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Como se Constituiu no Brasil a Réde das Cidades * PIERRE DEFFONTAINES: Bulletin de la Societé de Géographie Professor da Faculdade @e Lille — Ano 59.—— Tomo 82 — Catélien “de Lille WN» 9 Dezembro de 1938 — Lille. # um assunto de reflexdes, singulares éste do estudo do aprovisionamento de um pais em cidades. Como uma regiao se proven de aglomeragoes urbanas? Como nasceram elas, onde se instalaram, porque progrediram? Muitas vézes paira uma atmosfera de mistério sobre a origem das cidades; as velhas re- gides da Europa fizeram o seu recheio de cidades desde muito tempo por pro- cessos sucessivos; a proporcao de cidades novas é restrita; nos paises novos, foi a réde urbana inteira que foi preciso estabelecer. Como se cria_uma réde urbana, eis um estudo que é dificil de abordar nos nossos paises da Europa e 6 entretanto um dos mais curiosos problemas que apresenta a Geografia Humana. Um pais hostil ao grupamento © Brasil nao tinha nenhuma cidade hé sdmente trés séculos; hoje éle as conta aos milhares, fica-se mesmo espantado ante o seu numero. Como se constituiu em tao pouco tempo uma associacao urbana ja tao cerrada? © pais entretanto nao parecia orientar-se para formas de povoamento aglo- merado. Tivemos ocasido de estudar a semeadura da populacao rural que 6 es- sencialmente constituida por formas dispersas*. Em nenhuma parte do Bra- sil a vila é a unidade de povoamento, esta é a grande propriedade, a fazenda, com sua colénia de empregados rurais, ora grupada em pequenas cidades ope- rérias ora dispersa através do dominio em retiros ou currais. Mesmo quando as propriedades so menos extensas, elas nfo acarretam um povoamento mais concentrado. As pequenas fazendas ou sitios sio tao isoladas quanto as grandes exploragées; da mesma forma os pequenos lotea- mentos para colonizacao européia do Brasil meridional ou do Espirito Santo; éles séo em geral de pequeno formato, em fila, comportando um povoamento fregiientemente em exterisio ao longo dos vales (Espirito Santo) ou, ao con- trario, sObre linhas de cristas, espigdo (Sdo Paulo, Parana), mas as explora- g0es Sdo separadas umas das outras por varias centenas de metros e as vézes mais. Néo ha nenhum nicleo rural. A vida econémica e social, por embrionéria que seja, teve que tomar formas especiais para se adaptar a ‘uma disperséo tio completa. O pequeno comér- cio é em grande parte ambulante, assegurado por vendedores sitios chama- dos mascates, que circulam a pé du em burro, ou mesmo em jangadas*. Os médicos ou os dentistas muitas vézes sio também némades, transportando a seu material em burro ou em carro de bol; acontece mesmo que o notario (ta~ belido) seja obrigado a vagabundar com a sua maquina de escrever pendurada na sela; ésses elementos de urbanizacéio nao esto fixados. O problema das es- + N.R.: “A traducdo para o vernéculo fol felta pelo Prof. Orlando Valverde, Secretério Assistente do Conselho Nacional de Geogratia. * Plerre Deffontaines — Les types de peuplement rurauz au Brésil. Association du Géographe Francais, 1935, D. 00. 2 Pierre Deffontaines — Les Mascates. Journal des Américanistes, 1935, ps, 247-250. a BOLETIM GEOGRAFICO colas é ainda mais complicado e isto explica a enorme proporeao de iletrados: nao ha nenhum centro rural onde colocar a escola. Em certos Estados (S40 Paulo), decidiu-se criar um escola em cada 6 quilémetros quadrados; é uma unidade de superficie e néo um niicleo de povoamento que servira de guia. As- sim, a dispersio parece fundamental; cedo, entretanto, houve tentativas de gru- Pamento que se tornaram ,progressivamente embrides de cidades As reducées A primeira fol a executada pelos missionarios para assegurar a evangeli- zagio e a protecdo das populacdes indigenas. Gruparam-se familias, outrora némades e vivendo em pequenos clas, em nticleos em tdrno da igreja. Desde 1550, aparecem os burgos de catequizacdo, sao as reducdes do Brasil meridio- nal e do Paraguai, as aldeias do Brasil central e