You are on page 1of 21
MISTER TVA } 7 erste DJAMILA RIBEIRO Oia BUC as CRUZANDO 0 ATLANTICO EM MEMORIA DA INTERSECCIONALIDADE for) INTERSECCIONALIDADE Este volume da Colecao ini coordenado pela Tlsofa Diamile Res Plurais, raiz politica, 0 fundamento e os ee oueaaa a conceito de interseccionalidade. Tal conn 2° sensibilidade analitica,? pensada por (ocu™ negras cujas experincias e reivindicage lectuais eram inobservadas tanto pelo fe nine branco quanto pelo movimento antirracist, ~ a focado nos homens negros. *8 Nor, Surge da critica feminista negra as leis antidiscrim; nagio subscrita as vitimas do racismo patriarcal Come conceito da teoria critica de raga, foi ie intelectual affo-estadunidense Kimberlé Creme mas, apés a Conferéncia Mundial contra 0 i Discriminagio Racial, Xenofobia e Formas Conexn de Intolerancia, em Durban, na Africa do Sul, = 2001, conquistou popularidade académica, ihe do significado originalmente proposto aos perigos do ziamento. A interseccionalidade visa dar i ental jidade teorico-metodologica a inseparabilida ae rural do racismo, capitalismo € cisheteropatnay” oy de avenidas jdentitarias em que > — produtores rias mulheres negras s&o repetidas vezes atingidas pelo cruzamento © sobreposic¢ao de genero, raga © classe, loniais. modernos aparatos col : : : Segundo Kimberlé Crenshaw, 2 interseccionali- dade permite-nos enxergar a colisao das estruturas, a interaga0 simultanea das avenidas jdentitarias, além do fracasso do feminismo em contemplar mulheres negras, ja que reproduz o racismo. Igualmente, 0 movimento negro falha pelo carater machista, oferece ferramentas metodologicas reservadas 4s experiéncias apenas do homem negro Feitas consideragdes iniciais as/aos leitoras/es 0 desafio politico é rejeitar quaisquer expectativas litera- rias elitistas, jargdes académicos, escrita complexa na terceira pessoa e abstracoes cientificas paradoxais sob a sombra iluminista eurocéntrica, miope a gramatica ancestral de Africa e diaspora. Do meu ponto de vista, é imperativo aos ativismos, incluindo 0 tedrico, conceber a existéncia duma matriz colonial moderna cujas rela- es de poder séo imbricadas em miltiplas estruturas dinamicas, sendo todas merecedoras de atencao politica Combinadas, requererao dos grupos vitimados:* 1. instrumentalidade conceitual de raga, classe, nacao e género; CS INTERSECCIONALIDADE Jidade interpretativa dos efeitos iden. 2, sensibil titarios; 4, atengfo global para a matriz colonial mo. erm, evitando desvio analitico para apenas um eixo de opressao. E oportuno descolonizar perspectivas hegem6- nicas sobre a teoria da interseccionalidade e adotar locus .de opressdes cruzadas, pois antico como 0 ae esse territ rio de aguas traduz, funda- mentalmente, a historia e migracao forcada de afi- vans e afficanos. As aguas, além disto, cicatrizam feridas coloniais causadas pela Europa, manifestas nas etnias traficadas como mercadorias, nas culturas dogadas, nos binarismos identitérios, contrapostos humanos e nao humanos. No mar Atlantico temos o saber duma memoria salgada de escravismo, energias ancestrais protestam lagrimas sob 0 oceano. Segundo profecia iorubé, a diaspora negra deve buscar caminhos discursivos com aten¢ao aos acordos estabelecidos com antepassados. Aqui, ao consultar quem me é devido, Exu, divindade africana da comu- nicagao, senhor da encruzilhada e, portanto, da inter- seccionalidade, que responde como a voz sabedora de quanto tempo a lingua escravizada esteve amordacada politicamente, impedida de tocar seu idioma, beber da propria fonte epistémica cruzada de mente-espirito. Antes de se preparar o pensamento feminista negro ea interseccionalidade como metodologias, a encruzi- Ihada engolia oferendas analiticas contra nds, raz4o de depositar neste texto pontos de vistas produzidos las intelectuais negras, escrever pretogués brasileiro,’ como Lélia Gonzalez, pensadora amefricana — ja que neocolonizadores académicos nao podem abocanhar a interseccionalidade e nem sequer tém autoridade para dominar o ponto de vista feminista negro. Indo ao encontro da reflexao epistemolégica de Patricia Hill Collins, feminista negra estadunidense, considero a interseccionalidade como um “sistema de opressdo interligado”. Escrevo na primeira pessoa, alinhamento a esquerda, sem recuo da ancestralidade africana, forasteira de dentro, na visio de Collins, desafiando as Ciéncias Sociais por autodefinigao € autoavaliacao intelectual negra, avessa as ferramentas modernas de valida¢ao cientifica. Venho as mulheres de cor,’ caribenhas, terceiro -mundistas, lésbicas e africanas, invocar a teoria no espi- rito, responder a Carta’ de Gloria Anzaldia na fron- teira do seu pensamento mestizo, “buscando impedir 0 sangue coagular na caneta”, repetindo o gesto da sua mAo escura que segura a caneta sem o medo de escrever para outras irmas espalhadas pelo mundo. Movida por escrevivéncias, como Conceicao Evaristo’ proponho cantiga decolonial por razdes psiquicas, intelectuais, espirituais, em nome d’aguas atlanticas. Mulheres negras infiltradas na Academia, engajadas em desfazerem rotas hegemOnicas da teoria feminista e maternarem a-feto, de si, em prol de quem sangra, porque 0 racismo estruturado pelo colonialismo ¥ sadas a mulheres jo insist a aitras plantam negras e homens er e impdem para nossos negritudes onde n't ws ¢ ocidentais do feminismo sero sigifcados da matripoténcia iorubana. pranco em detrimento 22 F ; estabelecendo 0 dialogo tedrico.entre 0 pensa- me terseccional de Audre Lorde e Achille bee 18 enquanto as mulheres brancas ttm medo de que seus filhos possam crescer € serem coop- tados pelo patriarcado, as mulheres negras temem enterrar seus filhos vitimados pelas necropoliticas,” que confessional € militarmente matam ¢ deixam morrer, contrariando o discurso cristo elitista-branco de valorizagao da vida e contra 0 aborto — que é um. direito reprodutivo. Nao havemos de escapar desta encruzilhada tedrica. Nela, como € sabido, muitos se confundiram, seguiram a esmo metodolégico o caminho do socorro epistémico as mulheres negras acidentadas, miltiplas vezes, em avenidas identita- rias. Dai nao ter cabimento exigirem agéncia politica para que se levantem sozinhas depois dos impactos da colonizacao, nem as tratarem como a mae preta, sobrenatural, matriarca, guerreira, que tudo aguenta e suporta. Contrariando 0 que esta posto, o projeto feminista negro, desde sua fundagao, trabalha