You are on page 1of 61
(e—6 | = O Processo de Senhorializagao da Sociedade Ibérica Convém, diante da amplitude do quadro que pretendo estabelecer, delimi- tar seu tragado basico. Viso, aqui, a circunscrever uma totalidade complexa e articulada, um destes tais conjuntos que parecem insistir em escapar as tentativas de enquadramento rigido por parte dos especialistas, em espraiar- -se por sobre as balizas que nos pareciam tao bem fincadas. Tergiversando a dificuldade, enveredo pela caracterizagao de um processo em suas linhas de forca essenciais, que, para efeitos de nomenclatura e de uma primeira apro- ximagao, consistiu na formagao da sociedade senhorial na Peninsula Ibérica entre os séculos IV e VIII. Em se tratando de uma abordagem da globali- dade social, é de bom tom fixar as perspectivas ¢ os limites que a orientam. Em primeiro lugar, ela nao se configura como uma anélise da transi¢o entre modos de produgao, em que pesem as referencias esparsas que farei a0 tema, jé que tal iniciativa envolveria um importante e extenso debate que me afastaria do objetivo do capitulo!. Em segundo lugar, nao é minha in- tengo aqui precisar as supostas origens das instituiges ou das formas das relagdes sociais que iriam desenvolver-se ao longo do periodo. Pretendo, 1, Para um balango do debate v. Josep M. E. Salrach Mares, “Europa en la Transicién de la Antiguedad al Feudalismo: El Marco General de la Historia y la Panordmica de la Historio- grafia Relativa al Periodo”, em VII Semana de Estudios Medievales, Najera, 1996-Logroio 1997, pp. 11-26. 51 (6) ASSIM NA TERRA COMO NO Cf, tivas tedricas antes enunciadas, orte espago-temporal em estudo, io hasica da aborda perspe sno essencialmente, tendo em vista as discernir a dindmi ‘Ges n ‘ sem 0 que ficaria, inclusive, inviabilizada a propost gem da cultura em um conte to histérico es pecifico. , , Bim sua t ‘1 dedicada a uma analise de eonjunto da his. toria da Hispania visigética, Garefa Moreno” inicia a caracteriagio da ceo. owe de vida rural no perfodo destacando, como referéneia de base, a primazia exereida pelo setor primrio de produgiio em todas as economins pré-industriais, rubrica na qual insereve o modelo ou o sistema econbmico sobre 0 qual p: discorrer. Mas, tal designagio, genérica e abrangente, abriga em seu interior, potencialmente, uma multiplicidade de sistemas pro- dutivos, de formas de organizagio do habitat, de circulagao © apropriagio do excedente ¢, a par destas, de estruturas sociais calcadas em niveis distintos de hierarqui ‘0 ¢ de concentragio desigual de poder ¢ fortuna, Em relagao, a0 caso que aqui nos interessa, no falta inclusive quem advogue ~ mesmo que como hipétese ~ que o regime senhorial talvez nao fosse mais do que uma manifestacio particular no interior de um modo de produgao amplo ¢ geral, no qual se inscreveria a Europa pré-industrial, ¢ que teria vigorado do neolitico ao capitalismo industrial, com as instituigdes familiares ocupando, em seu interior, um lugar central. Talvez se tivessem desenvolvido separadamente, ou se conjugassem, ou de qualquer modo se alternassem em ciclos sucessivos, regimes como 0 senhorial, caracterizados por um acentuado fracionamento das institui- des familiares ¢ pela exploracao de umas familias por outras, ¢ regimes de tipo “despotico”, em que, acima das instituicdes familiares fragmentadas, € englobando-as todas, uma grande familia integrava a sociedade ¢ em que a exploragio ocorria sobretudo neste vasto ambito intrafamiliar’. Segundo Joao Bernardo, o elemento central, catalisador da dinamica das relagies sociais desenvolvidas no Ocidente medieval entre os séculos V € XV, residiu nas transformagées sofridas pelas estruturas do parentesco, submetidas as familias a uma tendéncia geral de fracionamento e inter-rela~ Gio, a despeito dos limites ¢ nuangas varidveis de acordo com tempo ¢ lugar. Ora, tais transformagées viriam a matizar, essencialmente, os processos de constituigao ¢ evolucdo das classes sociais fundamentais no regime senho- rial, tanto em sua composicao e tendéncias de evolugao interna, quanto em suas relagdes reciprocas, em meio a um quadro que nos permite vislumbraz no proprio cerne da evolugéo social em curso, a expansio vertiginosa do nhorio. is recente obi 2. Luis A. Garefa Moreno, Hi Espahi i ai 3 en pris itoria de Espana Visigoda, Madrid, Catedra, 1998, p. 183. 52 © ‘© PROCESSO DE SENHORIALIZAGAO DA SOCIEDADE IBERICA As Relagdes de Exploragao — A Evolugao dos Vinculos Pessoais de Dependéncia Poder-se-ia configurar, no minimo como elemento fundamental a incidir na estrutura agraria do periodo, o processo de constituigao e evolucao da gran- de propriedade fundidria e das relagdes de producao que se desenvolveram em seu interior, Contudo, essa referéncia, aparentemente especifica no nivel basico de sua formulagao, ganha amplos contornos quando consideramos sua inser¢ao no contexto de uma civilizagao agrdria, de uma economia ¢ de uma sociedade profundamente determinadas pelas estruturas e pelos resul- tados da atividade agricola, setor fundamental da produgio. Para o mesmo Garcia Moreno’, tais elementos estao na propria base da estruturacao e da dindmica social existentes na sociedade ibérica dos séculos V a VIII, e por sua vez impregnaram a totalidade historia cognoscivel como protofeuda- lismo visigodo. Atribuir uma importancia aparentemente tio decisiva a um fendmeno histérico nao implica, no entanto, que a plena consideracio do mesmo nao se veja dificultada ou submetida a limitagdes de varia ordem, dentre elas aquelas impostas pela natureza das fontes disponiveis, mas tam- bém as determinadas pela estreiteza do foco lancado sobre o objeto. cerne da controvérsia reside no elemento central que embasa a ca- racterizagao global do sistema, ou seja, na definicao da relagio de produ- a0 dominante no seio da sociedade visigética. Tratou-se de um sistema escrayista, fundamentado na decisiva importancia da escravidao doméstica para a valorizacao econémica do patriménio senhorial? Ou de um sistema fundado na reducao 4 dependéncia senhorial de amplas parcelas do campe- sinato independente? Parece ser a primeira a perspectiva ainda dominante na historiografia ibérica’, a despeito dos diversos matizes que se vio tis damente enunciando, expressos, por exemplo, no uso frequente de prefixos que, a maneira de aspas, buscam amenizar o choque com o peso manifes- to de vigorosas tradigGes historiogréficas. Na trincheira principal, o vigor da escola jurisdicista que, no campo especifico que estamos considerando, apoia-se muito mais nas definicdes juridicas coetaneas relativas a liberdade ou a auséncia de liberdade da forga de trabalho do que na forma de orga- nizagdo do sistema de produgio. Assim, o elemento crucial que se impoe como referéncia basica na historiografia é a elevada frequéncia com que as, leis visigéticas enunciam o termo servus, traduzido, com base no referencial classico, como escravo. Portanto, convém, antes de mais, considerar 0 peso de tais escravos no conjunto da sociedade visigotica, mas atentando primor- 4. Luis A. Garcia Moreno, op. cit., em especial o capitulo IV, pp. 193-254, 5. Esta é a perspectiva assumida por Jose Maria Minguez, Historia de Espafa. Las Sociedades Feudales, Antecedentes, Formacién y Expansidn (Siglos VI al XIIl), Madrid, Nerea, 1994, vol. I 53 ©) |ASSIM NA TERRA COMO NO cf dialmente para a situagdo ea relagao em que se encontravam inseridos no interior