Amaz6nia. Essas aglomeracoes eram tédas concebidas num mesmo plano, féssem elas estabelecidas pelos jesuitas, franciscanos, dominicanos ou salesianos... Diante da igreja, uma grande praca retangular, o largo da matriz, e dos lados as casas dos indios, dis- postas geométricamente. Um grande mimero de aglomeracées de origem reli. giosa foi assim constituido até nas regiées mais longinquas; mesmo na Ama~ zonia, os jesuitas fundaram milhares de aldeias. Blas sao fundadas ainda em nossos dias; assim os salesianos, na prelazia de Sao Gabriel do Rio Negro, es- tabeleceram nesses tltimos 20 anos uma dezena désses grupamentos. Uma das mais recentes é a de Meruri fundada com indios Bororo a oeste de Santa Cruz, em Mato Grosso. Entretanto, ésses principios de poyoamento aglomerado encontraram hos- tilidade por parte dos colonos. O regime da fazenda the era oposto. Os fa- zendeiros tinham necessidade de mao de obra e a buscavam efetuando razzias nas tribos indigenas. Esse foi um dos objetivos essenciais das expedicdes dos bandeirantes, O grupamento e a protecao. dos indios tentados pelos missionarios, eram um obstaculo a exploracdo colonial. Houve entao lutas ferozes dos fa- zendeiros contra as reducSes e os grandes proprietarios concorreram muito para a supressao do poderio jesuitico na América do Sul. Depois da partida déles, os indios se dispersaram, uns foram engajados nas plantacoes ou nas mi- nas, onde muitos morreram em massa, outros voltaram as suas florestas. ‘Muitas redugSes desapareceram, tais como a de Guaira, destruida em 1627 e da qual se encontram, encravadas nas florestas, grandiosas construcées de igre- jas hospitais, armazéns. Entretanto essas reducSes tiveram algumas vézes prossegulmento ¢ exis- tem ainda aglomeracées atuais que descendem diretamente désses primeiros grupamentos. No Nordeste e no Norte do Brasil, numerosas sio as aglomeragdes que se chamam ainda Missdo; assim no Ceara notam-se diversas — Missio Nova, Mis- sio Velha, Missio das Almas, ou ainda Milagres. No Espirito Santo e na Bahia, por exemplo, muitos pequenos portos que bordam o litoral nas desembocaduras dos cursos de Agua, sio antigos postos missionarios onde os jesuitas tinham vindo grupar os indigenas: Santa Cruz, So Mateus, Pima, Benavente’. Um déles (o ultimo) ge chama mesmo Anchieta, tirado do nome do primeiro grande evangelizador jesuita que come- ‘gou a politica das reduedes. Encontram-se também no Estado do Rio de Janei- To, Itaborai ou Séo Pedro d’Aldela, pequeno porto perto das salinas de Cabo Frio; varias das mais velhas aglomeracées do Estado de Sao Paulo derivam de primitivas aldeias em térno de capelas missiondrias, Itanhaém, na costa; Itapecerica, Sio Miguel, M’boi, Parnaiba, no interior. Mas estas aglomeragées esto em geral em decadéncia, as igrejas caem em ruinas, as casas leprosas de taipa (terra batida) abrigam menos uma po- pulagio de cultivadores do que gente miserével, carvoeiros, operdrios, pescado- 3 Pierre Deffontaines — L’#tat d’Espirito Santo, — Essa! de divisions régionales. — Annales de Géographie, 15 mars, 1998, ps. 155-176. TRANSCRICOES 3 res, Ievando uma vida mais ou menos parasitéria. Elas se encontram ademais conservadas apenas nas regiées de solo pobre, onde as fazendas foram efémeras e deixaram subsistir as antigas formas de povoamento. Assim, esta tentativa de povoamento aglomerado pelas reducdes abortou em quase’ toda parte; acontecimento capital: ésses primeiros grupamentos de evangelizacao poderiam ter dado ao Brasil uma réde de partida de pequenas aglomeracces e constituir para o pais o que as pardquias forneceram a antiga Franga, ésses nédulos religiosos, capazes de servir de suporte a um modo de povoamento. A vitéria da fazenda orientou definitivamente o Brasil para a dis- Persao e 0 pais se encontrou privado para todo o sempre do quadro da vila. Aglomeracées de origem militar As necessidades da defesa, num pais novo com populagées indigenas hostis, teriam podido, 6 verdade, servir de fator de povoamento. Em tantos