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bez Copyright © 1994 by Boris Fausto I edigio 1994 8* edigao 2000 2 edigdo 1995 9" evisdo 2001 Feigao. 1995 10" eaigto. 2002 4 edigdo 1996, 11" edigao 2003 S* edigdo 1997 12*edigio 2004 6 edigao 1998 12*edigao,I* reimpressio 2006 T edigao 1999 - Dados intemationais de Catalogaglo na Publicagao (CIP) (Cémara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Fausto, Bors, Histéria do Brasil / Boris Fausto. ~ 12. ed, 1, reimpr. ~ S30 Paulo: Exlitora da Universidade de Si0 Paulo, 2006, ~ (Didatiea, 1) Bibliografia ISBN 85-314.0240.9 1. Brasil—Histéria_2. Brasil ~ Histéria (Ensino Médio) 1, Titulo, UL Série 94-3180 €DD-981.007 1. Brasil: Histéria: Ensino Médio 981.007 Direitos reservados 3 Edusp — Ealitora da Universidade de Sao Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6° andar — Ed, da Antiga Reitoria — Cidade Universitiria (0508-900 — Sio Paulo — SP Brasil Divisio Comereial: tel. (Qxx11) 3091-8008 / 3091-4150 ‘SAC (Oxx1 1) 3091-2911 ~ Fax (Oxxt 1) 3091-4151 www.usp.bredusp = e-mail: edusp@edu.usp.br Printed in Brazil 2006 Foi feito 0 depésito legal SUMARIO Introdugho eee ete eee Ll 12. 13. 1.4, LS. 1.6. 2A. 2.2. 2.3. 2.4. 25. ‘As Causas da Expansio Maritima ea Chegada dos Portugueses OT O gosto pela aventura O desenvolvimento das técnicas de navegacio. A nova mentalidade . . . eee A atragtio pelo ouro e pelas especiarias . . . . . A ocupagio da costa africana e as feitorias . . . A ocupagio das ilhas do Atlintico AchegadaaoBrasil 00... 000 eevee eee © Brasil Colonial (1500-1822) Os {ndios Lees Os perfodos do Brasil colonial Tentativas iniciais de exploragio Inicio de colonizagao ~ as capitanias hereditérias er 2.6. 27. 2.8. 2.9. 2.10. 241. 2.12. 2.13. 2.14. 2.15. 2.16. 2.17. 2.18, 2.19. 2.20. 221. 2.22. 2.23. 2.24, 2.25. 2.26. 2.27. 3 3.2. 3.3. 3.4. 35. 3.6. 4d 4.2. 43. HISTORIA DO BRASIL. Acolonizago se consolida.... 22... .. 2.20005 O trabalho compulsério A escravidio — indios e negros O mercantilismo 6.6.11 eee eee eee O “exclusivo” colonial... 6... ee sess A grande propriedade agroexportadora € a acumulacao urbana . . EstadoeIgreja ...... Sevens O Estado absolutistae o“bemcomum”.............- As instituigdes da administragao colonial... . As divisées sociais Estado e Sociedade ......---- As primeiras atividades econémicas As invasdes holandesas A colonizagao do Norte A colonizagdo do Sudeste e do Centro-Sul .. 5.2.0... 05 Ouroe diamantes 6... ee ee eee A crise do Antigo Regime A crise do sistema colonial Os movimentos de rebeldia . . . A vinda da familia real parao Brasil ©... 2.04... Alndependéncia ....... Brasil no fim do periodo colonial .........- O Primeiro Reinado (1822-1831) 6.6... eee eee A consolidagio da Independéncia. ...... 2.0.0... Uma transigao sem abalos AConstituinte ........ A Constituigio de 1824 A Confederagiio do Equador A abdicagaio de Dom Pedro I A Regéncia (1831-1840) As reformas institucionais As revoltas provinciais A politica no perfodo regencial 2.22 ...0....00- a7 48 49 54 55 58 39 62 63 65 74 76 84 90 91 98 106 108 3 120 129 135 Sl. 5.2. 5.3. 5.4. 5.5. 5.6. 5.7. 5.8. 5.9. 6A. 6.2. 63. 6.4. 6.5. 6.6. 6.7. 6.8. 6.9. 6.10. GAL. 6.12. 6.13. TA. 72. 73. 74. 15. 76. 77. 78. SUMARIO. ’ O Segundo Reinado (1840-1889) .. . . 173 O “Regresso” 175 A luta contra o Império centralizado . . seen eee 176 O acordo das elites ¢ o “parlamentarismo” 179 Os partidos: semelhangas ¢ diferencas A preservagdo da unidade territorial A estrutura socioeconémica e a escravidio A Guerra do Paraguai . . . A crise do Segundo Reinado Lee 217 Balango econémico e populacional .....-.. +--+ Lo. 236 A Primeira RepSblica (1889-1930)... « 243 A primeira Constituigao republicana. . « . 249 Encilhamento = 252 Deodoro na presidéncia . . « » 252 Floriano Peixoto . 254 A Revolugo Federalista . 255 Prudente de Morais 256 Campos Sales... .. 258 Caracterfsticas politicas da Primeira Republica... . . « ses 261 O Estado e a burguesia do café. 2... 