temos aparente afinidade. Quando o grupo ao qual pertencemos (ou nds mesmos) entende a si proprio como o centro de tudo e enxerga 0 “outro” negativamente, essa atitude faz parte do que chamamos etnocentrismo. OETNOCENTRiSMO poe como central a forma como um individuo vé o mundo e é com base nessa perspectiva que esse individuo julga e enxerga as demais culturas. Isso cria conflitos e distanciamentos entre pessoas, grupos e classes sociais e faz com que determinados grupos se considerem “melhores” e se sintam no direito de menosprezar 0 outro. Por exemplo, a nocao de progresso ¢ elaborada com base em referenciais que estabelecem um ponto a que todos os povos deve- riam chegar, em termos de desenvolvimento econémico e intelectual. NESSE SENTiDO, A MESMA CONCEPCHO DE DESENVOL- ViMENTO PODE SER APLICADA A TODAS AS REGIOES E A TODOS OS PAISES? SERA QUE, QUANDO DETERMINADAS REGIOES OU PRAISES SFO CLASSIFICADOS COMO-SUBDESENVOLVIDOS OU EM DESENVOLVIMENTO, SHO LevADAS EM CONSIDERACHO SUAS PARTICULARIDADES CULTURAIS, SOCIAiS E ESTETICAS? Essa nogao varia de acordo com os processos histéricos que cada pais (e suas diversas regides) vivenciou. Portanto, nao devemos espe- rar que todos sigam um mesmo caminho. Essa maneira de interpre- tar 0 outro tem raizes nas chamadas Grandes Navegagées, quando os europeus entraram em contato com culturas que sequer conseguiam perceber, de inicio, como humanas. No século XVI, as impressées de espanhdis e portugueses ao chegarem ao “Novo Mundo” foram pau- tadas, inicialmente, pelo estranhamento e pela dificuldade de incluir as populagées com as quais toma- ram contato entre os “civilizados”. Em fungao de os indios (nomencla- tura dada pelos europeus) nado com- A NOCGHODE PROGRESSO E ELABORADA.COM BASE EM REFERENCIAIS QUE ESTA- BELECEM UMPONTO A QUE ‘ODOs OS POVOS DEVE- RIAM CHEGAR, EM TERMOS DE DESENVOLVIMENTO ECO- NOMICO E iNTELECTUAL. partilharem da religiosidade crista, nao falarem uma lingua inteligivel, comerem carne crua, nao terem leis escritas, andarem nus, entre outras caracteristicas culturais, receberam a alcunha de “selvagens”. Sob o 14 ponto de vista da cultura europeia, pautada por outros referenciais, eram povos cujo desenvolvimento nao se efetivara. Esse tipo de concepgao prevaleceu nos meios cientificos ¢ no ima- gindrio social até 0 inicio do século XX, ganhando for¢a também pela influéncia das teorias deterministas, como 0 EVOLUCIONISMO, segundo as quais a humanidade, apesar de tinica, apresentava escalas diferen- tes de “evolucao”. As populacées anteriormente consideradas “selva- gens” passariam ao estatuto de “primitivas”, o que significava dizer que representariam uma fase anterior do desenvolvimento cultural da espécie humana, como se ainda nao tivessem passado ao estado de “civilizados”. Ainda no século XIX, os primeiros antropélogos foram diretamente influenciados por essas concepgGes, que estabe- leciam determinada escala de desenvolvimento entre as sociedades. Embora 0 esforco desses pesquisadores fosse o de pesquisar e inter- pretar a diversidade das manifestagdes culturais, o evolucionismo foi utilizado como justificativa para a escravidao e 0 colonialismo, posto que as culturas tribais de varias partes do mundo, por seus tipos de organizagao social e material, eram pensadas como “primi- tivas”, “inferiores” (Laplantine, 1991, p. 63-74). NA CHAMADA C/ViLIZACAO OCIDENTAL fi QUAL PERTENCE- MOS - MARCADA NA ATUALIDADE PELA iNDUSTRIALIZAGAO, PELA URBANIZACHO