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cod Bur To oe koa on eae een tecnolégico,a visio de mundo de Wilder se : Ces i OSE ane tr tems ee eT PEL Oe Con CeO ‘Aimanzo Wilder vive na cidade de Malone,» Ca Ok ede ea Bliza Jane e Alice. Aos olto anos, ele jé tom eae et ca SO oe ee eee See ec eet Ce eee eee ae Cer aE ate en a a eee para televisio Os pioneiros. O jovem fazenci SO Ce ee Se CR eu aaa para mais de quarenta idiomas e tornou-s« Soe ck ce So Re Tce eee Ce Asso TEXTO INTEGRAL EDICOES BESTBOLSO O jovem fazendeiro Laura Ingalls Wilder (1867-1957) nasceu na pequena casa de madeira descrita em Uma casa na floresta. Durante a infancia e a adolescéncia viajou de carroga com a fami- lia pelo Meio-Oeste dos Estados Unidos, em uma aventu- ra posteriormente narrada nos nove livros da série Little House. Apés casar-se com Almanzo Wilder, Laura conti- nuou a vida de pioneira por alguns anos, até estabelecer- se definitivamente em Mansfield, no estado do Missouri. Sua obra foi traduzida para mais de quarenta idiomas e tornou-se um classico da literatura infantojuvenil norte- americana. Em 1974, 0s livros que retratam 0 modo de vida da familia Ingalls foram adaptados para a televisio na série Os pioneiros. Volume : Uma casa na floresta Volume 2: © jovem fazendeiro Volume 3: Uma casa na campina Volume 4: A beira do riacho Volume 5: A margem da lagoa prateada Volume 6: 0 longo inverno Volume 7: Anos felizes Volume 8: Uma pequena cidade na campina Volume 9: Os primeiros quatro anos Laura Ingalls Wilder O JOVEM FAZENDEIRO Tradugio de CONSTANTINO PALEOLOGO Tlustrages de MAURICIO VENEZA. I*edicdo BestBolso RODE JANERO 2012 CIP-BRASIL. CATALOGAGAO NA PUBLICACAO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ‘Wilder, Laura Ingalls, 1867-1957 W664) O jovem fazendeiro / Laura Ingalls Wilder; traducio Constantino Paleslogo; [ilustrages Mauricio Venez}. ~ 1+ ed. ~ Rio de Janciro: BestBolso, 2013. ils 12x18em, (Little House; 2) ‘Traducio de: Farmer Boy Sequéricia de: Uma casa na floresta Continua com: Uma casa ne campina ISBN 978-85-7799.280-5 |. Ficgdo infantojuvenil americana. I, Paledlogo, Constantino, 1922-1966. I. Veneza, Maurico, 195] IIL Titulo. IV. Série. DD: 0285, 1302836 CDU: 087.5, 0 jovum fezendero, de autoria de Laura Ingalls Wider. ‘Titulo nlimero 351 das Edighes BestBolso Primeira edicio impressa em outubro de 2013, ‘Texto revisado conforme o Acordo Ortogrifico da Lingua Portuguesa Titulo original nerte-americano: FARMER BOY Copyright © 1933, 1961 Litle House Heritage Trust. Publicado mediante acordo com HarperCollins Children’ Books, uma divisio da HarperCollins Publishers. Copyright da tradugao © by Distribuidora Record de Servigos de Imprensa S.A, Direitos de reproducio da traducdo cedidos para Edicdes BestBolso, um selo da Editora Best Seller Ltda, Distribuidora Record de Servigos de Imprensa S.A. € Editora Best Seller Ltda sio empresas do Grupo Editorial Record. wwwedicoesbestbolso.com.br Foto de capa: Copyright © 2007 by Mark Tucker/ Merge Left Reps, Inc Design de caps: Simone Villas-Boas, ‘Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugio, no todo ou em part, sem autorizagio prévia por escrito da editora, jam quais forem os meios empregados. Direitos exelusivos de publicagao em lingua portuguesa para o Brasil em formato bolso adguiridas pelas Edicoes BestBolso um selo da Editora Best Seller Ltda. Rua Argentina 171 ~ 20921-380 ~ Rio de Janeiro, R) ~"Tels 2585- 2000 que se reserva a propriedade literitia desta traducio. Impresso no Brasil, ISBN 978-85-7799.280-5 . Dias de escola Era janeiro, na parte norte do estado de Nova York, hé sessenta e cinco anos. A neve densa, por toda parte, enchia os galhos nus dos carvalhos, dos bordos e das faias, cur- vava os ramos verdes dos cedros e abetos vermelhos até fazé-los tocarem os pequenos montes brancos. ‘Ao longo da comprida estrada que atravessava 0 bos- que, um menino seguia penosamente para a escola, com seu irmao mais velho, Royal, e suas duas irmas, Fliza Jane e Alice. Royal tinha treze anos, Eliza Jane, doze e Alice, dez. Almanzo era o mais novo de todos e aquele era 0 seu primeiro dia de aula, porque ainda nao havia completado nove anos. Precisava andar depressa para acompanhar 0 passo dos outros e, além disso, ainda tinha de carregar a merendeira. = Royal é que devia leva-la ~ disse ele. - £ maior que ew. Royal continuava seu caminho, grande e masculo em suas botas, e Eliza Jane disse: ~ Nao, Manzo. Agora é a sua vez de leva-la, porque vo- cé é0 menor. Eliza Jane era mandona, Sabia sempre qual era a melhor a fazer e obrigava Almanzo e Alice a obedecerem. Almanzo apressava-se atrés de Royal e Alice se apres- sava atrds de Eliza Jane, na trilha funda aberta pelos patins 5 dos trends. De cada lado do caminho a neve amontoava- se, alta. A estrada descia por um extenso declive, depois atravessava uma pequena ponte e durante um quilémetro € meio cortava 0 bosque gelado até chegar a escola. frio deixava as pilpebras de Almanzo dormentes e Ihe entorpecia o nariz, mas ele se sentia aquecido dentro de suas boas roupas de la. Eram feitas da la dos carneiros de seu pai. Sua roupa de baixo era branca como a neve, porém a mae havia tingido a 1d de suas roupas externas. O fio de seu casaco e de suas calcas compridas fora tin- gido com casca de nogueira. Em seguida a mie o tecera, molhando e encolhendo pano depois, transformando-o numa pega inteira. Nem vento, nem frio, nem mesmo a chuva torrencial poderiam atravessar 0 bom tecido que amie fizera. Para o peito de Almanzo ela tingira uma étima la ver- melha como uma cereja, e a tecera formando um tecido macio ¢ fino. Era leve, quente e de um lindo vermelho. ‘As compridas calcas marrons de Almanzo abotoavam- se em sua blusa vermelha com uma fileira de brilhantes botdes de metal, em volta de todo 0 corpo. A gola da blusa abotoava-se aconchegadamente até 0 queixo, bem como © comprido casaco de tecido marrom. A mie fizera seu gorro do mesmo tecido, além de abas confortaveis para as orelhas que se uniam debaixo do queixo. Suas luvas ver- melhas estavam amarradas num cordao que passava pelas mangas do casaco e Ihe rodeava 0 pescogo. Isto era para que nao as perdesse. O menino usava um par de meias que passava acolhe- doramente por cima de suas ceroulas, e outro par enfiado 6 por cima de suas compridas calgas marrons. Calgava mo- cassins exatamente iguais aos que os indios usavam. Quando saiam no inverno, as meninas usavam pesados véus amarrados no rosto. Mas Almanzo era menino e seu rosto ficava exposto ao ar gelado. Suas faces estavam ver melhas como magas e o nariz, mais rubro que uma cereja. Depois de ter caminhado dois quilémetros, ficou contente ao ver a escola. Ela se erguia solitaria no bosque enregelado, ao pé do monte Hardscrabble, Saia fumaca da chaminé e o profes- sor havia aberto um caminho até a porta, através dos mon- tes de neve. Cinco garotos grandes estavam lutando na neve alta, junto do caminho. Almanzo ficou assustado quando os viu. Royal fingiu nao estar com medo, mas estava. Eram garotos grandes da Colénia de Hardscrabble e todos tinham medo deles. Quebravam os trends dos meninos pequenos, s6 por di- versio. Pegavam um garotinho, balangavam-no pelas per- nas e depois oatiravam de cabeca para baixo num monte de neve. As veres faziam dois meninos brigarem, embora nio quisessem e pedissem que os deixassem ir. Esses garotos grandes tinham dezesseis ou dezessete anos é sé iam a escola no meio do periodo do inverno. lam para espancar o professor e quebrar os objetos da escola. Gabavam-se de que nenhum professor podia terminar 0 periodo de inverno naquela instituicao, e de fato nenhum professor nunca terminou. Nesse ano, o professor era um mogo magto e palido. Seu nome era Sr. Corse. Gentil e paciente, nunca batia nos meninos quando eles esqueciam como se soletrava uma palavra. Almanzo sentiu-se mal ao pensar em como os 7 garotos grandes derrotariam o Sr. Corse, que nao era sufi- cientemente forte para vencé-los. Fez-se silencio na sala de aula e era possivel ouvir barulho que os garotos grandes estavam fazendo lé fora. Os outros alunos puseram-se a sussurrar perto da grande estufa no meio da sala. O Sr. Corse estava sentado 4 sua mesa, Com uma das faces apciada em sua mao magra, lia um livro. Olhou para cima e disse em tom agradavel: ~ Bom dia. Royal, Eliza Jane e Alice responderam-Ihe polidamen- te, porém Almanzo nada disse. Permaneceu junto mesa, olhando para o Sr. Corse. Este sortiu para ele e falou: ~ Sabe que vou com vocés para casa esta noite? ‘Almanzo estava muito perturbado para responder. ~ Sim — continuou o Sr. Corse. - Ea vez de seu pai. Cada familia no distrito hospedava o professor durante duas semanas. Ele ia de fazerda em fazenda e ficava duas semanas em cada uma. Depois fechava a escola, terminan- do aquele periodo. ‘Ao dizer isso, o Sr. Corse bateu na mesa com a sua ré- ‘gua; estava na hora de comegar a aula. Todos os meninos e meninas dirigiram-se para as suas carteiras. As menina sentaram-se no lado esquerdo da sala e os meninos, no lado direito, com a grande estufa e a caixa de lenha no centro, entre os dois grupos. Os grandes sentavam-se nas cartei- ras de tras, os médios, nos assentos do meio e os pequenos, nas carteiras da frente. Todos os lugares eram do mesmo tamanho. Os garotos grandes mal podiam enfiar os joe- Ihos por baixo das mesas, e 0s pequeninos nao podiam pousar os pés no soalho. 8 Para Almanzo e Miles Lewis aquele era o primeiro dia de aula. Sentaram-se, portanto, na primeira fila e nao ti- nham carteira. Tinham de segurar suas cartilhas. Entao o Sr. Corse aproximou-se da janela e bateu nela, Os garotos grandes amontoaram-se na entrada, zombando e rindo alto. Abriram violentamente a porta, fazendo um enorme barulho, e entraram aos trope¢oes. Bill Ritchie era o chefe. Era quase tio grande quanto o pai de Almanzo; tinha os punhos tao grandes quanto os punhos do pai de Almanzo. Bateu com os pés no chao para sacudir a neve e acomodou-se ruidosamente num assento no fundo da sala, Os outros quatro garotos também fizeram o barulho mais alto que puderam. O Sr. Corse nada disse. Nio era permitido nenhum cochicho na aula, nem agi- . Todos tinham que ficar perfeitamente calados, com 0 olhos fixos na ligo, Almanzo e Miles seguravam suas cartilhas e procuravam nao balangar as pernas. Elas fica- ram to cansadas que comegaram a doer, penduradas na beirada do assento. As vezes uma das pernas chutava de repente, antes que Almanzo pudesse impedi-la. Entdo ten- tava fingir que nada havia acontecido, mas podia sentir 0 Sr. Corse olhando para ele. Nas cadeiras do fundo os garotos grandes cochicha- vam, arrastavam os pés e batiam com 0s livros. O Sr. Corse disse severamente: ~ Um pouco menos de desordem, por favor. Durante um minuto eles permaneceram quietos, de- pois recomegaram. Queriam que o Sr. Corse tentasse cas- tigd-los. Se 0 fizesse, todos os quatro pulariam em cima dele. Finalmente a primeira classe foi chamada e Almanzo pode descer do assento e camirhar, com Miles, até a mesa do professor. O Sr. Corse tomou a cartilha de Almanzo e deu-lhe palavras para soletrar, Quando Royal estava na primeira classe, muitas vezes chegava em casa a noite, com a mao dura e inchada. O professor havia batido com a régua em sua palma porque 0 menino nao sabia a li¢do. Entio o pai disse: = Se 0 professor lhe bater novamente, Royal, vou-lhe dar uma surra que vocé nunca esquecera. Mas 0 Sr. Corse nunca batia na mao de um menino com a sua régua. Quando Almanzo nao soube soletrar uma palavra, 0 Sr. Corse di ~ Fique aqui durante o recreio e aprenda, Na hora do recreio as meninas sairam primeiro, Pu- seram seus gorros € casacos ¢ foram tranquilamente para fora. Quinze minutos depois o Sr. Corse bateu na janela elas entraram, penduraram os agasalhos na entrada e pe- garam de novo 0s livros. Ent4o os meninos puderam sair, Por quinze minutos. Correram para fora, gritando no frio. O primeiro a sair comecou a atirar bolas de neve nos outros. Todos que tinham escorregadores comegaram a subir 0 monte Hardscrabble; colocavam-se de barriga para baixo nos es- corregadores e deslizavam pele comprida e ingreme en- costa, Atiravam-se na neve; corriam, lutavam, atiravam bolas de neve e lavavam os rostos uns dos outros com neve, gritando 0 mais alto que podiam durante todo o tempo. Quando Almanzo teve de ficar na sala durante o re- creio, sentiu-se envergonhado por estar na companhia das meninas. 10 Ao meio-dia todos tiveram permissdo de andar pela sala e conversar tranquilamente. Eliza Jane abriu a meren- deira sobre sua carteira. Tinha pao com manteiga e lin- guica, rosquinhas e macs, e quatro deliciosos pastéis de massa grossa recheados com doce de maga e uma calda saborosa. Depois que Almanzo comeu todas as migalhas de seu pastel e lambeu os dedos, tomou um gole de agua do balde, no qual havia uma concha, que estava em um banco, num dos cantos da sala. Em seguida pés 0 gorro, 0 casaco eas luvas ¢ saiu para brincar. O sol estava brilhando quase a pino. A neve toda era um deslumbramento de faiscas e os lenhadores estavam descendo do monte Hardscrabble. No alto dos trends car- regados de troncos, os homens estalavam seus chicotes e gritavam para os cavalos que faziam retinir as sinetas pr sas em suas correias. Todos os meninos correram para amarrar seus escor- regadores nos patins dos trends, e aqueles que nao os ha- viam trazido treparam nas pilhas de lenha. Passaram alegremente pela escola estrada abaixo. Grandes bolas de neve voavam de um lado para outro. No alto das pilhas, os rapazes lutavam, empurrando-se nos al- tos montes de neve, Almanzo e Miles deslizavam, gritan- do, no escorregador de Miles. Parecia que nao havia se passado um minuto desde que tinham saido da escola. Mas a volta levou muito mais tempo. Primeiro andaram, depois trotaram, em seguida correram, ofegando. Estavam com medo de chegar tarde. Depois contpreenderam que chegariam tarde. O Sr. Corse bateria em todos eles. A escola estava em siléncio. Nao queriam entrar, mas tinham de fazé-lo. Acabaram entrando sem o menor rui- do. O Sr. Corse estava sentado a sua mesa e todas as meni- nas encontravam-se em seus lugares, fingindo estudar. Do lado dos meninos, todos os bancos estavam vazios. Almanzo pés-se em seu assento em meio ao terrivel si- Jéncio. Segurou a cartilha e tentou nao respirar tao alto. 0 Sr. Corse nada disse. Bill Ritchie e os outros garotos grandes nao se impor- tavam. Fizeram o barulho mais alto que puderam quando foram para os seus lugares. O Sr. Corse esperou até que ficassem quietos. Depois disse: ~ Deixarei passar 0 atraso dessa vez. Mas nao permi- tam que acontega novamente. ‘Todos sabiam que os garotos grandes se atrasariam de novo. O Sr. Corse nao poderia puni-los porque eles tinham forca para espancé-lo, E era 0 que pretendiam fazer. 2 2 Tarde de inverno Qacestavaparetosomo o.gsle emiasthoresislamamae, frio, Uma luz cinzenta vinha da neve, mas no bosque as. sombras jd se amontoavam., Ja estava anoitecendo quando Almanzo subiu penosamente a ultima encosta comprida que levava & casa da fazenda, Seguia depressa atrés de Royal, que se apressava atris do Sr. Corse. Alice caminhava rapido atras de Eliza Jane na outra trilha de trend, Mantinham a boca coberta, pro- tegida contra o frio, e nada diziam, O teto da alta casa pintada de vermelho estava rodeado de neve e em todos os beirais havia uma franja de grandes pingentes de gelo. A frente da casa estava escura, mas uma trilha de trené ia até os grandes celeiros e um caminho fora aberto até a porta lateral. Nas janelas da cozinha bri- Ihava a luz da vela, Almanzo nao entrou na casa. Deu a merendeira a Alice ¢ se dirigiu aos celeiros com Royal. Havia trés celeiros compridos e enormes em trés lados do terreno quadrado, Juntos, eram os melhores celeiros de toda a regiao. Almanzo entrou primeiro no Curral dos Cavalos. Fi- cava de frente para a casa e tinha trinta e cinco metros de comprimento. A fileira de baias dos cavalos ficava no B A escola estava em siléncio, Nao queriam entrar, mas tinham de fazé-lo. Acabaram entrando sem o menor rui- do. O Sr. Corse estava sentado a sua mesa e todas as meni- nas encontravam-se em seus lugares, fingindo estudar. Do lado dos meninos, todos os bancos estavam vazios, Almanzo pés-se em seu assento em meio ao terrivel si- léncio. Segurou a cartilha e tentou nao respirar tao alto. O Sr. Corse nada disse. Bill Ritchie e os outros garotos grandes nao se impor- tavam. Fizeram o barulho mais alto que puderam quando foram para os seus lugares. O Sr. Corse esperou até que ficassem quietos. Depois disse: ~ Deixarei passar 0 atraso dessa vez. Mas nao permi- tam que aconteca novamente. Todos sabiam que os garotos grandes se atrasariam de novo. O Sr. Corse nao poderia puni-los porque eles tinham forca para espancé-lo. E era o que pretendiam fazer. 