You are on page 1of 8
AS ESTRUTURAS AGRARIAS: A FORCA DA TRADICAO Por Maria Margarida Sobral Neto Instituto de Historia Econémica e Social Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra A propriedade ¢ usos comunitarios sio componentes de longa duragio das estruturas agrarias portuguesas que sobrevivem em algumas regides do pais’, Estas formas colectivas de utilizagao da terra desem- penharam um papel fundamental no contexto sdcio-econdmico do Antigo Regime, Elas foram suporte da agricultura e da pecudria, base de sus- tentagdo da vida material de muitas comunidades rurais e importante fonte de receita para os municfpios. Os baldios, «terras comuns pertencentes aos moradores, ou vizinhos, dum determinado lugar, aldeia ou regiZio»? eram as terras por exceléncia de «logradouro comumm, Para além das dreas de exploracdo exclusivamente particular ¢ das comunitérias, coexistiam formas mistas de aproveitamento da terra. Entre elas destaca-se 0 compascuo, direito consuetudinario que © Jorge Dias, Rio de Onor. Connuitarisn agro-pastorial,2."¢4., Lisboa, 1981. 2 Armando de Castro, «Baldios», Diciondrio de Histéria de Portugal, Vol. 1, pp. 277- 129 permitia aos criadores de gado a entrada com os seus rebanhos em terrenos particulares ndio vedados depois de retiradas as colheitas. Em sentido inverso, a plantacao de arvores, nomeadamente de oliveiras, por individuos ou instituigdes, caso das confrarias ou miscricérdias, em terrenos comuns foi uma forma de obtengao de rencimentos por parte de particulares em espacos de fruigdo colectiva’. A interpenetragao entre o particular eo comum era uma das componentes docomplexo regime de propriedade existente no Antigo Regime, periodo em que predominavam as formas imperfeitas de propriedade. A longa vida ¢ lenta desagregagao das formas comunitérias de fruigdio da terra é um indicador de «atraso» da agricultura portuguesa se tivermos como modelo as revolucdes ocorridas na agricultura europeia na Idade Moderna. De facto, a supressao de «servidées colectivas», a individualizagdo das exploracées agricolas com a consequente vedacio de terras, a repartigdo da propriedade comunitiria, fenémenos acompanhados de transformagées ao nivel das téenicas de fertilizagdio dos campos ¢ da criagdo de gado, sao elementos caracterizadores da alteragdo estrutural ocorrida nas agriculturas mais desenvolvidas no século XVII*. Em Portugal, nos finais deste século, a criticaa propriedade ¢ usos comunitarios assumiu lugar de destaque, integrando-se no movimento doutrinério em favor do individualismo agrario, muito em voga ao tempo’. O tema foi objecto de andlise em varias Memérias Econémicas apresentadas 4 Academia das Ciéncias de Lisboa. A fraca rentabilidade da terra nao arroteada em termos de produgao de vegetaciio esponténea, nomeadamente a falta de cualidade da utilizada para pastagem, aspecto largamente debatido pela literatura agrondémi era um dos motivos que levava os economistas a defenderem a indivi- dualizagdo dos logradouros comuns. Outro era a necessidade de aumentar a dreaagricultével numa conjuntura em que «bons precos» incentivavam 0s arroteamentos ¢ a procura de terra se intensificava. Os usos colectivos exercidos em terras particulares, «as servid6es colectivas», foram particularmente odiados num tempo em que se afir- mava a concepgao burguesa de propriedade. Nos estudos elaborados, enire nds, neste perfodo, que atacaram com veeméncia os direitos colectivos de pastagem exercidos sobre terrenos particulares foi oclabo- * Femando de Sousa, A Meméria dos abusos praticados na Comarca de Moncorvo de José Antonio de Sé (1790), Porto, 1974, pp. 5}-5 * Mare Bloch, La Historia rural francesa, Editorial Critica, Barcelona, 1978, * Sobie o assunto ver: Jean-Philippe Lévy, Histoire dela propriété, PUP, Paris, 1972, pp. 67-69. 