2 eee 273 Principais mudangas socioecondmicas - 1890 a 1930. . . 275 Os movimentos sociais 295 O processo politico nos anos 20 305 A Revolucio de 1930 319 O Estado Getulista (1930-1945)... 0-2-0 es 329 A colaboragio entre o Estado e a Igreja - 332 A centralizagiio A politica do café... ... A politica trabalhista Aeducagio . . © processo politico (1930-1934)... . « A gestagiio do Estado Novo Estado Novo Wo 79. 8.1. 8.2. 8.3. 8.4. 85, 8.6. 8.7. 8.8. 8.9. 8.10. o1. 9.2. 9.3, 9.4. 9.5, 9.6. 97. 9.8. 99. 10, 10.1 102. 10.3, 10.4. 10,5. ue Tb 12. MISTORIA DO BRASIL As mudangas ocorridas no Brasil entre 1920¢ 1940 ....... 389 O Periodo Democriatico (1945-1964)... 26... 000. w . 395 A eleigo de Dutra . A Constituigho dg 1946 © governo Dutra . . O novo governo Vargas... 22. ee eee 406 A eleigdo de Juscelino Kubitschek... 1... oe ee ee 419 O governo JK bocce eee ee 422 A sucessio presidencial ©... 2.2.2 eee 436 O governo Janio Quadros... . bce 437 A sucessio de Jinio . . re 442 Ogoverno Joio Goulart. 2... ee 443 O Regime Militar (1964-1985)... 0... eee ee 463 O Ato Institucional n? | earepressio,... 2... ....005 465 O governo Castelo Branco... eee 468 O governo Costae Silva... 0... ee eee 475 Ajunta militar eee 481 Ogoverno Médici 2. eee 482 OgovernoGeisel... 2.0... eee 488 O governo Figueiredo oe eee 500 Caracterizagio Geral do Regime Militar... 0.0.0.2... $12 Morte de Tancredo Neves 0... eee eee ee Si Completa-se a Transicfio: 0 Governo Sarney (1985-1989)... . 5/7 Politica econdmica. 0 eee . 520 OPlano Cruzado. 2 ee bee $22 As eleigdes de 1986 2... 6... eee eee 524 A Assembléia Nacional Constituinte ............... 524 Atransigfoavalinda so. eee 526 Principais Mudangas Ocorridas no Brasil entre 1950¢ 1980... 529 Populagao 531 Economia 535 sumdnio B 11.3, Indicadores Socjais ©... ee ee 543 12. A Nova Ordem Mundial € o Brasil S51 Cronologia Histérica 557 Glossério Biogréfico ........ 597 Referéncias Bibliograficas 641 {ndice Onomastico 649 Fonte Iconogrifica osu INTRODUCAO Esta Histéria do Brasil se dirige aos estudantes do 22 grau e das uni- versidades e tem a esperanca de atingir também o piblico letrado em geral. A ambigao de abrangéncia parte do princfpio de que, sem ignorar a complexidade do proceso histérico, a Historia é uma disciplina acessfvel a pessoas com diferentes graus de conhecimento. Mais do que isso, é uma disciplina vital para a formagao da cidadania, Nao chega a ser cidado quem nfo consegue se orientar no mundo em que vive, a partir do conhecimento da vivéncia das geragées passadas, Qualquer estudo histérico, mesmo uma monografia sobre um assunto bastante delimitado, pressupde um recorte do pasado, feito pelo historiador, a partir de suas concepgdes e da interpretagao de dados que conseguiu reunir. A propria selegao de dados tem muito a ver com as concepcdes do pesquisador. Esse pressuposto revela-se por inteiro quando se trata de dar conta de uma seqiléncia hist6rica de quase quinhentos anos, em algumas centenas de p4- ginas, Por isso mesmo, o que o leitor tem em mio nfo é a Histéria do Brasil - tarefa pretensiosa e alids imposs{vel — mas uma Hist6ria do Brasil, narrada e interpretada sinteticamente, na éptica de quem a escreveu. IUSTORIA DO BRASIL recorte do passado, seja ele qual for, obedece a um critério de rele- vancia e implica 0 abandono ou o tratamento superficial de muitos processos e episédios. Como todo histotiador, fago também um recorte, deixando de lado temas que por si s6s mereceriam monografias. Entre tentar “incluir tudo”, com 0 risco da incongruéncia, e limitar-me a estabelecer algumas conexdes de sentido bisicas, preferi a segunda opgio. Com esse objetivo, procurei integrar os aspectos econémicos, politico-sociais e, em certa medida, ideo- logicos da formagio social brasileira, deixando de lado as manifestagdes da cultura, tomada a expressiio em sentido estrito, Essa exclusiio nao se baseou em um critério de relevéncia, mas de outra natureza que é necessario