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SOBRE A EXPLORACAO DO IMAGINARIO, SEU VOCABULARIO, METODOS E APLICACOES TRANSDISCIPLINARES: mito, mitandlise e mnitocritica * Gilbert DURAND ** MITO (DO GREGO “MYTHOS”: AQUILO QUE SE RELATA) Até © infcio desse século, sob a pressio do positivismo, o mito féra depreciado, seja como uma explicagdo provisdria e incompleta (A. Comte, M. Miiller) que, com vantagens, viria a set substitufda pela ciéncia, seja inversamente como o desgaste popular de um relato hist6rico positive (nogéo de “eyhemerismo”). Por muito tempo o mito foi minimizado (A. Lalande, 1926) como um “relato fantasioso, de origem popular e irrefle- tida”, Gragas, entretanto, e de modo concotrente, as reflexGes politicas de G, Sorel (1908), & sociologia tipolégica de Max Weber (1905), & estética de Nietzsche (1880), 4 “Filosofia das formas simbélicas” de E, Cassirer (1925), ¢ sobretudo ao desenvolvimento da psicandlise de Freud (1897), de O. Rank (1904) e, enfim, & psicologia profunda de Jung (1916), @ nogo de mito passa a ser epistemologicamente revalorizada. A partir daf a nog@o se consolidou epistemologicamente pelos traba- Ihos de antropdlogos (fildlogos, historiadores das religiées, etélogos, psi- cdlogos, etc.) como G. Dumézil, M. Eliade, J. Cazeneuve, Cl. Lévi-Strauss, G. Durand, Geza Roheim, C. G. Jung, J. Hillman, Ch. Baudouin, P. Diel, R. Mucchielli, R. Caillois, J. Danos, H. Desroches, H. Corbin. Gragas & maior ou menor rabalhos pode-se, atualmente (1975), dar uma| , tornando-se a situé-lo no &mago de toda prospecgao antropolégica moderna. O mito se_ configura como um relato (discurso mitico) que dispde em cena personagens, situa- ” Palestra pronunciada na Universidade de Grenoble II e publicada es et Travaux: L'Imaginaire — Univ. Grenoble IT — Builetin 15, — trae dugto do Prof. Dr. José Carlos de Pavla Carvalho (EDA/FEUSP) com a cola- boracio do Prof. Denis D. Badia (Faculdade de Comunicagio e Artes da Universidade Mackenzie). “* Profesor Emérito da Sorbonne — Diretor do Centre de Recherches sur l'lma- ginaire — CNRS-GRECO 56/Paris. CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 245 cées, cendrios geralmente n&o naturais (divinos, utépicos, “surréels”, etc.), segmentéyeis em seqiiéncias ou reduzidas unidades seménticas (mitemas) onde, de modo necessdrio, esta investida uma crenca — contrariamente a fébula ou ao conto — (chamada “pfegnancia simboliéa*™/por|CAssifet) Tal relato faz funcionar uma légica que escapa aos cldssicos prineipios da logica da identidade, Eis por onde o mito realmente se manifesta como “metalinguagem” (Lévi-Strauss), linguagem “pré-semidtica”: aqui a “pro- xémica” (a gestualidade) do rito, da magia inserem-se na gramética ¢ no Iéxico das linguas naturais. O mito aparece, assim, como discurso iltimo (altimo ou primordial, pouco importa) de constituiggo — alijado que esta do prinefpio do terceiro exclufdo — da tenséo antagonista fundametnal a todo “‘cngendramento” do. sentido.8, Baradoxalmente, a Mdisseminacao” (J. Derrida) diacrénica das seqiiéncias (mitemas) a responséyel pela coe- réncia sincrOnica do discurso mifico. Com genialidade Nietzsche estabele- cera ~— numa aproximacao com. seus(§uiessobes oultitalistas (R. Betedict) ~—, como mito fundante do pensamento civilizacional da Grécia, o relato do antagonismo entre as forgas apolineas e as forgas dionisiacas. Lévi- “Strauss desenvolver4 esse carter “dilematico” do discurso mitico. Um pouco restritamente esse trago serd definido como “instrumento/ferramenta l6gica” destinada a conciliar ou sintetizar as entidades seménticas que nfo podem ser sincronicamente superpostas dentro da perspectiva da Iégica classica (‘ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”), Por exemploffas lenses © 0s conflitos narrados pelo famoso “mito de Bdipo” — interpretada “a americana”, comparativamente com os mitos pueblos —-(exprimem, emi