das exploragées agrarias. Eé precisamente nesse nivel que reina, entre os especialistas, uma enorme discordancia. Para PD. King’, pautando-se no elevado mimero de fugas tenazmente registradas nos documentos de época, © grande néimero de escravos domés- ticos trabalhando em equipe para a valorizagao do patriménio senhorial tleve ter sido determinante, j4 que seriam estes escravos, dado 0 grau ab- soluto de sua dependéncia pessoal, os que teriam interesse em fugit. Ora, a mobilidade da mio de obra, incluida a formada por escravos casati — aque- les fixados em pequenos lotes de terra talhados pelo senhor na proprie- dade -, é atestada em varias outras regides da Europa no periodo, muitas vezes vinculada ao préprio regime das prestagdes devidas ao senhor”. José L. Martin’ e Garefa Moreno propéem, com matizes diferenciados, uma ca- racterizagao apoiada numa espécie de “determinismo de origem”, comple- mentado por um direito de heranga! Segundo este tiltimo autor, “deve-se supor como dominante, na Penin- sula Ibérica da época visigotica, a forma especifica de propriedade herdada do Baixo Império”®. Trata-se da famosa formula do “regime de proprieda- de bipartido”. Mais do que por suas dimensées extremas, a grande pro- priedade fundidria do periodo seria caracterizada pela manutengio de uma parcela do patriménio sob a direta exploracao de seu proprictdrio (reser- va senhorial), fracionando-se 0 restante numa série de pequenas unidades auténomas adstritas ao cultivo de camponeses dependentes subordinados aos mais diversos estatutos juridicos — coloni adscriptici, precaristas, servi casati etc.— submetidos todos, ainda que com intensidade varidvel, a0 paga- mento de rendas em moeda e/ou espécie, além de a uma série de prestagdes em trabalho devidas em beneficio do senhor. Predominara, portanto, na Peninsula Ibérica do periodo, o chamado modelo ou dominio “classico”, 4 villa bipartida, um dentre os varios niveis - se no o fundamental — no qual se manifestou o vigor da romanizago e das marcas profundas com as quais ela cunhou e projetou-se sobre a civilizacao ocidental do periodo”. 6. PD. King, Law and Society in the Visigothic Kins University Fae oe ei ee ‘isigothic Kingdon, Cambridge, Cambridge 7. Joio Bernardo, op. cit, p. 223. 8. José L. Martin, La Pentisula en la Edad Media, Barcelona, Teide, 1976, p- 83- Lis A Garcia Moreno, El Fin del Reino Visigodo de Toledo, Decadencia y Catdstrofe. Una 10 Contr wciGn a su Critica, Madrid, Universidad Auténoma, 1975, p. 116. "Raga ta configurasio da villa no Baixo Império a partir do “modelo” italiano, Vera, ‘Dalla Villa Perfects alla Vila di Palladio”, Athenaeum, London, 83(1)189-212, 1995%* or Parte)”, Athenaeton, London, (2):331-356, 1995b, Acerea do declnio da escravidio, Fre autos v AdriaanVerhulst, “The Decline of Slavery and the Economic Expansion le Ages”, Past and Present, Oxford, 133:195-203, 1991. 54 (© PROCESSO DE SENHORIALIZAGAO DA SOCIEDADE iBéalcA Ainda que calcado no i mesmo modelo de base, para José L. Martin 0 cultivo da reserva senhoi rial dependeria do trabalho conjunto desenvol- vido por escravos domésticos e pelos camponeses dependentes, em fungéo das tarefas a que estavam submetidos, distribuidas pelas principais etapas do ciclo agricola. Jé para Garcia Moreno, as prestagées em trabalho dos depen- dentes tinham importéncia reduzida ~ se & que, de fato, tinham alguma ~ na valorizagéo da parcela mantida sob a exploracao direta pelo senhor, uma vez que se restringiriam a transportes, sobi retudo vinculados ao carreto a entrega das rendas em produto nos celeiros senhoriais. Com base em tal referéncia, 0 autor deduz que a valorizagao da reserva senhorial dependia exclusivamente do trabalho das enormes equipes de escravos mantidos em dependéncia direta, inseridos na familia do senhor. Um modelo, duas referéncias? Este aparente paradoxo guarda intima relagdo com duas tendéncias basicas manifestas pela historiografia especiali_ zada espanhola, Em primeito lugar, o dinamismo e a complexidade exrremos que caracterizam a evolugao destas relagdes sociais de produgo tendem a ser minimizados em fung4o do predominio da perspectiva juisdicista que fandamenta as anélises. Como destaca Joao Bernardo, é possivel que grande Parte das controvérsias fosse evitada se os historiadores marcassem a distin. Go entre os conceitos juridicos e o funcionamento das relagées sociais, O direito constitui-se numa técnica classificadora que, por um lado, carreia a heranga de formas juridicas anteriores e, pot outro, serve ao grupo social que 2 usa, ou para defender seu estatuto numa situacao de declinio, ou para afirmar um estatuto superior quando se encontra em ascensio. Boa parte desta histo- riografia recorre, porém, as categorias juridicas como se fossem uma espécie de retrato fiel, se ndo mesmo a expresso tinica das relagdes sociais", Por outro lado, pretender respaldar a caracteriza¢ao de um organismo vivo como as estruturas de propriedade e exploragao no periodo em ques. tio, submetido a pressdes ¢ fluxos diversos, & perene e suposta heranca de um modelo baixo-imperial traduz, no minimo, a desatencao em relagio a. uma pléiade de estudos de cardter local e A extrema matizacio que im. Puseram tese da vigéncia de um sistema classico dominante e comum 4 Europa do periodo. F impréprio considerar ~ e uma volumosa bibliografi, em alguns casos jé antiga de décadas, 0 comprova" — a ocorréncia de um 11. Joio Bernardo, op. cit, p. 11. 2. v por exemplo, Reyna Pastor tal, Estractras Feudales y Feudalism en el Mundo Medi- terréneo (Siglos X-XII}), Barcelona, Critica, 1984; Antonio Malpica Cuello & Tomas Que- sada Quesada (eds.), Los Origenes del Feudalismo en el Mundo Mediterréneo, Granada, Universidad de Granada, 1998; Carlos Estepa & Domingo Placido (coords.), Transiciones on la Antigiiedad y Feudalismo, Madrid, Fundacin de Investigaciones Marxistas, 1998, ASSIM NA TERRA COMO NO ctu, de um modelo comum 20 Ocidente, pos. cterizd-lo como um sistema globalizante, onjunto articulado, uma diversidade de desenvolvimento univoco a partir to que, ainda que seja possivel cara cua generalidade integrow, em um conjut natizes e coloragées locais e/ouregionais. = ‘ulas, em meio a tais controvérsias, rd possivel discernir 20 menos as linhas de forca fundamentais & constitui¢ao do regime senhorial para, enfim, caracterizando-o como um sistema, aborda-lo no nivel essencial que aqui the interessa, o das inter-relagdes sociais que o organizaram? Comecemos pelo problema da constituicdo e das caracteristicas ¢ tendéncias de evolucio de suas classes sociais fundamentais. Constitui ponto pacifico na historio- grafia ressaltar os passos de gigante dados pelas relacdes de dependéncia pessoal no periodo em questao’. Esse fenémeno encontra-se diretamente Inanifesto na expansio dos lagos de patrocinium e relaciona-se ao processo de expansio da grande propriedade fundidria, definindo suas caracteristicas ¢ modelando, como procurarei demonstrar, as relagGes sociais em sentido amplo no interior da sociedade visig6tica. Quanto aos grupos sociais dependentes, ressalte-se, em primeiro lugar, a diversidade de seus campos de origem. No que tange ao problema da es- cravidao, o sentido primordial que a expresstio encerra remete a condigio atribuida a um individuo, da qual nao decorre necessdria ou mecanicamen- te a caracterizacio global de uma sociedade (neste caso, como escravista). A distingao essencial a ser estabelecida entre o servo ¢ 0 escravo deve respal- dar-se nas formas de organizacao do trabalho e do sistema de exploracio, € no em fugidias definigdes juridicas, antes de mais pelo fato de que a pratica social nega, nesse caso, as restrigdes que o direito estabelece. Tal perspec- tiva parece-me diretamente veiculada pelas mesmas “provas cabais” a que recorrem os promotores da versao-escravista da sociedade visigética’*. Seja qual tenha sido, para o inicio do periodo, a importdncia do escravismo do- méstico, a imensa maioria das referéncias documentais visig6ticas as servi, ancillae e mancipia situa-se no contexto de sua liberagio, cada vez mais res- trita, mantendo-os in obsequio do antigo senhor, ou referem-nos, implicita ou explicitamente, como individuos assentados, fixados numa parcela de Roa, A referencia emblematica consiste no famoso epis6dio da doagio de , bispo da igreja-mosteiro de Dimio. 