paises, as primeiras colonizacées, devidas aos cuidados com a seguranca, se fizeram por nticleos e se fundaram feitorias, embrides de cidades, antes de semear co- Tonos no interior, No Brasil, sobre 'a costa, os primelros estabelecimentos fo- ram fixados em sitios defensivos, ilhas como’a que escolheu Villegagnon na baia do Rio de Janeiro, ou_a que serve de dominio 4 cidade de Vitoria no Espirito Santo, ou a de Cabo Frio separada pela laguna de Araruama. As ilhas de Sio Sebastiao e de Santa Catarina estiveram entre as melhores e as mais densamente povoadas. Escolheram-se também alguns promontorios elevados como Sao Salvador (Bahia), Linhares; nesses primeiros estabelecimen- tos de tomada de posse, erigia-se uma pedra com as armas portuguésas (marco da cidade) que era a prova da ocupacao. ‘Mas, no interior, é uma surprésa constatar-se a fraca importancia do fa- tor defensivo e 0 pequeno ntimero de grupamentos de origem militar. No Nor- deste, a luta contra outras nacdes colonizadoras: Franca, Holanda, Inglaterra, obrigou a certas disposicées protetoras. Fortaleza, a capital do Ceara, tira 0 seu nome de uma fortaleza; no Amazonas a maior parte das aglomeracées deri- vam também de antigos fortes que serviam de pontos de partida as entradas, isto é, as expedicdes fluviais que lam cacar os indios e trazé-los como escravos; assim’ Manaus, na embocadura do rio Negro, Obidos, Mazagao, fundada com os defensores portuguéses ‘de Mazagao de Marrocos. Para o sul, a delimitacdo com a zona de influéncia espanhola foi por mui- to tempo uma fonte de contendas e de combates; ai foram estabelecidas as tnicas cidades nascidas diretamente de acampamentos militares, como Cas- tro ou Jatai. As vézes também se fundaram postos militares e regides assoladas pelos assaltos para fazer respeito aos bandidos. Assim foram estabelecidas em 1850, Ttapura sobre 0 Parana na fronteira de Mato Grosso, e Avanhandava sobre 0 Tieté perto de Bauru. No fim do século XVII para livrar o rio Sao Francisco do banditismo, os filhos de Matias Cardoso estabeleceram ai uma linha de guarnicao dirigida por capitdes de mato, encarregados da policia e alguns désses postos se tor- naram pequenas cidades. As cidades mineiras Bisse banditismo gerador de cidades, se multiplicou sobretudo nas zonas de descobertas de metais preciosos e as cidades ai apareceram como lugares de seguranga, espécies de cofres fortes onde se concentrava o ouro. Também a co- lonizacdo mineira se apresentou essencialmente sob a forma de uma civiliza~ gao urbana. Entretanto, as primeiras extragdes de ouro se fizeram esporddicamente nos aluvides ao longo dos rios nas zonas de sopé de morro, em térno dos macigos mon- tanhosos do centro de Minas carregados de minério. Era uma simples coleta que se fazia com material reduzido, a bateia somente; essa mineracdo de casca- ae BOLETIM GEOGRAFICO Tho era némade e individual, em pequenos acampamentos tempordrios denom!- nados arraiais; ela nao acarretou nenhum povoamento fixo, salvo a capital de téda essa zona de pé de morro, Mariana. Mas desde logo os mineradores ou garimpeiros, subindo os rios, pene- traram na montanha e descobriram os filées; um outro trabalho se impos, fot preciso abrir galerias, executar importantes terraceamentos, ¢ a mineracdo do morro. Esses empreendimentos mais estaveis fixaram a populacdo e fizeram nascer aglomeracoes. Rapldamente a zona aurifera das montanhas de Minas se encheu de cidades de mineiros cuja prosperidade foi ofuscante. ‘Téda uma arquitetura fastidiosa, que se poderia chamar o estilo mineiro, se difundiu no século XVIII; Ouro Préto, a cidade de ouro, a antiga capital de Mi- nas, chamou-se primeiro Vila Rica, a cidade rica por éxceléncia; todos os seus monumentos: igrejas, palacios, eram sobrecarregados de esculturas e de dou- rados; a cidade, diz-se, contou até 100 000 habitantes. A suntuosidade dessas eidades se contrapunha estranhamente & desolacdo dos campos circunvizinhos; nenhuma exploracdo pastoril ou agricola se estabeleceu_nos