o marcador racial para superar esteredtipos de género, privilégios de classe e cisheteronormatividades articuladas em nivel global. Indistintamente, seus movimentos vao, desde onde estejam as populacées de cor acidentadas pela modernidade colonialista até a encruzilhada, buscar alimento analitico para a fome histérica de justiga. O feminismo negro dialoga concomitantemente entre/com as encruzilhadas, digo, avenidas identitarias do racismo, cisheteropatriarcado e capitalismo. O letra- mento produzido neste campo discursivo precisa ser aprendido por lésbicas, gays, bissexuais e transexuais, (LGBT), pessoas deficientes, indigenas, religiosos do candomblé e trabalhadoras. Visto isto, nao podermos mais ignorar o padrao global basilar e administrador de todas as opressdes contra mulheres, construidas heterogeneamente nestes grupos, vitimas das colisdes miltiplas do capacitismo, terrorismo religioso, cishete- ropatriarcado e imperialismo. Tais mulheres depositam confianca na oferenda analitica da interseccionali- dade, preparada por suas intelectuais além de, suces- sivamente, oferecerem no espaco publico o alimento politico para os Outros,"° proporcionando o fluxo entre teoria, metodologia e pratica aos acidentados durante a colisdo, amparando-os intelectualmente na propria avenida do acidente. Apesar de abordagens eurocéntricas por vezes chegarem na contram&o para dar socorro epistemolégico, ignorando o contexto do acidente e causando, por consequéncia, mais fluxos no cruzamento de raga, género e classe... E 0 modismo académico da interseccionalidade! A serventia contemporanea promove carreiras académicas da Europa e branquitudes brasileiras, ja INTERSECCIONALIDADE ~~ S i intelectual inde- ym a apropriac0 mnte! makacostumad consultivos de igualdade e de vida, a gees das nagoes adotarem politicas publicas controle soci ¢ pro-formas, de suposto s tivas, transversais ¢ PI na ea antidiscriminatorio. Dentre estas ee costumam usar a interseccionalidade como praticas, ndente as minorias politicas ou a diversidade, come 0 a questionar a agencia da mulher chegande vie encruzilnada fosse tao somente o lugar ae to da vitima: levantar-se ou continuar caida? Senn ou no as feridas da colonizacao? E da mulher negra 0 corac40 do conceito de interseccionalidade. Quemjé viualgum socorro prestado olhar as ‘carac- teristicas fenotipicas da pessoa vitimada? Avaliar seé “mulher de verdade” — € neste caso, se tem vagina, ou qual sua lingua, se nativa ou estrangeira? ° feminismo negro esta interessado em socorrer considerando os sentidos: se a pessoa est responsiva aos estimulos Lisbicos, se sofreu “asfixia racial”, se foi tocada pela policia, se esté escutando articulacdes terceiro-mun- distas. A tinica cosmoviséo a usar apenas os olhos é a ocidental e esses olhos nos dizem que somos pessoas de cor, que somos Outros. A concepeao de mundo que interessa ao feminismo negro se utiliza de todos 0s sentidos. E repito, nao socorre as vitimas do colo- nialismo moderno prestando aten¢do a cor da pele, a0 género, sexualidade, genitalia ou lingua nativa. Considera isto, sim, humanidades. Orixé ilustra bem nossa base ética civilizacional: 0 corpo se relaciona com alteridade, baseado na memoria, informaco ancestral do espirito, e nao pela marcacao morfofisio- logica, anat6mica, fenotipica. Seria perda de tempo essa epistemologia acom- panhada de expedientes ideolégicos da cosmovisio ocidental, essa patologia historica. O maior recurso colonial da eurocivilizagao consiste em priorizar © corpo, ignorar ferimentos que tendem a comple- xificar rapidamente, enquanto diagnosticam, as pressas, 0 problema “negro,” das “lésbicas,” de “género,” dos “latino-americanos”’ O pensamento feminista se deu mediante a cons- trugao a ferro e aguas atlanticas, e a interseccionali- dade veio até nds como ferramenta ancestral. Nao por acaso, Sojourner Truth, nascida acorrentada ao escravismo, vendida em leildo aos nove anos de idade, junto ao gado, tornou-se pioneira do feminismo negro. Em discurso de improviso Eu ndo sou uma mulher?,"' proferido em 1851, durante a Convengao dos Direitos das Mulheres de Ohio, em Akron, ela denunciou que “ninguém nunca me ajudou a subir nas carrua- gens, nem pular pogas de lama [...], eu tive treze filhos e vi a maioria ser vendida pra escravizacao” Nestes fragmentos, a intelectual pioneiramente arti- cula raga, classe e género, questionando a categoria mulher universal, mostrando que se a maternagem obrigatoria revela um destino biolégico para todas as mulheres, seria apropriado ressaltar que os filhos e as. filhas das africanas eram vendidos escravizados. aiscurso “Keeping the Thing Going Em 1867, no stirring”, Sojourner Truth aumentou While Things Are ST" Tpismo dos homens Negros, que a énfase oe sutgio omitindo qualquer referéncia ee negras. OQ pensamento interseccional 7 ase de opressao cisheterossexista, etaria, ee eal do trabalho, segundo a qual, na minha ae ‘as mulheres negras eram trabalhadoras nas tra ae ae ae dinheiro tomado por “maridos ae , bastante ofendidos porque nao havia “comida pronta dentro de casa”. Entao, a pensadora denuncia a infantilizacao da mulher negra: ‘Eu quero que vocé considere que sou uma crianga de alguém e, eu tenho idade suficiente para ser mae de todo mundo aqui ‘A despeito do feminismo hegemOnico argumentar que na velhice as mulheres experimentam discrimina- des geracionais impostas pelo mercado de trabalho, 0 qual as consideram velhas; e de classe, porque perdem © dinheiro da aposentadoria para netos € adultos da familia, é a marcagao de raca que garantira as mulheres brancas seguridade social, pois estas tiveram emprego formal, e a marcago de classe iré manté-las na condigao de patroas. No pensamento de vanguarda brancas instruidas,” chegavam~ deve fazer 0 que ambos ~ marido e patroa — querem, como se faltasse vontade propria e, 0 que é pior, capa- cidade critica. Independentemente da idade, 0 racismo infantiliza as mulheres negras. Velhice é como a raga é vivida; e classe-raga cruza geragdes, envelhecendo mulheres negras antes do tempo. De tal modo, atravessamos séculos articu- lando raga, classe, género e nagio. Em dias atuais, aguardamos a impressio da face feminista negra de Harriet Tubmam, generala, abolicionista sufragista, nas cédulas de vinte délares nos Estados Unidos, circulando o valor interseccional. E a lembranga das rotas ancestrais partidas do Rio Combahee