13. Para o caso visigétic : . Peed cy BStiCO ¥. 0 Préprio Luis A. Garcia Moreno, Historia de Espa 14. Pie 5, lars Bonnassie,refeindo-se no contexto geal do Ocidente da Alta Tdade Média deste escravidio ne Eeea no Reino Visigético, considerando o alto indice de leis relativas 2 ‘aes Visigothorum, “Supervivencia y Extincién del Regimen Esclavist2¢ © 0. cas, cidente de Alta Edad Media (Siglos IV-X1)", em Pierre Bonnaissi, op. cit PP- 12-75 ., op. cits 56 © LO PROKESSO BE SINHORIALZAGAO DA SOCIEDADE IBERICA, Os clevigos desta igreia apresentaram, no X Concilio de Toledo, ocor- pido em 656", uma queixa contra seu bispo, dando conta de que ele teria (0 que ocorrera recentemente), a manu- epartindo, ademais, entre estes promoyido, pouco antes de mor missao de un clevado mimero de e: e outras pessoas de seu circulo pessoal, a cifra total de quinhentos mancipia. Tnteressa-me, por ora, menos 0 ato emt si ¢ as reagdes que suscitou, do que as inferéneias que o evento propde. A cifra permite avaliar a existéncia de um mimero total clevado de escravos trabalhando em dependéncia direta, ainda que se deva ter em mente que se trata, neste caso, de um dos maiores patriménios fundiirios do reino, Além disso, dessa referéncia numérica nao decorte tenhuma indicagio relativa ao sistema com base no qual essa enor- me forga de trabalho acumulada se realizava. se neste contexto especifico o termo latino empregue é mancipia, aque- les outros mais comuns, ¢ igualmente correntes nas fontes de época, € que os autores traduzem como escravo = ou seja, seruts, ancilla — aparecem em va- rios documentos como termos por vezes intercambiaveis, expressando reali- dades bastante distintas daquelas vigentes na escravido doméstica. Assim, na Lex Visigothorumt', encontramos a referencia a servi ¢ ancillae proprietarios de mancipia que os auxiliavam no labor dos campos. Outra lei!” protbe aos serbi fiscais que libertem seus mancipia sem permissio régia expressa. E ainda com base no mesmo cédigo que podemos considerar a elevada frequéncia com que as leis visigéticas referem-se ao peculium de um “escravo”, que podia consistir em ornamentos, bens méveis e toda se de animais, além de bens iméveis, como uma pequena parcela ou edificagao, sendo ainda aparentemente normal que um “escravo” pudes- se fazer frente a composigées pecunidrias. Segundo as deliberagdes do cinone primeiro do 1 Coneflio de Sevilha'’ e do cénone dezesseis do IX Concilio de Toledo", ambas fixando limitagées a que os libertos da Igreja vendessem ou doassem qualquer bem constitutivo de seu pectilio, as Gnicas excegées institufdas so as que Ihes permitem fazé-lo em beneficio de ou- tros libertos ou servi da mesma igreja. Isso parece indicar, mais uma vez, que qualquer distingio de categoria entre ambos nao se fundamentava na posse ou auséncia dela, jd que deveriam ser capazes tanto de realizar compras quanto de receber doagées, aspecto que expressa, na base destas alternativas, 0 reconhecimento de uma identidade que fazia esmaccer, na pritica, as diferengas de estatuto legal. ‘ave 15. José Vives (ed.), Concilios Visigéticos..., op. cit., pp. 322 € ss. 16. Karl Zeumer (ed.), Lex Visigothorum, V, 4, 13. Hannoverae et Lipsiae, Bibliopolii Hahniani, 1973, p. 222, (Monumenta Germaniae Historica, Leges Nation Germanicarum, vol. ). 17. Lex Visigothorum, V, 7, 16, Idem, p. 241. 18. José Vives (ed.), Concilios Visigdticos.... 0p. 19, Tdem, p. 305, »peAS1. 57 ASSIM NA TERRA COMO NO cfu, [A partir destas breves referencias parece dificil fazer decorrer diteta. mente da nomenclatura qualquer importéncia efetiva da escravidao domés. fica para o sistema produtivo do periodo, ow ao menos caracterizé-la como relacao social de produg4o dominante a0 longo destes séculos. E interessan- enor como Garcia Moreno, algumas paginas"? apenas apos destacar 0 clevado niimero de escravos que trabalhavam em. “dependéncia direta” nas srandes propriedades da Hispania visigotica, prope como tinica explica ¢ ‘eocupa¢ao manifesta, sobretudo pela Igceja, cdo plausivel para a enorme pré de que seus escravos manumi idos permanecessem in obsequio, o fato de que assim continuariam a laborar nas mesmas parcelas que anteriormente valorizavam na condigdo de escravos, preservando-se a perene continuidade do trabalho investido na terra! Talvez seja possivel considerar que a manumissio in obsequio, pritica crescente a0 longo do perfodo, tenha configurado um elemento essencialmen- te juridico a confirmar a individualizagao ¢ autonomizacio das familias de camponeses dependentes que eram constituidas a partir da familia do senhor, caracteristicas, entretanto, j4 manifestas na organizacao do préprio sistema produtivo. Seria essa, por paradoxal que pareca, a perspectiva com base na qual se poderia compreender o teor de uma férmula notarial visigotica de doacao de patriménio fundidrio, intimeras vezes citada pelos especialistas como prova cabal de que as reservas senhoriais continuaram a ser trabalha- das por um elevado contingente de escravos domésticos. O referido docu- mento consistiria num minucioso registro e descrigao da estrutura da pro- priedade no ato da transferéncia, com mengGes aos prédios e instalagbes que 2 integravam, aos campos de cultura, bosques, prados, reservas de 4gua que a compunham e, sobretudo, ao mimero de mancipia a ela vinculados, inclusive arrolados por scus nomes. Clara manifestaco da vinculacao terra dest mao de obra, legada junto com a mesma? Sim, mas ha um aspecto essencial, e que parece escapar aos espccialistas, na natureza desta adscri¢do, posto que circunscreve sua modalidade, configurando-a por unidades familiares. A cada “escravo” nomeado confere-se uma individualidade, poderiamos dizer, rans cendente, porque projetada sobre um niicleo mais amplo, designando-o com? chefe de uma familia aparentemente nuclear - “cum mancipiis nominibus designatis, id est, il. cum uxore et fli (..]”