solos pobres em que a floresta foi destrufda para a fusio dos metais. Uma mesma paisagem calva e desolada se estendeu nas montanhas mineiras, estranha regiao que nao apresentou senao cidades do ouro: Ouro Préto, Sabard, Caeté, Queluz, Alu- ruoca... ou cidades do diamante: Diamantina, Estréla do Sul, Gréo Mongol, Lengéis, Andarai, Mucugé. Quando a prosperidade mineira declinou, no decurso do século XIX, a montanha’ ficou vazia com suas cidades mortas, verdadeiros monumentos his- toricos perdidos num deserto: Sao Jao del Rei, Congonhas do Campo. ‘As mesmas cidades decadentes se reencontram em térno das antigas zonas de pesquisas mineiras do Brasil meridional: Apiai e Xiririca, na bacia do Ri- beira de Iguape (Estado de Sao Paulo), sio pobres aglomeracdes miseraveis; da mesma forma Lavras e Encruzilhada, no Rio Grande do Sul*. Hoje, nada mais resta do que algumas exploracées mineiras em atividade: Nova Lima, em torno da mina de ouro inglésa de Morro Velho, Sabara, Monleva. de e Itabirito, com seus altos fornos tovados a lenha, S40 Bartolomeu, em tor- no das hulheiras do Rio Grande do Sul. Mas ésses casos sfo excepcionais e a tentativa de povoamento grupado, co- mecada pela colonizacao mineira, deixou apenas uma regido devastada, semea- da de aglomeracées letargicas. © trabalho mineiro, porém, provocou uma ativa circulacio: o transporte dos metais preciosos para a costa e o transporte para o interior dos produtos necessarios aos mineiros, e esta circulacdo foi por si propria criadora de aglo- meracdo; essas cidades nascidas da estrada formam uma nova categoria, mais numerosa, mais espalhada e também mais estdvel do que as cidades que eram naseidas da mina. As cidades nas estradas: pousos Fica-se espantado da intensidade dos transportes no Brasil; todos os via- jantes antigos nos descrevem 0 incessante desfilar das caravanas de burros de mulas ao longo das pistas ou os carros de bois com rodas chiadoras puxa- dos por cinco a dez juntas de bois nos caminhos de descida da serra do Mar, as passagens atingiam uma tal densidade que era um oficio lucrativo apanhar os pregos das ferraduras perdidas pelos burros de carga. Transportavam-se para os portos, metais preciosos e alguns produtos de plantacdo: café, rum, agicar; trazia-se para o interior sal, alimentos, farinha; em péso, isto represen- 4 Em nossos dias, a pesquisa pela gente pobre nos aluvides, recobrou uma certa atividade desde a baixa do mil’ réis brasileiro, mas isso néo traz proveito’ para us éldades. Assim, desde 4925 se assiste a um verdadelro rush’ de garimpeiros de dlamantes io alto Araguala, ao longo do rio das Garcas e do tio das Mortes; sfo antigos seringuelros desempregados que subiram o Araguaia para os aluviées diamantiferos; pequenas aglomeracces foram fundadss, como Registro ou MOr~ Deckianaia, que sho antes acampamentos nos quais a populagdo duplica de um ano pars outro. O mesmo acontece nas novas Jazidas descobertas recentemente no alto Jequitinbonha, a este de Mines. TRANSCRICOES 45 tava pequenas quantidades, mas os melos de transporte rudimentares, tmica- mente por carga, faziam do tropeiro um personagem tipico; era um dos horizon- tes de trabalho mais difundidos. Houve durante muito tempo mais transportadores do que produtores; 0 ofi- cio convinha 4 psicologia aventurosa da gente pobre, na qual nao existia ne- nhum atavismo de sedentarismo camponés. Era uma dessas ocupacdes quase parasitarias que se desenvolviam sem relacdo com as necessidades mesmas. Através das soliddes mais afastadas, ésses tropeiros transmitiam as idéias, os habitos, as novidades; éles se tornaram um dos principais agentes da unidade brasileita; desde o século XVIII éles penetraram em pleno Mato Grosso, onde tinham achado ouro; por caminhos de burros, as estradas, que éles tinham tracado, éles tinham’ previsto paradas, repousos, pousos que progressivamente se tornaram pequenas aglomeracées. Muitas vézes éles atravessavam regides completamente vazias, onde nenhu- ma colonizacdo tinha ainda