a ferrovia subterranea para libertar escravizados. Hé mais de 150 anos, mulheres negras invocam a interseccionalidade ea solidariedade politica entre os Outros, Simultaneo a isto, atestam que o machismo presente na comu- nidade negra deve receber a critica dada ao racismo feminista, estando 0 Coletivo Combahee River, orga- niza¢ao negra lésbica nascida em 1974, em Boston, Massachusetts, em 1977, a defender pensamento interseccional, através das irmas Barbara Smith e Beverly Smith, respectivamente, editora dos livros escritos por mulheres de cor, lésbicas e tedricas femi- 2 de Sojourner Truth, raga impde 4 mulher negra expe- _nistas. Manifestaram ao lado das mulheres de cor que: 2 ., rigncia de burro de carga da patroa e do marido. Para heres . co ge = creditamos que a politica sexual sob 0 pa = = jer negra inexiste o tempo de parar de trabalhar, i pe : = 8 ae 8 coe ie hci ; | triarcado é tao onipresente nas vidas das mu- 2g yg 2 vide o racismo e: » que u : theres negras, quanto as politicas de classee == & = mercado formal, atravessando diversas idades no nao raga Também achamos, mutes vezes, dif Sa emprego, expropriadas; e de geraco, infantil, porque nm a ie) 8 INTERSECCIONALIDADE nm 3 separar opressdes de raca, classe © sexo por. tue, nas Nossa vidas elas S80 quase sempre xperimentadas simultancamente. NOs sabe, ‘mos que existe uma coisa que € uma opres. Go sexual-racial que nem é somente racial mem somente sexual, por exemplo, a historia do estupro das mulheres negras por homens brancos como arma de repressd0 politica, ‘Mesmo sendo feministas e lésbicas, nos soli- darizamos com os homens negros progressis- tas, enio defendemos o fracionamento que as mulheres brancas separatistas reivindicam,"? Por certo, produgdes e posicionamentos como esse, além de encontrarem caminhos de ressarcir vozes secularmente inaudiveis até a publicacéo, advertem equivocos analiticos da sociedade civil e Estado toda vez que a mulher é tomada de modo universal. Diga-se de passagem, iniquidades de género nunca atingiram mulheres em intensidades e frequéncias andlogas, Género inscreve 0 corpo racializado. Entretanto, enfoques socialistas encurtados 4 cantilena de classe negaram humanidades africanas, além do fato de negras serem mulheres ¢ estupros coloniais terem- nas transformado em produtoras e reprodutoras de vidas expropriadas no trabalho de parto, e seus filhos em mercadorias as quais, elas, em tese, mes, nao tinham o direito a propriedade. E fetiche epistemicida omitirmos clivagens racistas, sexistas e cisheteronor- mativas estruturadas pelo Ocidente cristao. Ademais, foi brilhante © pensamento feminista negro de Sojourner Truth, que articulou discursiva- mente as estruturas de racismo, capitalism, cisheteropa- triarcado e etarismo, marcando a sensibilidade analitica da interseccionalidade & compreensio das experiéncias atribuidas 4s mulheres negras, dezesseis anos antes do Capital, publicado em 1867. 0 Dr. Carlos Moore, a0 tratar da teoria de Marx e Engels, assinala que O raciocinio de ambos era simples: a car- nificina e pilhagem fora da Europa seriam a base para 0 desenvolvimento vertiginoso, no Ocidente, do Capitalismo industrial e da classe de trabalhadores assalariados. Por sua vez, isso levaria 4 revolugdo e, enfim, a0 Socialismo. Eles pouco se importavam com as consequéncias do imperialismo ocidental para suas vitimas nao ocidentais. Na verda- de, estavam convencidos de que a domina- 40 ocidental era 0 agente da “civilizagao” ¢, assim, para o bem dos proprios povos co- lonizados. Engels seria bem explicito neste sentido: “Nao ha calamidade historica que nao seja compensada pelo progresso. E ape- nas 0 modus operandi que se modifica”."* Ao contrério do raciocinio ocidental, as mulheres negras evidenciaram destreza corpérea, insubmissdo politica em defesa do abolicionismo e sufragio, preocupadas em superar toda e qualquer opresso, sem que, para isto, credenciais académicas INTERSECCIONALIDADE we S i este conhecimento. A teoria feminista an ¢ discursos masculinos produzidos de arc responsaveis por modelar ure oi des femininas condicionadas a tornar a ae vcategoria de Outro: obedientes filhas, ees maes compulsorias € camplices das oa ; violéncias praticadas contra elas, conforme assinala Simone de Beavouir, nO livro O Fasc oan publi- cado em 1949, € Marilena Chaui, em 198. 5, no artigo “Participando do debate sobre mulher € violencia’ : Notemos que mulheres negras, na condicao de Outro, propuseram agao, pensamento ¢ sensibili- dade interpretativa contra a ordem patriarcal racista, capitalista, sem nenhuma conivéncia subjetiva com a dominagio masculina. As mulheres negras esco- theram lutar pelo sufragio € pela. aboligao, defenderam ‘os homens negros € as companheiras brancas, reco. nhecendo que, quer Seja descrito, quer seja analitico, isolado de outras categorias de analise, 0 marcador género explica as violéncias sofridas por mulheres brancas, bem como a categoria raga explica o racismo imposto aos homens negros. ‘A. interseccionalidade nos mostra mulheres negras posicionadas em avenidas longe da cisgene- ridade branca heteropatriarcal. Sao mulheres de cor, _ lésbicas, terceiro-mundistas, interceptadas pelos tran- sitos das diferenciagdes, sempre dispostos a excluir identidades e subjetividades complexificadas, desde a colonizacao até a colonialidade, conforme pensam Maria Lugones e Avtar Brah. Sem divida, mulheres negras foram marinheiras das primeiras viagens transatlanticas, trafegando identidades politicas reclamantes da diversidade, sem distingao entre naufragio e sufragio pela liberdade dos negros escravizados e contra opressdes globais. Elas construiram 0 pensamento feminista negro e, por mais que lembrancas ancestrais nos remetam as aguas do Rio Combahee, nunca esqueceremos que, em 1969, o feminismo negro de Frances Beal publicou o “Black Women’s Manifesto; Double jeopardy: To be Black and Female”,”” argumento teérico ¢ politi- camente contra a necropolitica colonialista moderna, cruzando capitalismo, imperialismo ocidental e racismo estrutural, e tendo em vista que Os Estados Unidos patrocinam clinicas de esterilizago em paises n4o brancos, espe- cialmente na india, onde cerca de 3 milhdes de jovens homens e meninos em Nova Déli ¢ arredores foram esterilizados em salas de cirurgia improvisadas, montadas pelos traba- Ihadores americanos da forca de paz. Nestas circunstancias, € compreensivel que certos paises considerem o Corpo da Paz nao como ‘um projeto benevolente, ndo como evidéncia da preocupacao da América com éreas sub- desenvolvidas, mas como uma ameaga sa propria existéncia."