130 rado por Domingos Nunes de Oliveira®, Este autor, apostedo na supressio da «servidiio» do compascuo, desenvolveu um minuciosos discurso em que apresentou os inconvenientes para a agricultura (considerada nos trés ramos principais: sementeira de frutos, cultivo de arvores e criagao de gados) das limitagdes ao exercicio de propriedade decortentes da impo sibilidade de vedar os campos ¢ de 08 scus proprictérios serem obrigados a deixd-los abertos A pastagem dos gados alheios. A luta pela individualizagio da propriedade comum néio passou, porém, em muitos casos, dos escritos dos economistas. Na pratica depa~ ravam-se muitos obstaculos 4 concretizagao das ideias de individualismo. agrario. Um dosentraves era de ordem juridica. A lei de 23 de Julho de 1766 ao retirar As CAmaras as atribuigdes em matéria de decisdo sobre alie~ nagao de terras incultas passando-as para o Desembargo do Paco desin- centivara 0 arroteamento de terras por ter burocratizado o processo de aforamento e acentuado a confusio entre bens do concelho e maninhos’, A confusao, intencional ou nao, entre terras incultas dos povos, dos concelhos ¢ dos Senhorios foi uma constante ao longo do tempo. Esta confusao foi alimentada pela multiplicidade de interesses econdmicos sociais que se prendiam com o aproveitamento destas terras. Einegavel que a vida material das comunidades camponesas que se estruturava com base na dualidade agricultura-pecudria, ambas assumindo formas pré-capitalistas, vivia na estreita dependéncia do logradouro comum que thes fornecia a trilogia indispensavel & sua sobrevivéncia: Ienhas, adubos vegetais, pastagens. Neste tipo de organizagao econémica s do espaco cultivado, Na auséncia de fertilizantes quimicos sao as areas incultas as fornecedoras da vegetacdo que € utilizada como adubo vegetal, permitindo ainda a criagdo de gado, fonte de adubo animal. Para além disso os tetrenos colectivos forneciam um suplemento de subsisténcia fundamentalmente para os mais débeis, isto é, a madeira, fonte de energia e matéria prima para a construgao de habitagées e instrumentos agricolas, ¢ as pastagens. para as cabecas de gado donde provinha a came e 0 leite necessdrios & alimentagio quotidiana e a [4 para fabrico do vestudrio, Neste quadro, a supressio da propriedade comunitiria significou, em regra, a modemizagio das estruturas agrarias mas também o confinamento dos menos favorecidos (08 recursos do espaco inculto so complementar ® Domingos Nunes de Oliveira, Disewso Jurédico Economico — Politico em que se mostra a origem dos pastos que neste Reino chamdéo commnus.... Lisboa, 1788. 7” José de Abreu Bacelar Chichorro, A meméria econémico-politica da Provincia da Estremedura, edi¢io organizada ¢ prefaciada por Moses Bensubat Amzalak, Lisboa 1943, p. 6. 131 economicamente 2 forga de trabalho como tinica fonte de rendimento. A impossibilidade de retirarum complemento paraa subsisténcia das terras comuns foi um dos factores que levou, no passado, os camponeses a aban- donarem 0 seu local de habitagao lancando-os nos caminhos das migracdes internas. Mas a propriedade e usos comunitérios constitufam, também, 0 suporte de actividades de cariz capitalista, como acontecia no Alentejo*. De facto 08 terrenos de logradouro comum foram utilizados pelos reba nhos pertencentes a grandes criadores de gado, predutores de carne ¢ de 1a para a indtistria nacional ¢ para exportagae. De salientar ainda que fornecendo o terreno inculto um complemento de subsisténcia permitiu a sobrevivéncia de agrezados familiares que viviam da forga do seu trabalho com saldrios menos elevados, diminuindo por esie modo os custos de exploragdo da