2 2 Tarde de inverno Qvaxestava peredoscomo o.selo eos galhosesialayam.no, frio. Uma luz cinzenta vinha da neve, mas no bosque as sombras jé se amontoavam, Ja estava anoitecendo quando Almanzo subiu penosamente a ultima encosta comprida que levava a casa da fazenda. Seguia depressa atrds de Royal, que se apressava atras do Sr. Corse, Alice caminhava rapido atras de Eliza Jane na outra trilha de trend. Mantinham a boca coberta, pro- tegida contra o frio, e nada diziam. O teto da alta casa pintada de vermelho estava rodeado de neve e em todos os beirais havia uma franja de grandes pingentes de gelo. A frente da casa estava escura, mas uma trilha de trend ia até os grandes celeiros e um caminho fora aberto até a porta lateral. Nas janelas da cozinha bri- Thava a luz da vela. Almanzo nao entrou na casa. Deu a merendeira a Alice ¢ se dirigiu aos celeiros com Royal. Havia trés celeiros compridos e enormes em trés lados do terreno quadrado. Juntos, eram 0s melhores celeiros de toda a regio. Almanzo entrou primeiro no Curral dos Cavalos. Fi- cava de frente para a casa e tinha trinta e cinco metros de comprimento. A fileira de baias dos cavalos ficava no B meio; num dos extremos achava-se a divisao dos bezerros, e depois dela o acolhedor galinheiro; no outro extremo fi- cava a Casa das Carrogas. Era tio grande que duas car- rocas ¢ 0 trend podiam ser guardades ali, restando ainda muito espaco para desatrelar os cavalos. Dali os cavalos iam para suas baias, sem tornarem a sair para o frio. © Celeito Grande comegava no extremo oeste do Curral dos Cavalos, e formava o lado oeste do patio. No meio do Celeiro Grande ficava 0 Patio Grande. Enormes portas davam para ele, do lado da campina, permitindo a entrada das carrogas carregadas. De um lado ficava a grande baia de feno, com quinze metros de comprimento e seis de largura, cheia de feno até 0 teto. Além do Patio Grande havia quatorze estdbulos para as vacas € os bois. Mais adiante ficava o abrigo das maquinas e, mais & frente, o abrigo das ferramentas. Dobrava-se en- tao a esquina, chegando ao Celeiro-Sul. Nele ficavam a sala de forragem, o chiqueiro, o curral dos bezerros, e entdo 0 Patio do Celeiro-Sul. Era 0 patio de debulhar. Era ainda maior que o Patio do Celeiro Grande eo moinho de vento ficava ali. Além do Patio, havia um abrigo para os bezerros e, depois dele, o curral das ovelhas. Era sé 0 que havia no Celeiro-Sul. Uma cerrada cerca de madeira, com trés metros e meio de altura, erguia-se no lado leste da area. Os trés celeiros enormes e a cerca circundavam acolhedoramente o patio. O vento uivava ea neve batia contra eles, mas nao conse- guiam entrar. Por mais tempestuoso que fosse o inverno, ‘a neve nunca se acumulava mais de meio metro no patio abrigado. “ Quando Almanzo entrava nos grandes celeiros, pas- sava sempre pela pequena porta do Curral dos Cavalos. Gostava de cavalos. Ali ficavam eles, em suas baias espaco- as, limpos, lustrosos, de um marrom-brilhante, com suas compridas caudas e crinas negras. Os cavalos trabalha- dores, tranquilos e prudentes ruminavam placidamente seu feno. Os de trés anos enfiavam os focinhos através das grades e pareciam murmurar entre si. Entdo, suavemen- te, fungavam um sobre o pescaco do outro: gia morder ¢ todos relinchavam, rodopiavam e pulavam, brincando. Os cavalos velhos viravam a cabega e olhavam como avés para os netos. Mas os potros corriam anima- dos, em suas patas magras, olhando espantados. Todos conheciam Almanzo. Esticavam as orelhas seus olhos brilhavam suavemente quando 0 viam. Os de trés anos avancavam sofregamente e enfiavam as cabecas para fora a fim de acaricid-lo com o focinho. Seus foci- nhos, com alguns poucos pelos duros, eram macios como veludo, e nas testas os pelos finos e curtos eram lisos como seda. Os pescogos arqueavam-se altivamente, firmes e re- dondos, e as crinas negras caiam sobre eles como pesadas franjas. Era possivel passar a mao ao longo daqueles pes- cogos firmes e curvados, sentindo o calor que havia por baixo da crina, Mas Almanzo dificilmente se atrevia a fazé-lo. Nao lhe permitiam tocar os belos cavalos de trés anos, Nao podia entrar em seus estabulos nem mesmo para limpé-los. Ele s6 tinha oito anos e 0 pai nao o deixava lidar com os ca- valos jovens ou com os potros. O pai ainda nao confiava nele, porque os potros e os cavalos novos, ndo amansados, tornam-se nao adestraveis com muita facilidade. um deles fin- 15 Um menino que nao entende do assunto podia assustar um cavalo novo, ou aborrecé-lo, ou mesmo bater nele, & isto o estragaria. Aprenderia a morder, a pular e a odiar pessoas, € entéo nunca seria um bom cavalo. Almanzo entendia do assunto; nunca assustaria ou magoaria nenhum daqueles belos potros. Sempre se mos- traria tranquilo, gentil e paciente; nao espantaria um po- tro nem gritaria para ele, nem mesmo se lhe pisasse 0 pé. Mas 0 pai nao acreditava nisso. ‘Almanzo, portanto, s6 podia ficar olhando com von- tade pera os ansiosos cavalos de trés anos. Apenas Ihes tocava os focinhos aveludados ¢ depois se afastava rapi- damente deles e enfiava seu camisolio de celeiro por cima das suas boas roupas de escola. O pai ja havia dado Agua a todos os animais e ele come- ‘ava, agora, a dar-lhes comida. Royal e Almanzo apanha- ram osforcados e foram de estabulo em estdbulo limpando © feno sujo que estava no chao e espalhando feno fresco das manjedouras, formando camas limpas para as vacas, os bois, os bezerros e as ovelhas. Nao precisavam fazer camas para os porcos, porque eles as preparavam sozinhos e as mantinham limpas. {No Celeiro-Sul, os dois bezerrinhos de Almanzo esta- vam num estébulo. Aproximaram-se das grades, empur- randc-se quando o viram. Ambos eram ruivos e um deles tinha uma mancha branca na testa. Almanzo dera-lhe 0 nome de Estrela. O outro era de um vermelho brilhante, chamou-o de Brilhante. Estrela e Brilhante eram bezerros muito novos, nao tinham nem um ano. Seus pequenos chifres apenas ha- viam comegado a endurecer no pelo macio das orelhas. 16 Almanzo cogou-os ao redor dos chifrezinhos, porque os bezerros gostam disso. Eles enfiaram os focinhos umidos por entre as barras e lamberam Almanzo com suas lin- guas dsperas. ‘Almanzo apanhou duas cenouras na manjedoura das vacas, partiu-as em pequenos pedacos e deu-os um a uma Estrela e Brilhante, Depois tornou a pegar 0 forcado e subiu no alto dos montes de feno. Estava escuro la em cima; apenas uma pe- quena luz saia das laterais furadas da lanterna de lata pen- durada na passagem estreita, embaixo. Royal e Almanzo nao tinham permissdo para levar uma lanterna aos celei- ros de feno, por medo de causarem um incéndio, Mas 0 creptisculo ainda lhes permitia enxergar. Trabalhavam depressa, enchendo de feno as manjedou- ras embaixo. Almanzo ouvia 0 mastigar de todos os ani- mais que estavam comendo. Os celeiros de feno estavam quentes, aquecidos pelo calor dos animais, e tinham um cheiro de poeira adocicada, Havia também um odor de ca- valos, vacas e da la dos carneiros. Antes que os meninos terminassem de encher as manjedouras, sentiram o cheiro bom de leite quente espumando no balde do pai. Almanzo apanhou o proprio banquinho de ordenhar um balde, e sentou-se no estabulo de Blossom para orde- nha-la. Suas mios ainda nao eram suficientemente fortes para ordenhar uma vaca mais dificil, mas conseguiria com Blossom e Bossy. Eram boas vacas velhas que davam seu leite com facilidade e quase nunca sacudiam 0 rabo nos olhos dele ou derrubavam o balde com a pata traseira. Sentou-se com o recipiente entre as pernas e ordenhou firmemente. Esquerda, direita! suish, suish! os jorros de "7 leite cafam obliquamente no balde, enquanto as vacas lam- biam seu grio e mastigavam suas cenouras. Os gatos do celeiro curvavam os corpos contra os cantos doestabulo, ronronando alto, Eram mansose gordos de tan- to comerem ratos. Todos os gatos do celeiro tinham orelhas grandes ¢ rabo comprido, sinal de que eram bons cagadores de ratos, Dia e noite patrulhavam os celeiros, mantendo os camundongos ¢ ratos afastados das caixas de alimentos, e na hora da ordenha ganhavam latas de leite quente. Quando Almanzo acabou de ordenhar, encheu as latas Para os gatos. Seu pai entrou no estabulo de Blossom, com © proprio banco ¢ balde, e sentou-se para tirar as tltimas e mais ricas gotas de leite da teta de Blossom. Mas Almanzo havia tirado tudo. Entao 0 pai entrou no estabulo de Bossy. Saiu imediatamente e disse: = Vocé é um bom ordenhador, filho. Almanzo deu uma volta e pulou sobre a palha do chao. Estava contente demais para dizer alguma coisa. Agora podia ordenhar as vacas sozinho; 0 pai nao precisava vir terminar o servigo. Muito em breve poderia ordenhar as vacas mais dificeis. O paide Almanzo tinha agradaveis olhos azuis, que re- luziam. Era um homem corpulento, de comprida e macia barba castanha e lisos cabelos castanhos. Seu casaco de la marrom chegava até o topo das botas altas. As duas abas do casaco cruzavam-se sobre o seu peito largo, circundan- do-lhe confortavelmente a cintura. A camisa pendia por cima das calgas de bom tecido marrom. O paiera um homem importante. Tinha uma boa fazen- da, Montava os melhores cavalos daquela regido. Sua pala- vra era tio valiosa quanto sua assinatura e todos os anos 18 punha dinheiro no banco. Quando o pai ia a Malone, todas as pessoas da cidade falavam com ele respeitosamente. Royal chegou com seu balde de leite e a lanterna. Disse em vor baixa = Pai, Bill Ritchie, 0 grandio, foi hoje a escola. Os buracos da lanterna de lata pontilhavam tudo com pequeninas luzes e sombras. Almanzo péde ver que o pai estava com um ar solene; passou a mao pela barba e sacu- diu lentamente a cabeca. Almanzo esperava ansiosamente, mas 0 pai apenas pegou a lanterna, deu uma ultima volta pelosceleiros para ver se tudo estava em ordem paraa noi- te. Depois foram todos para casa. O frio era cruel. A noite estava negra e silenciosa, ¢ as estrelas eram pequeninas faiscas no céu. Almanzo ale- grou-se por entrar na grande cozinha, aquecida pelo fogo ealluz das velas. Estava com muita fome. A agua da cisterna esquentava em um recipiente sobre 0 fogio. Primeiro o pai, depois Royal, em seguida Alman- zo, foram um de cada vez & bacia, sobre o banco, perto da porta. Almanzo enxugou-se na toalha de linho e depois, diante do pequeno espelho na parede, dividiu seu cabelo timido e 0 penteou cuidadosamente. Acozinha estava cheia de saias-balio, balancando e ro- dopiando. Eliza Jane e Alice apressavam-se, preparando 0 jantar. O cheiro gostoso de presunto frito fez 0 estomago de Almanzo encolher-se. Perou um instante na porta da copa. A mae coava leite, no extremo da copa comprida; ela estava de costas para ele. As prateleiras, de ambos os lados, encontravam-se re- pletas de coisas boas para comer. Grandes queijos amare- los, grandes bolos marrons de aguicar de bordo e formas 20 encrostadas de pao recém-cozido, quatro bolos grandes e uma prateleira inteira cheia de tortas. Uma das tortas esta- va cortada, e um pedacinho da crosta achava-se tentado- ramente partido; ninguém sentiria falta dele. A mao de Almanzo ainda nao tinha se mexido. Mas Eliza Jane gritou: - Almanzo, pare com isso! Mamie! A mie nao se virou. Disse apenas: ~ Deixe isso ai, Almanzo. Vai estragar seu jantar. Era tao sem sentido que Almanzo ficou zangado. Um pedacinho nao poderia estragar um jantar. Estava com fo- me e nao o deixariam comer nada enquanto nao tivessem posto a mesa. Nao havia légica alguma nisso. Mas, natu- ralmente, nao podia dizer a mae o que pensava; tinha de obedecer sem dizer absolutamente nada. Mostrou a lingua a Eliza Jane. Ela nada pdde fazer; es- tava com as maos ocupadas. Depois se dirigiu rapidamen- te para a sala de jantar. A luz do lampiio era ofuscante. Junto da estufa de aquecimento instalada na parede, 0 pai conversava sobre politica com o Sr. Corse. O rosto do pai estava voltado para a mesa de jantar e Almanzo nao se atreveu a tocar em coi- sa alguma, Havia tentadoras fatias de queijo, um prato com um. trémulo queijo de porco; pratos de vidro com geleias, gela- tinas e conservas, uma alta jarra de leite e uma vasilha de fumegantes feijées cozidos com um bom pedago de carne de porco gorda na crosta marrom. Almanzo olhou para tudo aquilo e alguma coisa se contorceu dentro de sua barriga. Engoliu a saliva e se afas- tou lentamente. a A sala de jantar era bonita. No papel de parede, cor de chocolate, havia listras verdes e fileiras de pequeninas flo- res vermelhas. A mie tecera o tapete de forma que seus desenhos combinassem com 0s da parede. Tingira os pe- dacos de pano de verde e chocolate, depois os teceu em tiras, com uma pequena listra vermelha e as tiras brancas trangadas entre elas. Os altos armirios dos cantos estavam cheios de coisas fascinantes ~ conchas marinhas, madeira petrificada, pedras curiosas e livros. E acima do centro da mesa pendia um castelo aéreo. Alice o fizera de palha de trigo amarela e limpa, ajustada com grande leveza e com pedacos de pano de cores vivas nos cantos. Balancava e tremia ao menor sopro de ar. A luz do lampio brilhava na superficie da palha dourada. Mas, para Almanzo, a visio mais bela era a de sua mae trazendo a grande travessa de louga e madeira de salguei- 10, cheia de presunto frito. A mie era baixa, gorda e bonita. Tinha olhos azuis e seus cabelos castanhos eram como as penas macias de um pdssaro. Uma fileira de pequenos botdes vermelhos corria verticalmente na frente de seu vestido de la, cor de vinho, desde a larga gola de linho branco até o avental branco amarrado ao redor da cintura. Suas mangas largas pendiam como grandes sinos vermelhos de cada lado na travessa. Passou pela porta fazendo uma pequena pausa e dando um impulso porque sua saia-balao era mais larga que a passagem. O cheiro do presunto era quase mais forte do que Al- manzo podia suportar. ‘A mie colocou a travessa na mesa. Olhou para verificar se tudo estava pronto e sea mesa havia sido adequadamente 2 arrumada, Tirou o avental e pendurou-o na cozinha. Es- perou até que o pai acabasse 0 que estava dizendo ao Sr. Corse. E finalmente falot — James, o jantar est4 na mesa. Pareceu decorrer muito tempo até que todos tomassem seus lugares. O pai sentou-se a cabeceira da mesa, a mae no outro extremo. Entéo todos baixaram a cabega enquanto © pai pedia a Deus que abencoasse a comida. Depois disso houve uma pequena pausa antes que o pai desdobrasse seu guardanapo e o enfiasse sob a gola do casaco. Ele comegou a servir os pratos. Primeiro o do Sr. Corse. Depois 0 da mae. Em seguida o de Royal, Eliza Jane e Alice. Finalmente, serviu 0 prato de Almanzo. = Obrigado - disse Almanzo. Esta era a Gnica palavra que tinha permissdo de dizer 4 mesa. Criangas deviam ser vistas, néo ouvidas. O pai, a mie e 0 Sr. Corse podiam falar, porém Royal, Eliza Jane, Alice e Almanzo nao deviam dizer palavra alguma. Almanzo comeu os feijdes cozidos, polpudos e doces. ‘Comeu o pedago de carne de porco salgada, que derreteu em sua boca como um creme. Comeu batatas cozidas com molho de carne, Comeu presunto. Mordeu profundamen- te 0 pio aveludado coberto de uma lustrosa camada de manteiga e comeu a crocante crosta dourada. Demoliu um alto monte de massa de nabos e uma colina de abdbora- amarela cozida, Entéo suspirou e enfiou 0 guardanapo s profundamente na gola de sua blusa vermelha. Co- meu ameixas em conserva, geleia de morangos, doce de uvae picles picantes de casca de melancia. Sentiu-se muito confortével por dentro. Lentamente, comeu um grande pedago de torta de abébora, mai 23 Ouviu o pai dizer ao Sr. Corse: ~ Royal me disse que os rapazes de Hardscrabble foram a escola hoje. ~ Sim - respondeu o Sr. Corse. ~ Soube que eles andam dizendo que vio expulsé-lo. ~ Suponho que tentarao - tornou a dizer o Sr. Corse. O pai soprou o cha no seu pires. Provou-o, depois esva- ziou o pires e derramou nele um pouco mais de cha. — J expulsaram dois professores — disse. — No ano pas- sado machucaram tanto Jonas Lane que ele acabou mor- rendo dos ferimentos algum tempo depois. ~ Eu sei - respondeu o Sr. Corse. = Jonas Lane e eu fo- mos companheiros de escola. Era meu amigo. O pai nao disse mais nada. 24 3 Noite de inverno Docpotsdojanter, Almanzo