™. Assim, é possivel que até mesmo no nticleo do senhorio - isto é, na cha- mada reserva senhorial, cuja especificidade residiria, segundo a perspectiva ao. na historiografia em sua exploragéo direta pelo dominus ~ jd s° anifestar um ingrediente fundamental e caracteristico do sistem’ 20. Luis A. Garcia Moreno, El Fin del Rei it 21. Toanes Gil (ed), Formulae Wisgothica, Miscollaves Wise i jicacones de 58 (0 PROCESSO DE SENHORIALIZAGAO DA SOCIEDADE IBERICA de produgao ¢ apropriagio em desenvolvimento no periodo. Trata-se do processo de individualizagiio das familias produtoras dependentes, contra- balangada pela relagao de cada uma delas com a de seu respectivo senhor, estabelecida em graus ¢ niveis variados e mediada pela propriedade da ter. ra. A tendéncia a elevacio do nimero de manumissées ao longo do periodo pode ter constituido, em muitos casos, uma espécie de corolério juridico de uma relago de produgio tendente, na pratica, 4 autonomizagio relativa dos produtores, nao sendo tal mecanismo alheio, inclusive, as tensdes € aos conflitos intrinsecos 4 natureza destas proprias relagées. Seja como for, é por meio deste ato juridico que podemos abordar a cristalizagdo de um dos componentes essenciais na constituigdo da classe servil, o dos libertos mantidos in obsequio, sob o patrocinio de seus antigos senhores. Estabelecidos como casati, tendéncia crescente desde princfpios do século VI, este processo apoiou-se primordialmente na chamada formu- la de emancipagao restrita, que visava a manter o casatus na mais rigorosa dependéncia de seu senhor. Vale a pena registrar o fato de que, em meados do século VII, ela ja era a tinica formula de manumissio subsistente na His- pania visig6tica. Sabemos, por uma lei antiqua® dedicada a regulamentar 0 direito de heranga, que era pratica comum consecutiva 4 manumissao a manutengao do novo liberto no cultivo das mesmas terras anteriormente trabalhadas no interior do senhorio. A tematica é recorrente nas atas dos concilios visig6ticos, encontrando-se a primeira referéncia direta no ca- none sexto do III Concilio de Toledo, de 589%, que trata da situagao dos libertos da Igreja. No que se refere & instituico, ou a condicao social do individuo inscrito nesta relagao de dependéncia, as mengées canénicas sao bem antigas na Hispania, datando da época da realizagio do Concilio de Elvira, em data incerta entre os anos de 300 e 306. Pelo cnone oitenta deste concilio™ ficava proibida a admissio ao clero de libertos cujos patronos ainda vivessem. Essa prescricao é reafirmada no cAnone décimo do I Concilio de Toledo*s, de forma mais especifica e mati- zada, pois, por um lado, explicita a dupla origem da mécula social que afe- tava ao liberto — aqueles que se encontravam obrigados a outros por justo contrato (supde-se um livre que ingressou na dependéncia) ou por origem familiar (um escravo manumitido) - e, por outro, suspende a proibigo de sua ordenacio, caso ela obtivesse o consentimento de seus patronos. Seria este 0 tom basico da abordagem do tema em concilios posteriores (como no II Concilio de Braga). 22. Karl Zeumer, op. cit., p. 223. | 23. José Vives (ed.), Concilios Visigdticos..., op. cit. p. 127. 24, Idem, p. 15. 28. Idem, p. 22. 59 AASSIM NA TERRA COMO No cy Quanto as libestos da Igeeiay a primeita referencia data, como des racado, de $89, no mesmo célebre concilio da profissio de fe catélica de Recaredo ¢ dos nobres do palacio, que abjuraram da heresia ariana ¢ con. solidaram a alianga entre Estado ¢ Igreja, fator, ¢ consequéncia, da unidade da aristocracia hispanica. Tal referéncia nao € fortuita, ja que a primeira manifestagao candnica recorre ao poder régio como garantia da preserva. Gio dos dependentes sob 0 patrocinio eclesidstico, Segundo 0 canone Vis, fica estabelecido que os membros da familia ecclesiae libertos pelos bispos, conforme ao ordenado nos antigos canones, s6 deveriam permanecer em liberdade, tanto eles quanto seus descendentes, se respeitassem o patrocinio da igreja a que estavam vinculados, da qual no poderiam afastar-se. Tal decisdo afetava também os libertos alheios que the fossem encomendados, pois deveriam manter-se sob 0 patrocinio do bispo, o que reafirma a nature- za pessoal da relacao e da dependéncia, ainda que mediada pela concessio de terra em usufruto, a ponto de o c4none prescrever 0 recurso ao rei no intuito de evitar demandas de “estranhos” sobre os libertos da Igreja. Os elementos considerados incidem, mais propriamente, sobre um dos campos de constituicio da classe servil, manifesto num processo que parece ter atingido largas dimensdes, o do assentamento e da fixacao dos antigos es- cravos domésticos em pequenas unidades familiares, auténomas, mas depen- dentes. Porém, se a esse nivel j4 podemos discernir um traco caracteristico da constituigao do regime senhorial, ele pouco nos revela acerca de sua face mais insidiosa: seu avango e disseminagio, ao longo do periodo, pela progressiva submissao de amplos setores do campesinato independente a sua estrutura. | Testemunhos, em sua maior parte indiretos, levam a crer na existéncia, até o final do periodo em questo, de um niimero considerdvel de integran- dos lonamesinato, mas submetido a uma clara tendéncia de zareamet sfeulo VIL Conny ia minoria da populagao rural talvez ainda n¢ tios, como « deen se como médios ¢ pequenos proprietarios fund gundo uma le?” tratave Patrimonios avaliados em mil sdlidos que : -se de individuos de condigao econdmica favordvel, se inseriam nos grupos dominantes e dirigentes da Ideias, ou dispersados pelo habitat, sua coesto social facilitou as internat’ abalada pela diversidade de suas condigSes, 0.4" i mses bari € 0 processo de sua desagregacao. Impor Populi privati, possessores ou mediocres et inferiores 26. Idem, p, 127, 27. Karl Zeumes, op. cit, p.227, 60 “ —— inexordvel proceso de degrada- er¢do na imensa classe emergente (0 PROCESSO DE SENHORIALIZAGAO DA SOCIEDADE IBERICA personae estavam imersos em um claro ¢ gio social, expresso em sua progressiva ins do campesinato dependente, O processo inscreveu-se, no Ocidente, numa longa duragéo. A degra- dagio da pequena exploracéo camponesa livre foi tendéncia corrente ainda sob o Império, em especial em suas provincias ocidentais. A penetracio eo estabelecimento dos reinos romano-germanicos nao reverteu essa tendén- cia; antes, favoreceu a absorco das pequenas propriedades pelas grandes, geralmente sob a forma de pequenos lotes (mansus), submetendo-se seus antigos proprietérios livres aos poderosos com base no estatuto de colonos ou nos lacos mais difusos criados pelas relacées de patronato. Abordamos, assim, a conhecida evolucao da instituicao do patrocinium romano classico no sentido da coincidéncia, numa mesma pessoa, do patronus do encomen. dado ¢ do dominus da terra em que trabalhava, tendéncia que experimentou enorme éxito e extensfio desde fins do século IV em todo o Ocidente, e que viria a receber referendo juridico nos reinos constituidos no interior das an- tigas fronteiras ocidentais do império. As realezas germAnicas, em processo de afirmacao — e no caso visigodo desde seu inicio, com Eurico -, viriam a legitimar tais relagdes em suas mais extremas manifestages, dado seu anseio de pactuar e buscar 0 apoio da poderosa aristocracia senatorial hispanorro- mana. De qualquer forma, ¢ ressaltando ainda mais 0 vigor deste proceso, no interior das préprias comunidades godas os setores mais pobres vinham inserindo-se progressivamente na clientela dos mais abastados*, expressan- do a fragilizagio ea decadéncia do campesinato independente, Para seus representantes cafdos em miséria extrema, desprovidos de condicdes de subsisténcia e reproducao, parece nao ter havido outra saida além de alienarem sua propria liberdade e/ou a de seus filhos, 0 que os fez equipararem-se, em sua condigao, aos servi casati. Outros, caidos em depen- déncia quando ainda detentores de algum pequeno patriménio, podiam até fortalecé-lo, agregando-Ihe alguma parcela de terra entdo concedida pelo senhor, mas seu cultivo passava a dar-se a partir dos vinculos de dependén- cia pessoal. As fontes juridicas visigéticas referem-se, sobretudo, a institui- 40 da precaria como formula corrente da concessio feita aos camponeses encomendados, recurso comum a senhores eclesidsticos ¢ laicos?