terra, facto que beneficiava os detentores de exploracées agricolas que recorriam ao trabalho assalariado. A propriedade comunitéria foi sofrendo a erostio do tempo num processo que se acelerou nos finais do século XVIILe se prolongou pelos séculos XIX e XX, assumindo ritmos diversos nos diferentes espacos. Apesar dos entraves, a individualizacdo foi-se processando, acompanhada do desenvolvimento das forgas produtivas: 0 aumento da populagao, a introdugdo de novas culturas, a alteragdo das formas de exploragiio da terra ¢ de criagio de gado. As usurpagGes abusivas de terras incultas praticadas por poderosos locais foi outra das vias através da qual se foram transformando os espagos de aproveitamento colectivo em terrenos vedados de utilizagao particular. O processo de apropriaco da terra comunitiria, quando nao reves tiu a forma de divisio equitativa ¢ consentida por todos aqueles que dela usufraiam, deparou com resisténcias e gerou violentos conflitos sociais, Nestes conflitos intervieram grupos sociais ¢ entidades diversas conforme 08 interesses e a correlagiio de foreas em presenga. Conilito plurissecular foi o que travaram agricultores e criadores de gado, Este fendmeno verificou-se em todo o pais, assumindo, no entanto, particular expressiio na zona de grande propriedade, a zona Sul do pais, pelos motivos jé referidos. O movimento de arroteamento de terras ocorrido no século XVIIL, com a consequente privatizacdo dos campos através da sua vedagio, colocou frente a frente ¢ em conflito os tradicionais utilizadores de espagos incultos ¢ os novos arroteadores dando origem a derrubes de vedacdes. » Albert Silbert, Le Portugal Méditerranéen d la fin del’ Ancien Régime, 2.ed., Lisboa, (978. Vol. Il, cap. VEe Vol. IIL, pp. 119-1131 132 0 dominio sobre as terras incultas gerou tensdes entre Senhorios e foreiros mas também colocou estas duas forgas do mesmo lado, Nas lutas entre moradores de um lugar e alguns poderosos locais, usurpadores de terras incultas, © povo encontrou o apoio de Senhorios. Em 1682, a Universidade de Coimbra mandou demolir no Alvorge vedagées feitas por particulares, nomeadamente por membros das Ordenangas, ¢ devolveu as terras aos seus foreiros. Esta alianca nfo significa, porém, uma convergéncia absoluta de interesses. Os Senhorios lutavam pela preservacdo de terras potenciaimente cultivaveis ¢, como tal, futuras fontes de rendas. Por sua vez, os foreiros lutavam pela manutengao de terras isentas, em regra, da tributagado senhorial’. ‘A extensificactio da drea cultivada provocou também longas demandas entre Senhorios ¢ Cémaras na regio de Coimbra’. Em confronto esti- veram diversas concepeées juridicas de domsnio sobre terra inculta bem como interesses econémicos nem sempre coincidentes. Enquanto as Cimaras lutavam pela salvaguarda de uma fonte de receita proveniente de «coimas» ou de rendas resultantes da alienagiio de terras, os Senhorios defendiam as suas tradicionais fontes de renda. O Cédigo napolednico veio consagrar juridicameate a concepgio de propriedade livre ¢ absoluta. Esta concepeao colidia com as formas colectivas de propriedade como com outras formas limitadas de posse, caso dos vinculos. Os liberais portugueses defenderam 0 «direito sagrado da propriedade». Nao conseguiram, porém, pér em pritica todos os princfpios que adoptavam teoricamente, tibertando a terra dos entraves que impediam a sua utilizago de forma exclusiva ¢ absoluta. Um dos factores que explicam o desajustamento entre a teoria ¢ a pratica € 0 reconhecimento da impossibilidade, ou da inconveniéncia, de enfrentar poderosas forgas sociais. Se a extingiio dos vinculos iri deparar com a oposicio da aristocracia as medidas tendentes & privatizagio de baldios avolumariam 0 descontentamento popular e acentuariam o clima de ins- tabilidade social, Foi na segunda metade do século XIX que o Iegislador ousou remover os obstaculos de natureza juridica ao desenvolvimento da agricultura, decorrentes do regime de propriedade imperfeita. Em 1863 foi extinto 0 regime de morgadio. Quatro anos depois o compascuo. Em ° Este problema é objecto de anilise detathada em traballio a publicar. 