cuidoude seus sapatos. Todas as noites sentava-se junto do fogio da cozinha e os esfrega- va com sebo, Aproximava-os do fogio, para esquenté-los, e depois esfregava no couro, com a mio, o sebo derretido, Seus mocassins estariam sempre confortavelmente macios e Ihe conservariam os pés secos se 0 couro estivesse bem engraxado. Ele sé parava de esfregar quando 0 couro nao absorvia mais sebo. Royal também se sentou perto do fogao, engraxando suas botas. Almanzo nao podia usar botas; tinha de usar mocassins, porque era um menino pequeno. A mie e as meninas lavavam a louga e varriam a copa a cozinha. Lé embaixo, na grande adega, o pai cortava cenouras e batatas para alimentar as vacas no dia seguinte. Terminado o trabalho, o pai subiu da adega trazendo um grande jarro de sidra doce e uma panela cheia de ma- 4s. Royal apanhou uma panelinha de pipocas. A mae aba- fou o fogo da cozinha com cinzas, para a noite, e depois que todos sairam apagou as velas, Acomodaram-se confortavelmente junto a grande es- tufa da sala de jantar, instalada na parede. As costas da estufa davam para a sala de estar, onde ninguém entrava, 25. Ouviu o pai dizer ao Sr. Corse: ~ Royal me disse que os rapazes de Hardscrabble foram a escola hoj ~ Sim ~ respondeu o Sr. Corse. ~ Soube que eles andam dizendo que vio expulsé-lo. ~ Saponho que tentarao ~ tornow a dizer 0 Sr. Corse. O pai soprou o cha no seu pires. Provou-o, depois esva- ziou o pires e derramou nele um pouco mais de cha, ~ Jé expulsaram dois professores - disse. - No ano pas- sado machucaram tanto Jonas Lane que ele acabou mor- rendo dos ferimentos algum tempo depois. ~ Ba sei ~ respondeu o Sr. Corse. - Jonas Lane e eu fo- mos companheiros de escola. Era meu amigo. O pai nao disse mais nada 24 3 Noite de inverno Depois do jantar, Almanzo cuidou de seus sapatos. Todas as noites sentava-se junto do fogao da cozinha e os esfrega- va com sebo. Aproximava-os do fogio, para esquenté-los, € depois esfregava no couro, com a mao, 0 sebo derretido. Seus mocassins estariam sempre confortavelmente macios e lhe conservariam os pés secos se 0 couro estivesse bem engraxado. Fle 6 parava de esfregar quando 0 couro nio absorvia mais sebo. Royal também se sentou perto do fogio, engraxando suas botas. Almanzo nao podia usar botas; tinha de usar mocassins, porque era um menino pequeno. A mie e as meninas lavavam a louga e varriam a copa € a cozinha. La embaixo, na grande adega, o pai cortava cenouras e batatas para alimentar as vacas no dia seguinte, ‘Terminado 0 trabalho, o pai subiu da adega trazendo um grande jarro de sidra doce e uma panela cheia de ma- as. Royal apanhou uma panelinha de pipocas. A mae aba- fou 0 fogo da cozinha com cinzas, para a noite, e depois que todos sairam apagou as velas. Acomodaram-se confortavelmente junto a grande es- tufa da sala de jantar, instalada na parede. As costas da estufa davam para a sala de estar, onde ninguém entrava, 25 salvo quando havia visitas. Era uma bela estufa; aquecia a sala de jantar ea sala de visitas, sua chaminé esquentava 0s quartos de dormir no sobrado, e o seu topo inteiro era um forno. Royal abriu sua porta de ferro e, com 0 atigador, partiu ‘os pequenos pedacos de lenha carbonizadas numa infini- dade de brasas rubras. Pés trés punhados de milho para pipocas no grande pipoqueiro de arame e 0 agitou sobre as chamas. Pouco depois um grao pipocou, depois outro, depois trés ou quatro ao mesmo tempo e, de repente, cen- tenas de grios de milho explodiam furiosamente. Quando a grande bacia estava cheia de fofas pipocas brancas e saltitantes, Alice derramou manteiga derretida sobre elas, mexeu-as ¢ salgou-as. Estavam quentes, esta- lantes, deliciosamente amanteigadas e salgadas, e todos podiam comer quanto quisessem. ‘A mie fazia tricd sentada em sua cadeira de balanco de espaldar alto, O pai raspava cuidadosamente um novo cabo de machado com um pedaco de vidro quebrado. Royal esculpia uma corrente de elos pequeninos num ga- Iho macio de pinheiro, ¢ Alice estava sentada em sua al- mofada, fazendo o seu bordado de la. E todos comiam pi- pocas ¢ maga, bebiam sidra doce, menos Eliza Jane, que lia em voz alta as noticias do jornal semanal de Nova York. Almanzo sentara-se num tamborete perto da estufa, uma maga na mao, uma tigela de pipocas ao lado e sua caneca de sidra sobre 0 chao da lareira, perto de seus pés. Mordia a suculenta maga, depois comia algumas em seguida tomava um gole de sidra. Comegou a pensar na pipoca. 26 A pipoca é americana. Somente os indios comiam pipoca, até chegarem a América os Pais Peregrinos. No primeiro Dia de Agao de Gragas, os indios, convidados a jantar, foram e derramaram sobre a mesa uma grande sa- cola de pipocas. Os Pais Peregrinos nio sabiam o que era, nem as Maes Peregrinas. Os indios as haviam preparado, mas provavelmente nao estavam muito boas. Talvez nao as. tivessem amanteigado nem salgado e estariam frias depois de terem sido transportadas numa sacola de couro. Almanzo examinava cada grao antes de comé-lo. Eram todos de formas diferentes. Havia comido milhares de pu- nhados de pipocas e nunca encontrara duas iguais. Pen- sou, em seguida, que, se tivesse um pouco de leite, poderia comer pipocas com leite. Pode-se encher um copo de leite até a borda, encher de pipocas outro copo do mesmo tamanho, e depois é possi- vel por dentro do leite todas as pipocas, uma a uma, sem derramar uma gota do leite. Nao se pode fazer isso com pio. Pipocas e leite sao as duas tnicas coisas que podem caber no mesmo lugar. E também fica muito gostoso. Mas Almanzo nao estava com muita fome e sabia que a mae nao queria que mexesse nas vasilhas de leite. Se mexermos no leite quando 0 cre- me esta subindo, ele nao ficard espesso. Assim, Almanzo comeu outra maga, bebeu sidra com pipoca e nada disse a respeito de leite com pipocas. Quando 0 relégio bateu nove horas, era hora de dormir. Royal pés de lado sua corrente e Alice, seu trabalho de la. A mie espetou as agulhas no novelo de lie pai deu corda no alto rélégio. Colocou mais lenha na estufa e fechou os abafadores. ” ~ A noite esté ria - disse o Sr. Corse. - Quarenta graus negativos - disse o pai - e esfriara ainda mais antes do amanhecer. Royal acendeu uma vela e Almanzo acompanhou-0, sonolento, até a porta da escada. O frio na escada fez com que acordasse imediatamente. Subiu correndo os degraus. O quarto estava tao frio que ele mal conseguia desabotoar a roupae vestir sua comprida camisola de ld e seu gorro de dormir. Devia ter-se ajoelhado para rezar, mas nao 0 fez. O nariz doia de frio e os dentes batiam. Mergulhou na macia cama de penas de ganso, entre as cobertas, e puxou-as até onariz. Quando deu por si, 0 relégio alto, la embaixo, estava batendo meia-noite. A escuridao comprimia-lhe os olhos e a testa e parecia cheia de pequenas agulhas de gelo. Ouviu alguém mover-se 14 embaixo, depois a porta da cozinha abriu-se e se fechou. Sabia que o pai fora ao celeiro. Mesmo aqueles grandes celeiros néo eram suficientes para conter toda a fortuna do pai em vacas, bois, cava- los, porcos, bezerros e ovelhas. Vinte e cinco bois novos tinham de dormir debaixo de um abrigo, no patio. Se fi- cassem parados a noite inteira, com aquele frio que estava fazendo, morreriam congelados. Portanto, & meia-noite, naquele frio terrivel, o pai saia de sua cama quente e ia acordé-los. La fora, na noite escura e fria, o pai despertava os bois novos. Estalava o chicote e corria atris deles, ao redor do patio. Ele corria e os mantinha galopando, até que se aque- cessem com 0 exercicio. Almanzo tornou a abrir os olhos e a vela estava derre- tendo sobre a escrivaninha. Viu Royal vestindo-se. Sua 28 respiragdo saia branca no ar. A luz da vela era mortiga, como se a escuridao tentasse apagi-la. De stibito Royal desapareceu, a vela ea mie chamava ao pé da escada: - Almanzo! © que ha com vocé? Esta doente? Ja sio cinco horas! 10 estava mais ali Ele se arrastou para fora da cama, tremendo. Enfiou as calgas e a blusa, desceu correndo para se abotoar perto da estufa. O pai c Royal tinham ido para os celeiros. Alman- zo apanhou os vasilhames de leite ¢ saiu répido. A noite parecia muito grande e quieta e as estrelas reluziam como gotas de neve no céu escuro. Terminadas as tarefas matinais, voltou com o pai e Royal para a cozinha quente. O café estava quase pronto. Como cheirava bem! A mie fazia panquecas e a grande travessa azul, aquecida sobre a estufa, estava cheia de gor- dos bolos de linguic¢a com molho marrom. Almanzo lavou-se 0 mais depressa que pode e penteou 08 cabelos. Tao logo a mae acabou de coar o leite, todos se sentaram e o pai pediu que a refeicao fosse abencoada. Havia mingau de aveia com muito creme grosso e acit- car de bordo. Havia batatas fritas e dourados bolos de trigo sarraceno, tantos quantos Almanzo quisesse comer, com linguiga e molho de carne, ou com manteiga e calda de bordo. Havia conservas, geleias, gelatinas e rosquinhas. Almanzo, porém, gostava mais da torta de mag, com seu suco espesso e rico e sua crosta quebradiga. Comeu dois grandes pedagos da torta. Depois, com as abas do gorro protegendo-lhe as orelhas e 0 cachecol enrolado até 0 nariz, a merendeira 29 na mao enluvada, partiu pela comprida estrada para mais um dia na escola. Nao queria ir. grandes espancass porque ja estava com quase nove anos. Nao queria estar lé quando os garotos *m_ Sr. Corse. Mas tinha de ir 4 escola, 30 4 Surpresa DD saciesentencacs etic niclanhaalanes Acsefatee i monte Hardscrabble, e os meninos atrelavam seus escorre- gadores aos patins dos trends e deslizavam estrada abaixo. Mas s6 corriam um pouco e voltavam a tempo. Entretan- to, Bill Ritchie, 0 grandalhao, e seus amigos nao se impor- tavam que o Sr, Corse os punisse. Um dia s6 voltaram muito depois do recreio. Quando entraram aos tropecées na sala, riram impudentemente para ele. © Sr. Corse esperou até que se sentassem. Depois, se levantou, pilido, e diss: ~ Se isto acontecer de novo, eu os castigarei. Todos sabiam o que aconteceria no dia seguinte. Quan- do Royal e Almanzo chegaram em casa, naquela noite, contaram tudo ao pai. Almanzo disse que aquilo nao era justo. O Sr. Corse nao tinha tamanho para lutar com um s6 daqueles garotos grandes, e todos pulariam em cima dele ao mesmo tempo. ~ Gostaria de ser grande o bastante para lutar com eles! falou. ~ Filho, o Sr. Corse foi contratado para ensinar na es- cola - respondeu o pai. - Os administradores da escola foram francos e leais com ele; contaram-lhe o que o espe- rava. Ele aceitou. O problema é dele, no nosso, 31 na mao enluvada, partiu pela comprida estrada para mais um dia na escola. Nao queria ir. Nao queria estar la quando os garotos grandes espancassem o Sr. Corse. Mas tinha de ir escola, porque ja estava com quase nove anos. 30 4 Surpresa Diriamente, a0. meio-dia, op Jenhadores desciam..o monte Hardscrabble, e os meninos atrelavam seus escorre- gadores aos patins dos trends e deslizavam estrada abaixo. Mas s6 corriam um pouco e voltavam a tempo. Entretan- to, Bill Ritchie, o grandalhao, e seus amigos nao se impor- tavam que o Sr. Corse os punisse. Um dia s6 voltaram muito depois do recreio. Quando entraram aos tropegées na sala, riram impudentemente para ele. O Sr. Corse esperou até que se sentassem. Depois se levantou, palido, e disse: = Se isto acontecer de novo, eu os castigarei. Todos sabiam o que aconteceria no dia seguinte. Quan- do Royal e Almanzo chegaram em casa, naquela noite, contaram tudo ao pai. Almanzo disse que aquilo nao era justo. O Sr. Corse nao tinha tamanho para lutar com um s6 daqueles garotos grandes, e todos pulariam em cima dele a0 mesmo tempo. ~ Gostaria de ser grande o bastante para lutar com eles! falou, = Filho, 0 Sr. Corse foi contratado para ensinar na es- cola ~ respondeu o pai. - Os administradores da escola foram francos ¢ leais com ele; contaram-lhe 0 que 0 espe- rava, Ele aceitou. © problema € dele, ndo nosso. 31 — Mas talvez o matem! ~ exclamou Almanzo. ~ O problema é dele ~ rebateu o pai. ~ Quando um ho- mem aceita um emprego, tem de ficar até terminé-lo. Se Corse ¢ 0 homem que eu penso que é, nao desejaré que ninguém interfira. Almanzo nao péde deixar de repetir: ~ Isso no ¢ justo. Ele nao pode lutar contra os cinco. — Nao me espantarei se vocé tiver uma surpresa, filho — disse o pai. ~ Agora, vocés, meninos, calem-se. O trabalho nao pode esperar a noite inteira. Almanzo, portanto, tratou de trabalhar e nada mais disse. Na manha seguinte, enquanto segurava sua cartilha, nio conseguia estudar. Temia 0 que iria acontecer ao Sr. Corse. Quando a primeira classe foi chamada, nao pode ler a ligio. Precisou ficar com as meninas durante o recreio € teve vontade de ser capaz de bater em Bill Ritchie. ‘Ao meio-dia saiu para brincar e viu o Sr. Ritchie, pai de Bill, descendo 0 monte em seu trend carregado. Todos os meninos ficaram observando 0 Sr. Ritchie. Eraum homem grande e rude, que falava e ria alto. Tinha orgulho de Bill porque ele podia bater em professores e quebrar a escola. Ninguém correu para amarrar um escorregador no tren6 do Sr. Ritchie, mas Bill e os outros garotos grandes subiram no seu monte de madeira. Deslizaram, falando alto, até a curva da estrada, desaparecendo de vista. Os outros meninos pararam de brincar; ficaram conversando sobre o que iria acontecer, Quando o Sr. Corse bateu na janela, eles entraram mui- to quietos e se sentaram sem dizer nada, 32 Naquela tarde ninguém sabia as licdes. O Sr. Corse chamou classe apés classe e eles se levantavam enfiando 0 dedos dos pés numa brecha do soalho, mas nao podiam responder a qualquer pergunta, O Sr. Corse nao castigou ninguém. Disse: ~ Daremos novamente a mesma licio amanha. Todos sabiam que o Sr. Corse nao estaria ld no dia se- guinte. Uma das meninas comecou a chorar, depois trés ou quatro delas baixaram a cabega sobre as carteiras e solugaram. Almanzo teve de ficar imével em seu assento, olhando para a cartilha. Depois de muito tempo, o Sr. Corse chamou-o a mesa para ver se ele ja sabia ler a ligao. Almanzo sabia todas as palavras, mas tinha um né na garganta que nao deixa- va a sua voz sair. Ficou olhando para a pagina enquanto © Sr. Corse esperava. Entio ouviram os garotos grandes chegando. Sr. Corse levantou-se e pés gentilmente a mao no ombro de Almanzo. Fez com que ele voltasse e disse: ~ VA para o seu lugar, Almanzo. A sala estava silenciosa, Todos aguardavam. Os garo- tos apareceram no caminho e se amontoaram na entrada, gritando e empurrando uns aos outros. A porta se abriu ruidosamente e Bill Ritchie irrompeu na sala. Os outros grandalhdes estavam atras dele. O Sr. Corse olhou-os e nao disse nenhuma palavra. Bill Ritchie riu em sua cara e ele também nada falou. Os garo- tos grandes empurraram Bill e este tornou de novo a rir para o Sr, Corse. E entao Bill conduziu o grupo, ruidosa- mente, para os assentos. 