* Com efeito, a interseccionalidade exige orientagao geopolitica. Ori rege cabecas negras em didlogo com as epistemologias do Sul." Do ponto de vista feminista INTERSECCIONALIDADE we 8 jntelectuais estadunidenses S80 considerada, o tais - saberes periféricos do lado sul-nortista, coma tas ioe Estados Unidos, viver sob a ary nore Poairnpesiit@ de publicacao, difusig soem eotecimento 2070 do! undo, es, is sofrem racismo e sexismo epistémicos impostos pela geografia do saber do Norte Global. Antes de serem estadunidenses, as feministas Sho negras ¢ refletem experiéncias pos-coloniais nas dguas atlinticas como 10S, suas irmas de barco, noutra ‘América. Uma vez que a agua para as mulheres negras € fundamento epistemoldgico, nao sendo 4 toa, por jdentidade ancestral, sermos todas chamadas de ialodés - titulo consagrado a Oxum, senhora das Aguas e mensagetra politica das reivindicacdes das mulheres, na Nigeria - yale considerar, que distante fo feminismo branco com “misticas femininas”® em slesio representativa da prisio feminina no espaco privado - Oxum representa aquela que tem autori- fade no espaco publico-privado para reivindicar em nome da comunidade, como marcam os pontos de vistas de Jurema Werneck € Sueli Carneiro. Em presenga do paradigma afrocéntrico, valho- me das intelectuais africanas Oyéronké Oyewimi, Bibi Bakare, Sylvia Tamale, Chimamanda Ngozi ‘Adichie, sem rejeitar a descolonizacao epistémica, afrocentrada, das pensadoras bell hooks, Angela Davis, Patricia Hill Collins, Jasbir Puar, Audre Lorde, ‘Alice Walker, conceituadas amefricanas por Lélia Gonzalez, pensadora brasileira que reposicionou a regiao colonizada, Améfrica Ladina, criticando 0 monoculturalismo epistémico dos Estados Unidos. A amefricanidade proposta por Lélia Gonzalez, na década de 1980 e, em seguida, a abordagem deco- Jonial, consolidada nos anos 2000 de modo cabal, através de Maria Lugones, pensadora argentina, criticam a postura missionaria da civilizago ocidental — metodologicamente interseccionam as estruturas de raca, genero, sexualidade, nacdo ¢ classe, estabele- cendo coro latino-americano contra 0 colonialismo, imperialismo e monopolio epistémico ocidental. ‘As duas concepcdes rompem ficcdes do discurso hegeménico estadunidense que vé a “América” como uum capitdo salvador do resto do mundo, ¢ nao calha de sé-lo, nem no item Norte Global, segundo Lélia Gonzalez, voz desobediente nas Ciéncias Sociais, expositora do sexismo e racismo na cultura brasileira, Nesta direio, a biografia de Lélia Gonzalez,”' da Coleco Retratos do Brasil Negro, produzida por Alex Rats e Flavia Rios, utiliza o tom feminista negro para apresentar Oxum, orixé regente da pensadora, nacio- nalidade, género e classe, movimentando a textura intelectual nao linear, ndo objetiva ¢ néo neutra da imterseccionalidade, revelando arranjos ancestrais do ponto de vista de Lélia Gonzalez, sobretudo na década de 1980. Em seguida, publicam A perspec- tiva interseccional de Lélia Gonzalez,” confirmando a antecipacdo conceitual de interseccionalidade na INTERSECCIONALIDADE wo S Aki «que, militante académica, articulaya ea exploracao capitalista” 2 0 ieennaen de fit Gonzalez, pam epra estadunidense nos a maigao fern, pblicando a obra Miles, ma ma esta pela fil6sofa Angela Davis, em 199), fos do capitalismo, racismo € sexismo marcam oS to de_vista feminista negro, reconhecendo ag r et prancas como trabalhadoras companheiras vntescravocratS, nao obstante, | proximas do racismo, ‘A obra debate © trabalho doméstico, a exploracdo de classe, 0s abusos sexuais direcionados as mulheres cexploradas ~ como negras, como trabalhadoras, como tmutheres ~ além do choro da mulher negra e suas denimcias serem consideradas ilegitimas. Também considera que os homens negros sofreram consequén. cias de raca-sexo, mergulhadas de estereotipias, lincha- mentos e classificagao racial acusatorias de sé-los abusadores sexuais das mulheres brancas. O livro Ain't 1a Woman, o primeiro de bell hooks, também publicado em 1981, ajusta a metodologia interseccional articulando 0 impacto sexista na expe- riéncia das mulheres negras durante e apés a escrava- tura, a desvalorizaco da subjetividade, o machismo dos homens negros, 0 racismo feminista e a vontade intelectual de trabalhar 0 paradigma afrocéntrico para defender um povo. Teoria, metodologia e instrumento pratico, a interseccionalidade revela o ciclo lunar da militancia encabegada pelas intelectuais negras, numa diversidade de marés na historia do feminismo, rejeita a brancura das ondas feministas, que nao passaram experiéncias da colonizacao e nem sequer compu- seram 0 projeto intelectual emocionado, manifesto de forca teorica negra, sem estar presa as correntes euro- céntricas e saberes narcisicos. Contraria ao padrio de apagamento linguistico, inferiorizacao espiritual e arquiteténica, dos quais partem os genocidios europeus, alargados pela expor- tagao de corpos feminizados, pelo saqueamento, cate- quizacao e falsa descoberta da América, convalido a “desobediéncia epistémica,” argumentada por Walter Mignolo,* em defesa da identidade politica e nao da politica de identidade. Do meu ponto de vista deco- lonial, € contraproducente empregar interseccionali- dade para localizar apenas discrimina¢ées e violéncias institucionais contra indigenas, imigrantes, mulheres, negros, religiosos do candomblé, gordos e grupos iden- titdrios diversificados. O padrao global moderno impés estas alegorias humanas de Outros, diferenciadas na aparéncia, em que preconceitos de cor, geracio e capa- cidade fisica, aperfeicoam opressdes antinegros e anti- mulheres — mercadorias humanas da matriz colonial moderna heteropatriarcal do sistema mundo. © problema nao esta necessariamente nas respostas identitarias dadas 4 matriz colonial, mas quais metodologias usamos para formular tais respostas, que, ndo raro, enveredam para uma depen- déncia epistemologica da Europa Ocidental e Estados INTERSECCIONALIDADE w a F mulher universal a exemplo, feminism maraistas €[6 fem. ‘no. Ademais, 2 ee ser resumidas nos seguintes rnismo hegemonico relagdes do “sistema sexo. scie humana € transformada » femea da espect genero sticada, segundo © pensamento de numa mulher domestT™ mente nas relacées capi. Gayle Rubin.