comegado, e, antes das fazendas, os pousos sobre as estradas constituiram os primeiros centros de povoamento. ‘Algumas dessas paradas eram obrigatérias, Iugar de pedagio, de fiscaliza~ gdo que se chamavam registros. A estrada oficial que atingia Golds, a estrada real, era muito vigiada; percebia-se ai, sobre o transito dos metais preclosos, di- reitos elevados que constituiam um dos principais beneficios que a coroa por- tuguésa tirava do Brasil. Assim nasceram os pousos de Mogi Mirim, Mogi Gua- gu que se tornaram cidades. Pousos de pagamento balizavam também a estra- da saleira (estrada do sal) que entrava em Mato Grosso por Coxim para levar @ sal necessirio & criacéio do gado. Para escapar a ésses pagamentos criaram-se também estradas clandes- tinas, como a que passava por Casa Branca e Franca, estrada francana, onde nasciam também novos pousos, ligados aos caminhos desviados. Essas aglomeragées, que se chamaram cidades de viajantes eram caracte- risticas, chelas de ranchos, cabanas-hangares para abrigar as caravanas, e es- talagens; muitas vézes elas se prolongavam em uma s6 rua ao longo da ‘estra- da, como 6 0 caso de Mogi Mirim, de Ouro Fino. Essa rua principal se chama~ va freqiientemente a rua direita,'se bem que 0 seu tracado fosse em geral si- nuoso. i Estas cldades de estradas foram abundantes sobretudo em Minas Gerais em relagdes com as minas e isto explica a freqiiéncia das cidades de passa~ gem que se chamam: Pouso Alto, Pouso Alegre, ou ainda Passa Trés, Passa Quatro, Passa Vinte, Passo Fundo ‘ou também Registro. Havia além disso uma outra categoria de caminhos que também atuaram na origem de algumas cidades, eram as estradas de boiadas, os caminhos de gado. O Brasil compreendia duas grandes zonas: 0 litoral, deixado as planta- g6es e ocupado pelas fazendas de cultura; o interior, o sertéo, abandonado a tima criacdo de gado extensiva. © litoral recebia do sertéo a carne e 0 gado de trabalho. Os bois e as va- cas desciam em grandes rebanhos, em boiadas; eram conduzidos por boiadeiros, outros personagens tipicos do interior do Brasil. As estradas de boiadas eram batizadas de pousos de uma natureza um pouco especial: na partida, havia a contagem das abobras, o lugar onde se fazia a contagem, depois os animais passavam ao Curral del Rei, onde se recebia uma renda antes de se por a caminho a boiada; era também o lugar onde se marcava 0 gado (ferrar 0 gado), e se chamava a éste lugar Malhada, isto é lugar onde o gado pisoteou; ao longo do trajeto, eram previstas paradas, onde as reses podiam se refazer nos campos de ervas ricas, invernadas. Muitas vézes elas passavam varios meses sobre éstes pastos para repousar e engordar. Depois dessas paradas, era preciso reagru- pa-las-em circulo para tornar a partir, isso era o rodeo; enfim elas chegavam &s feiras do litoral onde eram yendidas. Também os pousos de gado guarda- ram muitas vézes os nomes de Malhadas (grande ou séca), de Invernadas, de Rodeio, (hoje Paulo de Frontin, perto do Rio de Janeiro), de Curral del 'Ret (primitivo nome de Belo Horizonte); as Felras séo intimeras, notadamente Feira de Santana, perto de Bahia, ou’ainda Feira de Conquista®. © Houve também as Vacariae (lugares de pastagens), as Charqueadas (lugares de fabricagéo a carne-séea, chamada churque) 146 BOLETIM GEOGRAFICO No Brasil meridional, existia uma estrada de gado de um tipo particular, era o caminho das mulas, a estrada mulada. A maior parte das mulas e burros que serviam ao transporte do Brasil litoral e central, nao eram produzidos no lugar, provinham dos grandes pastos do sul e sobrettdo do territorio das Mis- sdes e do Uruguai. Bles se detinham em pousos com invernadas (Apiai, Sao Miguel Arcanjo, Itapetininga) e alcancavam o centro das feiras de burros, em Sorocaba, que se tornou uma das principals cidades do Estado de ‘Sao wulo*, No nordeste brasileiro, onde as trocas de gado foram mais importantes en- tre o sertao séco do interior e o estreito litoral imido, as cidades - etapas de gado se multiplicaram, a