esclare- cer. Parti da constatagiio de que o inter-relacionamento entre a estrutura socio- econémica ¢ as manifestagdes da cultura € por si sé um problema especifico, que demanda seguir outros e dificeis caminhos. Como nio poderia percorré- los, preferi deixar de lado os fatos da cultura, em vez de simplesmente enu- merd-los, em um esforco de mera catalogagio. Por exemplo: ao falar das Minas Gerais dos titimos decénios do século XVII, deixei de lado 0 arca- dismo literério, a arquitetura e a misica barroca; ao lidar com os anos 20 deste século, deliberadamente, nao cogitei do movimento modernista. Cabe ainda lembrar uma razio adicional para esse procedimento: um outro volume da colegio versard sobre a literatura. O leitor poderd perceber, no correr da leitura, os pressupostos deste trabalho, mas hd alguns que convém explicitar. Rejeitei duas tend€ncias opos- tas, na exposigio do processo hist6rico brasileiro. De um lado, aquela que vé a Histéria do Brasil como uma evolugio, caracterizada pelo progresso per- manente ~ perspectiva simplista que os anos mais recentes se encarregaram de desmentir. De outro lado, aquela que acentua na Histéria do Brasil os tragos de imobilismo, como, por exemplo, 0 clientelismo, a corrupgio, a imposigio do Estado sobre a sociedade, tanto na Colénia como nos dias de hoje. A tiltima tendéncia esté geralmente associada ao pensamento conservador. Por meio dela, é facil introduzir a idéia da inutilidade dos esforgos de mudanga, pois 0 Brasil é e ser sempre o mesmo; conviria assim adaptar- pis7s bypybb 3 oP on, «= Vila Nova da Rainha A. pochrage zt cass Alas SB cdmarca Do Vila Ritg do Ouro Preto, }URO PRETO SERRADDITACOLAME & * Congonhas doCampo g ~ zs es a eS Fonte: CLA, vol. IL 10s HISTORIA DO BRASIL. Brasil Colénia, por volta de 1800 RIO GRANDE RO NORTE Natal CATARINA (nto onanve DosuL ‘\ 4 Porto Alegre ‘ .~ Limite com Amériea espanhola 1000 an — Fonte: CHLA, vol IL © BRASIL COLONIAL tos 320 mil habitantes, os negros representavam 52,2%; os mulatos, 25,7%; e os brancos, 22,1%. Ao longo dos anos, houve intensa mestigagem de ragas, cresceu a pro- porgio de mulheres, que em 1776 era de cerca de 38% do total, e ocorreu um fenémeno cuja interpretagdo é um ponto de controvérsia entre os historiadores: © grande ntimero de alforrias, ou seja, de libertagdo de escravos. Para se ter uma idéia da sua extensio, enquanto nos anos 1735-1749 os libertos repre- sentavam menos de 3,4% da populagio de descendéncia africana, em torno de 1786 passaram a ser 41,4% dessa populagdo € 34% do numero total de habitantes da capitania. A hipstese mais provavel para explicar a magnitude dessas proporgdes, que superam por exemplo as da Bahia, é de que a pro- gressiva decadéncia da mineragio tornou desnecesséria ou impossivel para muitos proprietarios a posse de escravos. ‘A sociedade das minas foi uma sociedade rica? Aparentemente, como associamos ouro & riqueza, a resposta pareceria fécil. Mas nio € bem assim, Para comegar, devemos distinguir entre 0 periodo inicial de corrida para o ouro ea fase que se seguiu. No perfodo inicial, isto é, na tiltima década do século XVI ¢ no {inicio do século XVUI, a busca de metais preciosos sem o suporte de outras atividades gerou falta de alimentos ¢ uma inflago que atingiu toda a Colénia, A fome chegou a limites extremos e muitos acampamentos foram abandonados. Com o correr do tempo, 0 cultivo de rogas e a diversificagio das atividades econdmicas mudaram esse quadro de privagées. A sociedade mineira acabou por acumular riquezas, cujos ves- tigios estdo nas construgdes € nas obras de arte das hoje cidades histéricas. Lembremos porém que essas riquezas ficaram nas mios de uns poucos um grupo dedicado nao s6 extracao incerta do ouro mas aos varios negdcios ¢ oportunidades que se formaram em torno dela, inclusive o da contratag‘io de servigos com a administragao publica, Abaixo desse grupo, a ampla camada de populaciio livre foi constituida de gente pobre ou de pequenos