* Ov, Br formado eth escravo, como no talistas um negro Marx. Duas formulagées obce. pensamento de KAP alvacionista europeu as identi cadas a darem 0 Ty ctivamente, de mulheres e classes dades politicas, respectiva: 2 de. coma lhadoras, afastando-se Os negros Ca condicao a balhadores e negras da identidade de mulher, Preerem ignorar que a8 ideologas, hoje comhecidas como xenofobia, neoliberalismo, divisio internacional do trabalho, opressao patriarcal de género discrimi. nagao racial, vieram, com certeza, a partir do século XV, com os “descobrimentos” da Europa. Depois, 0 neocolonialismo, no final do século XIX, dividiu o continente africano e trouxe significados identitarios multifacetados para a di4spora negra, lacunas discur- sivas propositalmente secundarizadas. Havemos de concordar quando Audre Lorde diz: “as ferramentas do opressor nao vao derrubar a casa grande” 2” De pronto, a interseccionalidade sugere que raga traga subsidios de classe-género e esteja em um Patamar de igualdade analitica. Ora, o androcen- trismo da ciéncia moderna imputou as fémeas o lugar social das mulheres, descritas como machos castrados, estereotipadas de fracas, maes compulsérias, assim como os pretos caracterizados de nao /humanos, macacos engaiolados pelo racismo epistémico. Pretas e pretos sdo pretas € pretos em qual- quer lugar do mundo. Na profusio de identidades viajantes, contingentes, fluidas, a cor da pele nao se desarticula da identidade preta, a qual, em tese, poderia ser vista como de brasileiro impedido de entrar nos Estados Unidos, da mesma forma os afri- canos pretos, comumente vistos africanos e nao pelas nacionalidades recém-chegadas no Brasil. Sabe por qué? Nao podemos fugir da raga e das conexées entre categorias analiticas, quem bem sabe disso é 0 projeto intelectual negro. A Europa somente abre mao da identidade politica de padrao global colonialista quando epidemias apontam 0 problema da regido ocidental, exigindo que diga a nac&o afetada pela presenga de africanos e nao 0 continente. Quando o inverso acontece, o problema particular de um pais africano € transformado no problema da Africa, por isto Chimamanda Ngozi Adichie alerta sobre o perigo da historia unica e Patricia Hill Collins diz que os eixos da sociabilidade humana atuam e influenciam simultaneamente, dando as Pessoas acesso a comple- xidade do mundo e de si mesmas. __ A interseccionalidade permite as feministas ctiti- cidade politica a fim de compreenderem a fluidez das identidades subalternas impostas sa preconceitos, subor- dinacSes de género, de classe e Taga e as opressGes INTERSECCIONALIDADE ow © estruturantes da matriz colonial moderna da qual sae, Eu nao posso falar da persegui¢ao do homem africano aos homossexuais ¢ as lésbicas no territério sem utilizar aporte interseccional na identificacao dos norteamentos evangélicos, heterossexistas, propalados pela Europa, porque, “ideologicamente derrotado, ele nio © fez porque gostasse de Jesus Cristo ou dos brancos”.* ‘Adiante, Dr. Carlos Moore, na obra Racismo & Sociedade: novas bases epistemolégicas para entender 0 racism,” censura atuagdes neoidentitérias, quando inobservam as estruturas do racismo e sexismo. Na perspectiva do autor, tentarmos equiparar racismo a opressdes emergentes como gordofobia, preconceitos contra feios ou bullying, significa desconsiderar o racismo como uma estrutura de domina¢ao docu- mentada em pelo menos 4 mil anos de existéncia. Estou de acordo que “tanto os homossexuais brancos quanto os negros sao estigmatizados pela homofobia de negros, mulheres ou homens, a despeito de esses ultimos serem o alvo principal do racismo”.*” Por outro lado, a epistemologia feminista negra, pensada por Patricia Hill Collins, recrimina argu- mentos de competicao entre os mais excluidos, as hierarquias entre eixos de opressdo e violacdes consi- deradas menos preponderantes. Juntos, racismo, capi- talismo e heteropatriarcado devem ser tratados pela interseccionalidade observando os contornos identi- tarios da luta antirracista diaspdrica, a exemplo dos brancos de candomblé, que argumentam opress6es religiosas sofridas, ignorando que os ataques impostos ao candomblé sao, precisamente, ataques contra a cultura do povo negro. A indumentaria afrorreligiosa para alguns brancos € situacional, individual e provi- s6ria, por vezes, até mesmo mais um capital cultural, simbélico ¢ politico, Basta lembrarmos como Pierre Verger, Ant6nio Carlos Magalhaes e Nina Rodrigues fizeram carreira intelectual e politica valendo-se da autoridade religiosa no candomblé e produziram racismos e sexismos com a licenga poderosa de seus cargos religiosos. cisheteropatriarcado refaz, do mesmo modo, © confessionario das misoginias contra as mulheres lésbicas, reestruturando as sistematicas do colo- nialismo moderno. Para o pensador decolonial Grosfoguel, genocidio e epistemicidio sao estruturas modernas inseparaveis, tais quais sexismo e racismo.”! Logo, a partir da sua concepcao, se as africanas e africanos nas Américas foram impedidos de pensar, orar ou praticar seus fundamentos, submetidos aos racismos epistémicos religiosos e depois ao racismo de cor, 0 sexismo fez as mulheres serem queimadas como bruxas na inquisi¢ao, destruidas sob a forma de bibliotecas de oralidade, na Europa. Os indigenas, por serem seguidores da espiritualidade nao-crista do sistema do mundo moderno colonial, sofreram a matan¢a que permanece aos nao-brancos, implica- ges politicas esbocadas pelas intersecedes coloniais dinamizadas por fluxos identitarios. INTERSECCIONALIDADE = Ss De la para cd, esse padrao ae prerrogativas cristas, nacionalistas, racial ee da engrenagem do mundo moderno e responde teori- camente as problematicas criadas por ele mesmo, “Nenhum estudante sério ¢ imparcial pode ser enganado pelo conto de fadas da bela Civilizacao fe escravos do Sul”? A matriz de opresséo euro- peia tem procurado retirar os racismos ocidentais do foco usando a interseccionalidade para cruzar genero-nagio-sexualidade, de modo a expor quao desempoderadas sto as mulheres terceiro-mundistas, As categorias género € sexualidade, racializadas, permitem nomear os africanos de homofobos, cultos de orixas de amaldicoados, de perversos os sacrificios animais, homens negros de feminicidas, normativos e incivilizados, opostos a Europa € aos Estados Unidos. Sem embargo, as feministas negras nao resta