maioria das aglomeracées tem esta origem As cidades da navegacio Na Amaz6nia, em compensacdo, ndo hé circulacio por estradas, nem mes- mo animais de carga. Os transportes se fazem imicamente por Agua; éles t- veram também necessidade de muda: a navegacio so se faz de dia, é preciso escalas para a noite. Sao precisas também outras escalas onde se possam mu- dar as guarnigdes de remadores ao longo dos rios de cireulacdo. Pirogas e ca- noas. Essas margens se povoaram de pequenos centros; a navegacio a vapor néo os suprimiu, ela reclamou ao contrario um novo tipo de escala, o porto de Jenha; sendo as caldeiras tocadas a lenha, de 30 em 30 quilémetios mais ou menos € preciso refazer a provisio de combustivel, isto é, dizer o numero de portos. les constituem uma pequena aglomeracao cuja’populacéo principal € composta de lenhadores, aos quais se juntam alguns comerciantes. Os portos de madeira foram uma causa de povoamento ao longo dos rios, éles contribui- ram para fixar a populacdo nas margens; alguns tornaram-se importantes, vie- ram a ser escalas mercantes e se transformaram em cidades. Varias aglome- ragdes do rio Séo Francisco comecaram sendo portos de lenha, como Matias Cardoso, Manga, Januéria. Hoje, 6 verdade, a transformac&o rapida da navegacio a vapor pela ado- edo dos motores de explosio provoca uma verdadeira crise do povoamento flu- vial; a maior parte dos portos de madeira nao tem mais razio de ser, as escalas de gasolina sio muito mais espacadas e sémente nas cidades importantes a po- pulacéo de lenhadores, um momento sedentarizada, tornou a partir para errar pelos sertées. Os portos de lenha néo existem mais sengo ao longo dos rios de mais dificil acesso e de fraco tréfego onde a introducdo da gasolina nao se- ria compensadora: rio Sao Francisco, rio Doce, Araguaia... Mais estaveis fo- ram os portos determinados pelas dificuldades ¢ paradas na navegacio. Os ra- Pidos e cascatas, tao numerosos nos rios brasileiros cortados de barras de ba- salto ou por patamares de eroséio, quase sempre determinaram o nascimento de um pérto de transbordo e isto explica a multidao de cidades que se chamam Cachoeira. As cabecas de navegacdo foram também a causa da criagao de por- tos: ao longo do Mogi Guacu, grande afluente no Estado de Sao Paulo, a ci- dade de Porto Ferreira se desenvolveu a jusante das quedas de Pirassununga, na origem do canal navegavel para oeste; éle drenou todo o café do médio vale désse rio até Guatapara; docas de café se alinhavam ao longo das barrancas. Esta navegacdo foi morta por causa do desenvolvimento da réde ferrovidria e hoje Porto Ferreira esta em plena decadéncia, ruas inteiras esto em ruinas”. Ruinas de cidades pelas vias férreas As estradds de ferro muitas vézes determinaram no Brasil a ruina de ant gas aglomeracées da circulagio. Antes de serem criadoras de cidades, elas Provocaram uma verdadeira hecatombe. Primeiro foi a morte de todos os Pequenos portos da costa nao servidos pelas vias férreas. Para éles se dirigiam outrora as intimeras estradas de burros que desciam do ‘interior numa réde de © Pierre Deffontaines — Les foires @ mulets de Sorocaba, Etat de Séo Paulo, Annales de Géographie, 15 nov., 1936, ps. 648-652. 7 Constata-se, de pouco tempo para c&, & verdade, ums grandes jazidas dé cauilm e ao desenvolvimento da. indict ressurreleio devide & exploragdo ae la de ceramica. TRANSCRIGOES ty veias mitidas e difusas; as estradas de ferro concentraram téda essa circulacdo em algumas artérias para os grandes portos: Santos, Rio de Janeiro, Vitoria, Porto Alegre. Os pequenos portos intermediarios nao servidos perderam toda @ atividade e fazem parte dessas numerosas “Cidades mortas”’, que formi- gam no Brasil: Angra dos Reis, Ubatuba, Nova Almeida, Benevente, Torres. As estradas de ferro provocaram também algumas vézes a ruina da navega~ gdo fluvial, como vimos acima, e causaram a decadéncia das cidades que dela viviam. No Estado de Sao Paulo, as estradas de ferro segulram em geral as cristas entre as