®. Segundo © estabelecido por uma formula visigética, os precaristas submetiam-se ao Pagamento de um censo anual, exenia, constituido basicamente pela décima 28. V. Abilio Barbero & Marcelo Vigil, La Formacién del Feudalismo en la Peninsula Ibérica, Barcelona, Critica, 1979, p. 39; José A. Garcia de Cortézar, La Sociedad Rural en la Espaiia Medieval, Madrid, Siglo XXI, 1988, p. 59. a 28. V, por exemplo, 0 cdnone V do VI Conciio de Toledo, José Vives (ed.), Concilios Visi £08... op. cit, p. 229, ea lei X, 1, 15, Karl Zeumer, op. cit, p. 157. 30. Toannes Gil, op. cit. p. 71. 61 —9) de dutos de toda a colheita e por prestac6es de carter diversy, parte dos pro in precaria podiam estar circunscritos por um pragg Tas arene ai frequentemente concessdes de natureza vitalicig fix, embora foster mem caso dos camponeses livres que, com hart Chere cium), recebiam a concessao de um lote de terra por co oa peapor conarapartda 0 pagamento de um censo anual Pr apc importante a esata pleno de sigifieado como vereno, € 0 da quase absoluta auséncia de referéncias aos coloni na tree ntacdo vyisig6tica; a rigor, apenas uma, objeto de uma enorme controvérsia, Ora, sabemos que o néimero de colonos no Baixo Império chegou a ser bastante elevado, e o sistema de colonato pode ter se constituido em pedra angular sobre a qual se estruturou a exploragao das grandes villae. Os colonos e sua vinculagdo a terra (como elemento mediador de uma relagao social de dependéncia pessoal!) sao um dos tracos mais definidos e caracterfsticos das relagées socioecondmicas no periodo do ocaso imperial. Basta, portanto, que as fontes nao |hes mencionem com todas as letras, que nao se lhes refi- ram no mais puro latim, para que alguns especialistas deduzam claramente sua inexisténcia na sociedade hispanovisigod: Mas a eficdcia do discurso também se manifesta naquilo que ele silencia, se me permitem um pequeno tributo a Georges Duby. A auséncia de men. ges aos coloni ~ imiscuidos em meio ao verdadeiro turbilhao que as clas- ses dirigentes impuseram aos setores pobres e fragilizados (ambos os termos chegaram a ser sindnimos) desta sociedade — manifesta, antes, a tendéncia de homogeneizacao que afeta a formacio da classe servil ¢ faz “confundirem- -se” diversos estatutos sociais originais, E bastante provavel, inclusive, que tal processo tenha se iniciado ainda no contexto das sociedades tribais ger ménicas anteriores as Volkerwanderungen®. As interpretationes alaricianas do Codigo de Teodésio — provenientes, em sua maior parte, de comentarios desenvolvidos na Galia durante 0 século V - caracterizam os colonos como dependentes de um senhor, ou seja, de um proprietario, e nao da colonica que trabalhavam™. © sentido geral da evolugao parece-me, pois, claro e alheio 3 davida, caracterizado pela tendéncia & homogeneizagao juridica dos campo- nee epee enquadrados nas grandes propriedades hispanovisigodas. do campesinato ap ned 3p aio Por essa anilise, contudo, a unthicesso de vigotosa tendénes, ee ua se efetivar, mantendo sua condigao Pot so, segundo Joao Bernardo, a quem sigo de ASSIM NATERRA COMO No cfy 31. Karl Zeumer, op. city lei K, 1,1 32 Idem, lei X43, 11,9153,” ia org! . Ve i Ver Savin de Marselha, De Gubernatione Dei,V, 45, disponivel em itp /Arwncct 34. Ven kere Pujol, eos gbookS.htm, Acesso em 21/7/2001. i E Vives Mora, 1896, vo IW gas It Instituciones Sociales dela Espoia Goda, Vales 62 oy (0 PROCESSO DE SENHORIALIZAGAO DA SOCIEDADE IBERICA perto nessas referéncias”’. Eis-nos, assim, diante do aparente paradoxo de tuma classe que tende a fuso, mas que segue marcada por uma consideravel heterogeneidade interna. E 0 que ele revela, senao 0 dinamismo do tempo € da historia, seu cardter processual? De qualquer forma, o carater predomi- nantemente pessoal e direto das relacdes servis, que vinculava cada familia camponesa dependente a uma familia senhorial, impunha aos servos uma espécie de denominador comum fundamental: a despeito da diversidade dos estatutos e das rendas/servigos aos quais estavam submetidos, eram todos, acima de tudo, dependentes pessoais. “O relacionamento pessoal em- basou, no periodo, todos os sistemas de exagao, impondo aos servos, cujas diferencas de estatuto distinguiam entre si, sua progressiva afirmacao como uma classe social”, Afirmado o carater pessoal dos vinculos sociais, resta-me ressaltar a fungao precipua exercida pela terra como elemento material’ indispensa- vel & mediacao das relades de dependéncia. Para tanto, convém precisar, inicialmente, que a propriedade nao se constitui fundamentalmente como uma “coisa” ou um “bem”, mas como a cristalizago material de um com- plexo de relacées sociais. “Um hectare de terra nao pode ser ‘fixado’ na lei, e uma disputa por fronteiras ndo é um conflito ‘com a fronteira’”:”. Mesmo quando compreendemos a propriedade como um conjunto de direitos, de diferentes tipos e combinacGes, tais direitos sio, primariamente, conexdes, vinculos sociais. Conforme adverte Goody, “nao estamos lidando com os direitos de um individuo sobre um objeto material, mas, antes, com os direi tos, estabelecidos entre individuos, sobre um objeto material. Um individuo alheio a relagdes sociais é um individuo sem propriedade”’. Fosse originada a servidao de um quadro prévio de escraviddo domés- tica, fosse ela derivada diretamente do assentamento ¢ submissio de um camponés anteriormente livre, era a concessao do direito de cultivo auté- nomo de uma parcela que materializava o vinculo social a que estou me referindo, Por isso, em ambos os casos a terra — ou melhor, o escalonamento da propriedade no periodo - era uma mediacao crucial, o elemento mate- rial necessdrio A configuracdo das relagdes pessoais de dependéncia. “Mas apenas uma mediagio, p , em qualquer caso, nunca a parcela concedida era 0 objeto iiltimo da relagao; a vinculagéo pessoal do servo nao o ligava terra, mas ao senhor”®”, 35, 36. 37. 38, 39, Joio Bernardo, op. cit, passim. Segundo Joao Bernardo, op. cit., p. 298. John Davis, Land and Family in Pisticci, Ithaca, Cornell University Press, 1973, p. 73. Jack Goody, Death, Property and the Ancestors, Stanford, Stanford University Press, 1962, p.287. Joo Bernardo, op. cit. p. 255. 