alter- nativa intelectual sendo a de abarcar o transatlantico € dar sentidos, além da cosmovisao colonial, as relacdes de poder reconfiguradas pela modernidade, imbricadas € postas a apreciacao analitica da teoria interseccional; construindo uma canoa de resgate discursivo daquelas e daqueles outros, negados por critérios raciais e por sepa- ratismos identitarios, a ponto de raga, categoria anali- tica imprescindivel na abordagem interseccional, softer inferiorizacdo diante de sexualidade e género, pois 0 branco LGBT, a mulher dita ocidental, a classe traba- Ihadora e o brasileiro mestico, jamais declaram que so brancos no Brasil, ¢ deixam de analisar a branquitude auto-invisit ilizante para se trasvestirem ora de esquerda, ora de nao-binarios, ora somente de humanos, tendo em vista, piologicamente, raca inexistir. ‘A articulacao metodologica proposta pelas femi- nistas_negras, atualmente chamada de interseccio- nalidade, recupera as bagagens ancestrais perdidas, milhdes delas espiritualmente, presentes nestas palavras do transatlantico, pois que nas palavras de Farani, Carrascosa, Augusto, Sousa, Campos € Reis “os projetos decolonial e negro-feminista farao a recalibragem deste instrumento ndutico para corrigir- nos dos perigos de invisibilizacao dos locais afrodias- poricamente potentes”.** Com articulagéo tedrica, podemos reassumir a discussdo sobre colonialidade da natureza, concei- tuada pelo peruano Anibal Quijano no giro deco- Jonial do final dos anos 1990, pois, certamente, a didspora negra sofreu apropriacao privada do mar ‘Atlantico, territdrio a cargo de Iemanja - guardia afri- cana iorubé das cabecas-oris e também da consciéncia de existirmos ha pelos menos 3 milhées de anos, segundo as descobertas arqueolégicas. Quinhentos destes de escravizagéo promovida pelo branco colo- nizador. “Nada é sagrado para a civilizagao ocidental branca e crista”,* ja nos disse Abdias Nascimento. O impacto do colonialismo & natureza fez milhares de pretos serem atirados ao Oceano e langou a dico- tomia entre natureza e humanidade do padrao capi- talista global. As feminilidades e masculinidades INTERSECCIONALIDADE i S construidas pelo cisheteropatriarcado | ¢ racism, jontos, sara dessa experiencia; no Atlintico, af. danas choraram feminilidades e aficanos seguraram © choro das masculinidades. Mulheres negras desde entao sio castigadas mais vezes, segundo bell hooks,’s por chorarem muito diante dos colonos, somente para Incomodé-los em seus sonos injustos, de acordo com Conceigiio Evaristo.* 'A didspora negra deu suor, lagrimas e sangue ao gosto do Mar. O apagamento epistémico ainda é o “sal-ario” da experiéncia salgada de modo que me ancoro completamente & teoria do ponto de vista feminista negro. Metodologicamente, adoto atitude decolonial,” transdisciplinar ensinando a teoria trans- gredir como bell hooks, cartografando 0 pensamento de mulheres negras e terceiro-mundistas. Banco esta gramatica ancestral para sentidos analiticos sobre interseccionalidade, em respeito a “ori-entagao” analitica, ago consciente do Ori - cabeca - em direcao ao Sul Global e 4s memorias naufragadas pelo colonialismo, suficientemente abor- dado por Fanon," Maria Lugones” e Curiel®, De nada adianta intelectuais defenderem a desco- lonizacao do feminismo sem legitimar negrura pers- pectivista em nivel psiquico, cognitivo e espiritual das epistemes. Sem afastar modelos ocidentais do tipo materialismo histérico, junto com a “consubstancia- lidade” recomendada por Daniele Kergoart, socid- Joga francesa, que recusa o pioneirismo feminista propos interseccionalidade. Ela, oan idamente, escolhe ler tripla dimenso da reali # histica ‘sivisdo sexual do trabalho, controle sexu heres € racismo. | repre ee ta politica e contestacao a ncialidade, defendo a teoria interseccional, ensidade do pensamento das femi- eclarar através de Audre Lorde que negro que consubstal confiando na di nistas negras a0 d Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questdo lésbica e gay, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comu- nidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbi- cas e gays € uma questdo de negros, porque milhares de lésbicas gays sto negros. Nao existe hierarquia de opressao. Eu nao posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressio apenas. Nao posso me permitir acreditar que ser livre de intolerancia € um direito de um grupo particular‘! Mulher + negra + nordestina + trabalhadora + travesti + gorda, segundo a metodologia de Patricia Hill Collins, trata-se de viséo interseccional invalida a0 projeto feminista negro. A interseccionalidade impede aforismos matemiticos hierarquizantes ou comparativos. Em vez de somar identidades, analisa- se quais condicées estruturais atravessam corpos, quais Posicionalidades reorientam significados subjetivos esses corpos, por serem experiéncias modeladas por e durante a interacio das estruturas, repetidas vezes INTERSECCIONALIDADE Carla Ako £ = Jonialistas, estabilizadas pela matriz de opressao, so}, crrorma de identidade. POF Sua VEZ) 3 identidade nag ee Mdenenhuma das suas MarcacOes, mesmo abster 5 ot todas, contextualmente, estejam explicitadas, enon analiticamente, 0 medo sentido por mulheres brancas 40 passarem pelas periferias em certos horarios. Para 4 interseccionalidade, importa saber, além disso, a aflicao imposta 20 negro visto como perigoso, na medida em que a vulnerabilidade de um, surge mediante a presenga desconfiada do puto, Brroneo argumentarmos a favor da centrali- dade do sexismo ou do racismo, j4 que ambos, adoe. cedores e tipificados, so cruzados por pontos de vistas em que se interceptam as avenidas identitdrias, 'A rigor, qualquer misogino teria condigbes de -violentar uma mulher, branca ou negra, rica Ou pobre, que cruzasse 0 espaco. A interseccionalidade nos instrumentaliza a enxergar a matriz colonial moderna contra os grupos tratados como oprimidos, porém nao significa dizer que mulheres negras, vitimas do racismo de feministas brancas e do machismo prati- cado por homens negros, nao exeram técnicas adul- tistas, cisheterossexistas e de privilégio académico. ‘Ao lado de homens negros da sua geracio, as mulheres negras mais velhas podem nem perceber a imposigao politica que exercem em relacao as mais jovens, aconselhando-as a pauta da juventude, onde disputam com jovens negros a descentralidade do debate sobre violéncia policial, uma vez que a yioléncia sexista € 0 aborto sao ee hee vreundarizados, apesar de genero e Bera ee culados yacialmente. Em tempo, para a pesqi i 4, “a encruzilhada das varias categorias Fabiana Leonel, 4! ede vs dinamicas sociais forma uma complex Tes desigualdade que se perpetua e Se reestrutura” - : O pensamento interseccional nos leva Teco: nhecer a possibilidade de sermos oprimidas e de Forroborarmos com as violéncias. Nem toda mulher é branca, nem todo negro é homem, nem todas as mulheres sao adultos heterossexuais, nem todo adulto heterossexual tem locomosao politica, visto as geografias do colonialismo limitarem as capa- cidades humanas. Segundo o professor Cristiano Rodrigues, além disso, a interseccionalidade esti- mula 0 pensamento complexo, a criatividade e evita a producao de novos essencialismos.