bacias fluviais, os espigdes e se afastavam dos fundos dos vales; as antigas aglomeracoes de rios se encontraram afastadas e desfavorecidas em be- neficio das novas cidades do planalto; Salto Grande, no rio Paranapanema, foi suplantada pelas novas aglomeracoes’ fundadas sobre a linha da alta Soroca- bana que passa pelos planaltos. Cidades-estagdes ferrovidrias ‘As estradas de ferro, de fato, fizeram triunfar as suas cidades e sio a causa de uma numerosa geracdo urbana. Entretanto, no Brasil, as companhias ferrovidrias nao tiveram em geral uma verdadeira politica de colonizacao com- paravel com uma Canadian Pacific, loteando as terras, planejando e cons- truindo cidades. No Estado de Sao Paulo, a Companhig Paulista constituida com os capi- tais dos grandes fazendeiros'se ocupa essencialmente em servir as proprieda- des ja em exploracao, em assegurar o escoamento de producao ja fixada; ela 86 estabeleceu’ suas linhas sobre territérios j4 povoados. Ao contrario, a Soro- cabana e a Noroeste estabeleceram linhas, sobretudo de carater estratégico, que levaram seus trilhos de um s6 golpe até as margens do Parana, limite oci- dental do territério do Estado, antes de qualquer povoamento, no meio de um pais absolutamente virgem e mesmo quase desconhecido. Estagées ficticias eram estabelecidas a cada 20 quilometros num cruzamento necessario destas linhas de uma wnica via. Na linha férrea da alta Paulista, as estacdes, para facilitar a sua classifi- cacéio, foram designadas segundo ordem alfabética e tem-se assim a série se- guinte: Américo, Brasilia, Cabralia, Duartina, Esmeralda, Ferndo Dias, Galia, Herculanum, Jafa, Lacio, Marilia, Nipénio, Ormuz, Pompéia. Ela se detém atualmente na letra P porque a linha no vai mais longe. Al- gumas dessas estagoes progrediram e ja se contam trés municipios: Duartina, Glia e Marilia, esta Ultima tornou-se mesmo uma cidade importante. Mas a maior parte dessas estacdes de cruzamento nao causa o desenvolvimento de uma aglomeracao. Algumas servem somente uma fazenda, e sio a simples parada de um pro- prietario, 0 que se chama a chave; ela leva, a maioria das vézes, o nome da fa- zenda a que serve: chave Palmital, chave Mariana. Hoje, as companhias, para tornarem mais accessivels as propriedades afas- tadas, constroem as vézes nas proximidades da estacdo uma garage de automd- veis onde os fazendeiros poderao depositar o seu carro e retoma-lo na volta; vé-se nascer uma nova forma de parada, que se poderia chamar a parada-ga~ mapese es ‘Algumas dessas paradas de fazenda podem tornar-se importantes se a pro- priedade adquire um grande valor econdmico. Assim, perto de Campinas, a chave Ester serve hoje uma das maiores usinas de agicar instalada numa an- tiga fazenda e esta hoje cercada de uma aglomeracao operaria importante. As boeas de sertio Mas a estacdo ferrovidria que, quase seguramente, faz aparecer uma ci- dade é a estacio terminal, a ponta de linha, que desemboca na regido nova e constitui uma ponta pioneira, é a béca de sertdo, a boca sobre as regides va- zias. No Brasil, o povo avanca para as zonas pioneiras cuja populacio aumenta © Ver o livro de Montelro Lobato. us BOLETIM GEOGRAFICO com uma velocidade vertiginosa; ai a terra é virgem e d4 rendimentos fabulosos durante os primeiros tempos. Os exploradores das zonas do interior, rapidamente esgotadas pelos métodos agricolas empregados, se atiram para a regiao nova desde que ela esta “aberta”, isto é accessivel; a zona pioneira adquire assim uma densidade rapidamente elevada e as vézes superior & das velhas regides, a ponto de constituir muitas vézes uma verdadeira elevacio demografica. As bécas de sertdo tém também uma brusca prosperidade: Baurh, término da estrada de ferro em 1896, s6 contava entao 50 cabanas de madeira; 2 anos depois era ja uma cidade com perto de 4 000 habitantes. A historia de Marilia ainda é mals admirdvel; era um sertao absolutamente vazio e desconhecido em 1925, € hoje uma cidade de 20 000 habitantes, mais importante que muitas cidades