funcionérios, empreendedores ou comerciantes, com limitadas possibilidades econdmicas Certamente, a sociedade mineira foi mais aberta, mais complexa do que a do agticar. Mas nem por isso deixou de ser, em seu conjunto, uma sociedade pobre. Se nio cabe falar em um ciclo do agiicar, podemos falar de um ciclo do ouro, no sentido de que houve fases marcadas de ascenso e de decadéncia. O 106 HISTORIA DO BRASIL ouro nao deixou de existir em Minas, porém sua extragio se tomou econo- micamente pouco atraente. O perfodo de apogeu situou-se entre 1733 € 1748, comegando a partir dai 0 declfnio, No inicio do século XIX, a produgio aurifera j4 no tinha maior peso no conjunto da ecoriomia brasileira. O re- trocesso da regitio das minas foi nitido, bastando lembrar que cidades de uma vida to intensa se transformaram em cidades histéricas com o sentido também de estagnadas. Ouro Preto, por exemplo, tinha 20 mil habitantes em 1740 ¢ apenas 7 mil em 1804 Mas o retrocesso no atingiu toda a Capitania de Minas Gerais. Nela, nem tudo era mineragdo. Mesmo nos tempos de gléria do ouro, a fazenda mineira muitas vezes combinava a pecudria, o engenho de agticar, a produgiio de farinha com a lavra de ouro. Gragas a pecudria, aos cereais ¢ mais tarde 4 manufatura, Minas nao regrediu como um todo. Pelo contrério, no correr do século XIX iria expandir essas atividades e manter um constante fluxo de importagio de escravos. A provincia mineira representaria uma curiosa com- binagao de regime escravista com uma economia que nio era de plantation, nem estava orientada principalmente para o mercado externo. 2.22, A CRISE DO ANTIGO REGIME As iiltimas décadas do século XVIII se caracterizaram por uma série de transformagdes no mundo ocidental, tanto no plano das idéias como no plano dos fatos. O Antigo Regime, ou seja, 0 conjunto de monarquias absolutas imperantes na Europa desde o infcio do século XVI, a que estavam ligadas determinadas concepgées e priticas, entrou em crise. 2.22.1. O PENSAMENTO ILUSTRADO E O LIBERALISMO As novas idéias vinham sendo gestadas desde o infcio do século ou mesmo antes e ficaram conhecidas pela expresso “pensamento ilustrado”. Os pensadores ilustrados, homens como Montesquieu, Voltaire, Diderot, Rousseau, apesar de divergirem muito entre si, tinham como ponto comum o principio da razio. Segundo eles, pela razio atingem-se os conhecimentos (0 BRASIL COLOMIAL 107 titeis a0 homem e através dela podemos chegar As leis naturais que regem a sociedade, A missio dos governantes consiste em procurar a realizagio do bem-estar dos povos, pelo respeito as leis naturais ¢ aos direitos naturais de que os homens so portadores. O nfio-cumprimento desses deveres bisicos dé aos governados 0 direito & insurreicao. As concepgées ilustradas deram origem no campo sociopolitico ao pen- samento liberal, em seus diferentes matizes. Um fundo comum As vitias correntes do liberalismo se encontra na nogio de que a histéria humana tende a0 progresso, ao aperfeigoamento do individuo € da sociedade, a partir de critérios propostos pela raziio. A felicidade ~ uma idéia nova no século XVIH — constitui 0 objetivo supremo de cada individuo, e a maior felicidade do maior ntimero de pessoas é 0 verdadeiro designio da sociedade, Esse ideal deve ser alcangado através da liberdade individual, criando-se condigées para © amplo desenvolvimento das aptiddes do individuo e para sua participagio na vida politica. No plano econémico, em sua versio extremada, o liberalismo sustenta 0 ponto de vista de que 0 Estado nfo deve interferir na iniciativa individual, limitando-se a garantir a seguranga e a educagao dos cidadios. A concorréncia € as aptidées pessoais se encarregariam de harmonizar, como uma mio invi- sivel, a vida em sociedade. No plano politico, a doutrina liberal defende o direito de representagio dos individuos, sustentando que neles, e nio no poder dos reis, se encontra a soberania. Esta € entendida como o diteito de organizar a nagio