* Recomenda-se, pela interseccionalidade, a arti- culagio das clivagens identitarias, repetidas vezes reposicionadas pelos negros, mulheres, deficientes, para finalmente defender a identidade politica contra a matriz de opressao colonialista, que sobre- vive gracas as engrenagens do racismo cishetero- patriarcal capitalista..Sendo assim, nao apenas o racismo precisa ser encarado como um problema das feministas brancas, mas também o capacitismo como problema das feministas negras cada vez que igno- ramos as mulheres negras que vivem a condigao de marca fisica ou gerada pelos transitos das opressdes ne & _INTERSECCIONALIDADE modernas coloniais: sofrendo o racismo por serem negras, discriminadas por serem deficientes. Portanto, na heterogeneidade de opress6es conectadas pela modernidade, afasta-se a perspectiva de hierarquiza; sofrimento, visto como todo sofrimento esta intercep. tado pelas estruturas. Nao existe hierarquia de opress4o, j4 aprendemos Identidades sobressaltam aos olhos ocidentais, mas a interseccionalidade se refere ao que faremos politi. camente com a matriz de opresséo responsdavel por produzir diferencas, depois de enxergé-las como identi. dades. Uma vez no fluxo das estruturas, o dinamismo identitario produz novas formas de viver, pensar € sentir, do ficar subsumidas a certas identidades insur. gentes, ressignificadas pelas opress6es. O “pardo dilema”, discutido pela professora Joyce Lopes, auxilia entendermos a interseccionalidade de raga junto aos demais marcadores sociais. A autoclassificacao do sujeito que se declara negro sendo ele branco, destoa aaplicag4o da interseccionalidade, porque 0 racismo nao alcanga esta experiéncia, por mais que se apresente de turbante, significados religiosos de candomblé, seja de classe trabalhadora, a sistematica racista n4o alcanga esta identidade na matriz de opresso, ali, na avenida em que estruturas se articulam, simplesmente, porque 0 racismo esta ai, como dito, ha mais de 4 mil anos, ha quinhentos anos mostrando a sua modernidade. Acess6rios estéticos de negro sao resolvidos quando as identidades tiram as aparéncias e mantém suas peles brancas. pranco se esté falando para além do a fluidez e contingencia da a mesma pessoa € iden- do em regides diferentes, ‘36 é branco o branco Quando se fala da cor da pele, até devi eriéncia de “prancura” tificada de modo diferencia‘ pois para a Europa, entretanto, ot reropeu. Vejamos o branco como sistema politico, em que raga, classe € género proporcionam uma expe- Mencia imbricada de privilégios, nao podendo a raa negra sobrepujar a inscricao jdentitaria, sob risco de mau uso da ferramenta interseccionalidade. Bastante evidente no caso Rachel Do! ativista estadunidense negra que, em suma, € branca Reservando anotagées de satde mental, sua trans- racialidade foi frustrada pelo “pacto narcisico”, conforme explica Dra. Maria Aparecida Bento. ‘A identidade branca desmascara quem se passa por negro sem sé-lo, dando as chances politicas de ser branco de verdade. ‘A interseccionalidade nos permite partir da avenida estruturada pelo racismo, capitalismo ¢ cisheteropatriarcado, em seus miltiplos transitos, para revelar quais sao as pessoas realmente aciden- tadas pela matriz de opressdes. A interseccionalidade dispensa individualmente quaisquer reivindicagées identitarias ausentes da coletivamente constituida, por melhores que sejam as intengdes de quem deseja se filiar 4 marca fenotipica da negritude, neste caso, as estruturas nao atravessam tais identidades fora da categoria de Outros. lezal,** INTERSECCIONALIDADE > 3 Logicamente, para a Europa, branquitude ¢ sistema de podet muito além da brancura da pele distinto do caso brasileiro, da mesti¢agem, coms quer a democracia racial defendida Pelas elites prancas € transitos regionals com seus desloca. mentos de privilégios” Dai interseccionalidade se, ‘til para perceber onde comega 0 racismo ¢ termina a discrimina¢a0 regional, a xenofobia e as opressies ressignificadas contextualmente. — A interseccionalidade ésobre a identidade da qual participa 0 acismo interceptado por outras estruturas, Trata-se de experiencia racializada, de modo a requerer sanmos das caixnhas particulars que obstaculizam es futas de modo global ¢ vao servir as diretrizes hete. rogeneas do Ocidente, dando lugar a solidao politica da mulher negra, pois que sdo grupos marcados pela sobreposicao dindmica identitaria. E imprescindivel, insisto, utilizar analiticamente todos os sentidos para compreendermos as mulheres negras e “mulheres de cor’ na diversidade de género, sexualidade, classe, ‘geografias corporificadas € marcagdes subjetivas. £ facil discursivamente desautorizarmos usos hegeménicos de interseccionalidade, resgatando somente Du Bois ao considerar branquitude um privi- 1égio, pois isto implica no valor politico de ter mais um salério, o‘salirio piblico e psicologico”.