tiltima instancia “a impossibilidade de uma sociedade, que professa a crenca fa autoctonia do homem) (assim, Pausdnias XII.XXIX.4: o vegetal € o modelo do homem), em passar dessa teoria ao reconhecimento do fato que cada um de nds realmente é produto da unido do homem e de uma mulher”. Em outras palavras, o aparelho dilemdtico da metalinguagem mitica seré aplicado, preferencialmente, As grandes questées que a ciéncia positiva nao pode responder, ¢ que(Kant j4 hotivefa classificadd) entre os sistemas de respostas “antinémicas”: em que nos tornamos apés a morte? de onde viemos? por que existe 0 mundo e sua ordem? por que a obri- Gagso moral? etc. Esse cardter dilemético da “pistis” (crenga) mitica fora Pressentido antes, ou paralelamente formulado as _conclusdes_de Lévi- “Strauss (1955), nafiteoria weberiana ldo! “politeismalide valores "| (i)>., do Sistema axiolégico de um individuo ou de uma sociedade, onde os valores no _stio_dedutiveis entre si), ¢ dai decorre um(determinismol ‘paradoxal iindiitor (de logicas Indo-bivaléntes, como as estudadas por $. Lupasco, P Faysse, M, Beigheder) (Idgicas “antagonista” de Lupasco, “contraditorial” de Faysse, “conflitiva” de Derrida). Do mesmo modo os trabalhos dos sucessores de Freud, de Rank e de Adler particularmente, deixavam pres- sentir que nao existe uma cnica libido, mas muitas forcas antagonistas de(estruturagao do psiquismo. G. Durand mostrara) (1959) que o imagi- nario — e as grandes imagens arquetfpicas —, lugar onde o mito haure seu arsenal simbélico, em si mesmo é formado por, no minimo/{trés séries R, Fac. Edue., 11(1 /2):243-273, 1985 246 GILBERT DURAND 7 erimentalmente, & Os métodos de andlise desse discurso “dilemético”, “disseminatorio”, “contraditorial” devem, necesseriamente, levar em conta essa dimensio par; i iticonsi te sob o Angulo da (ou “redundan- cias”, diz L. Strauss), Lévi-Strauss desvendou um método aperfeigoado por seus sucessores, e estendido a diversos dominios de investigagses sobre © imagindrio social e suas préticas simbélicas, (P. Diel, J. Hillman, Y. Durand) (LéviStrauss, D. Zahan, G. Durand), Mitandlise inicialmente psicoldgica que, no esteio da obra de Jung, superando a redugio simbdlica simplifi- cadora de Freud, se estriba no “politeismo” (M. Weber) das pulsdes da psyche. Particularmente J. Hillman evidencia o que a mitanélise traz além da anélise de tipo junguiano. Enquanto, por exemplo, o oflebre psiquiatra de Zurich generaliza e uniformiza o atquétipo da “anima”, a mitandlise discemniré tipos de “anima” segundo as tipologias da mitologia antiga: Venus, Deméter, Juno, Diana, etc, Por esse viés a mitandlise psicoldgica prende-se diretamente & acepeio sociolégica, pois que os personagens mitolégicos sfio passtveis de uma anélise sdcio-histérica (J. P. Vernant, M. Detienne). faneamente inspirando-se nos ima ou outra forma de mita- falise nao diferem entre si seno pelo campo de sua aplicag&o pratica, Ambes subsumem o modelo irreversivel da psicanélise e da” psicologia profunda, um desnivel antropolégico entre © patente e o latente, 0 cons- ciente antropoldgico ¢ o inconsciente. Valem-se, também, do mesmo método de base para lidar com o mito, Num primeiro momento — desde um “mito ideal” constitufdo pela sintese de todas as ligdes miticas reunidas sob um nome proprio (P. Grimal) — © método faz entrar o relato do “mito ideal” (fig. 1) num quadto R, Fac. Edtte, 11(1/2):243-273, 1985 247 hele at srt fae see B Sides lope tage, tnt asset R. Fae, Educ. 11(1/2):243-273, 1985 248 GILBERT DURAND || Y Va_| VW [|B YZ Fig. 2 Temos, a partir daf, uma dupla indicagio: sobre a flutuacao histérica do mito e sobretudo uma indicagtio de medida, cuj i especificada. pe. » ela nao de como itutiva do mito, mas pode constituir Sera preciso, pois, procurar a origem “parasitéria” (“conge- Ties ', diz P. Sorokin), seja nos processos de interpolagéo de uma série que