3B O Sr. Corse levantou a tampa da mesa e enfiou uma das mios por baixo. Disse, entao: = Bill Ritchie, venha cé. O grandalhao Bill pulou, tirou o paleté, gritando: = Vamos, rapazes! E correu pela passagem. Almanzo sentiu-se mal por dentro; nao queria olhar, mas nao podia deixar de fazé-lo. O Sr. Corse afastou-se da mesa, Sua mao saiu de baixo da tampa da mesa e uma corda comprida, fina € negra sibilou no ar. Era um chicote de couro de boi, com cinco metros de comprimento, O Sr. Corse segurava 0 cabo curto, carrega- do de ferro, que podia matar um boi. O chicote fino e com- prido enrolou-se nas pernas de Bill e 0 Sr. Corse puxou. Bill cambaleou e quase caiu. Rapido como um relampago negro, o chicote rodopiou, golpeou e se enrolou de novo e novamente o Sr. Corse puxou. - Venha cd, Bill Ritchie - recuanco. Bill nao podia alcang4-lo. Cada vez mais rapido o chi- cote sibilava, estalava, enrolava-se e puxava, e o Sr. Cor- se recuava cada vez mais rapidamente, de modo que Bill quase caia no chao. Para cima e para baixo moviam-se eles no espago aberto diante da mesa. O chicote continua- va enrolando-se, arrastando Bill, e o Sr. Corse continuava recuando e golpeando. ‘As calcas de Bill estavam todas cortadas, sua camisa rasgara-se, seus bracos sangravam com os golpes do chico- te, que ia e vinha, sibilando, rapido demais para ser visto. Bill correu e o soalho tremeu quando 0 chicote o fez cair se ele, puxando Bill e 34 de costas. Levantou-se praguejando e tentou alcangar a cadeira do professor, para atird-la. O chicote fez com que rodopiasse. Comecou a gemer como um bezerro. Chora- mingou e suplicou. O chicote continuava rodopiando, sibilando, puxan- do. Pouco a pouco foi levando Bill até a porta. O Sr. Corse atirou-o para fora, de cabeca, bateu a porta e trancou-a. Voltando-se rapidamente, disse: - Agora, John, venha cA. John estava no corredor entre as carteiras, olhando. Virou-se e tentou fugir, mas o Sr. Corse, avangando rapi- damente, apanhou-o com 0 chicote e o puxou. - Oh, por favor, por favor, por favor, professor! ~ supli- cou John, O Sr. Corse nao respondeu. Estava ofegante e o suor corria-lhe pelas faces. O chicote enrolava-se e sibilava, empurrando John para a porta. O Sr. Corse atirou-o para fora, bateu a porta e se virou. Os outros garotos grandes haviam aberto a janela. Um, dois, trés, pularam para fora, na neve funda, e de- sapareceram, O Sr. Corse enrolou cuidadosamente o chicote e guar- dou-o na mesa, Enxugou 0 rosto com o lengo, endireitou ocolarinho e disse: ~ Royal, quer fechar a janela, por favor? Royal foi até a janela, pé ante pé, ea fechou. Entao o Sr. Corse chamou a classe de aritmética. Ninguém sabia 4 ligdo. Durante o restante da tarde continuavam sem sa- ber. E ndohouve recreio naquela tarde. Todos haviam se esquecido dele. 35 Almanzo mal podia esperar que as aulas terminassem para poder correr com os outros para fora e gritar: “Os grandalhées foram espancados! © Sr. Corse tinha surrado a quadrilha de Bill Ritchie, da Colonia Hardscrabble!” Mas Almanzo s6 soube da melhor parte da historia quando ouviu seu pai conversando com 0 Sr. Corse na- quela roite, durante o jantar. ~ Royal me disse que os meninos disse o pai. — Nio ~ respondeu o Sr, Corse. ~ Gragas ao seu chicote de couro. ‘Almanzo parou de comer. Olhou para o pai. O pai sa- bia de tudo que ia acontecer. Fora 0 chicote de couro do pai que derrotara Bill Ritchie. Almanzo tinha certeza de que o pai era o homem mais esperto do mundo, 0 maior e 0 mais forte. O pai estava falando, Disse que, enquanto os garotos grandes estavam montados no trené do Sr. Ritchie, di ram que iriam espancar o professor naquela tarde. O Sr. Ritchie pensou que era uma brincadeira boa. Estava tio certo de que os rapazes iriam fazé-lo que contou a todos na cidade que eles ja haviam espancado o professor e, a ca- minho de casa, parou para dizer ao pai que Bill tinha dado uma surra no Sr. Corse e quebrado a escola novamente, ‘Almanzo pensou na surpresa que o Sr. Ritchie devia ter tido quando chegou a casa e viu Bill. (0 0 expulsaram - eo 36 5 Aniversario Nis nabs seuntina-coquante Almanso.comia senate, gau de aveia, o pai disse que era seu aniversario. Almanzo tinha esquecido. Completava nove anos naquela fria ma- nha de inverno, ~ Ha algo para vocé na caixa de lenha ~ disse pai. Almanzo quis ver imediatamente. Mas a mae falou que ficaria doente se ndo comesse a sua refeigao e depois teria de tomar remédios. Ele, entéo, comecou a comer 0 mais rapido que podia, mas ela falou: ~ Nao encha a boca desse modo. As mies sempre falam sobre a maneira que a gente come. E dificil comer de uma forma que lhes agrade. Finalmente a refeigdo terminou e Almanzo foi até a caixa de lenha. La estava uma pequenina canga de bois! O paia fizera de cedro vermelho, de modo que era forte e, ainda assim, leve. Era dele, Almanzo, disse 0 pai. ~ Sim, filho, vocé agora € grande bastante para aman- sar os bezerros. Almanzo nio foi a escola naquele dia. Nao precisava ir 8 escola quando havia coisas mais importantes a fazer. Levou a pequena canga para 0 celeiro e o pai foi com ele. O filho pensou que se manejasse com perfeigdo os bezerros o pai talvez o deixasse ajudar a tratar dos potros no ano seguinte. 7 Almanzo mal podia esperar que as aulas terminassem para poder correr com os outros para fora e gritar: “Os grandalhoes foram espancados! © Sr. Corse tinha surrado a quadrilha de Bill Ritchie, da Colonia Hardscrabble!” Mas Almanzo s6 soube da melhor parte da historia quando ouviu seu pai conversando com o Sr. Corse na- quela noite, durante o jantar. ~ Royal me disse que os meninos nao o expulsaram — disse o pai. ~ Nao - respondeu o Sr, Corse. ~ Gragas ao seu chicote de couro. Almanzo parou de comer. Olhou para o pai. O pai sa- bia de tudo que ia acontecer. Fora o chicote de couro do pai que derrotara Bill Ritchie. Almanzo tinha certeza de que o pai era o homem mais esperto do mundo, 0 maior e mais forte pai estava falando. Disse que, enquanto os garotos grandes estavam montados no trené do Sr. Ritchie, disse- ram que iriam espancar o professor naquela tarde. O Sr. Ritchie pensou que era uma brincadeira boa. Estava tio certo de que os rapazes iriam fazé-lo que contou a todos na cidade que eles ja haviam espancado o professor e, a ca- minho de casa, parou para dizer ao pai que Bill tinha dado uma surra no Sr. Corse e quebrado a escola novamente. Almanzo pensou na surpresa que o Sr. Ritchie devia ter tido quando chegou a casa e viu Bill. 36 5 Aniversario Noa manha seguinte, enquanto Almanzo comia seu min- gau de aveia, 0 pai disse que era seu aniversario. Almanzo tinha esquecido. Completava nove anos naquela fria ma- nha de inverno. ~ Ha algo para vocé na caixa de lenha — disse o pai. Almanzo quis ver imediatamente, Mas a mie falou que ficaria doente se ndo comesse a sua refeigao e depois teria de tomar remédios. Ele, entdo, comegou a comer 0 mais rapido que podia, mas ela falou: - Nao encha a boca desse modo, As maes sempre falam sobre a maneira que a gente come. E dificil comer de uma forma que lhes agrade, Finalmente a refeico terminou e Almanzo foi até a caixa de lenha. Lé estava uma pequenina canga de bois! O paia fizera de cedro vermelho, de modo que era forte e, ainda assim, leve. Era dele, Almanzo, disse o pai. ~ Sim, filho, vocé agora é grande bastante para aman- sar os bezerros. Almanzo nio foi a escola naquele dia, Nao precisava it & escola quando havia coisas mais importantes a fazer. Levou ‘a pequena canga para o celeiro e o pai foi com ele. O filho pensou que se manejasse com perfeicao os bezerros o pai talvez 0 deixasse ajudar a tratar dos potros no ano seguinte. 37 Estrela e Brilhante achavam-se no seu estabulo quen- te, no Celeiro-Sul. Seus pequenos lombos ruivos estavam macios e sedosos de tanto Almanzo esfregé-los, Aproxi- maram-se dele, quando entrou no estabulo, e o lamberam com suas linguas timidas e dsperas. Pensavam que lhes houvesse trazido cenouras, Nao sabiam que ele iria ades- tré-los para se comportarem como bois grandes. O pai ensinou-Ihe a adaptar cuidadosamente a canga naqueles pescogos macios. Devia raspar a parte interna das curvas com um caco de vidro, até que a canga se adap- tasse perfeitamente e a madeira ficasse macia como seda. Entao Almanzo retirou as barras do estabulo e os bezer- ros, maravilhados, seguiram-no ao patio luminoso, frio e coberto de neve. O pai levantou um dos extremos da canga enquanto Almanzo colocava 0 outro no pescogo de Brilhante. Em seguida Almanzo levantou 0 arco por baixo do pescoco de Brilhante e enfiou suas extremidades nos buracos feitos na canga para esse fim. Colocou um pino de madeira atra- vés de uma das extremidades do arco, por cima da canga, prendendo-o no lugar. Brilhante nao parava de torcer a cabega, procurando ver a coisa estranha que Ihe tinham posto no pescoco. Mas Almanzo 0 havia amansado tanto que ele permaneceu tranquilo e o menino Ihe deu um pedago de cenoura. Estrela ouviu-o mastigar e se aproximou para ganhar a sua parte. O pai fez com que ele permanecesse ao lado de Brilhante, sob 0 outro extremo da canga, e Almanzo colocou o outro arco debaixo de seu pescoco e 0 prendeu com 0 pino de madeira. Agora ele jé tinha o seu pequeno rebanho de bois. 38 Entdo 0 pai amarrou uma corda ao redor dos tocos de chifres e Almanzo pegou a corda. Colocou-se diante dos bezerros e gritou: - Vamos! O pescogo de Estrela esticou-se ¢ tornou a se esticar ainda mais. Almanzo puxou até que, finalmente, Estrela avangou, Brilhante bufou e recuou. A canga torceu a cabe- ga de Estrela e o fez parar. Os dois bezerros ficaram espan- tados, imaginando o que teria acontecido, O pai ajudou Almanzo a puxé-los, até que eles ficaram apropriadamente lado a lado, Entao ele disse: — Bem, filho, deixo vocé resolver 0 assunto. E entrou no celeiro, Almanzocompreendeu, entao, que jéera suficientemen- te grande para fazer coisas importantes sozinho. Olhou para os bezerros, de pé na neve, ¢ eles o fitaram inocentemente, Ficou pensando como lhes ensinaria o que significava “Vamos!”. Nao havia maneira alguma de expli- car, Mas tinha de descobrir um modo. ~ Quando eu disser “Vamos!” vocés devem andar para a frente. ‘Almanzo pensou um pouco, deixou os bezerros e foi atéa manjedoura das vacas e encheu os bolsos com cenou- ras. Voltou e ficou na frente dos bezerros o mais distante que péde, segurando a corda na mao esquerda. Enfiou a mao direita no bolso da sua blusa de trabalho. Ai gritou “Vamos!” e mostrou a Estrela e Brilhante a cenoura que tinha na mao. Os dois avangaram sofregamente. ~ O6di! = gritou Almanzo quando eles o alcancaram € pararam para ganhar a cenoura. Deu um pedago a cada 39 um ¢, depois que comeram, recuou de novo e, enfiando a mao no bolso, gritou: - Vamos! Foi espantoso como aprenderam rapidamente que “Va- mos!” significava andar para a frente e “O66il” significa- va parar. Comportavam-se tio bem quanto bois grandes quando o pai apareceu a porta do celeiro e disse: ~ Chega por hoje, filho. Almanzo nao achava que bastasse, mas naturalmente nao podia contradizer o pai. ~ Os bezerros ficam mal-humorados e param de obe- decer se a gente os faz trabalhar demais no principio - observou 0 pai. ~ Além disso, est na hora do almoco, Almanzo mal péde acreditar. A manha inteira havia passado num sé minuto. Tirou os pinos dos arcos, deixou-os cair e levantou a canga do pescogo dos bezerros. Colocou Estrela e Brilhan- te em seu estébulo quente. Entao o pai lhe ensinou a limpar os arcos e a canga com punhados de feno limpo, pendurando-os em seus ganchos. Devia limpé-los sempre, mantendo-0s secos, pois do contrario os bezerros ficariam com o pescoco ferido. Perou um instante no Curral dos Cavalos para olhar 0 potros, Gostava de Estrela e de Brilhante, mas os bezer- ros eram desajeitados e deselegantes comparados aos po- tros esbeltos, bonitos e ligeiros. Suas narinas palpitavam quando respiravam, as orelhas moviam-se rapidas como passaros. Sacudiam a cabega com as crinas esvoagando, pateavam delicadamente com suas pernas esbeltas e pe- quenos cascos, e seus olhos eram cheios de vivacidade. 40 ~ Gostaria de ajudar a amansar um potro - Almanzo aventurou-se a dizer. ~ E trabalho de homem, filho ~ disse o pai. queno engano estraga um 6timo potro. Almanzo nada mais disse. Rumou silenciosamente - Um pe- para casa. ( ) Era estranho comer sozinho com o pai e a mae. Come- ram na mesa da cozinha porque nao havia visitas. A co- zinha estava clara com o brilho da neve la fora. O soalho ¢a mesa estavam brancos de tanto serem esfregados com lixivia e areia. As panelas de folha reluziam como se fos- sem de prata, € 08 vasos de cobre projetavam um brilho dourado nas paredes, a chaleira zumbia, e os geranios, no parapeito da janela, estavam mais vermelhos do que 0 ves- tido da mae. Almanzo estava com muita fome. Comia em silencio, enchendo diligentemente o grande vazio que havia dentro dele, enquanto o pai e a mae conversavam. Quando aca- baram de comer, a mae se pos de pé e comecou a por os pratos na bacia. ~ Encha a caixa de lenha, Almanzo - disse ela. - E de- pois ha outras coisas que vocé pode fazer. Almanzo abriu a tampa da caixa de lenha perto da es- tufa. Ali, bem na frente dele, estava um trend de mao! Mal podia crer que era para ele. Seu presente de aniver- sirio fora a canga de bois. Perguntou: ~ De quem é esse trend, pai? Nao... no é para mim? ‘A mise riu, 0s olhos do pai brilharam e ele indagou: ~ Conhece algum outro menino de nove anos que quei- ra isso? 4 Era um belo tren6. © pai fizera-o de nogueira. Era comprido, estreito e parecia deslizar com velocidade; os patins de nogueira haviam sido encharcados e dobrados em curvas longas e suaves que pareciam prontos para voar., Almanzo tocou a madeira lisa e brilhante. Estava téo per- feitamente polida que nao sentiu nem as pontas dos pinos de madeira que a prendiam. Havia uma barra entre os pa- tins, para seus pés. ~ Vamos, ande! ~ disse a mae, rindo, ~ Leve esse trend la para fora, onde é 0 lugar dele, O frio continuava firmemente em quarenta abaixo de zero, mas o sol estava brilhando, Almanzo brincou a tarde inteira com o seu trend. Ele, naturalmente, nao deslizava na neve macia e alta, mas, na estrada, os patins dos trends tinham aberto duas trilhas lisas e duras. No alto da encos- ta Almanzo empurrava 0 trend, pulava em cima dele e se deixava ir. So que a trilha era estreita e curva, de modo que mais cedo ou mais tarde ele sempre tombaya nos montes de ne- ve. O ligeiro trené corria de um extremo a outro e deitado sobre ele ia Almanzo. Mas quando chegava ao ponto mais baixo pulava fora e tornava a subir a encosta. Entrou varias vezes em casa para apanhar macs, ros- quinhas e bolinhos. La embaixo ainda estava quente e va- zio. No sobrado ouviam-se as pancadas surdas do tear da amide e o clique-claque da lancadeira mével. Almanzo abriu a porta que dava para o telheiro de lenha e ouviu 0 som deslizante e macio de uma plaina e a batida de uma folha de madeira virada. Subiu até a oficina do pai, no s6tao. Suas luvas co- bertas de neve pendiam Ihe pelo cordéo ao redor do 42 pescogo; na mio direita segurava uma rosquinha e na esquerda dois bolinhos. Deu uma mordida na roscae de- pois uma no bolinho. O pai estava sentado na extremidade do banco de aplainar, junto da janela. O banco levantava-se em dire- go a ele e, no topo da inclinagao, havia dois pinos. A sua direita via-se uma pilha de folhas de madeira ésperas, que ele havia cortado, com seu machado, de pedagos curtos de troncos de carvalho. Apanhou uma folha, ajustou a sua extremidade contra 0s pinos e depois passou a plaina sobre a face da madeira. Com uma passada a alisou e, com outra, aplainou a parte superior, deixando-a mais fina que a inferior. O pai virou a folha do outro lado. Dois movimentos naquele lado e es- tava pronto. O pai colocou-a na pilha de folhas terminadas e colocou outra folha de madeira éspera contra os pinos. Suas maos moviam-se suave e rapidamente. Nao para- va nem mesmo quando olhava para cima e piscava para Almanzo. ~ Divertiu-se muito, filho? ~ perguntou. ~ Pai, posso fazer isso? ~ disse Almanzo. O pai recuou no banco, para abrir espaco na sua frente. Almanzo montou e enfiou o resto da rosquinha na boca. Segurou os cabos da comprida lamina em suas mos e pas- sou-a cuidadosamente na folha de madeira. Nao era tao facil quanto parecia. E 0 pai, entdo, pos suas grandes maos sobre as de Almanzo e, juntos, alisaram a folha de madeira. Em seguida 0 filho virou-a e aplainaram 0 outro lado. Fra tudo-que ele queria fazer. Pulou do banco e foi ver a mie. 43 As maos dela voavam e o pé direito batia no pedal do tear. A langadeira movia-se para a frente e para tras, de sua mio direita para a sua mao esquerda e de volta outra vez, entre os fios iguais da urdidura, e eles se cruzavam rapidamente, apanhando depressa 0 fio que a langadeira deixara atras de si. Tud! dizia o pedal. Claqueti-claque! dizia a langadeira. ‘Tump! dizia a barra manual, ¢ a langadeira movia-se de volta. A oficina da mae era grande e clara, aquecida pela cha- miné da estufa, A sua pequena cadeira de balanco ficava perto de uma janela e, ao lado dela, uma cesta cheia de trapos para tapete, prontos para serem costurados, Em um canto estava a roca abandonada. Ao longo de uma parede havia prateleiras cheias de novelos de la vermelha, mar- rom, azul e amarela que a mae tingira no tiltimo verao, Mas os fios no tear eram cinzentos, da cor das ovelhas. A mie estava tecendo la sem tintura, de um carneiro bran- co e de um carneiro preto, entrelacadas. ~ Para que é isso? ~ perguntou Almanzo. ~ Nio aponte com 0 dedo, Almanzo - disse a mae. — Nao sao bons modos. Ela falava alto, acima do ruido do tear. ~ Para quem ¢ isso? - indagou Almanzo, desta vez sem apontar. ~ Para Royal. E a roupa da Academia - respondeu a mae. Royal iria para a Academia, em Malone, no inverno se- guinte, e a mae estava tecendo a fazenda para a sua roupa nova. 44 Assim, tudo era acolhedor e confortavel na casa, Al- manzo desceu a escada, apanhou mais duas rosquinhas no pote e foi novamente brincar lé fora com o seu trend. As sombras nao tardaram a descer nas encostas do lado. leste e ele teve de guardar o trend e ajudar a dar 4gua aos. animais, pois estava na hora das tarefas noturnas. © poco ficava bastante longe dos celeiros. Havia uma casinhola por cima da bomba e a agua corria por uma ca- Iha através da parede, caindo dentro da grande tina do lado de fora. As tinas estavam cobertas de gelo e a manive- la da bomba estava tao fria que queimava a mao de alguém que a tocasse sem luvas. Os meninos as vezes desafiavam outros meninos a lam- ber a manivela de uma bomba no inverno. Mas Almanzo sabia que nao devia aceitar 0 desafio. A lingua se congelava ¢ ficava grudada no ferro e, ent4o, ou a pessoa morria de fome ou dava um puxio e deixava um pedaco da lingua na manivela. Almanzo, dentro da fria casinhola da bomba, comegou a bombear com toda a sua forca, enquanto o pai levava os cavalos 4 tina do lado de fora. Primeiro 0 pai trouxe as parelhas, com os potrinhos acompanhando suas mies. Depois trouxe os potros mais velhos, um de cada vez. Ain- da nao estavam bem amansados e empinavam, pulavam e se empurravam, por causa do frio. Mas o pai segurava-os com firmeza e nao deixava que se afastassem. Almanzo bombeava o tempo todo, o mais depressa que podia. A 4gua jorrava da bomba com um som frio e os cavalos enfiavam seus trémulos focinhos dentro dela e a bebiam rapidamente. 