63 Sw") ASSIM NA TERRA COMO No cy quanto 20 modelo de base que orient tl rao, avez pudéssenn * em Edward P. Thompson uma sugestiva orientacao. indo sobre colher em F hondayem do objeto que configura como uma cultura consuetudindria, o autor ressalta, entre OULTOS aspects, au “9 vida abi ca’ emerge de dentro das densas determinagoes da vide domes ca" Org, © carater pessoal da dependéncia servil encontrou seu model justamente nas relagdes internas da familia senhorial, no tipo de au or lade que sub- metia toda a familia a seu chefe. A. Dopsch indica que a palavra bucellart, “figis guerreiros”, significava “comedores de pio™"', € Emile Benveniste afirma que o latim domus nao se referia 4 casa como construcao, mas como familias quanto a seu derivado ~ dominus ~ era mediante as nodes de en- carnac&o ou representagao que 0 sufixo “-10 implicava a acepgao de che- fa. Ademais, E. Gibbon ja havia observado que domtinus referia-se primit vamente ao poder de um senhor sobre seus escravos domésticos®, Concluindo este tépico, talvez convenha destacar os elementos que, in- trinsecamente articulados, estiveram na base da vigorosa expansio da ser- vidio e do senhorio ao longo do periodo. O processo de fracionamento da estrutura familiar senhorial deu ensejo ao desenvolvimento e a dissemina- cio de um novo tipo de relacionamento social, protagonizado pelos servos € senhores, que, nao obstante, sorveu seu modelo das relagdes internas & familia senhorial, tendo por padrao 0 carater pessoal da relacdo. “Portanto, o regime senhorial, a despeito de ter instituido relacdes sociais de um tipo novo e particular, ndo se notabilizou pela conformacao de nenhum modelo especifico ou inovador: & medida que se rompiam as familias senhoriais, afirmavam-se as relagdes de tipo pata-familiar™, as perspectivas de a As Relacoes Intrassenhoriais - A Evolugao dos Vinculos de Subordinagao Pessoal dow ialmente, vale destacar, na esteira de Ciro Flamarion Santana Car loso ¢ Hector Perez Brignoli, que nas sociedades pré-capitalistas “apenas 40. Edward P. Thompson, “Folcl Antroy i d “Folclore, Antropologia e Histéria Social”, em Antonio Luigi Nese & Stato Silva (eds), As Peculiaidades dos Ingleses e Outros Artigas, Campinas, Eitora 63 a. ran . ns Dopsch, The Eci a cial ivil tes wl aie sana Social Foundations of European Civilization, New York, » Emile Benveniste, Le Vocabulaire finuit VOL UL, ppoa7-ag © oCtblaie des Institutions Indo-Européenes, Paris, Minuit, 196% 43. Edward Gibbon, Th Folio Society, 1983- 44, Joao Bernardo, ¢ History of the Decline 1990 vol a we ick and Fall of the Roman Empire, London, The » Op. cit. p. 280, 64 © ‘© PROCTSSO DE SENHORIALIZACAO DA SOCIEDADE InfRICA, as classes dominantes chegavam a alcangar a coesio, a solidariedade de interesses ¢ 0 grau de consciéneia que faziam delas classes plenamente cons. titufdas [.]"*, a “classe para si” que Garcia Moreno vé manifesta na vigo. rosa aristocracia hispanovisigética do século VII", Quanto a seu clemenco distintivo fundamental, um aristocrata era, antes do mais e primariamente, © detentor de um patriménio que conjugava terras ¢ homens, ¢ tanto mais poderoso seria quanto mais amplo e populoso fosse esse conjunto. Nao deve causar espanto que, segundo as concepgdes de época, a riqueza fosse assimilada ao poder derivado da posse de bens, ¢ nao A sua concentracio em si, opondo-se-lhe a pobreza com sua conotacao de auséncia de poder. Tal classe, assim como sua antagénica anteriotmente referida, formou- -se também a partir de dois campos basicos origindtios, aquele constituido pelas familias camponesa fortalecidas em meio ao processo de ruptura e de- composicao do campesinato independente, e aquele integrado pelas familias senhoriais em extens4o. Contrariamente, contudo, ao quadro de profunda diversidade que marcou o “universo servil”, determinado, em grau elevado, pelas profundas diferengas que caracterizaram seus ambitos de origem, a classe senhorial apresentou-se, desde suas primeiras expressdes, sob formas sociais bastante homogéneas. Fendmeno cotidiano caracteristico desse sis- tema, contrariamente s to arraigadas imagens da suposta petrificacao da estrutura social medieval, os setores enriquecidos do campesinato eram al- gados a condicao senhorial, uma espécie de contraface, decerto socialmente restrita, de seus amplos setores que, fragilizados, sucumbiam & dependéncia servil, Institufam-se, assim, com frequéncia desconcertante, aristocratas de Pequena extragdo, fendmeno que se traduzia em um movimento incessante de ampliagao dos quadros sociais dominantes™”. Essa tendéncia 4 homoge- neizagao da classe, muito mais nitida ¢ acentuada do que aquela congénere que se processava no seio do campesinato, foi, contudo, contrabalancada pela extrema hierarquizacdo interna que “verticalizon” © quadro das rela- Ges internas a aristocracia. De qualquer forma, também nesse extremo, o do cume da hierarquia social, as relagdes assumiram uma forte conotagao pessoal, subordinando entre si aristocratas de maior e menor expressao, chefes de familias que as- sim interligadas afirmavam, em conjunto, a ascendéncia de sua classe social. Seo vigor dos vinculos daf decorrentes variou consoante as distintas regides do Ocidente, a Hispania visigética parece ter sido caracterizada pelo relati- Vo equilibrio mantido entre a tendéncia de autonomizagao das varias fami- 45. Cito Flamarion Santana Cardoso & Hector Perez Brignoli, El Concepto de Clases Sociales, Madrid, Editorial Ayuso, 1977, p. 116. 46. Luis A. Garcfa Moreno, Historia itp. 226. 47. P.D. King, op. cit, p. 160. 65 pa _ S) ASSIM NATERRA COMO No cfy lias aristocrdticas eo apelo da perenidade de suas inbeo elapbes: Pelo Meno desde o século VI, os monarcas visigodos comegaram z ar - Patciménios fundisrios proprios seus guerreiros domésticos, aff Adu altura insridos na familia régia. Esse movimento parece ter ating ; i auge na segun. da metade do século VU, reforcando-se, ademais, pela difusao da atracio exercida pela casa real", que subordinou, progressivamente, varias familias senhoriais das mais diversas extragées sociais. A tendéncia se fortalece por sua difusdo em meio & mais poderosa aristocracia do reino®, projetando-se uma pitamide hierérquica cujo vértice enfeixava um vigoroso conjunto na dirego e em beneficio da familia reinante®. As tens6es € disputas internas 4 aristocracia eram a razo das frequentes rupturas da cadeia hierarquica, que, em vez de fazerem ruir o sistema, promoviam a alterndncia das fami- lias situadas nos postos de comando e, com ela, a reedificacao da piramide senhorial, Esta, como destaca Perez Sanchez*!, rearticulava-se sempre com base na extensao das relagdes de subordinagao intrassenhoriais. Em quaisquer desses casos, os lacos de subordinacdo pessoal articula- vam-se a partir da concessao, pelo senhor superior, de um patriménio fun- diario produtivo Aquele que a ele se subordinava, que viabilizava, portan- to, disseminando-o, 0 acesso aristocratico 4 apropriago do sobretrabalho camponés. Quanto 4 condi¢do assumida por tais patriménios, a tendéncia corrente foi, desde cedo, a da imposicao do principio hereditario, expressio da afirmacao da autonomia das familias senhoriais®. Sao varios os indicios das iniciativas pelas quais os senhores procuravam incorporar esses bens em seu patriménio familiar, além de tentar granjear imunidades fiscais € administrativas para seus dominios. Sanchez Albornoz, apesar de registrar a inexisténcia de documentos legais de concessao de isengdes pelos monarcas visigodos, considera provavel que muitos senhores, na pratica, as tivessem imposto, ¢ articula tal movimento as sucessivas crises vividas pela monar~ quia. Segundo Perez Sanchez, os cargos ptiblicos assumiram, no século VIL, nao apenas uma feicao hereditdria, como também afiangaram o poder pes- soal dos condes, que tenderam a submeter & sua dependéncia direta e auto- noma toda a populagao que lhe estava originariamente submetida em 12240 apenas do desempenho de seu oficio na administragao local**. 48, Abilio Barbero & Marcelo Vigil 49. Luis A. Garcia Moreno, El Fin, 50. Abilio Barbero & Marcelo Vi $1. Dionisio Pérez Sanchez, El Salamanca, 1989, p. 129, 52. Claudio Sénchez-Alborno: Carolingia, Spoleto, Cen (Settimane di studio 53. Claudio Sinchez-All 54, Idem, p. 130, , op. cit, pp. 38-39, Op. cit., p. 150, sil, op. cit, pp. 41-42, Ejército en la Sociedad Visigoda, Salamanca, Universidad 4 2, “Espafia y el Feudalismo Carolingio”, em I Problemi della Civilta 0 Italiano di Studi sull’Alto Medioevo, 1954, vol. pp- 115-11? lel Centro italiano di studi sull’alto Medioevo). 