E PELA COMUNICACHO DE MASSAS -, E COMUM QUE PREVALECA UMA viSHO PRECONCEITUOSA SOBRE AQUILO QUE ESTA FORA DO CONGUNTO DE PRINCI- PIOS QUE REGE ESSE PADRAO CULTURAL. Mesmo nas grandes cidades, que congregam diversos grupos heterogéneos, hé muitos resquicios de atitudes etnocéntricas. Como exemplo, podemos citar 0 olhar dos cidadaos de classe média/alta que andam apressadamente em seus automéveis, o qual é, via de regra, preconceituoso quando foca os catadores de papel, que divi- dem com dificuldade espaco entre os carros. Estes tiltimos sao, geral- mente, tachados de “pobres”, “sujos” e considerados um incémodo ao andamento do complicado transito das metrépoles. Esse tipo de perspectiva etnocéntrica, que se relaciona a um preconceito de classe dentro de um mesmo espaco fisico, é lugar-comum em nossa sociedade. No entanto, é importante lembrar que, sob a perspectiva antropoldgica, NAO SE Deve ESTABELECER UMA VALORACRO PRUTADA NA POSiCAO SOCIAL DOS iNDiViDUOS, ou seja, ser economicamente “rico” ou “pobre” nao estabelece uma condigao de superioridade de um individuo em relacao a outro. Pelo contrario, como veremos adiante, a nogao de culturas populares traz ao debate a importancia funda- mental dos estratos economicamente menos favorecidos na consti- tuicgdo dos referenciais culturais de um povo, especialmente quando pensamos no caso brasileiro. A partir da virada do século XIX para 0 XX, 0 evolucionismo pas- sou a ser mais sistematicamente contestado, ocorrendo uma transfor- macao tanto nas concep¢ées quanto nos métodos de trabalho dos antropdlogos. Com essa transformagao, um elemento essencial se colo- cava em pauta: PARRA COMPREENDER OUTRAS CULTURAS, E PRECISO ViVEN- GiA-LAs DE MANEIRA DiRETA, OU SEAA, ENTRAR EM CONTATO COM Os 9RU- POS SOCIAiS QUE SE PRETENDE ESTUDAR, Com base nessa premissa, surgiuo == PARA COMPREENDER OUTRAS que se chama até hoje de pesquisa CULTURAS, E PRECISO ViVEN- de campo, ou seja, 0 pesquisador —_CifI-LA'S DE MANERA DIRETA, deve coletar 0 maior ntimero possi- OU SEJA, ENTRAR EM CON- vel de informagées a respeito das TATO COMOS 9RUPOS SOLIRiS sociedades que estuda antes de fazer QUE SE PRETENDE ESTUDAR. 20 uma anilise sobre elas. Esse contato direto traz também a compreen- sao de que as culturas tém sua individualidade, suas peculiaridades. Com 0 desenvolvimento das pesquisas de campo, a antropologia Alteridade ficou conhecida como a CIENCIA DA ALTERIDADE por excelénci: significa colocar-se no lugar do outro e, assim, compreendé-lo em suas particularidades; é ver a si mesmo e compreender determina- dos aspectos de sua prépria cultura como tinicos. Assim, ao deixar de lado 0 etnocentrismo das teorias evolucionistas, 0 pesquisador deve se esforcar para entender a natureza, a dinamica, os porqués das sociedades, sem avalié-las ou julgé-las por seus préprios referenciais. Desse modo, a pesquisa de campo é importante pelo fato de PRO- PICIAR © APROFUNDAMENTO DO QUE SE CONHECE A RESPEITO DOs GRUPOS ESTUDADOS E POR GARANTIR A DiMENSHO ANTROPOLOGICA DO CONCEITO DE CULTURA. Ou seja, é em campo que se compreendem as logicas, as dinamicas e os significados de cada sociedade, como conclui Gilberto Velho (1994, p. 64): Quando definimos cultura como um conceito, sabemos que ela pode ser utilizada para efetuar recor s em fungao de inte- resses especificos da investigacao cientifica. Maso pressuposto basico paraasua utilizacao éa possibilidade de identificar um conjunto de fendmenos