45 Entio o pai segurou a manivela da bomba. Bombeou até encher a tina grande e depois foi ao celeiro e trouxe 0 gado todo. Nao era preciso guiar 0 gado até a Agua. Os bois e as vyacas vieram ansiosamente até a tina e beberam enquanto ‘Almanzo bombeava, depois voltaram rapidamente para 0 calor dos estdbulos, e cada qual foi para seu proprio lugar. Cada vaca entrou em seu estabulo e colocou a cabega entre seus batentes. Elas nunca se enganavam. pai nao sabia se isso ocorria porque eram mais inte- ligentes que os cavalos, ou porque eram tao pouco inteli- gentes que faziam tudo por habito, Entio Almanzo apanhou o forcado e comegou a limpar 08 estébulos, enquanto o pai colocava medidas de aveia e de ervilha nas manjedouras. Royal voltou da escola e os trés acabaram juntos os trabalhos, como de costume. O aniversario de Almanzo havia terminado. Pensou que tinha de ir a escola no dia seguinte. Mas, naquela noite, 0 pai disse que era tempo de cortar o gelo. Almanzo podia ficar em casa, para ajudar, e Royal também. 46 6 Enchendo o depésito de gelo O taitigoestavasso fio queuntveers combareiadebais xo dos pés. Um pouco de agua atirada ao ar caia em pe- quenas bolas de gelo. Mesmo no lado sul da casa, ao meio- dia, a neve nado amolecia. Era o tempo perfeito para cortar gelo, pois, quando se levantavam os blocos do lago, nao pingava agua alguma; ela se congelava instantaneamente. Osol estava se erguendo e todas as encostas cobertas de neve, no lado leste, achavam-se réseas a sua luz; Almanzo, agasalhado em seu manto de peles, sentado entre o pai e Royal no trend grande, rumou para o lago junto do Rio das Trutas. Os cavalos trotavam vivamente, sacudindo os cordoes de suas campainhas que tilintavam. A respiragao saia-lhes das narinas em forma de vapor e os patins do trend chia- vam sobre a neve dura, O ar frio encrespava-se dentro do nariz dormente de Almanzo, mas a cada minuto que pas- saya o sol brilhava mais intensamente, produzindo faiscas de luz vermelha e verde sobre a neve e, através dos bos- ques, cintilava a luz branca nos pingentes de gelo. Ollago ficava a uma distancia de um quilémetroe meio, passandg pelos bosques, e em determinado momento 0 pai saltou para por as maos sobre os focinhos dos cavalos. a7 Entdo o pai segurou a manivela da bomba. Bombeou até encher a tina grande e depois foi ao celeiro e trouxe o gado todo, Nio era preciso guiar o gado até a agua. Os bois e as, vacas vieram ansiosamente até a tina e beberam enquanto Almanzo bombeava, depois voltaram rapidamente para 0 calor dos estabulos, e cada qual foi para seu proprio lugar. Cada vaca entrou em seu estbulo e colocou a cabeca entre seus batentes. Elas nunca se enganavam. O pai nao sabia se isso ocorria porque eram mais inte- ligentes que os cavalos, ou porque eram tao pouco inteli- gentes que faziam tudo por habito. Entéo Almanzo apanhou o forcado e comegou a limpar ‘0s estibulos, enquanto o pai colocava medidas de aveia e de ervilha nas manjedouras. Royal voltou da escola ¢ os trés acabaram juntos os trabalhos, como de costume. O aniversario de Almanzo havia terminado. Pensou que tinha de ir a escola no dia seguinte. Mas, naquela noite, 0 pai disse que era tempo de cortar o gelo. Almanzo podia ficar em casa, para ajudar, e Royal também. 46 6 Enchendo o depdsito de gelo O tempo estava tio frio que a neve era como areia debai- xo dos pés. Um pouco de agua atirada ao ar caia em pe- quenas bolas de gelo. Mesmo no lado sul da casa, ao meio- dia, a neve nao amolecia. Era o tempo perfeito para cortar gelo, pois, quando se levantavam os blocos do lago, nio pingava agua alguma; ela se congelava instantaneamente. Osol estava se erguendo e todas as encostas cobertas de neve, no lado leste, achavam-se réseas a sua luz; Almanzo, agasalhado em seu manto de peles, sentado entre o pai e Royal no trend grande, rumou para o lago junto do Rio das Trutas. Os cavalos trotavam vivamente, sacudindo os cordées de suas campainhas que tilintavam. A respiragao safa-lhes das narinas em forma de vapor e os patins do trené chia- vam sobre a neve dura. O ar frio encrespava-se dentro do nariz dormente de Almanzo, mas a cada minuto que pas- sava o sol brilhava mais intensamente, produzindo faiscas de luz vermelha e verde sobre a neve e, através dos bos- ques, cintilava a luz branca nos pingentes de gelo. O lago ficava a uma distancia de um quilometro e meio, passando pelos bosques, e em determinado momento 0 pai saltou para por as maos sobre os focinhos dos cavalos. 7 Oar havia se congelado dentro das narinas, dificultando- Ihes a respiragdo. As maos do pai derreteram o gelo e eles. continuaram vivamente o trote. Joe Francés e John Preguicoso estavam esperando per- to do lago quando o trené chegou. Eram franceses que moravam em pequenas casas de troncos, no bosque. Nao tinham lavouras. Cagavam e pescavam, cantavam, pilhe- riavam e dangavam e bebiam vinho tinto em vez de sidra. Quando © pai precisava de um homem para ajudé-lo, os franceses trabalhavam para ele, ganhando em pagamento carne de porco salgada, dos barris da adega. Esperavam perto do lago gelado, em suas botas altas, casacos xadrez e gorros de pele com orelheiras também de pele, ¢ sua respiracao congelada se depositava sobre seus compridos bigodes. Tinham um machado ao ombro e car- regavam serras de tracar. A serra de tragar tem uma lamina comprida e estreita, com cabos de madeira nas extremidades. Dois homens tém de puxé-la de um lado para outro sobre 0 que quer que desejem serrar, Mas nao podem cortar gelo dessa ma- neira, porque o gelo era um todo sélido, no chao, como um soalho. Nao tinha por onde serra-lo. Quando o pai os viu, comegou a rir e gritou: - Ainda nao tiraram cara ou coroa?: Todos riram; menos Almanzo. Ele nao conhecia a pia- da. Mas Joe Francés lhe contou: — Uma vez mandaram dois irlandeses cortar gelo com uma serra de tracar. Nunca haviam serrado gelo. Olharam para o gelo, olharam para o tragador, até que, afinal, Pat ti- rou do bolso uma moeda e disse: “Vamos, Jamie, seja justo. Tiremos cara ou coroa para ver quem vai lé para baixo.” 48 Entdo Almanzo riu daquela ideia de que alguém pu- desse entrar na agua escura e fria, embaixo do gelo, para puxar uma das extremidades da serra. Era engracado que houvesse pessoas que nao soubessem como serrar gelo. Acompanhou 0 outros, através do gelo, até o meio do lago. Ali soprava um vento cortante, carregando punha- dos de neve a sua frente. Por cima da égua profunda o gelo era liso e escuro, quase sem neve alguma. Almanzo obser- vou enquanto Joe e John abriam nele um grande buraco de trés pontas. Levantaram os pedagos de gelo quebrado e 0 levaram para fora, deixando 0 buraco cheio de agua. - Tem uns cinquenta centimetros de espessura - disse John Preguicoso. ~ Entdo serre o gelo com cinquenta centimetros - tor- nou o pai. John Preguigoso e Joe Francés ajoelharam-se na beira- da do buraco. Mergulharam suas serras dentro da agua e comegaram a movimenté-las. Ninguém puxava os extre- mos das serras dentro d’dgua, Lado a lado, abriram duas brechas retas no gelo, com cinquenta centimetros de largura e setenta centimetros de comprimento. Entdo, com 0 machado, John partiu o gelo, soltando um bloco de cinquenta centimetros de lar- gura, © mesmo de espessura e setenta centimetros de comprimento, que se ergueu um pouco e comecou a flu- tuar, livre. Com um pau, John empurrou o bloco em direcdo ao buraco de trés pontas e, quando o extremo se levantou, quebrando a fina camada de gelo que se estava formando sobre a Agua, Joe serrou cinquenta centimetros dele. O pai 9 apanheu os cubos com as suas grandes pingas de gelo, ¢ os colocou no trend. Almanzo correu até a beira do buraco, observando a serra. De stibito, escorregou. Sentiu-se caindo de cabeca na égua escura. Suas maos nada podiam agarrar. Sabia que mergulharia e seria arras- tado para baixo do gelo sélido. A corrente rapida o levaria para Id, onde ninguém poderia encontré-lo. Ele se afoga- ria, preso pelo gelo, no escuro. Joe Francés agarrou-o a tempo. Ouviu um grito e sentiu uma mao forte agarrar-Ihe uma das pernas, com uma pancada terrivel, e viu-se de barriga para baixo, so- bre o bom gelo sélido. Levantou-se. O pai aproximava- se, correndo. Postou-se diante dele, grande e terrivel. ~ Vocé devia levar a maior surra de sua vida ~ disse 0 pai. ~ Sim, pai - balbuciou Almanzo. Sabia disso. Sabia que deveria ter sido mais cuidado- so. Um menino de nove anos j4 é bem grandinho para nao pensar antes de agir. Almanzo sabia disso e sentiu-se envergonhado. Encolheu-se dentro da roupa e suas per- nas tremeram, com medo de apanhar. As surras do pai doiam. Mas ele sabia que merecia apanhar. O chicote es- tava no trend. - Nio vou bater em voce desta vez - decidiu 0 pai. - Mas trate de nao se aproximar desse buraco. ~ Sim, pai - sussurrou Almanzo, Afastou-se do buraco e nao se aproximou mais dele. O pai acabou de carregar o trend, Estendeu os cobertores 50 por cima do gelo e Almanzo viajou sobre os blocos, com © pai e Royal, de volta ao depésito de gelo perto dos ce- leiros. O depésito de gelo era composto de tébuas, com grandes brechas entre elas. Ficava bem acima do chao, sobre blocos de madeira, e parecia uma grande gaiola. Somente o soalho e 0 teto eram sélidos. No piso havia um grande monte de serragem, que o pai havia apanha- do na serraria ‘Com uma pa, o pai espalhou a serragem no chao, numa altura de dez centimetros. Sobre ela colocou os cubos de gelo, deixando alguns centimetros de distancia entre cada um. Depois voltou ao lago e Almanzo foi trabalhar com Royal no depésito de gelo. Encheram com serragem todas as brechas entre os cubos e as socaram com paus, até que ficasse bem duras. Depois espalharam serragem por cima do gelo ¢ onde ela estivera, no chao, puseram mais cubos ¢ os firmaram com serragem. Depois cobriram tudo com dez centimetros de serragem. Trabalhavam © mais depressa que podiam, mas antes de terminarem o pai jé estava de volta com outra carga de gelo. Depositou outra camada de cubos separados entre si por dez centimetros de distancia e partiu de novo, dei- xando-os encher as brechas, firmemente, com serragem, espalhando-a também por cima dos cubos e formando um novo monte. Trabalhavam tao duramente que 0 exercicio 0s aque- ceu, mas muito antes do meio-dia Almanzo estava mais faminto do que um lobo. Nao podia interromper o traba- 32 lho durante tempo suficiente para ir até a casa buscar uma rosquinha. Seu estomago estava completamente vazio, roendo-o por dentro. Estava ajoelhado no gelo, pondo serragem nas brechas, com as maos enluvadas, e comprimindo-a com um pau, 0 mais depressa que podia. Perguntou a Royal: = O que vocé gosta mais de comer? Falaram sobre costeletas, peru recheado, pao de milho torrado e outras coisas boas. Mas Almanzo disse que 0 que ele mais gostava no mundo era de magis e cebolas fritas. Quando finalmente foram almogar, havia sobre a mesa um grande prato delas! A mae sabia do que ele mais gosta- va e havia preparado para ele. Almanzo comeu quatro grandes pordes de magas € cebolas fritas juntas. Comeu rosbife com molho, puré de batatas e cenouras com creme, nabos cozidos e incontaveis fatias de pio com manteiga e geleia de maca silvestre. = Dé muito trabalho alimentar um menino que esta crescendo - disse a mae, colocando em seu prato vazio uma grossa fatia de pudim e passando-lhe a jarra de creme ado- ado, salpicado de noz-moscada. Almanzo derramou 0 espesso creme sobre as macs aninhadas na crosta fofa. A calda marrom misturou-se as beiradas do creme. Almanzo pegou a colher e comeu até 0 Ultimo pedago. Entao, até a hora das tarefas noturnas, ele e Royal tra- balharam no depésito de gelo. Trabalharam durante todo 0 dia seguinte e também no outro. Até o anoitecer do ter- ceiro dia 0 pai ajudou-os a espalhar a tiltima camada de 53 serragem sobre os cubos mais altos de gelo, no topo do teto do depésito. E assim terminou o servigo. Enterrados na serragem, os blocos de gelo nao se derre- teriam no verao, pot mais quente que fosse. Seriam desen- terrados, um de cada vez, e a mie prepararia sorvete de creme, limonada e gemada gelada. 5a 7 Noite de sébado Fire tate esti Al nate pessmaicy die irteteltoaben: thando no forno. Quando Almanzo entrou na cozinha para apanhar 0s vasilhames de leite, ela preparava rosqui- nhas. O lugar estava impregnado de um cheiro quente e gostoso, bem como do cheiro de trigo do pao fresco, do aroma pungente de bolos e de pastéis. Almanzo apanhou a maior rosca da travessa e mordeu- the a beirada torrada. A mie enrolava a massa dourada, cortando-a em tiras compridas que depois enrolava, do- brava e torcia. Seus dedos voavam com agilidade; a gente mal podia vé-los. As tiras pareciam torcer-se sozinhas sob suas maos e pular para dentro da grande panela de cobre em que a gordura quente redemoinhava, Plump!, mergulhavam elas no fundo, produzindo bo- Ihas. Entao, rapidas, vinham a tona, para flutuar e inchar- se lentamente até que rolavam, mergulhando na gordura as suas costas de um dourado palido e mostrando suas gordas barrigas marrons. Elas giravam, disse a mae, porque estavam torcidas. Al- gumas mulheres faziam-nas com uma forma nova, redon- das e com um buraco no centro. Mas roscas redondas nao viravam sozinhas dentro da panela. A mae nao tinha tem- po a perder enrolando roscas, era mais répido torcé-las. 55 serragem sobre os cubos mais altos de gelo, no topo do teto do depésito. E assim terminou o servico. Enterrados na serragem, os blocos de gelo ndo se derre- teriam no vero, por mais quente que fosse. Seriam desen- terrados, um de cada vez, € a mae prepararia sorvete de creme, limonada e gemada gelada. 