5. hornoz, Estudios Visigodos, Roma, Istituto Storico Italiano, 1971. 165: 66 0 PROCESO DE SENHORIALIZAGAO DA SOCIEDADE IBERICA ‘A contrapartida da concessao régia parece ter se realizado, essencial- mente, pela prestacao do servico militar a cavalo, além da participacao no txercicio do poder, quer na administragao local, quer no palicio. Constitufa- “se, assim, um conjunto dirigente em torno do monarca que partilhava 0 exercicio do poder. Tal capacidade de agregacio teria se manifestado até o final do periodo visigético, tendendo ao reforco a partir de meados do século VII, quando rareou 0 ntimero de senhores que nao mantinham relacdes dire- tas com o centro de comando's. A mesma tendéncia parece ter se manifesta~ do no ambito da relacao dos grandes aristocratas com seus subordinados®, Seriam resultantes desse equilibrio dinamico e instavel as crises cicli- cas que marcaram a historia do reino? Razoavelmente auténomos em suas posigdes de prestigio e poder, os grandes senhores reuniam periodicamente as condigdes essenciais 4 disputa do trono, levando as familias reinantes ameagadas @ ampliacao de suas redes de apoio. Se, por um lado, foi im- possivel proteger o trono das sucessivas vagas de ptessao, 0 que nao per- mitiu a afirmacao de nenhuma linhagem dindstica, por outro a instituigao monérquica gozou de um imenso prestigio ao longo de todo o periodo considerado nessa abordagem’”. Na mesma medida em que a evolucao dos vinculos de subordinagio redefiniu a natureza das relagGes tecidas entre as familias aristocraticas, a expansao do regime senhorial impés-se como um fator determinante de peso na desarticulagao da ja combalida estrutura familiar do campesinato, im- pondo, a esse nivel, um novo campo de relagdes entre familias, a dos cam- poneses dependentes submetidos ao senhorio. As relacdes de desigualdade tomaram a forma de relacdes estabelecidas entre familias. Desse processo, variado em suas formas, decorreram provavelmente a liquidacao dos tlti- mos elos familiares jd muito fragilizados e a extrema dispersao das pequenas unidades familiares camponesas resultantes. A tendéncia geral manifesta por estes quadros era a da reducao de seus elementos, certamente menos sentida entre os camponeses privados da liberdade do que entre os libertos (casa- ti), até atingirem o cardter conjugal. Em sendo muito restrita, no caso das familias servis, sua capacidade de estruturagio pela reprodugdo ao longo de varias geracdes, é possivel que 0 casamento tenha assumido, neste caso, uma importancia decisiva. Georges Duby chega mesmo ao ponto de conside- rar que a cristianizago do matriménio, impondo-se com mais facilidade na classe servil, ocorreria devido as pressées da aristocracia, consolidando, em seu beneficio, as relacdes de produgao®. Segundo Joao Bernardo, $5. Idem, pp. 172-174. 56. Luis A. Garcia Moreno, El Fit 57. Joao Bernardo, op. cit., p. 150. 58. Georges Duby, Le Chevalier, a femme et le préte. Le mariage dans la France féodale, Paris, Hachette, 1981, pp. 54-55. op. cit. p.150. 67 Ye) 4 ‘ASSIM NA TERRA COMO Nocty Quer se sujeitasse ao antigo chefe da familia a ae perencera, query senior a quem nenhum elo originariamente familiar 0 unis, 0 sero fina uma unidade autnoma; porque se limitava a umm ambito restrito, essa unidae tinha de manterse na dependéncia de uma familia mais poderosa; porguegs auténoma, a dependéncia processava-se entre familias distintas®, Impés-se, assim, a reconstituicao, agora entre casais auténomos ¢ ny quadro da dependéncia servil, dos lagos tradicionais que antes eram tecidos no interior das grandes familias rurais. A dependéncia senhorial submetia, -se a unidade agréria camponesa completa, denominada sors entre os vis godos®, isto 6, os integrantes da familia servil, “as alfaias e os animais com que se laborava, ¢ 0 objeto do trabalho”*". O regime senhorial impés-sc,em sua expansao, sobre unidades produtivas antes independentes, remodelan. do-as, assim como as estruturas familiares que as sustentavam. Submetidas as grandes propriedades, tais unidades de produgao passam a constituitem. -se também em unidades de imposi¢ao de exacdes, Ambitos primordiais da exploracao das familias servis. Em que pesem suas diferenciacées — tipolo- gia e peso relativo das rendas e prestagdes que se lhes impunham ~ a sub- missao € a dependéncia de um mesmo senhor compeliam-nas a unificagio. Foi esta comum dependéncia a base para a constituigao de novas redes de apoio ¢ solidariedade, a formas mais estreitas de cooperagio, como aquelas que tiveram lugar na Peninsula Ibérica, segundo referéncias genéricas de Garcia de Cortazar®. Reduzidas, as familias, paulatinamente, ao ambito con- jugal ~ 0 que chegaria a consistir numa caracteristica da classe servil - eas viriam a estabelecer novas formas alternativas de cooperago produtiva nas unidades agrarias. Nesses novos quadros alternativos de relacionamento ¢ auxilio matuo entre as familias camponesas, contudo, foram os senhores ue assumiram a condicao de elo de ligacao. Células fundamentais da fund producio e, portanto, da exploragio, da co mum dependéncia de um me: ; smo senhor derivava o elemento essencial de arriculagao do novo quadro de associago entre as familias camponesas de Rendentes. Impondo, com o préprio peso de seu desenvolvimento, a frat! RES estruturas familiares, o regime senhorial visia » resabelece23 bases consideravelmente adulteradas, Insinuando-se no mundo campone ta endéncia da atistocracia fundidria Ihe impos novas formas 25500" dala cialmente “triangulares”, “vertcalizadas”, derivadas men0s & nalquer manifestacao de um comunitarismo vudgrc cn que da com 59. Joao Bernardo, 60. Luis A. Garcia 61. Joao Bernardo, 62. José A. Garcia °p. cit, p. 302, Moreno, EI Fj Op. cit. p, 302. de Cortizat, op. cit, p. 13, “0. cit, p. 119, 68 B Xo ———~ ‘0 PROCESSO DE SENHORIALIZACAO DA SOCIEDADE 18 ERICA dependéncia do vértice senhorial. De acordo com Joao Bernardo, “ conhecemos a importancia decisiva das familias artifciais em toclo rfodo ~ € a cooperacao na posse ¢ no cultivo constituia uma forma lia artificial - podemos avaliar como as rel no amago das relacdes familiares”®, Assim como a aristocracia fundiaria inseriu-se no quadro das relagdes comunitérias das familias camponesas dependentes, ela também seinsinar nos conjuntos territoriais mais vastos integrados, inclusive pelo campesi- nato independente, em especial em razo do controle imposto, paulatina. mente, sobre as areas incultas de grande importancia, nio $6 econémica, como veremos. Controlando a exploragao das terras comunais, a classe senhorial firmou sua supremacia sobre todos os Ambit ‘os do comunitaris- mo camponés, extravasando, inclusive, 0 Ambito restrito de cada dominio fundidrio. Bstendia-se, pois, a passos largos, a posicao superior dos senho. res como vértices articuladores dos mais variados ambitos em que tinhara lugar as associagdes comunitérias camponesas, Podemos assim considerar, com Garcia Moreno, a extrema dificuldade que se impée as tentativas de precisar 0 contetido do termo silla nas fontes de época. A par da acepcio primaria de “mans&o” senhorial, o termo passou a designar também todo © qualquer conjunto no qual ela estivesse inserida, pela conjugacao de dominios senhoriais