antigas do litoral. Em 1930, via-se chegar ai quase todos os dias um trem de emigrantes. Cada. época teve também suas cidades-pontas; hd 10 anos era Rio Préto, Ourinhos, Uberaba; hoje é Marilia, Londrina. Mais antigamente foram Ri- belréo Préto e Mococa términos durante um certo tempo da Companhia Mo- giana. Anteriormente era Casa Branca, antes do prolongamento da Mogiana até Ribeiro Préto; quer dizer que estas cidades bécas de sertdo apareciam como explosdes, mas o seu crescimento rapido é muitas vézes momentaneo; des- de que a via férrea se prolongue um pouco mais longe, uma nova béca de ser tdo surge que eclipsa a precedente. Na linha que se dirige para Golds, o tér- mino foi, de 1919 a 1926, Urutai que adquiriu por ésse motivo uma brusca ati- vidade, hoje a linha prosseguiu até Leopoldo Bulhées, que j4 possui 6 000 ha- bitantes e herdou a atividade de Urutai, que recaiu em letargia. Sdbre essa linha, ha comerciantes, hoteleiros, empresarios, vendeiros que desiocam 0 seu estabelecimento & medida que a estrada avanea; encontram-se especialistas das d6cas da sertdo, que progridem com a franja pionelra ‘ Fora da cldade-término, as estradas de ferro fizeram nascer outras aglo- meragées; no Brasil como alhures, observa-se o aparecimento de cidades nas ramificag6es e cruzamentos de estradas, assim a cidade curiosamente chamada Divinépolis (outrora Espirito Santo) é’ uma bifurcacao importante em Minas Gerais; do mesmo género sao Cruzeiro, Barra do Pirai, Entre Rios... Mas um outro caso mais curioso ¢ a aglomeragéo que se cria "em torno de uma obra de arte. Esses trabalhos tém necessidade primeiramente do estabelecimento de uma pequena cidade operaria; o que é j4 um germe de cidade que, quase sem- pre, se desenvolve nessas regides onde a vida urbana esta & procura de um ponto de cristalizacdo, tal como essa cidade do Parana que se chama simplesmente Viadutos, porque resulta da aglomeracao operaria criada para a edificacao de um viaduto. Na fronteira do Rio Grande e de Santa Catarina, a construcao de uma ponte muito longa da estrada de ferro sbre o rio Uruguai, determinou o aparecimento de uma pequena cidade que se desenvolveu e se tornou Marce- lino Ramos, hoje importante aglomeracao de 10 000 habitantes, em plena via de progresso”. Essas cidades de estrada de ferro se reconhecem muitas vézes pelo lugar que ocupam a estrada de ferro e a estacao, em térno das quais se dispde a aglomeracao: assim Colatina, no Espirito Santo, cidade criada pela companhia ferrovidria Vitéria-Minas, tem a sua rua principal, rua quase “nica, percorrida de um extremo ao outro pela linha férrea, que corta assim a cidade pelo seu eixo. © simples prolongamento dessa longa avenida ferrovidria é- provocada pela estacao. NOTA — A segunda parte déste trabalho seré publicada no préximo ntimero déste Boletim. © Entretanto, 0 sucesso das pontas de linha tem slgumas excegses: assim, no Parand, 0 ramal de Tomasina termina ha ta varios anos em Artur Bernardes. ‘Tentou-se fazer “suit” af Uma eldade, mas em Yio; os combolos continuam a parar muma regio quase vazla; os eafeettos due foram’ plantados nao foram adiante; as plantacbes, demasiado meridionals em latitude e demas elevadas em altitude, flearam expostas As geadas endo produzem. Opals est& “aberto", mas io fo! “tomado™. % aruito fregiientemente os trabathos de arte fazem nascer aglomeracses. Assim, estio nascendo sobre a estrada carrocavel em via de conclusio no Estado de S40 Paulo, de Cutia, Una eJuqula para Tguspe e A costa, pequenos cenvros resultantes diretamente das ofieinas de eohstrugao a estrada. No Nordeste, a luta contra a séca prossegue com a construeio de grandes barragens com Jagos-reservatérlos, os acudes. fsses trabulhos importantes tem tide sine cldades operirias que se transformaram em pequenas cldades, atraida pela presenca da Agua. Vérlas aglomeracses #6 chamam Agude; pode-se cltar também, como tendo esta-origem, Pogo dos Pauls, Ores. (Ceara).

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