34 7 Noite de sabado ia nditeadreatiado salinee passara o dia inteiro traba- Ihando no forno, Quando Almanzo entrou na cozinha para apanhar os vasilhames de leite, ela preparava rosqui- nhas. © lugar estava impregnado de um cheiro quente e gostoso, bem como do cheiro de trigo do pao fresco, do aroma pungente de bolos e de pastéis. Almanzo apanhou a maior rosca da travessa e mordeu- Ihe a beirada torrada. A mae enrolava a massa dourada, cortando-a em tiras compridas que depois enrolava, do- brava e torcia, Seus dedos voavam com agilidade; a gente mal podia vé-los. As tiras pareciam torcer-se sozinhas sob suas maos e pular para dentro da grande panela de cobre em que a gordura quente redemoinhava, Plump!, mergulhavam elas no fundo, produzindo bo- has. Entao, rapidas, vinham a tona, para flutuar e inchar- se lentamente até que rolavam, mergulhando na gordura as suas costas de um dourado pilido e mostrando suas gordas barrigas marrons. Elas giravam, disse a mae, porque estavam torcidas. Al- gumas mulheres faziam-nas com uma forma nova, redon- das e com um buraco no centro. Mas roscas redondas nao viravam:sozinhas dentro da panela. A mae nao tinha tem- po a perder enrolando roscas, era mais répido torcé-las. 55 Almanzo gostava do dia de trabalhar no forno. Mas nao gostava das noites de s4bado. Nelas nao havia horas aconchegadas junto a estufa, com magis, pipocas e sidra. A noite de sabado era noite de banho. Depois do jantar, Almanzo e Royal tornavam a vestir seus casacos, gorros, cachecdis ¢ luvas, Levavam uma tina do banheiro la para fora, até a cisterna. Com a neve, tudo era fantastico. As estrelas pareciam congeladas no céu e somente uma luz muito fraca vinha da vela da cozinha. O interior da cisterna estava coberto de gelo grosso e, no centro, onde o gelo era quebrado todos os dias para im- pedir que a barrica estourasse, 0 buraco se tornava cada vez menor. Royal tratou de parti-lo, mas, quando sua ma- chadinha penetrou nele com uma pancada liquida, a agua subiu rapidamente, porque gelo a estava comprimindo por todos os lados, Eestranho que a 4gua aumente de volume quando ne- va. Todas as outras coisas ficam menores no frio. Almanzo comecou a encher a tina com agua e pedagos flutuantes de gelo. Apanhar égua através do pequeno bura- co eraum trabalho frio ¢ lento, e ele, entao, teve uma ideia. Compridos pingentes de gelo pendiam dos beirais da cozinha. No alto formavam um sélido pedaco de gelo, de- pois iam afinando até que suas pontas quase tocavam a neve. Almanzo segurou um e puxou, mas apenas a ponta se quebrou. A machadinha havia grudado ao chao do alpendre, congelada, onde Royal a tinha deixado, porém Almanzo soltou-a com um puxao. Levantou-a com as mios e gol- 56 peou os pingentes, Uma avalanche de gelo desabou, esta- lando. Foi um barulho glorioso. ~ Oba, me da aqui! - disse Royal, mas Almanzo tornou a golpear os pingentes; o barulho foi mais alto que antes. - Vocé é maior do que eu; bata neles com seus punhos disse Almanzo. Assim, Royal golpeou os pingentes com os punhos; Al- manzo tornou a golped-los com a machadinha. O barulho foi estrondoso. Almanzo e Royal gritavam e golpeavam mais pingen- tes. Grandes pedacos de gelo caiam no chao do alpendre e outros pedagos voavam na neve. Ao longo dos beirais ha- via falhas, como se o teto houvesse perdido alguns dentes. A mie abriu a porta da cozinha. ~ Deus nos guarde! - exclamou ela. - Royal, Almanzo! Vocés estio machucados? ~ Nao, mae ~ respondeu Almanzo, humildemente. = O que é isso? O que estio fazendo? Almanzo sentiu-se culpado. Mas na verdade eles esta- vam trabalhando, nao brincando. ~ Apanhando gelo para a gua do banho, mae disse ele. Santo Deus! Nunca ouvi tanto barulho! Precisam gritar como Comanches? ~ Nao, mae - respondeu Almanzo. Os dentes da mie tiritavam no frio e ela fechou a porta. Almanzo e Royal apanharam silenciosamente os pingen- tes caidos e em siléncio encheram a tina. Estava tao pesada que eles cambaleavam ao carregé-la eo pai teve de levanta- la para colocé-la sobre o fogo da cozinha. O gelo derreteu enquanto Almanzo engraxava seus mo- cassins e Royal suas botas. Na copa a mie estava enchendo ST a panela de feijées cozidos, colocando cebolas, pimenta, um pedago de gordura de porco e por cima de tudo rolos de melago. Entéo Almanzo viu-a abrir as barricas de farinha. Ela jogou farinha de centeio e fub4 no grande jarro amare- lo, acrescentou leite, ovos e outras coisas, e deitou tudo na grande panela cheia de massa amarelo-acinzentada, ~ Vocé traz a massa, Almanzo; nao a derrame - disse ela. Apanhou a panela de feij6es e Almanzo seguiu-a mais devagar com a pesada panela de massa. © pai abriu as grandes portas do forno e a mae pds nele os feijées e o pao. Cozeriam lentamente ali dentro, até a hora do jantar de domingo. Entdo Almanzo ficou sozinho na cozinha, para tomar © seu banho. Sua roupa de baixo limpa estava pendura- da nas costas de uma cadeira, para arejar-se e se aquecer. O pano de lavar, a toalha e a panelinha de madeira com sabao mole estavam noutra cadeira. Trouxe outra tina do alpendre de lenha e colocou-a no cho, diante da porta aberta do fogio. Tirou a blusa, um pé de meia e as calcas. Depois der- ramou um pouco de agua quente da tina sobre o fogdo na tina que estava no chao. Em seguida tirou o outro pé de meia € a roupa de baixo. Sua pele nua sentiu-se bem ao calor que vinha do fogio. Esquentou-se e pensou que bem podia vestir a sua roupa de baixo limpa, sem tomar banho algum, Mas a mie saberia assim que ele entrasse na sala de jantar, Entrou, portanto, na égua, que Ihe cobriu os pés. Apa- nhou, com os dedos, um pouco de sabio mole marrom na 58 panelinha e encharcou com ele o pano de lavar. Depois esfregou 0 corpo inteiro. A gua estava quente ao redor dos dedos dos pés, mas ele sentia frio no corpo. Sua barriga molhada sol- tava vapor com o calor do fogéo, mas suas costas imi- das arrepiavam-se de frio. Quando se virou, as costas pareciam empolar-se, mas a sua frente estava muito fria. ‘Tratou, portanto, de lavar-se 0 mais depressa que péde, enxugou-se, enfiou a camiseta quente, as compridas ce- roulas de algodao e a comprida camisola de dormir de la. Entao, lembrou-se das orelhas. Tornou a apanhar pa- no de lavar e esfregou as orelhas e a nuca. Em seguida pos ‘© gorro de dormir. Sentiu-se bem € muito limpo, sua pele estava macia dentro das roupas frescas e quentes. Aquela era a sensagio da noite de sabado, Era agradavel, mas Almanzo nao gostava tanto dela a ponto de tomar um banho para senti-la, Se pudesse fazer 0 que queria, s6 tomaria banho na primavera. Nao precisava limpar a tina porque, se saisse de casa depois do banho, apanharia um resfriado. Alice a esvazia- ria e lavaria antes de tomar banho. Depois Eliza Jane es- vaziaria a tina de Alice e Royal a de Eliza Jane e a mae a de Royal. Mais tarde, & noite, o pai esvaziaria a da mae ¢ tomaria seu banho. Na manha seguinte ele esvaziaria a tina pela ultima vez. Almanzo entrou na sala de jantar em suas roupas de baixo limpas e brancas, com suas meias, camisola de dor- mir e gorro. A mie olhou-o e ele se aproximou para ser examinado. 59 Ela pds de lado 0 croché e inspecionou-lhe as orelhas, a nuca eo rosto bem-lavado com sabao. Deu-lhe um abrago apertado. — Muito bem! Va correndo para a sua cama! Eleacendeu uma velae subiu correndo a escada gelada, soprou a vela e pulou sobre a fria e macia cama de penas. Comegou a fazer suas oragdes, mas adormeceu antes de termind-las. 8 Domingo Quando Almanzo entrou penosamente na cozinha, na manha seguinte, carregando duas transbordantes vasilhas de leite, a mae estava preparando um monte de panquecas, porque era domingo. A grande travessa azul sobre a tampa do fogio estava cheia de enormes bolos ¢ linguica; Eliza Jane cortava pas- tis de maga e Alice servia o mingau de aveia, como de cos- tume. Mas a pequena travessa azul era aquecida na parte traseira do fogao e sobre ela erguiam-se, como altas torres, dez pilhas de panquecas. Dez panquecas coziam na grelha fumegante e, tao logo icavam prontas, a mae acrescentava outra fatia a cada pi- tha, passava bastante manteiga e a cobria com agticar de bordo. A manteiga e o aguicar misturavam-se ¢ impreg- navam as fofas panquecas, gotejando pelas extremidades torradas. Essas eram panquecas empilhadas. Almanzo gostava mais delas do que de qualquer outra espécie de panquecas. A mie continuou a prepara de comer seu mingau de aveia, Nunca fazia panquecas su- ficientes. Eles comiam pilha apés pilha e Almanzo ainda estava comendo quando a mae recuou sua cadeira e disse: ~ Deus nos guarde! Oito horas! Tenho de voar! s até Os outros acabarem a Ela pés de lado 0 croché e inspecionou-lhe as orelhas, a nuca ¢ 0 rosto bem-lavado com sabao, Deu-lhe um abraco apertado. ~ Muito bem! Vé correndo para a sua cama! Ele acendeu uma vela e subiu correndo a escada gelada, soprou a vela e pulou sobre a fria e macia cama de penas. Comegou a fazer suas oragdes, mas adormeceu antes de termina-las. 60 8 Domingo Quando Almanzo entrou penosamente na cozinha, na manha seguinte, carregando duas transbordantes vasilhas de leite, a mae estava preparando um monte de panquecas, porque era domingo. A grande travessa azul sobre a tampa do fogio estava cheia de enormes bolos ¢ linguiga; Eliza Jane cortava pas- téis de maga e Alice servia o mingau de aveia, como de cos- tume. Mas a pequena travessa azul era aquecida na parte seira do fogio e sobre ela erguiam-se, como altas torres, pilhas de panquecas. Dez panquecas coziam na grelha fumegante e, tio logo ficavam prontas, a mae acrescentava outra fatia a cada pi- Jha, passava bastante manteiga e a cobria com agticar de bordo. A manteiga e 0 acticar misturavam-se e impreg- nayam as fofas panquecas, gotejando pelas extremidades torradas. Essas eram panquecas empilhadas, Almanzo gostava mais delas do que de qualquer outra espécie de panquecas. A mie continuou a preparé-las até os outros acabarem de comer seu mingau de aveia, Nunca fazia panquecas su- ficientes. Eles comiam pilha apés pilha e Almanzo ainda ¢stava comendo quando a mie recuou sua cadeira e disse: ~ Deus nos guarde! Oito horas! Tenho de voar! tr des 6 A mie sempre voava. Seus pés sempre andando, suas maos movendo-se tio répidas que mal se podia vé-las. Nunca se sentava durante o dia, exceto junto de sua roca ou de seu tear, ¢ entdo suas maos voavam, seus pés batiam, a roca transformava-se numa confusa mancha, ou o tear estalava, tump! tud! cliqueti claque! Mas nas manhas de domingo ela fazia todo mundo correr também. pai esfregava e escovava os mansos cavalos marrons até brilharem. Almanzo tirava 0 pé do trené e Royal polia os arreios de prata, Atrelavam os cavalos e depois iam para casa vestir suas roupas de domingo. A mie estava na copa, enfeitando a crosta do pastelio de galinha dominical. Trés galinhas gordas achavam-se no pastelao, debaixo do molho borbulhante. A mae espalhava a crosta e encrespava as pontas e o molho aparecia através dos dois pinheiros que ela desenhara na massa. Colocou © pastelio no forno, juntamente com os feijées e 0 pao de centeio. O pai encheu o fogao com troncos de nogueira € fechou as portinholas enquanto a mie corria para prepa- rar as roupas dele e vestir-se. ‘As pessoas pobres tinham de vestir, aos domingos, rou- pas de tecidos feitos em casa, ¢ Royal e Almanzo vestiam fazerdas de li. Mas o pai, a mae e as meninas trajavam- se elegantemente, com roupas que a mie fizera de tecidos comprados em lojas e produzidos por maquinas. Fizera o terno do pai com excelente fazenda negra. O palets tinha uma gola de veludo e sua camisa era feita de morim francés. Suas meias eram de seda preta e, aos do- mingos, nao usava botas; usava sapatos de fino couro de boi. A mie usava um vestido marrom de Ia fina, com uma gola de renda branca, habadas brancos nos punhos, sob as 6 grandes mangas em forma de sino. Ela tricotara a renda com fios finissimos e era como teia de aranha. Ao redor de suuas mangas havia fileiras de veludo, bem como no peito, € fizera seu chapéu do mesmo veludo marrom, com cordées sob 0 queixo também de veludo marrom. Almanzo sentia-se orgulhoso ao ver a mae em suas be- las roupas dominicais. As meninas também estavam bo- nitas, mas ele nao sentia 0 mesmo a respeito delas. Suas saias-balio eram tao grandes que Royal e Alman- zo mal cabiam dentro do trend. Tinham de encolher-se e deixar que as saias-balio ficassem por cima de seus joe- Ihos. E, se eles se mexessem um pouquinho, Eliza Jane gri- tava logo: ~ Tenham cuidado, nao se mexam tanto! E Alice se queixave — Oh, meu Deus, minhas fitas esto desarrumadas! Mas, depois que se acomodavam todos debaixo das mantas de pele de bifalo, com tijolos quentes nos pés, 0 pai deixava os cavalos saltitantes seguirem e Almanzo es- quecia tudo o mais. O trené corria como o vento. Os belos cavalos reluziam 0 sol; tinham os pescogos arqueados, as cabegas levan- tadas e suas patas esbeltas fustigavam a estrada nevada. Pareciam voar. As lustrosas crinas e rabos esvoagavam ao vento, impelidos para trés pela velocidade. pai sentava-se reto e altivo, segurando as rédease dei- xando 0s cavalos correrem 0 mais depressa que podiam. Nunca usava o chicote; seus cavalos eram mansos e perfei- tamente treinados. Tinha apenas de puxar ou afrouxar as rédeas e eles Ihe obedeciam. Eram os melhores cavalos do estado de Nova York, ou talvez do mundo inteiro. Malone 6 ficava a dois quilémetros, porém o pai nunca partia antes de faltarem trinta minutos para a hora da igreja. Aquela parelha trotava os dois quilometros inteiros; ele os guar- daria no estabulo, os cobririae estaria nos degraus da igre- ja quando 0 sino tocasse. ‘Almanzo mal podia suportar a ideia de que teriam de Passar anos e anos antes que ele segurasse as rédeas e con- duzisse cavalos daquela maneira. De repente, 0 pai jé estava conduzindo o trend para os abrigos da igreja, em Malone. Os abrigos formavam uma construgao comprida e baixa que cobria os quatro lados de uma praga. Entrava-se nela por um portéo. Cada homem que pertencia a igreja pagava o aluguel de um abrigo, de acordo com suas posses, ¢ 0 pai tinha o melhor. Era tao grande que entrou nele para desatrelar os cavalos, e ld ha- via manjedouras e espaco para feno ¢ avei © pai deixou Almanzo ajudar a por cobertas sobre os cavalos enquanto a mie ¢ as meninas sacudiam as saias € alisavam as fitas. Em seguida todos caminharam tranqui- lamente para a igreja. O primeiro toque do sino soou quando eles estavam nos degraus. Depois disso nada mais havia a fazer senao ficar sen- tado quieto até o sermao terminar. Durava duas horas. As pernas de Almanzo doiam e ele queria bocejar, mas nao se atrevia a se mexer. Tinha de permanecer sentado muito quieto e nunca tirar os olhos do rosto solene e da barba ondulante do pregador. Almanzo nao podia compreender como o p abia que ele nao estava olhando para o prega- dor, se o préprio pai estava olhando para o pregador. Mas © pai sempre sabia, 64 Terminou finalmente. Ao sol, fora da igreja, Almanzo sentiu-se melhor. Os meninos nao deviam correr, ou rir, ou falar alto aos domingos, mas podiam conversar tranquila- mente, eo primo de Almanzo, Frank, também estava la. © pai de Frank era o tio Wesley; possuia a fabrica de amido de batata e morava na cidade. Nao tinha fazenda, de modo que Frank era apenas um menino da cidade e brincava com meninos da cidade. Mas naquele domingo estava usando um gorro comprado em loja. Era de tecido xadrez, feito 4 maquina, com orelheiras que abotoavam embaixo do queixo. Frank desabotoou-as e mostrou a Almanzo que elas viravam e podiam ser abo- toadas no alto do gorro. Disse que seu pai o trouxera da lade de Nova York, onde 0 comprara na loja do Sr. Case. Almanzo nunca tinha visto um gorro como aquele. Queria um. Royal disse que era um gorro bobo. Falou a Frank: = Nao vejo para que as orelheiras abotoam no alto. Ninguém tem orelhas no alto da cabeca. Almanzo entao compreendeu que Royal também que- ria um gorro igual aquele. = Quanto custou? - perguntou Almanzo. = Cinquenta centavos ~ respondeu Frank, orgulho- samente. Almanzo sabia que nao podia ter um. Os gorros que a mide fazia eram confortaveis e quentes e seria tolice gastar dinheiro para comprar um novo. Cinquenta centavos era muito dinheiro. — Vocé devia ver nossos cavalos - disse a Frank. — Ora! Os cavalos nao sao seus! ~ respondeu Frank. Sao do seu pai. Vocé nao tem cavalo, nem mesmo um potro. 65 ~ Eu vou ter um potro - rebateu Almanzo. = Quando? - indagou Frank, Ele correu atrds de Eliza Jane, mas Frank disse em voz baixa: ~ Vocé nem mesmo vai ter um potro! Almanzo entrou calado no trend, Ficou pensando se algum dia seria suficientemente grande para ter 0 que quisesse. Quando era menor, o pai as vezes deixava-o se- gurar as pontas das rédeas, mas agora nao era mais um bebé. Queria guiar os cavalos. O pai permitia-Ihe escovar e esfregar os mansos cavalos de trabalho e conduzi-los na grade. Mas nem mesmo podia entrar nos estébulos dos nervosos cavalos de trend, ou dos potros. Mal se atrevia a tocarem seus focinhos lisos através das barras ¢ cogar-lhes um pouco a cabeca. O pai dizia: — Vocés, meninos, mantenham-se afastados desses po- tros. Em cinco minutos vocés podem ensinar-lhes coisas que me levarao meses para tirar. Sentiu-se um pouco melhor ao sentar-se a mesa para o bom almogo de domingo. A mie partiu em fatias 0 pio de centeio quente, na tabua junto a seu prato. A colher do pai mergulhou profundamente no pasteléo de galinha; tirou grandes pedacos da crosta grossa e virou-as no prato com 0 fofo recheio amarelo para cima. Cobriu-os com molho; tirou grandes pedagos de galinha tenra, a carne escura e branca soltando-se dos ossos. Acrescentou um monte de feijdes cozidos e por cima colocou uma fatia de toicinho. Na beirada do prato pds uma pilha de picles de beterraba vermelho-escura. E passou o prato a Almanzo. Almanzo comeu tudo, silenciosamente. Depois comeu um pedago de torta de abébora ¢ sentiu-se muito cheiv 66 por dentro, Mas ainda assim comeu um pedaco de torta de maga com queijo. Depois do almogo Eliza Jane e Alice lavaram a louca, mas 0 pai, a mae, Royal e Almanzo nada fizeram. Pas- saram a tarde inteira sentados na modorrenta e quente sala de jantar. A mae lia a Biblia, Eliza Jane lia um livro a cabega do pai balangava até que ele acordava com um movimento brusco, depois comecava a cabecear de novo. Royal alisava com os dedos a corrente de madeira que ele no podia esculpir (por ser domingo) e Alice ficou olhan- do pela janela durante um longo tempo. Mas Almanzo apenas permaneceu sentado. Tinha de fazé-lo. Nao Ihe era permitido fazer mais nada, pois domingo nao era dia de trabalhar nem de brincar. Era dia de ir & igreja e de ficar sentado quieto. ‘Almanzo ficou contente quando chegou a hora de exe- cutar as tarefas noturnas, or 9 Amansando os bezerros A imanzo estivera tio ocupado enchendo o depésito de gelo que nao tivera tempo de dar outra ligdo aos bezerros. Portanto, na manha de segunda-feira disse: = Pai, posso deixar de ir a escola hoje? Se nao cuidar dos bezerros, eles vao esquecer o que devem fazer. O pai acariciou a barba e seus olhos brilharam: ~Parece que um menino também pode esquecer sua’ Jo - disse ele. 10 havia pensado nisso. Refletiu um minuto Almanzo e falou: ~ Bem, eu jai tive mais ligdes do que os bezerros e, além do mais, eles so mais novos do que eu. O pai parecia solene, mas havia um sorriso debaixo de sua barba e a mae exclamou: = Oh, deixe o menino ficar em casa, j4 que ele quer! ‘ Ihe fard mal algum de vez em quando, e ele tem razao, 0s bererros precisam ser amansados. Assim, Almanzo foi ao celeiro e trouxe os pequenos be- zerros para o ar gelado. Ajustou-lhes a pequena canga sobre ‘0s pescogos, levantou os arcos, enfiou os pinos € amarrou uma corda ao redor dos tocos de chifre de Estrela. Fez tudo isso sozinho. 