e explora¢ mas. As expresses villa e vicus chegaram, na pratica, a ser intercambidveis. Nos documentos dos séculos V ao VII, 0 patriménio fundiario aristocratico passa a ser nomeado por palavras como fundus, praedium, domus, locus etc., utilizando-se o termo villa em referéncias a estruturas agrarias das mais diversificadas composicdes, quando este pe- de fami- lagdes de exploracao penetraram além daquele composto “des camponesas auténo- Na Peninsula Ibérica dos primeiros séculos medievais, a progressiva “conjugacao” da aldeia camponesa com a antiga villa ou dominio senhorial isolado decorreu da disseminagio das relacdes de dependéncia e da expan- sao da grande propriedade fundidtia, elementos determinantes da incorpo- tacao das tradicionais comunidades aldeas livres no quadro constitutivo do Brande dominio senhorial. Por outro lado, a generalizacdo de um regime de exploracdo baseado na existéncia de parcelas auténomas trabalhadas por camponeses dependentes, mas portadores de direitos e obrigagées comuni- ‘érias no conjunto do grande dominio, favoreceu também a constituicao, 20 seio deste tiltimo, de habitats camponeses agrupados. Foi nessa épo- Gh Portanto, que avangou na Peninsula Ibérica o processo de conversio das antigas villae senhoriais isoladas em verdadeiras comunidades aldeds. Ainda que aguardemos ansiosos as novas descobertas provenientes da ar- §3. Jodo Betnardo, op. cit, p. 313, 64. Lats A. Garcfa Moreno, Historia. op. city p. 204. co —~_ 7 WS) 9 sy ASSIM NATERRA COMO No cy a queologia, j4 esté disponivel para 0 historiadet tum conjunto abundang de exemplos, revelados inclusive pela epigrafia®, ¢ relativos as regides da Lusitania, Bética e Tarraconense: Oquea cultura material desvela em meio js camadas estratigraficas constitui o cerne articulador, o nticleo em torno do qual se estruturavam esses agrupamentos rirals. Trata-se das necrépoles ¢ basilicas crists que, vinculadas ao centro do grande dominio fundirio, fou até mesmo insertas na antiga residéncia senhorial, remontam em sq edificagdo ao século V, quando ja se encontravam disseminadas pelas atuais regides de Mértola, Granada, Huesca, Badajoz, Sevilha, Lérida, La Rioja, Segovia, Palencia e Alentejo. Nao sera licito considerar, portanto, que « implantagao da Igreja ¢ o fendmeno da conversao ao cristianismo devam inserir-se num quadro mais amplo de transformacées que se processou na Peninsula Ibérica durante os primeiros séculos medievais? O quadro geral que acabo de estabelecer remete-nos a uma transcen- dental transformagao ocorrida na historia das sociedades ocidentais euro- peias, congregando e articulando os elementos essenciais da transicio da ‘Antiguidade ao Medievo. Mas, dispor tais elementos num quadro marca- damente descritivo nao resolve uma das questdes essenciais que deveria impor-se no horizonte do oficio do historiador: como, e fundamentalmente por que, mudam as sociedades humanas? Se, ao menos a meu juizo, tal indagacao deveria constituir numa espécie de profissao de fé do historiador~ em que pese o fato de que a Histéria, estranhamente, tem sido muito mais um discurso sobre a continuidade do que sobre a mudanga ~ a fatia de dura- So a que nos dedicamos faz desta necessidade uma exigéncia incontornavel. Nao constituem, os séculos alto-medievais, um periodo de transigao entre dois mundos? Seja qual for a perspectiva individual e a “corrente interpreta- tiva” as quais se vinculem os especialistas, os periodos histéricos de transicéo nos impéem, itremediavelmente, a sensagio da mudanga, 0 trato coma incer- teza, a angistia da dificil apreensao da desordem, a percepcao do movimento da Historia. Sera possivel consideré-la aleatoriamente, ou derivaré desta im- possibilidade o enfadonho e estéril inventario estatistico das sobrevivéncias romanas € germanicas, tao comum nas “andlises” dedicadas ao periodo? Parece-me faltar, em primeiro lugar — ou delas abdicaram os historiado- res? —as teorias relativas 8 mudanca que viabilizem sua abordagem come um processo global articulado e apreensfvel, e ndio como manifestacdes aleat6rias cujas correlages no interior de um conjunto, se existem, nao sao discern veis. O “didlogo de surdos” que em muitos casos caracteriza 0 “debate” # 65. Jou Vines Inscripcones Critianas de la Espaita Romana y Visigods, Barelom = 66, Pedro de Palol, “La Cristianizaci6n de la-Aristocracia Romana Hispéinica”, Pyrer#é> ca Arqueolégica, Barcelona, 13-14:281-300, 1977-1978, rb 70 _ | Ss (© PROCESSO DE SENHORIALIZACAO DA SOCIEDADE IBERICA transicao da Antiguidade 4 Idade Média decorre, ante: que seus protagonistas “falam muitas vezes de lugar aparentemente, do mesmo assunto. Ja faz algum temp denunciou o t6pico: na andlise da transigio aquel no nivel da cultura, aquele outro no da politica, e aquele sentado l4 ao fundo no da economia! Ademais, parece-me que, a par da superagio, pelas vertentes analiti- cas atuais, dos varios Preconceitos, juizos de valor e do catastrofismo que faziam enfermar as andlises pioneiras do contexto aqui em questo, o que acabou também expurgado das abordagens foi toda e qualquer considera- go da incidéncia das contradigdes e do conflito social como ingredientes fundamentais da transformagio e do curso da Historia. Referi-me, na intro- dugao deste livro, ao célebre artigo de Marc Bloch* dedicado a andlise dos fatores que determinaram o fim da escravidao antiga. Em sendo de todos conhecido 0 classico, permito-me resumi-lo as suas proposicdes essenciais. Entre o periodo final do Império Romano ¢ 0 século IX ter-se-ia generaliza- do um sistema de exploragao da mao de obra baseada em seu assentamento em pequenos lotes talhados em partes constitutivas da reserva senhorial. Apoiados, os grandes proprietdrios, na comparacao de custos e beneficios relativos dos modelos “tradicional” (baseado no trabalho de grandes equi- pes de escravos) e daquele sustentado pelos casati, concluiram pela maior rentabilidade deste ultimo ¢, ato continuo, generalizaram o “novo” sistema. O servus possuidor da terra teria surgido desta iniciativa senhorial, quando 0s proprietarios perceberam que, com a instalagao do escravo, seus benefi- cios incrementavam-se na mesma proporcao em que se reduziam seus riscos e gastos de producao. A servidao seria um mecanismo de adaptagao em face dos elevados custos de reproducao do sistema. _ : Impés-se, a partir deste cldssico, uma espécie de raciocinio arquetipico sobre o tema, que informou geracées de importantes historiadores, dentre eles Georges Duby, Pierre Bonnassie ¢ Perry Anderson. Nao disponho de espaco para tratar, aqui, de um primeiro aspecto critico relativo a auestio, que decorre da racionalidade econémica calculista que a mesma seb, implicitamente, aos “grandes empreendedores” agrarios dos séculos alter -medievais, gestores atentos e dedicados em seus anseios de nee de lucros®, Detenho-me, apenas, na perspectiva relativa aos fatores s de mais, do fato de es” diversos tratando, }0 que Chris Wickham? le especialista concentra-se aquele tetceiro no da religiio ; ”, Past and 67. Chris Wickham, “The Othet Transition: From the Ancient World to Feudalism”, Past am Present, n. 103, maio 1984, p. 7. . op. cit pp. 159-194. 68. Mare Bloch, “Como y por qué Termin6 la Esclavitud Antigua?”, op. cil» Pps TOO TN 69. Destaco, apenas, que nao se deve deduzt, 8 maneira de uma concepsi MST OT nomia, que tal racionalidade sea caracteristcaeminentemente

You might also like