socioculturais que possa ser diferen- ciado e contrastado com outros conjuntos a que também deno- m, podemas trabalhar tanto num plano to amplo, como cultura ocidental, quanto em planos mais restritos, como cultura afro-brasileira, xavante, gaticha etc. minamos culturas. Ass Bronislaw Malinowski foi um dos primeiros antropdlogos a per- manecer durante anos vivendo entre seus pesquisados (na década de 1910, conviveu com os habitantes das Ilhas Trobriand, localizadas em Papua Nova Guiné), cunhando o conceito de observagao participante, cuja principal determinagao é que, em campo, o antropélogo deve conviver com os nativos, apreendendo suas principais atividades coti- dianas enquanto coleta dados relevantes para a pesquisa. Além de Malinowski, muitos antropélogos desenvolveram um profundo envolvimento com as sociedades que estudaram: William Foote Whyte morou num bairro periférico para conviver com gangues de esquinas; Pierre Verger iniciou-se no candomblé; Loic Wacquant tornou-se um lutador de boxe para realizar sua pesquisa entre os pra- ticantes desse esporte. BRONiSLAW MALiNOWSKi FOI UM Dos ZRANDES EXPOEN- TES DA ANTROPOLO@IA DO iNICiO DO SECULO XX. PARA ELE, ERA iMPORTANTE O DOMINIO DA LINGUA DA CULTURA PESQUISADA, POIS iSSO EViTARIA A NECESSIDADE DE UM. INTERPRETE E PERMITIRIA UMA COMPREENSHO MAis AMPLA E DiRETA SOBRE A SOCiEDADE ESTUDADA. COM BASE NA PESQUISA FEITA COM OS TROMBIANESES, ESCREVEU TRES OBRAS: OS ARFONAUTAS DO PACIFICO OCIDENTAL, A ViDA SEXUAL DOS SELVAGENS E CRIME E COSTUME NA SOCiE- DADE SELVAGEM. WILLIAM FOOTE WHYTE, ANTROPOLOZO ESTADUNIDENSE, PRODUZiU.UM iMPORTANTE TRABALHO, PUBLICADO EM 1943, CHAMADO SOCIEDADE DE ESQUINA: A ESTRUTURA SOCIAL DE UMA AREA URBANA POBRE E DEGRADADA. EM SUR PESQUISA, WHYTE SE iNSERIU NO CONTEXTO DE UMA COMUNIDADE DE BOSTON, CIDADE ONDE MORAVA, PARA ANALISAR A LOGICA DE CONViviO DE UMA REJIFO CON- SIDERADA "PERIZOSA”. O RESULTADO DESSE TRABALHO DESFEZ AS iMPRESSOES NESATIVAS E ESTIMATIZADAS SOBRE AQUELA COMUNIDADE. 21 22 PIERRE VERGER, FOTORAFO E PESQUISADOR FRANCES, ENVOLVEU-SE, A PARTIR DA DECADA De 1940, COM OS ESTU- DOs DE CULTURA AFRICANA, PRINCIPRLMENTE EM RELACAO AOS RITURIS E A RELIZIOSIDADE. ViAGOU A DIVERSAS RE- GiOeS DA AFRICA E ESTABELECEU-SE NO BRASIL, EM 1946, EM SALVADOR. SEUS ESTUDOS A RESPEITO DO CANDOMBLE NAO SO FIZERAM DELE UM DOS GRANDES EXPOENTES DA PESQUISA ANTROPOLOGICA SOBRE RELIZIOSIDADE NE9RA, COMO TAMBEM O LEVARAM A iNiCIAR-SE NESSA RELIZiAO, TRANSFORMANDO-SE EM UM BABALAG, OU SEZA, UM DOS DETENTORES DOS SABERES SECRETOS DO CANDOMBLE. Loic WACQUANT DESENVOLVEU SUR PESQUISA PARA O LivRO CORPO E ALMA: NOTAS ETNOPRAFICAS DE UM APRENDIZ DE BOXE, NA DECADA De 1980. PARA COMPREENDER ASPECTOS DA viDR DOs LUTADORES DE BOXE NUM BAiRRO NEZRO DA CIDADE De CHICAGO, NOS ESTADOS UNIDOS, FREQUEN- TOU DURANTE TRES ANOS UMA ACADEMIA DE BOXE COMO PRATICANTE DO ESPORTE. NESSA PESQUiSA, CHEZOU A ENVOLVER-SE TAO iNTENSAMENTE COM SEU OBdETO DE ESTUDOS QUE PENSOU EM TORNAR-SE UM BOXEADOR. Assim, de acordo com a antropologia, para conseguirmos com- preender os mecanismos de funcionamento de outras culturas, E iMPOR- TANTE TANTO RELATIVIZAR A CULTURA DO OUTRO QUANTO ENTRAR EM CONTRTO DiRETO COM ELA, DE FORMA A PENETRAR EM SEU CONTEXTO INTERNO. Relativizar significa entender 0 outro a partir da sua pré- pria optica, ver sob o ponto de vista do outro, tentando entender suas nuances e sutilezas culturais. A maneira como pensamos e desenvol- vemos nossas