68 Passou a manhi inteira recuando, pouco a pouco, no pa- tio e gritando “Vamos!” e depois “Oddi!” Estrela e Brilhan- te avangavam ansiosamente quando ele gritava “Vamos!” e paravam quando dizia “Oddi!” e lambiam os pedagos de cenoura que Almanzo segurava em suas luvas de la, De quando em quando ele também comia um pedaco de cenoura crua. A parte de fora é a melhor. Sai um anel gr0sso, sdlido, e é doce. A parte de dentro é mais suculentae clara como gelo amarelo, mas tem um gosto fino, pungente. ‘Ao meio-dia 0 pai disse que os bezerros j4 haviam trabalhando bastante e que 4 tarde ensinaria a Almanzo como se faz um chicote. Foram ao bosque e o pai cortou alguns galhos de bordo estriado. Almanzo levou-os para a oficina do pai, por cima do alpendre de lenha, e ele lhe ensinou a tirar a casca em tiras e depois a trangar um chicote, Primeiro amarrou as pontas de cinco tiras e em seguida as entrelacou, forman- do uma tranga redonda e sélida. Ficou sentado a tarde inteira ao lado do banco do pai. pai aplainava folhas de madeira e Almanzo trancava com cuidado seu chicote, exatamente como 0 pai tranga- vva os grandes chicotes finos de couro. Enquanto ele virava ¢ entrelacava as tiras, a fina casca externa caia esfarelada, deixando somente a branca e macia casca interna. O chi- cote seria branco, se as maos de Almanzo nao houvessem deixado nele algumas manchas. Nao pode termin-lo antes da hora das tarefas notur- nas e no dia seguinte teria de ir A escola. Mas continuou a trangar seu chicote todas as noites, junto da estufa, até que ficou com um metro e meio de comprimento. Entao © pai the emprestou sua faca de caca e Almanzo esculpiu 6 um cabo de madeira e amarrou nele o chicote com tiras de casca de bordo estriado. O chicote estava pronto. Somente se tornaria um chicote perfeitamente bom de- pois que secasse no vero. Almanzo sabia estald-lo quase tao fortemente quanto o pai estalava um chicote de couro. E assim que o terminou ja precisava usé-lo para dar aos bezertos a proxima ligao. Agora tinha de ensinar-lhes a virar para a esquerda quando gritasse “Hau!” e para a direita quando gritasse “Heil”. Comegou assim que 0 chicote ficou pronto. Passava todas as manhis de sabado no celeiro, ensinando Estre- la e Brilhante. Nunca lhes batia com o chicote; apenas 0 estalava. Sabia que nunca poderia ensinar alguma coisa a um animal se batesse nele ou mesmo se gritasse com raiva. De- via mostrar-se sempre gentil, tranquilo e paciente, mesmo. quando eles cometessem erros. Estrela e Brilhante deviam gostar dele e confiar nele, sabendo que nunca os magoaria, pois, se sentissem medo dele uma vez, nunca se tornariam bons dois, prestativos e trabalhadores. ‘Agora sempre lhe obedeciam quando gritava “Vamos!” e “O6di!”. Portanto, nao ficava mais na frente deles. Colo- cava-se do lado esquerdo de Estrela, que ficava perto dele, entdo, era o boi de dentro. Brilhante ficava do outro lado de Estrela, ou seja, era o boi de fora. ‘Almanzo gritava “Heit” e estalava 0 chicote com todaa forga, bem perto da cabega de Estrela. Estrela esforgava-se para se afastar dele e isto fazia com que os dois bezerros virassem para a direita. Entao Almanzo dizia: “Vamos!”, e 0s deixava andar um pouco, tranquilamente. 70 Depois fazia o chicote rodopiar no ar ¢ o estalava for- temente, do outro lado de Brilhante e, juntamente com o estalo, gritava: “Hau!” Brilhante desviava-se do chicote e isto fazia com que ambos os bezerros virassem para a esquerda. As vezes pulavam e comecavam a correr. Entio Alman- zo dizia “Oodi!”, numa voz profunda e solene como a do pai. E, se nao parassem, corria atras deles e se colocava sua frente. Quando isto acontecia, tinha de fazé-los prati- car novamente, dizendo-Ihes “Vamos!” e “Odi!” durante muito tempo. Precisava ser muito paciente. Numa manha de domingo muito fria, quando os be- zerros se sentiam gelados, sairam correndo assim que Al- manzo estalou 0 chicote, Puseram-se a correr, mugindo ao redor do patio, e quando ele tentou deté-los, avangaram para cima dele, derrubando-o na neve. Continuaram a correr porque gostavam de correr. Quase nada pode fazer com os bezerros naquela manhi. Ficou com tanta raiva que seu corpo tremia eas lagrimas corriam-lhe pelas faces. Queria gritar com aqueles bezerros mesquinhos e ba- ter na cabega deles com 0 cabo do chicote. Mas nao o fez. Guardou 0 chicote e amarrou de novo a corda nos chifres de Estrela, fez com que dessem duas voltas ao redor do pa- tio, comegando quando dizia “Vamos!” e parando quando dizia “Oodil”. Depois contou ao pai o que acontecera, porque pensou que uma pessoa que fora tao paciente quanto ele com os bezerros era bastante paciente para ter permissdo de pelo menos almofacar os potros. Mas o pai nao parecia pensar ‘0 mesmo. Tudo 0 que disse foi: a ~ Vocé esté certo, filho. E preciso ter calma e paciéncia. Continue assim que ainda ter um bom rebanho. No domingo seguinte, Estrela e Brilhante obedeceram- Ihe perfeitamente. Nao precisou estalar o chicote, porque obedeciam ao seu grito, Mas de qualquer modo o estalous gostava de fazé-lo. Naquela tarde, os meninos franceses, Pierre e Louis, vieram ver Almanzo. O pai de Pierre era John Preguico- 50, € © pai de Louis era Joe Francés. Moravam com mui- tos irmaos e irmas em pequenas casas do bosque, e iam pescar, cagar e colher frutas; nunca tinham de ir a escola. Mas vinham frequentemente trabalhar ou brincar com Almanzo. Observaram enquanto Almanzolhes mostrava seus be- zerros no patio. Estrela e Brilhante estavam se comportan- do tio bem que Almanzo teve uma ideia espléndida. Apa- nhou seu belo trené de aniversario e, com uma ferramenta, abriu um buraco através dos paus cruzados entre os patins da frente. Depois pegou uma das correntes do pai e uma cavilha do trend grande e atrelou os bezerros. Havia um pequeno anel de ferro por baixo, no centro da canga, exatamente como os antis das cangas grandes. Almanzo enfiou o cabo do seu trend através desse anel até a travessa. A travessa impedia-o de penetrar mais no anel. Em seguida amarrou uma ponta da corrente no anel, en- roloua outra ponta na cavilha do buraco da barra cruzada eaprendeu. Quando Estrela e Brilhante avancassem, puxariam o trené pela corrente. Quando parassem, 0 cabo duro do tre- 1n6 0 faria parar. Agora, Louis, entre no trené ~ disse Almanzo. n = Nao, 0 maior sou eu! - disse Pierre, empurrando Louis para trds. - Vou dar a primeira corrida. ~ E melhor nao fazer isso - rebateu Almanzo. - Quan- do os bezerros sentirem o peso, podem sair correndo. Dei- xe Louis ir primeiro porque é mais leve. - Nao, eu nao quero ir - disse Louis. - Eu acho melhor vocé ir - observou Almanzo. ~ Nao - respondeu Louis. ~ Esté com medo? ~ perguntou Almanzo. - Sim, ele esté com medo — disse Pierre. - Nao estou com medo - retrucou Louis. - Eu apenas nao quero ir. ~ Estd com medo - zombou Pierre. ~ Sim, esta com medo - disse Almanzo. Louis falou que nao tinha medo algum. ~ Vocé esta com medo, sim - insistiram Almanzo e Pierre, Disseram que ele era um gato fujdio. Que era um ne- ném, Pierre mandou que ele voltasse para o colo da mamie. Finalmente Louis sentou-se cuidadosamente no trend. Almanzo estalou 0 chicote e gritou: - Vamos! Estrela e Brilhante avangaram e pararam. Tentaram vi- rar-se para ver 0 que é que estava atras deles. Mas Alman- zo disse de novo, severamente: “Vamos!” Desta vez eles partiram e continuaram andando. Almanzo ia ao lado deles. Estalando o chicote e gritando “Hei!” conduzia-os a0 redor do patio. Pierre correu atras do trend, subiu nele também, ¢ os bezerros continuavam a comportar-se per- feitamente. Entao Almanzo abriu o porto do patio. Pierre e Louis saltaram répidos do trené e o primeiro disse: 2B ~Eles vio fugir! Almanzo respondeu: ~ Sei como lidar com meus bezerros. Voltou ao seu lugar, ao lado de Estrela. Estalou o chi- cote e gritou: “Vamos!” Conduziu Estrela e Brilhante do patio seguro para 0 mundo grande, largo e luminoso li de fora. Gritando “Hau!” e “Heil” levou-os além da casa, até a estrada. Pararam quando gritou: “O6di!” Pierre e Louis agora estavam entusiasmados. Amon- toaram-se no trené, porém Almanzo fé-los recuarem. Ele também ia passear. Sentou-se na frente; Pierre segurou-se nele ¢ Louis segurou-se em Pierre. Suas pernas ficaram de fora e eles as conservaram levantadas, duras, por cima da neve. Almanzo estalou orgulhosamente 0 chicote e gritou: “Vamos!” Estrela levantou o rabo, Brilhante também, e partiram. O tren6 saltou no ar e, entao, tudo aconteceu a0 mesmo tempo. - Muuuuuu! - disse Estrela. ~ Muuuuuu! - disse Brilhante. Bem no rosto de Almanzo cascos voavam e rabos rodo- piavam e por cima de sua cabega sacudiam-se ancas orgu- Ihosas. “O66i!” gritava Almanzo. “O66i!” ~ Muuuuu! ~ dizia Brilhante. ~ Muuuuu! - dizia Estrela. Era muito mais veloz do que escorregar morro abaixo. As drvores, a neve € as patas traseiras dos bezerros, estava. tudo misturado. Toda vez que o trend descia, os dentes de Almanzo batiam uns nos outros. m Brilhante estava correndo mais depressa do que Estre- la. Saiam da estrada. O trené ia virar. Almanzo berrou: “086i! O86i!” E mergulhou de cabega na neve profunda, gritando “Oo6il”, Sua boca aberta estava cheia de neve. Cuspiu-a, espo- jou-se e tratou de se levantar. ‘Tudo estava parado. A estrada, vazia. Os bezerros ha- viam desaparecido, o trené também. Pierre e Louis sairam de dentro da neve. Louis praguejava em francés, mas Al- manzo nao Ihe deu atengao. Pierre cuspiu, limpou a neve do rosto e disse: ~ Sacré bleu! Acho que vocé disse que sabia guiar seus bezerros, Eles nao iam fugir, nao & Longe, na estrada, quase enterradas nos montes de ne- ve, perto do muro de pedra, Almanzo viu as costas ruivas dos bezerros. ~ Nao fugiram - disse a Pierre. — Apenas correram. La estio eles. Desceu para olhé-los. Suas cabecas e costas estavam acima da neve. A canga entortara e seus pescogos acha- vam-se torcidos nos arcos. Os focinhos estavam juntos € 0s olhos, grandes e espantados. Pareciam perguntar um ao outro: o que aconteceu? Pierre e Louis ajudaram a tirar a neve de cima deles e do trend. Almanzo consertou a canga e a corrente. Entio postou-se na frente deles e disse “Vamos!” enquanto Pierre e Louis empurravam por tras, Os bezerros subiram para a estrada e Almanzo os guiou para o celeiro. Acompa- nhararh-no docilmente. Almanzo caminhava ao lado de Estrela, estalando o chicote e gritando, e eles faziam tudo % © que ele mandava, Pierre e Louis seguiam atrés. Nao qui- seram subir no trend. Almanzo p6s os bezerros no estabulo e deu um punha- do de milho a cada um. Enxugou cuidadosamente a canga a pendurou; colocou 0 chicote no prego, enxugou a cor- rente ea cavilha e as colocou onde o pai as havia deixado. Depois disse a Pierre e Louis que podiam se sentar atras dele e escorregaram morro abaixo, no trend, até a hora das tarefas noturnas. Naquela noite o pai the perguntou: ~ Teve algum problema esta tarde, filho? - Nao - respondeu Almanzo. - Descobri apenas que tenho de ensinar Estrela e Brilhante a puxarem o trend. E foio que fez, no patio. 76 10 A passagem do ano Os dias estavam ficando mais compridos, porém o frio era mais intenso, O pai disse: Quando os dias comecam a encompridar O frio comeca a aumentar. Finalmente a neve derreteu um pouco nas encostas do sul e do oeste. Ao meio-dia os pingentes gotejavam. A seiva comegava a subir nas arvores e era época de fazer agitcar. Nas manhis frias, pouco antes do nascet do sol, Al- manzo e 0 pai dirigiam-se ao bosque de bordos. O pai levava uma grande canga nos ombros e Almanzo uma pequena. Das extremidades das cangas pendiam tiras de casca de arvore com grandes ganchos de ferro nos quais estavam presos grandes baldes de madeira. Em cada Arvore o pai fizera um buraco e enfiara nele um pequeno cano. A seiva doce do bordo saia do cano e pingava em pequenos baldes. Indo de arvore em arvore, Almanzo esvaziava os baldes dentro de baldes maiores. O peso pendia de seus ombros, mas ele firmava os baldes com as mios para impedi-los de balangar. Quando ficavam cheios, ia até o grande caldei- rao e os esvaziava dentro dele. 7 ‘0 que ele mandava. Pierre e Louis seguiam atras. Nao qui- seram subir no trend. Almanzo pds os bezerros no estébulo e deu um punha- do de milho a cada um. Enxugou cuidadosamente a canga €.a pendurou; colocou 0 chicote no prego, enxugou a cor- rente ea cavilha e as colocou onde o pai as havia deixado, Depois disse a Pierre e Louis que podiam se sentar atras dele e escorregaram morro abaixo, no trend, até a hora das tarefas noturnas, Naquela noite o pai lhe perguntou: ~ Teve algum problema esta tarde, filho? = Nao - respondeu Almanzo. - Descobri apenas que tenho de ensinar Estrela e Brilhante a puxarem o trend. E foi o que fez, no patio. 76 10 A passagem do ano Os aias estavam ficando mais compridos, porém 0 frio era mais intenso, O pai dissi Quando os dias comegam a encompridar O frio comeca a aumentar. Finalmente a neve derreteu um pouco nas encostas do sul e do oeste. Ao meio-dia os pingentes gotejavam. A seiva comecava a subir nas arvores e era época de fazer agticar. Nas manhis frias, pouco antes do nascer do sol, Al- manzo e 0 pai dirigiam-se a0 bosque de bordos. O pai levava uma grande canga nos ombros e Almanzo uma pequena. Das extremidades das cangas pendiam tiras de casca de érvore com grandes ganchos de ferro nos quais estavam presos grandes baldes de madeira. Em cada drvore o pai fizera um buraco ¢ enfiara nele um pequeno cano. A seiva doce do bordo saia do cano e pingava em pequenos baldes. Indo de érvore em arvore, Almanzo esvaziava os baldes dentro de baldes maiores. O peso pendia de seus ombros, mas ele firmava os baldes com as mios para impedi-los de balangas. Quando ficavam cheios, ia até o grande caldei- rio e os esvaziava dentro dele. 7 grande caldeirao pendia de um pau colocado entre duas arvores. O pai mantinha o fogo aceso embaixo dele, para ferver a seiva. Almanzo gostava de andar por entre o bosque gelado e selvagem. Caminhava por cima de uma neve sobre a qual ninguém havia andado antes e somente os préprios rastros apareciam atras dele. Esvaziava diligentemente os baldes pequenos nos maiores e sempre que tinha sede bebi: pouco da seiva fina, doce e gelada. Gostava de voltar para perto da fogueira, Remexia-a ‘com um pau e via as faiscas voarem. Aquecia 0 rosto € as mios no calor forte e sentia o cheiro da seiva fervendo. Depois tornava a entrar no bosque. Ao meio-dia a seiva estava fervendo no caldeirio. O pai abria a marmita e Almanzo sentava-se no tronco, ao lado dele. Comiam e conversavam, Tinham os pés estica- dos para perto do fogo e as suas costas havia uma pilha de troncos, Ao redor deles s6 neve, gelo e mata virgem, mas sentiam-se confortaveis e aconchegados. Depois de comerem, 0 pai ficava perto do fogo para vigiar a seiva, mas Almanzo ia procurar frutinhas de in- verna. um: Debaixo da neve, nas encostas do lado sul, as frutas ver- melhas estavam maduras entre as espessas folhas verdes. Almanzo tirava as luvas e cavava a neve com as maos nuas. Encontrava os cachos vermelhos e enchia a boca com eles. As frutinhas partiam-se entre seus dentes, espirrando seu suco aromitico. Nada era tao bom quanto as frutinhas de inverno tira~ das de dentro da neve. 8 ‘As roupas de Almanzo estavam cobertas de neve, seus dedos, duros e vermelhos de frio, mas ele sé largava uma en- costa do lado sul depois de té-la remexido completamente. Quando o sol comecava a baixar atras dos troncos dos bordos, o pai atirava neve sobre o fogo, que logo se apagava chiando e soltando vapor. Entio derramava a calda quente dentro dos baldes. Ele e Almanzo tornavam a pdr as can- gas nos ombros e carregavam os baldes para casa. Derramavam 0 xarope na grande cagarola de cobre da mie, no fogio da cozinha. Entio Almanzo comegava a executar as tarefas noturnas enquanto o pai ia buscar 0 resto da calda no bosque. Depois do jantar a calda estava pronta para preparar 0 aguicar, A mie colocava-a, com uma concha, em vasilha- mes de leite e deixava-a esfriar. Quando amanhecia, cada vasilhame continha um grande bolo de sélido agicar de bordo. A mae retirava os redondos bolos dourados e os guardava nas prateleiras mais altas da despensa. A seiva corria dia apés dia e todas as manhas Almanzo ia recolhé-la e fervé-la com o pais todas as noites a mae fazia acticar. Faziam todo o agticar de que necessitariam para 0 ano seguinte. Entao a ultima calda fervida nao era transformada em acticar; guardavam-na em jarras, na adega - era o xarope do ano. Quando Alice voltava da escola, cheirava Almanzo e exclamava: - Ah, vocé andou comendo frutinhas de inverno! Achava que nao era justo que ela tivesse de ir 4 escola enquanto Almanzo apanhava seiva e comia frutinhas de inverné. Dizi — Os meninos é que se divertem. 