Pertence a outro mito, seja_m meno de “recobrimento” (‘pseudo- morfose” em Op Shands J. Nou Mas se um “feixe” sincrono de mitemas aparece na série ctonol completa de um mito com uma freqiiéncia di das fi ae leremos, entio, um qu: reqtiéncias de emergéncia do “feixe” con- siderado onde, horizontalmente, insctevemos 0 fio ctonol6gico das ligdes e, verticalmente, as freqiiéncias (fig. 3). Mediando-se essas( 8s eperagées (figs. 1, 2, 3)\/obteniaa) a) constitutivos de um Ho desgaste significa a transformacao sno, por fim, o esgotamento de um mito; _ voce ch aoe em ag Suge Ah meat R. Fae, Educ., 11(1/2):243-273, 1985 : CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 249 PE x700_[ 2000 7 ot Wie + ey WL) Wp LMM A_| tL) OLLI) WLLL OLLI LLL LLL fig. 3 , Ssperpondos anilises do mitoe completos dese tipo (mito M, mito P, mito Z...) numa cronologia comum, podemos evidenciar: c) NSS ig. 4). 1780 | 1800 | 1820 1240 | 1860 |1880 {1900 ]is10 [1920 R. Fac, Educ., 11(1/2):243-273, 1985 —_— 250 GILBERT DURAND Pode-se esbogar um sistema de explicacio dessas compensagées levan- tando-se a hip6tese que um mito “atualizado” em ideologias, em instituic $6es, ete, sucita, ipso facto, um contramito (ou, no minimo, um “outro” mito) potencializado, cujas manifestagdes so menos patentes que 0 outro, Tal explicaggo setia inspirada, simultaneamente, pelos trabalhos de bre pelos d Pode-se sintetizar os trés quadros num tinico, e teriamos as curvas M, P, Z superpostas (fig. 5). 1800 | 1s20 Segundo a prética de tal método, conforme o exemplo anterior, é importante que, numa dada época (p.e. 1805-1809) — © a probabilidade atumenta quand oo perfodo considerado é de mai fio — oxi - Obser- yamse, entéo, como n: ssiveis de trans- formaséo, uma induzida pelo Gnitemalpatente, a outra pel GSB iss diferenciagdo permite introduzir um novo pardmetro no con- senso mitémico, Pode-se chegar 4 attibuigio de um emblema substantive Ou epitético patente, para cada mitema, e também de uma intengéo “pré- tica” ou “dramética” (verbal) getalmente mais latente. No mito de Hermes. tomado como exemplo (fig. 1), poderfamos escrever: R. Fac. Edue, 11(1/2):243-273, 1985 CONFERENCIAS SOBRE A EXPLORACAO DO... 251 I bia m Patente Patento | patente A. crianca divina © caduceu, pater. Companheiro de © Nychios nidade-de"Herma- | Herakles, de Priamo frodita * Latente Latente ‘Precisamos sem. pre de um menor Conduzir para ld do que nés” dos limites Ser4 ent&o interessante reproduzir essa dicotomia “diagonal” em todos os quadros/fichas da anélise, 0 que se aptesentaria assim (fig. 6): fig. 6 Através dessa tiltima espetificdg6 ‘poderiamios evidenciar as modali- dades de transformacao (‘“usura” ou #egsurgéncia”) de um mito: quer por inflagdo do “latente”, quer por ‘inflagao do “patente”. Em 1949), 7 GOD essa Seiden ose T aE para significar o emprego " Sa R, Fae. Educ., 11(1/2):243-273, 1985 252 GILBERT DURAND literaria) (ou) artisticay) em sentido estrito ou, em sentido ampliado, de critica do discurso que centra o processo de compreensio no relato de caréter “mitico” inerente & significado de todo e qualquer relato, A mitocritica pretende ser um método de critica que seja a sintese construtiva das diversas criticas (de inicio, campo em que foi aplicada, literdrias e artfsticas), novas ¢ antigas, que até entdo se defrontavam de modo estéril, Podemos resumir as diferentes intengdes “oriticas” numa espécie del “itiedto” do saber que, inicialmente, seria constituido pelas “antigas” criticas que, do positivismo de Taine ao marxismo de Lukacs fazem a explicacéo discorrer sobre “a raga”, o meio e 0 momento”; seriam seguidas pclas(GritiGas | psicologiea|elpsicanalitica) (Ch. Baudoun, A. Allendy, Ch. Mauron, eic.), também pela psicandlise existencial (S. Doubrowsky), que reduzem a explicagao 4 biografia mais ou menos aparente do autor; enfim,

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