praticas cotidianas nao é fruto de processos bioldgicos, mas sim socioculturais. Assim como a lingua que comecamosa falar quando ainda somos bebés, nossas atitudes diante das situagdes mais corriqueiras também sao parte de nosso entorno social. © CONCEITO DE RELATIVISMO CULTURAL NOS COLOCR DIANTE DO OUTRO, DE MANEIRA QUE POSSAMOS PERCEBER QUE SEUS PRINCiPIOS, POR Mis DISTANTES QUE POSSAM PARECER, DEVEM SER COMPREENDIDOS EM SUA RIQUEZA GUSTAMENTE POR SEREM DIFERENTES. POR EXEMPLO, AS NOCGES DE EDUCACAO, ESTETICA, RELIZIOSIDADE, FAMILIA E dUSTICA SHO CONSTRUIDAS EM REALIDADES DiSTINTAS, DE ACORDO COM AS PERSPECTIVAS PROPRIAS DE CADA CULTURA. Entre essas nogdes, a RELIFIOSIDADE talvez seja um dos aspectos da cultura que mais carecem de relativismo para serem compreendidos. Existem no Brasil dezenas de matrizes religiosas (catolicismo, pro- testantismo, espiritismo, islamismo, budismo, umbandismo, entre inumeras outras) e, apesar de a concep¢ao geral das religiSes prever aexisténcia de um Deus, essa “forca superior” ¢ compreendida de maneiras diversas, e cada matriz religiosa relaciona-se ritualmente também de varias formas. Contudo, nao é incomum encontrarmos pessoas que valorizam sua religido e menosprezam ou criticam as outras, sem, no entanto, conhecé-las na pratica. As culturas transformam-se nao sé internamente, mas também no contato com outras culturas. No mundo contemporaneo, em vista dos acelerados processos de contato e de massificagao (proporcionada, sobretudo, pelas midias), nao ¢ possivel idealizar que as sociedades devam permanecer isoladas para nao se alterarem ou para manterem suas tradigées “intactas”. Entretanto, para manter determinada coesio interna e preservar certos conhecimentos e praticas, 0 ETNOCENTRISMO. pode ser uma ferramenta auxiliar de valorizacao dos referenciais culturais. Isso é importante principalmente entre comunidades que sofrem processos de desvalorizagao de suas culturas internamente. CULTURA(S) POPULARCES): UM CONCEITO PLURAL Como pudemos observar ao enfocar 0 conceito de cultura, ha uma série de possibilidades de reflexio - incluindo as nocées de alteri- dade, etnocentrismo e relativismo - que nos conduzem tentativa de entendimento do conjunto de conhecimentos, saberes e fazeres que compée o vasto mosaico dos grupos humanos, incluindo aquele ao qual pertencemos. A expresso popular aplicada a cultura parte, em principio, de uma perspectiva etnocéntrica: desde o surgimento dos Estados Nacionais, que se formaram na Europaa partir do final da Idade Média, as preo- cupagées com a cultura se voltavam ao conhecimento dito “erudito”, das classes dominantes, colocado em oposigao aos saberes dos estra- tos sociais considerados “incultos” e, portanto, inferiores. Conforme o historiador Roger Chartier (1995, p. 179-192), a cul- tura popular é uma categoria erudita. Ao estudar a cultura da Europa Ocidental dos séculos XVII e XVIII, 0 autor localiza um processo social de repressao a cultura popular promovido pelas elites € pela Igreja, no sentido do enaltecimento de valores considerados “civilizados”. Peter Burke (1989), assim como Chartier, assinala uma histérica imposigao de valores culturais que partiram das classes sociais mais abastadas. O proprio registro de manifestagdes de carater popular (num perfodo em que a base da transmissao do conhecimento formal era a escrita) passava pela intermediagéo daqueles que dominavam essa linguagem, em detrimento das expressdes essencialmente