0 Fazia Almanzo prometer que nao tocaria nas encostas do lado sul ao longo do Rio das Trutas, além do pasto das ovelhas. Assim, aos sébados, iam juntos cavar aquelas encostas. Quando Almanzo encontrava um cacho vermelho, ele gri- tava, e quando Alice encontrava um, também gritava, e as vezes os dividiam entre si, as yezes nao. Mas engatinha- vam por todas as encostas do lado sul e comiam frutinhas de inverno a tarde inteira Almanzo trouxe para casa um balde cheio das espes- sas folhas verdes ¢ Alice as enfiou numa grande garrafa. A mae encheu-a com uisque e guardou-a. Aquilo era para aromatizar, depois, os bolos e os doces. A cada dia a neve derretia um pouco. Os cedros e 0s abetos sacudiam-na ¢ ela caia em gotas dos galhos nus dos carvalhos, dos bordos e das faias. Ao longo das paredes dos celeiros e das casas a neve estava esburacada pela gua que caia dos pingentes e, finalmente, os pingentes cairam, quebrando-se. A terra apareceu, timida, formando manchas escuras aqui e acolé. As manchas espalharam-se. Apenas os cami- nhos percorridos estavam brancos e um pouco de neve permanecia no topo dos prédios e dos montes de lenha. Terminou entao o periodo de inverno da escola e a prima- vera comegou. Certa manhi o pai foi a Malone. Mas voltou apressado antes do meio-dia, gritando as noticias ainda dentro da carroga. Os compradores de batatas de Nova York estavam. na cidade! Royal correu para ajudar a atrelar a parelha na car- roca, Alice e Almanzo correram para apanhar cestas no 80 alpendre. Rolaram-nas pela escada da adega e comegaram a enché-las de batatas o mais depressa que podiam. Ja ti- nham enchido duas cestas quando o pai encostow a carro- ga no alpendre da cozinha. Entdo comegou a corrida. O pai e Royal levavam rapi- dos as cestas para cima e as esvaziavam dentro da carroga. Almanzo e Alice apressavam-se em encher mais cestas do que as que eram levadas para cima. Almanzo procurava encher mais cestas do que Alice, mas nao conseguia. Ela trabalhava tio depressa que se virava para a caixa enquanto sua saia-balio ainda rodava para 0 outro lado. Quando afastava os cabelos para tris, as, maos deixavam manchas em suas faces. Almanzo ria do rosto sujo dela e ela ria para ele. = Vase olhar no espelho! Vocé est mais sujo do que eu. Mantinham as cestas sempre cheias; 0 pai e Royal nao tinham que esperar. Quando a carroga ficou cheia, 0 pai partiu, apressado. Ja estava no meio da tarde quando ele voltou, mas Royal e Almanzo tornaram a encher a carroga enquanto ele fazia uma refeicao fria, e logo partiu levando outra car- ga. Naquela noite, Alice ajudou Royal e Almanzo nas tare- fas noturnas. O pai nao chegou para 0 jantar; ndo chegou na hora de dormir. Royal ficou acordado esperando por ele. Tarde da noite Almanzo escutou o ruido da carroga e Royal saiu para ajudar o pai a limpar e escovar os cavalos cansados que haviam percorrido trinta quilémetros trans- portando carga naquele dia. Na manha seguinte e na outra todos comegaram a car- regar batatas a luz de velas e o pai levow a primeira carga antes de o sol nascer. No terceiro dia o trem de batatas 81 partiu para a cidade de Nova York. Mas todas as batatas do pai iam nele. - Quinhentos bushels* a um dolar cada - disse ele mie durante o jantar. - Eu Ihe disse, quando as batatas tinham baixado no ultimo outono, que subiriam na pri- mayera. Isso representava quinhentos délares no banco. Esta- vam todos orgulhosos do pai, que cultivava tao boas bata- tas ¢ sabia tao bem quando guarda-las e quando vendé-las. ~ E 6timo — disse a mae, transbordando de satisfacao. Todos estavam felizes. Porém mais tarde a mie disse: — Bem, agora que estamos livres, comecaremos a lim- par a casa amanha, bem cedo. Almanzo odiava limpar a casa. Tinha de arrancar as tachas dos tapetes, que pareciam cobrir quilémetros de ex- tensdo. Depois os tapetes eram pendurados em cordas 1 fora e tinha de baté-los com um pau comprido. Quando era Ppequeno, corria por baixo dos tapetes, fingindo que eram barracas. Mas agora estava com nove anos e tinha de bater aqueles tapetes sem parar, até que nao saisse mais poeira. ‘Tudo na casa foi mexido, varrido, lavado e polido. Tira- ram todas as cortinas, levaram os colchées de penas para fora a fim de arejar e todas as colchas e lengéis foram lava- dos. Desde o amanhecer até o anoitecer Almanzo corria, bombeando agua, apanhando lenha, espalhando palha limpa nos soalhos varridos e depois ajudando a esticar os tapetes sobre eles e finalmente pregando todas as tachas nos seus cantos novamente. bushel € uma medida de volume equivatente a um cesto utilizado pelos in- digenas nas trocas de produtos. (N. do E). 82 Passou dias e dias na adega. Ajudou Royal a esvaziar as caixas de legumes. Tiraram todas as magas, cenouras e nabos estragados e tornaram a guardar os bons em outras caixas que a mae havia limpado. Pegaram as outras cai- xas eas guardaram no alpendre. Levaram para fora potes, jarros e vasos, até que a adega ficou quase vazia. Entio a mie esfregou as paredes e 0 chao. Royal derramou 4gua em baldes de cal e Almanzo os mexeu até que a cal parou de fervilhar. Depois caiaram a adega inteira. Foi divertido. ~ Deus me perdoe! - disse a mae quando eles subiram. ~ Caiaram a adega tao bem quanto a vocés mesmos? Quando secou, a adega ficou fresca e limpa, cor de ne- ve. A mie levou os vasilhames de leite para baixo, colo- cando-os nas prateleiras limpas. Os barriletes de manteiga haviam sido polidos com areia e postos a secar ao sole Al- manzo 0s arrumou em fila no chao limpo da adega, a fim de serem enchidos com a manteiga do verao. La fora floriam os lilases e as bolas-de-neve. Violetas ¢ botdes-de-ouro estavam em flor nas verdes pastagens, pissaros construiam seus ninhos e era época de trabalhar hos campos. 83 1 Primavera ‘Aigora o calé era tomado antes do amanhecer € 0 s0l ca megavaa erguer-se além das campinas orvalhadas quand Almanzo conduzia sua parelha para fora dos celeiros. Tinha de subir numa caixa para colocar as coelheirag sobre os ombros dos cavalos e passar as rédeas por cima d suas orelhas, mas sabia como guiar. Aprendera quando er pequeno. O pai nao o deixava tocar nos potros, nem guia Qs nervosos cavalos novos, mas agora que era suficiente- mente grande para trabalhar nos campos podia liderar velho e manso grupo de cavalos, Bess e Beleza. Eram éguas prudentes e calmas. Quando iam para pasto, nao relinchavam nem galopavam como os potros; olhavam ao seu redor, deitavam-se e rolavam uma ou duas vezes ¢ depois comecavam a comer capim. Quando erami arreedas, caminhavam tranquilamente uma atrés da ous tra, etravessavam a porta do estébulo, fungavam o ar pri maveril e esperavam pacientemente que thes prendesserd os tirantes, Eram mais velhas do que Almanzo e ele j ia fazer dex anos. Sabiam arar sem pisar no milho e sem entortar os suld cos. Sabiam gradar e fazer a curva no fim do campo. All manzo gostaria de guid-las mais, se elas nao soubessent tanto, 84 Atrelou-as a grade. No ultimo outono os campos ti- nham sido arados e cobertos de esterco; agora o solo intu- mescido devia ser gradado. Bess ¢ Beleza partiram espontaneamente, caminhando nio muito depressa, mas com rapidez suficiente para gra- darem bem. Gostavam de trabalhar na primavera, depois de haverem permanecido em seus estabulos durante o lon- go inverno. Puxavam a grade de um lado para outro atra- vés do campo, enquanto Almanzo caminhava atrds delas, segurando as rédeas. No fim do campo fazia a parelha virar-se e dispunha a grade de modo tal que seus dentes apenas tocassem o trecho que ja havia sido gradado, Entao sacudia as rédeas nas ancas das éguas, gritava “Vamos!” e elas partiam de novo. Em toda a zona rural outros meninos também estavam gradando, revirando a terra imida para o sol. Longe, ao norte do Rio Sao Lourengo, havia uma fita de prata na bei- rada do céu. Os bosques eram nuvens de um verde deli- cado. Passaros saltitavam cantando nos muros de pedra € esquilos cabriolavam. Almanzo caminhava assobiando atrds da sua parelha, Depois de ter gradado o campo inteiro numa direcio, gradou-o na outra direcdo. Os dentes agucados da grade rasparam diversas vezes a terra, desfazendo as protube- rancias. O solo devia ficar mole, fino e liso. Almanzo foi ficando com fome e perdendo a vontade de assobiar. Ficava cada vez mais faminto. Era como se 0 meio-dia nio fosse chegar nunca, Comecou a pensar em quantos quilémetros teria andado. E 0 sol parecia imé- vel, as sombras nao pareciam mudar. Estava morrendo de fome. Finalmente o sol ficou a pino, as sombras quase desa- pareceram. Almanzo gradou outra faixa e mais outra. En- tdo escutou a corneta soprando, longe e perto. O som da grande corneta de almoco da mie chegou aos seus otvidos claro e alegre. Bess e Beleza esticaram as orelhas e marcharam mais vivamente. Pararam na extremidade do campo, na diregio da casa. Almanzo soltou os tirantes, lagou-as e, deixando a grade no campo, montou nas costas largas de Beleza. Foi até a casinhola da bomba e deixou as éguas bebe- rem. Colocou-as no estébulo, tirou-lhes as rédeas e deu- Ihes milho. Um bom cavaleiro sempre cuida de seus ani- mais antes de comer ou descansar. Mas Almanzo estava com pressa. Como estava bom 0 almogo. E como comeu! O pai en- cheu-lhe 0 prato varias vezes, a mae sorria e Ihe deu dois pedagos de torta. Sentiu-se melhor quando voltou ao trabalho, masa tar- de Ihe pareceu muito mais comprida que a manha. Esta- va cansado quando rumou para os celeiros, ao pér do sol, para fazer as tarefas noturnas. Ao jantar mostrava-se so- nolento e, tio logo acabou de comer, subiu a escada e cai na cama. Era tao gostoso esticar-se sobre 0 colchao macio! ‘Antes de puxar a colcha, adormeceu profundamente. Como se houvesse decorrido apenas um minuto, a luz da vela da mie brilhou na escada e ela chamou. Comegava outro dia. ‘Nao havia tempo a perder, nenhum tempo a gastar em descanso ou brincadeira. A vida da terra surge veloz na primavera. Todas as sementes silvestres de ervas daninhas € cardos, brotos de videira, de arbustos ¢ de drvores ten 86 tam ocupar os campos. Os lavradores tém de lutar contra eles com grade, arado e enxada; tém de plantar com rapi- dez as sementes boas. Almanzo era um pequeno soldado nessa grande bata- tha. Trabalhava desde o amanhecer até ao anoitecer e dor- mia desde o anoitecer até ao amanhecer, depois levantava- se de novo e continuava a trabalhar. Gradou o campo de batatas até que o solo ficasse liso e mole e morressem todos os brotos de ervas daninhas. Em seguida ajudou Royal a apanhar as sementes de batatas na caixa da adega e corté-las em pedagos, deixando dois ou tres brotos em cada pedaco. As plantas da batata tém flores e sementes, mas nin- guém sabe que espécie de batata nascerd da semente. To- das as batatas de uma espécie provieram de uma batata. Uma batata ndo é uma semente; € parte da raiz de um pé de batata, Corte-a e plante-a e dard sempre mais batatas iguais a ela. Cada batata tem varias pequenas protuberancias, que parecem olhos. Desses olhos é que saem as pequenas raizes que penetram no solo, aparecendo depois pequeninas fo- thas que procuram o sol. Enquanto séo pequenas, nutrem- se do pedaco de batata, antes de se tornarem suficiente- mente fortes para extrairem seu alimento da terra e do ar. pai marcava 0 campo. O marcador era um tronco com uma fila de pinos de madeira enterrados nele, sepa- rados um do outro por um metro de distancia. Um cavalo puxava 0 tronco atravessado atris dele e os pinos faziam equenos sulcos. O pai marcava o campo no comprimento ena largura, de modo que os sulcos formavam pequenos quadrados. Depois comegava o plantio. 7 © pai e Royal pegavam suas enxadas e Alice e Alman- | 20 carregavam baldes cheios de pedaos de batata. Al- manzo caminhava na frente de Royal e Alice na frente do pai, ao longo das fileiras. No canto de cada quadrado, onde os sulcos se cruza- vam, Almanzo deixava cair um pedaco de batata. Devia cair exatamente no canto, de modo que as fileiras fossem retas e pudessem ser aradas. Royal cobria-a com terra € comprimia 0 solo com a enxada. Atrds de Alice, 0 pai co- bria os pedacos de batata que ela deixava cair. Plantar batatas era divertido, Da terra fresca e dos tre- vos vinha um cheiro bom. Alice era bonita e alegre, com a brisa soprando-lhe os cachos de cabelos e balangando sua’ saia-balio. O pai era jovial e todos conversavam enquanto trabalhavam. ‘Almanzo e Alice procuravam deixar cair as batatas 0 mais depressa que podiam a fim de que Ihes sobrasse um minuto para procurarem ninhos de passarinhos ou caga- rem um lagarto no muro de pedra. Mas o pai e Royal nun- ca ficavam muito atras. O pai dizia: ~ Apresse-se, filo, apresse-se! Elesseapressavam e, quando estavam bem distanciados, Almanzo apanhava uma folha de grama e a fazia assobiar entre os polegares. Alice tentava imité-lo, mas nao conse- guia. Ela sabia apertar os labios e assobiar. Royal mexia com ela: Meninas que assobiam E galinhas que cantam de galo Sempre acabam mal. 88 Percorreram 0 campo de um extremo a outro, todas as manhas e todas as tardes, durante trés dias. E as batatas foram todas plantadas. Entdo o pai semeou o grao. Semeou um campo de trigo para o pao branco, um campo de centeio para o pao de centeio, € um campo de aveia misturada com ervilhas ca- nadenses para alimentar os cavalos e as vacas no proximo inverno. Enquanto o pai semeava 0 grao, Almanzo acompanha- va-o nos campos com Bess ¢ Beleza, gradando as sementes na terra, Almanzo ainda nio podia semear grio; tinha de praticar durante muito tempo até poder espalhar as se- mentes de maneira igual. Isto ¢ dificil de fazer. 0 pesado saco de gro, preso por uma tira, pendia do ‘ombro esquerdo do pai. Enquanto caminhava, ia tirando punhados de grao do saco. Com um movimento do brago ¢ um jeito do pulso deixava os pequenos gros voarem de seus dedos. O movimento de seu brago acompanhava 0 ritmo de seus passos, e quando o pai acabava de semear uum campo, cada centimetro do solo tinha sementes espa- Ihadas de maneira igual, nao havia em parte alguma mu tas ou poucas sementes. As sementes eram muito pequeninas para serem vistas no chao e s6 se poderia saber quao habilidoso era um se- meador depois que elas germinassem. O pai contou a Al- manzo a historia de um menino preguigoso e mau a quem mandaram semear um campo. Esse menino nao queria trabalhar, de modo que despejou as sementes do saco e foi nadar, Ninguém 0 viu. Mais tarde gradou 0 campo e nin- guém sabia o que tinha feito. Mas as sementes sabiam ea terra também sabia, e quando 0 menino esqueceu 0 que 89.

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