a partir de uma lei basica - a Constituigo. O alcance da representagio tracou uma linha diviséria entre liberalismo ¢ democracia ao longo do século XIX. As correntes democréticas defendiam o sufrégio universal, ou seja, 0 direito de repre- independentemente de sentagdo conferido a todos os cidadios de um pats, condigdo social, sexo, cor ou religiio, ou mesmo a democracia direta, isto é, © direito de participar da vida politica sem conferit mandato a alguém. Os liberais trataram em regra de restringir a representagao, segundo critérios sobretudo econdmicos: para eles, s6 os proprietarios, com um certo nivel de renda, poderiam votar ou ser votados, pois ts demais pessoas faltava inde- pendéncia para 0 exercfcio desses direitos. Na Europa ocidental, o liberalismo deu base ideolégica aos movimentos pela queda do Antigo Regime, caracterizado por privilégios corporativos 108 INSTORIA DO BRASIL pela monarquia absoluta. Nas colénias americanas, justificou as tentativas de reforma e o “direito dos povos a insurreiciio”. & importante observar que na obra que se tornou a biblia do liberalismo econémico —A Riqueza das Nagées, escrita por Adam Smith em 1776 — ha uma critica ao sistema colonial, acusado de distorcer os fatores de produgio e o desenvolvimento do comércio como promotor da riqueza. A escravidio parece a Adam Smith uma instituigio anacrénica, incapaz de competir com a méo-de-obra livre. 2.23. A CRISE DO SISTEMA COLONIAL Alguns fatos significativos balisaram as transformagées do mundo oci- dental, a partir de meados do século XVIII. Em 1776, as coldnias inglesas da ‘América do Norte proclamaram sua independéncia. A partir de 1789, a Re- volugdio Francesa pés fim ao Antigo Regime na Franca, o que repercutiu em toda a Europa, inclusive pela forga das armas. ‘Ao mesmo tempo, ocorria na Inglaterra uma revolugao silenciosa, sem data precisa, tio ou mais importante do que as mencionadas, que ficou co- nhecida como Revolugiio Industrial. A utilizagdo de novas fontes de energia, a invengdo de méquinas, principalmente para a induistria téxtil, 0 desen- volvimento agricola, 0 controle do comércio internacional so fatores que iriam transformar a Inglaterra na maior poténcia mundial da época. Na busca pela ampliagdo dos mercados, os ingleses impSem ao mundo o livre comércio 0 abandono dos principios mercantilistas, ao mesmo tempo que tratam de proteger seu préprio mercado ¢ o de suas colénias com tarifas protecionistas. Em suas relagdes com a América espanhola e portuguesa, abrem brechas cada vez maiores no sistema colonial, por meio de acordos comerciais, contrabando e alianga com os comerciantes locais. O mundo colonial é afetado também por outro fator importante: a tendén- cia a limitar ou a extinguir a escravidio, manifestada pelas maiores poténcias da 6poca, ou seja, a Inglaterra ¢ a Franca. B comum ligar-se essa tendéncia ao interesse britfnico em ampliar mercados consumidores, a partir da vantagem obtida sobre os concorrentes com a Revolugio Industrial. Entretanto, essa afirmagio contém apenas uma parte da verdade. A ofensiva antiescravista decorre também dos novos movimentos nascidos nos pafses mais avangados (© BRASIL COLOMAL 109 da Europa, sob a influéncia do pensamento ilustrado ¢ mesmo religioso, como € 0 caso da Inglaterra. Acrescente-se a isso, no caso francés, a insurreigaio de negros libertos e escravos nas Antilhas. Em fevereiro de 1794, a Franga revoluciondria decretou o fim da escravidio em suas coldnias; a Inglaterra faria 0 mesmo em 1807. Lembremos, porém, quanto a Franga, que Napoleiio revogou a medida em 1802. Essas iniciativas contrastaram com as tomadas pelos colonos americanos apés a independéncia dos Estados Unidos em 1776. Apesar do cardter liberal € anticolonialista da revolucio, os interesses dos grandes proprietarios rurais predominou: a escravidio s6 foi extinta em alguns Estados do norte, onde os cativos tinham pouca significado econémica, Podemos sintetizar todo 0 processo