orais. Assim, Chartier (1995) propée que tanto 0 antropdlogo quanto o historiador das culturas populares devem se empenhar em desvendar ‘os documentos produzidos entre os séculos XVI ¢ XIX pela propria elite letrada. Uma de suas propostas é 0 uso do método regressivo: Para avaliar a influéncia da Espanha na cultura da América Latina, George Foster tentou reconstruir a cultura do cam pesinato-espanhol do século XVI e para tanto ele trabalhou regressivamente a partir do século XX, fazendo trabalho de campo na Espanha ¢ recorrendo a pesquisa de folcloristas. (Chartier, 1995, p. 179-192) Como ja foi mencionado no inicio deste capitulo, é comum em nossa sociedade que se associe a cultura aos saberes e aos conhecimentos formais. Por exemplo, quando se fala em medicina, normalmente se pensa em consultérios ou hospit: , onde os agentes de cura - médi- cos, fisioterapeutas e outros profissionais da area da sade - passaram pelo ensino universitario e adquiriram um repertério cientifico que os habilita oficialmente as respectivas fung6es. Entretanto, apesar da imposicao social de formas de tratamento médico-cientifico, ha diver- sas alternativas de cura que nao necessitam, obrigatoriamente, dos saberes adquiridos nos bancos universitérios. QUEM NUNCA TOMOU UM CHA DE ERVAS PARA O ESTOMAGO, UM RESFRIADO OU DORES EM GERAL? O uso medicinal de plantas é um saber legitimamente popular que, por meio da transmissao direta, foi herdado dentro de um grupo social ou familiar. Tendo como base esse exemplo, apesar de uma aparente oposi¢ao entre erudito e popular, E iMPORTANTE COMPREENDERMOS QUE ESSAS CATEGORIAS NAO ESTAO isOLADAS. E possivel ingerir um comprimido farmacéutico para a gripe e, ao mesmo tempo, tomar um cha ou ir a uma benzedeira em busca de cura. Do mesmo modo, muitos cientistas pesquisam em laboratério as aplicagées cientificas de plantas que ha tempos sao de uso comum pela populagao. O termo popular se refere a povo, expressio que nao apresenta um tinico sentido. Ela pode ser utilizada para definir toda a populagao de um pais, ou a parte mais pobre dessa populagdo, ou ainda 0 con- junto dos trabalhadores e dos pequenos proprietarios rurais e urba- nos. Nesses casos, percebemos, no geral, que a distingao se dé por meio da NOCRO De CLASSES POPULARES. No entanto, existem também elementos de diferenciacao no interior das classes sociais. Nao é possivel afirmar que os membros de um grupo social - for- mado seja por pescadores, seja por costureiras ou operdrios - pen- sem, ajam e realizem suas tarefas de maneira idéntica. Isso porque ha diversas caracteristicas, além de sua atividade laboral, que os dife- renciam. Um pescador artesanal do interior do Amazonas provavel- mente apresenta muitas diferengas - desde os recursos técnicos de pesca (tipo de embarcagao 0 modo como esta é feita, artefatos de pescaria) até maneiras de preparar 0 pescado, relacdes simbdlicas com certos tipos de peixe etc. - em relagdo por exemplo, a um que vive numa ilha do litoral sul do pais. © ENTENDIMENTO SOBRE O POPULAR DEFINE-SE COM BASE NA CON. cePchO DA DiFeERENCA. No Brasil, isso ocorre, em boa medida, por- que nas ciéncias humanas, entre pesquisadores e também no plano das politicas publicas, a nogao de cultura brasileira procura enfati- zar as diversas matrizes histéricas de formagao de nossa nacionali- dade. Atualmente, portanto, é corrente a utilizagao do conceito no plural, ou seja, CULTURAS POPULARES, uma vez que nossa formacio