1 Sobre o assunto ver: Maria Margarida Sobral Neto, «Lima Provisdo sobre foros ¢ baldios: problemas referentes a terns de «logradouro comum» na regio de Coimbra, no século XVIlb>, separala da Revista de Hisiéria Econdmice e Social. Lisboa, 1984, 28 de Agosto de 1869 publicou-se um diploma que determinava a desa- mortizacio das terras dispensdveis do logradouro comum. © primeiro passo para a execucdo desta Hei era a inventariagdo de todas as terras baldias incluindo as usurpadas havia menos de 30 anos, Para a executar o Governador Civil de Coimbra, a partir de 1870, dirigiu circulares aos Senhorios ¢ as Juntas de paréquia ordenando a execugao do referido inventario, Em 1890 apenas conseguira obter os inventirios de uma Camara municipal ¢ de 10 Juntas de paréquia. A recusa, ainda que dissimulada a pretexto de dificuldades de diversa indole, foi uma forma. de resisténcia passiva & ingeréncia do poder central em dominios que aqueles orgéos do poder local consideravam das suas atribuicde: Esta iniciativa legislativa provocou em Mira, numa primeira fase, um aceso debate entre diversos membros da comunidade, motivado por anteriores usurpagoes praticadas por alguns proprietarios. A tentativa de intervengio mais directa dos agentes do poder central no sentido de realizarem o inventério provocou uma alianga enire as foreas politicas rivais (progressistas ¢ regeneradores) ¢ os grupos sociais com inieresses divergentes (proprietérios e nao proprictérios) numa manifestaga solidariedade vertical que impediu a realizacao do referido inquérito. Em 1889, a Camara de Mira, em representagio dirigida ao Monarca, dizia: «Escusa pessoa alguma d’aqui ou de fora tentar tratar em Mira de qualquer assumpto, respeitante a venda dos baldios ¢ matas, porque o povo niio Ih’o tolera corre-os € enxota-0s € so consente que a camara os admnistre ou afore»'', Era uma manifestagiio clara ce afirmagiio do poder local em oposigéo ao poder central. Manifestagiio diferente se verificou no nosso século quando na década de 40 a Junta de Colonizagao Interna retirou aos povos ierras de pastagem comunitaria para as submeter & florestacaio. O tempo nao se coadunava com oposicées frontais. O povo nao deixou, porém, de reagir tomando algumas atitudes de protesto. A literatura registou-as. A obra de Aquilino Ribeiro «Quando os Lovos Uivam» perpetuou a revolta contra a usurpagao de terras. ‘O regime juridico dos baldios bem como a forma do seu aproveitamento um problema em aberto na sociedade portuguesa. A forga da tradigi0 alicergada num costume imemorial, gravado na meméria dos povos, continua a mobilizar a vontade das comunidades rurais em defesa da administrago do que consideram patriménio comum. Maria Margarida Sobral Neto, «A populagdo de Mirae a desamortizaciio dos Baldigs na segunda metade do sée. XIX», separata da Revista Portuguesa de Histéria. Coimbra, 1982. © Manuel Rodrigues, Os Baldios, Lisboa, 1987. 134 Tradigo ¢ inovagaio coexistem no devir histérico assegurando equilibrios necessarios ao evoluir social. Soba aparéncia enganadora das miucangas, existem niicleos de profunda estabilidade: as velhas instituigdes sustentadas por arreigados interesses sociais que resistem & inovacio, principalmente quando esta sobrepée novos interesses Aqueles que o costume consolidou. 135

You might also like