acima descrito como uma etapa de formagio do capitalismo industrial que se relaciona com a ascensao da burgue- sia ao poder. E preciso, porém, tomar cuidado com uma associagio simplista entre esses dois elementos, O fim da aristocracia e a consolidagdo da burguesia como classe dirigente foi um proceso complexo, varidvel de pais a pais, tecido por aliangas de classe e pelo papel do Estado, 2.23.1. A ADMINISTRACAO POMBALINA ‘Vejamos agora como esse quadro afetou as relagdes entre a Coroa por- tuguesa e sua maior colénia. Em meados do século XVII, Portugal era um pais atrasado, em relagio as grandes poténcias européias. Dependia da Ingla- terra, de quem em troca recebia proteco diante da Franca e da Espanha. Ainda ema colonial e limitar a assim, a monarquia lusa procurava manter 0 crescente presenca inglesa no Brasil. Um marco importante nesse periodo 0 da ascenstio de Dom José 1 a0 trono, em 1750. Nao propriamente pelo rei, mas por seu ministro Sebastiio José de Carvalho e Melo, futuro Marqués de Pombal. Até sua indicagio para 0 ministério, com mais de cingiienta anos, Pombal vera uma carreira relativamente obscura como representante de Portugal na Inglaterra e diplomata na Corte austriaca, Sua obra, realizada ao longo de muitos anos (1750-1777), representou um grande esforco no sentido de tornar mais eficaz a administragiio portuguesa e introduzir modificagdes no relacio~ 0 HISTORIA DO BRASIL. namento Metrépole-Colénia. A reforma constituiu uma peculiar mistura do velho e do novo, explicavel pelas caracteristicas de Portugal. Ela combinava © absolutismo ilustrado com a tentativa de uma aplicagdo conseqiiente das doutrinas mercantilistas. Essa formula geral se concretizou em uma série de medidas. Vamos salientar as que disseram respeito mais de perto ao Brasil. De acordo com as concepgdes do mercantilismo, Pombal criou duas companhias privilegiadas de comércio — a Companhia Geral do Comércio do Grao-Paré e Maranhio (1755) e a Companhia Geral de Pernambuco ¢ Paraiba (1759). A primeira tinha por objetivo desenvolver a regiao Norte, oferecendo precos atraentes para mercadorias af produzidas e consumidas na Europa, como 0 cacau, o cravo, a canela, o algodao € 0 arroz, transportadas com exclusividade nos navios da companhia, Introduziu também escravos negros que, dada a pobreza regional, foram na sua maior parte reexportados para as minas de Mato Grosso. A segunda companhia buscou reativar 0 Nordeste dentro da mesma linha de atuagio. A politica pombalina prejudicou setores comerciais do Brasil margi- nalizados pelas companhias privilegiadas, mas niio teve por objetivo perseguir a elite colonial. Pelo contrério, colocou membros dessa elite nos érgios admi- nistrativos e fiscais do governo, na magistratura € nas instituigdes militares. © programa econémico de Pombal foi em grande medida frustrado porque, em meados do século XVIII, a Col6nia entrou em um periodo de depressio econémica que se prolongou até o fim da década de 1770. As principais causas da depressio foram a crise do agticar e, a partir de 1760, a queda da produgio de ouro. Ao mesmo tempo que as rendas da Metrdpole caiam, cresciam as despesas extraordindrias destinadas a reconstruir Lisboa, destruida por um terremoto em 1755, ¢ a sustentar as guerras contra a Espanha, pelo controle da extensa regio que ia do sul de Sao Paulo ao Rio da Prata. Pombal tentou coibir 0 contrabando de ouro ¢ diamantes ¢ tratou de melhorar a arrecadagio de tributos. Em Minas Gerais, o imposto de capitagdo foi substituido pelo antigo quinto do ouro, com a exigéncia de que deveria render anualmente pelo menos cem arrobas do metal. Depois de uma série de faléncias, a Coroa se incumbiu de explorar diretamente as minas de diamante (1771). Ao mesmo tempo, procurou tornar a Metrépole menos dependente das importagdes de produtos industrializados, incentivando a instalagiio de manufaturas em Portugal e mesmo no Brasil.

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