sécio-histérica é diversa, fazendo com que tenhamos diversas matrizes populares. Uma manifestagao cultural pode também transformar-se e ser apreendida e modificada por grupos sociais diversos ao longo do tempo. O futebol, esporte/jogo mais praticado em nosso pais, ocorre em todo lugar, até mesmo nas ruas. €, POIS, UM ELEMENTO DR CULTURA POPULAR, CORRETO? Entretanto, quando chegou ao Brasil trazido da Inglaterra, no final do século XTX, apenas setores da elite o pratica- vam. O que ocorreu, nesse caso, foi a apropriacdo e a popularizagao de uma pratica até certo periodo restrita aos mais ricos. Assim, devemos tomar cuidado ao afirmar que certas caracteris- ticas culturais so populares ou de elite, pois a cultura é DINAMICA e MUTANTE e percorre caminhos que frequentemente rompem as bar- reiras de classe, tanto de um nivel quanto de outro. Como exemplo dessa afirmagao, podemos retomar o caso do futebol, pratica espor- tiva dos imigrantes abastados no final do século XIX e inicio do XX que ganhou as ruas e as praias, transgredindo, nesse caso, aTige as conor o Dim OBRE ¢ POPULAR DEFINE-SE COM BASE NA CONCEPGAO.DA DiFERENCA. dez das regras que o jogo esta- belece formalmente, como 0 uso de roupas proprias e o cumpri- mento das normas. E comum vermos nas praias a formacao de times com as pessoas que por ali passam; além disso, o tamanho das traves e os limites do campo sao constituidos de maneira menos rigida. Uma pratica popular também pode ser apropriada por classes sociais mais abastadas: a bossa nova um género musical derivado do samba e do jazz, ambos de origem essencialmente popular, porém idealizado e executado por jovens de classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro, a partir da virada das décadas de 1950-1960, e exportado pela industria fonografica para todas as partes do mundo como produto “requintado”. FiguRA 1.2 ~ Futebol a beira-mar, Cumuruxatiba-BA, 2006 Outro cuidado na definigao de cultura popular diz respeito a sua semelhanga com 0 conceito de folclore. Nao ha consenso entre os estudiosos sobre suas diferenciagées, e alguns autores veem equiva- léncia entre ambos. Para compreendermos esse debate, precisamos entender de que forma o folclore se estabeleceu historicamente como campo de estudos e por que, atualmente, ele é visto com desconfianga. A expresso advinda da jungao dos termos folk-lore, traduzida lite- ralmente como “saberes do povo”, foi criada pelo arquedlogo inglés William John Thoms em 1846. De acordo com Frade (2012), “foi com o nome de Folclore que a cultura popular principiou a ser sistema- tizada e a receber a delimitagdo dos marcos de suas fronteiras [...] duas décadas antes de Edward Tylor introduzir um termo similar, ‘cultura’, entre os antropélogos de lingua inglesa”. A preocupacao de intelectuais europeus do século XIX com as manifestagdes populares tinha relacdo com o crescente desenvolvimento industrial e urbano, que estaria contribuindo para o desaparecimento das manifestagdes culturais tradicionais, sobretudo do campo. Pretendia-se pesquisar e registrar expresses que estariam por demais se alterando ou, em liltima andlise, desaparecendo. NO BRASIL, OS PRIMEIROS ESTUDOS DESSA NATUREZA FORAM REALIZADOS POR SiLviO ROMERO (1851-1914), AMADEU AMARAL (1875-1929) E MARIO DE ANDRADE (1893- 1945), COMO VEREMOS MAS DETIDAMENTE NO PROXiMO CAPITULO. PARTIR DA DECADA DE 1950, 0 ESTADO COME- COU A DESENVOLVER iNiCiATivAS — COMO A CAMPANHA DE DEFESA DO FOLCLORE BRASILEIRO (CDFB), CRIADA EM 1958 — COMO OBJETIVO DE PRESERVAR E PROTESER AS ARTES POPULARES, SUPOSTAMENTE AMEAGADAS PELA CRESCENTE ONDA DE MODERNIZACRO QUE AVANCAVA PELO PRis. IN Entre as criticas feitas aos folcloristas, a principal dizia respeito a nogao de que as manifestacées populares deveriam ser preservadas em suas caracteristicas tradicionais, sem levar em conta os proces- sos de transformagaéo marcantes das sociedades urbano-industriais. Isso nao quer dizer que todos os estudiosos tivessem (ou tenham) a mesma concep¢ao. No entanto, uma no¢ao mais rigorosa de tradi- ao — no sentido de conservagao dos aspectos culturais sem grandes alteragdes ao longo do tempo, pretendida por alguns autores e grupos sociais - tem sido combatida por autores menos puristas. E comum a aplicagao da expressao folclore, por exemplo, para designar grupos de danga e miisica, os quais em geral se vinculam & tentativa de preservar ou reproduzir elementos que, de uma forma ou de outra, conectam-se a uma heranga cultural de longa data, uma . Sao comuns na Regiao Sul do Brasil grupos de dangas tipi- cas italianas, os quais fazem apresentages em festas que remetem aos valores dessa cultura trazida ao Brasil por meio dos imigrantes. Aqui, éimportante notar que muitos desses grupos sao formados por jovens, quase todos brasileiros natos, que se vestem com trajes tipicos e dangam ao som de misicas que simbolizam a cultura popular ita- liana de outros tempos. Esse tipo de manifestagao é construido para cumprir a fungao de manter vinculos com referéncias distantes geo- graficamente e, também, culturalmente. E comum que esse tipo de iniciativa atenda a demandas festivas e/ou turisticas. FI9URA 1.3 — Apresentagdo do Gruppo Musicale Amici, Colombo ~ PR, 2008 Outra questao sobre a qual devemos refletir diz respeito a APROPRIA- GAO De REFERENCIAS CULTURAIS POPULARES POR GRUPOS SOCIAIS DivER- SOS. Por exemplo, no Brasil, o maracatu, origindrio de Pernambuco ¢ praticado por populagées rurais ou urbanas, é reproduzido por jovens paulistanos de classe média numa apresenta¢ao particular (em um clube ou teatro) ou de rua. Esse tipo de fendmeno, em geral fruto da admiragao e do respeito pelas culturas populares, deve ser pensado como uma releitura, uma versio de elementos populares fora do contexto no qual estes se encontravam. Sao praticas que poderia- mos considerar “folclorizadas”, pois nao sio propriamente populares nesse novo contexto, apesar da referéncia. Essa apropriag’o estabe- lece significados diferentes tanto para seus realizadores quanto para a plateia que assiste 4 apresentacao, em razao dos deslocamentos de funcao social que cumprem. 2iTESE A antropologia ea historia nos trazem elementos tedricos essenciais para aprendermos a importancia e o sentido do estudo das culturas populares, especialmente no Brasil, pais cuja diversidade de mani- festagdes e referéncias ha muito tempo - e ainda hoje - é considerada um forte elemento de identidade cultural. A transformagao do olhar, com base nessas disciplinas, deve nos despir de preconceitos e fazer perceber a relevancia do popular como substrato cultural profundamente arraigado em nossa identidade. iINDiCACOES CULTURRIS AYALA, M. AYALA, M. I. CULTURR POPULAR NO BRASIL. Sdo Paulo: Atica, 1987. E um livro introdutério ao debate sobre folclore e cultura popular no Brasil e traz alguns dos principais intelectuais que se debrugaram

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