*” Esse salario amortiza 0s prejuizos de ser pobre numa nago capi- talista, e dificulta a uniao de classe trabalhadora, pois 0 trabalhador branco tem um salario a mais e recebe i 10 tempo que a da branquitude, 20 mesm ; 7 sa Se oportunidades de trabalho, eee e média, garantindo dignidades no acessO ‘ a = s escolas para estudar, sem sofrer dept ese ou falta de saneamento. ee jando do contexto dos direitos civis esta- trazendo para perto, mulheres negras res pariram filhos com microcefalia,* n40 Por ce da pobreza. Todavia, Poraue sho negras, Acme do racismo, gerador de pauperiza¢ao, atendimento puilico precario, ‘auséncia de saneamento, impedindo ‘9s mosquitos de picarem trabalhadoras brancas com mesma frequéncia. Epidemias como zika emicrocefalia sao, antes de tudo, dimensdes do racismo instituciona- fizado, conforme explica a epidemiologista e pesquisa- dora de interseccionalidade, Emanuele Goes.” Mesmo a branquitude critica, definida categoricamente por Lourengo Cardoso como aquela reflexiva sobre a respectiva condigdo antirracista privilegiada por ser jranca, nao deveria empregar interseccionalidade em. beneficio analitico proprio, quicd, usar da. gramatica racial para reconhecer esse lugar, quando contextos forem neutralizados raca por classe, geracao, esco- laridade, religido, territorio, profisso dentre outros marcadores sociais, erroneamente agregados no lugar de raga? Cabe & identidade branca usar interseccio- nalidade para desconstruir a falsa vulnerabilidade uniformizada, demonstrar 0 contexto das branqui- tudes, nao incorrer de oportunismos fraudulentos no unidenses © a Ss INTERSECCIONALIDADE la s raciais - chegando a “desenterrar , locarem 0 pé na senzala ae conforme ‘menciona Joyce Lopes. Interseccionalidade revela que classe pode dizer de raca, da mesma forma que raga informa sobre classe. “Raga ¢ @ maneira como » conforme ensina Angela Davis.? a classe é vivida”, Em fungao da popularidade académica da inter. seccionalidade, vale dizer que seja para refletir patriar. cado na Alemanha - € dizer isto nao é desmerecer a pauta, legitima - 2 proposta metodolégica da inter. Feccionalidade funciona como localizador da expe. riéncia do racismo, comungado as outras estruturas presentes, discursiva € politicamente, na vida de traba- ésticas na Europa, por exemplo, quase thadoras domé: sempre levadas a escravizacdes sexuais. As feministas alemas devem utilizar-se do conceito para perceber a experiéncia diferenciada das mulheres negras naquele pais, cruzada por marcagoes sociais miultiplas em investigagdo analitica das suas. ‘A interseccionalidade nao é narrativa tedrica de excluidos. Os letramentos ancestrais evitam pensarmos em termos como “problema negro”, “problema da mulher” e “questo das travestis” Aprendamos com a pensadora Grada Kilomba que as diferencas so sempre relacionais, todas ¢ todos sio diferentes uns em relagdo aos outros. Raciocinio exato sobre a interseccionalidade, desinteressada nas diferencas identitérias, mas nas desigualdades impostas pela matriz de opressao.** sistema de cota avé negra ou COl q femin ren ; cen rac, racismo € capitalismo esta = . of no arcabou¢o teorico feminista ee S ee nega comete epistemicidio € racismo episte! x ° : rm como 0 blues, lamento dos excav0s egos spresentado & admiracao dos opressores. E om pouco fe opressao estilizada que agrada 20 explorador € racist”. F Necessitamos compreender cisheteropatriarcado, capitasmo eracismo, coexistindo, como modeladores de experiéncias e subjetividades da colonizaca0 até os dias da colonialidade. Para nos, mantermos © femi- nismo negro € dizer que a interseccionalidade denota riqueza epistémica, que desta vez nao sera tirada da didspora africana. O feminismo negro substituido por feminismo interseccional equivale explorar a riqueza intelectual de Africa e chamar isso de modernidade. ‘Acredito, por identidade politica, que devamos mencionar a interseccionalidade como sugestdo das feministas negras* ¢ ndo dizer feminismo inter- seccional, uma vez que este escamoteia o termo negro, bem como o fato de terem sido as feministas aoe eae da interseccionalidade enquanto gia, visando combater multideterminadas INTERSECCIONALIDADE a 8 mulheres negras somente iminacoes, pautadas inicialmente no bindm; _ . on 7 sco PO sea yimento ~extensao da coluna raga-gé / aus se eroucerta do neotiberalismo usufruir do conceitg veaemserem Eras o8 7 ee ubversivas is, de interseccionalidade, em virtude de ele ter sidg so poser cexistir sem serem ote das " ai - lata: cate ce, uns € Cinna eens cristas contemporaneas. Saunders rel na foi Jo brancocentrismo, punitivismo e criminal; ; .o Brasil quando Luana Barbosa seado zagio de pessoas negras. Entao prefere o feminism foun and Luana Barbosa i interseccional, querendo usar a seletividade racial do assassinada. Foi horrivel ae : re ae Direito, disposta a fazer uso do conceito, porém nig debates comegaram a oe Se es foi cunhado por Kimberlé Crenshaw, em 1989. A prer. oa que as maes lésbicas negras sofrem ¢ rogativa do Direto pode criminalizar homens negros, ser uma mae lésbica negra foi algo questio- afticanos, defender encarceramentos, sem dizer que setjo Enquanto eu assistia eses debates em estes institutos discordam das bases epistemol6gicas toro de politica idetitrias, eu no pode do feminismo negro. O despautério metodolégico deixar de pensar que mesmo quando levanta- ram sua blusa e mostraram os seus seios isso ‘do foi suficiente para escrevé-la enquanto 6 tanto que usam até interseccionalidade no campo “humana” aos olhos da policia.* punitivo particular reportando ao pensamento femi- nista negro de Angela Davis, uma abolicionista penal Contrariamente, a interseccionalidade aplica a criagdo de mais conflitos as leis binarias do Direito e defesa das lutas antirracistas, tendo em vista imporem cisgeneridades heteropatriarcais, que ignoram lésbicas e trans negros como vitimas do racismo, mulheres negras, como duplamente discriminadas. Comparaveis, comu- nidades negras parecem usar a cisgeneridade referen- ciada pelos olhos, onde machos normativos s4o vistos dentro do Movimento Negro.*? verdadeiramente como negros. Desta maneira, a epis- Pesquisadoras negras, inversamente, mostram temologia sapatio sugerida pela Dra. Tanya Saunders, parceria politica desenvolvendo trabalhos acadé- menciona os legados da colonizagao em nivel psiquico, micos emersos de articulagao de raga, masculinidade Na mesma fundamentacao, Luiza Bairros, intelectual brasileira, denunciou a articulacao de racismo-sexismo presente nos recursos masculinistas da comunidade negra, pois, na percep¢ao de Bairros, sofremos discriminagao por parte dos militantes homens, que nao aprofundam a questo da mulher e ainda desenvolvem boicote da militancia feminista INTERSECCIONALIDADE wv ¢ classe, a citar Ana Flauzina,* Juliana Borges Vilma Reis. Elas denunciam e condenam politic mente a violéncia policial praticada contra os home. hegros, o etiquetamento e a seletividade racial. Fon do Brasil, a extensiva literatura feminista negra z bell hooks agencia 0 amor, com vistas a desenvolve, empatia e engajamentos tedricos para com os homens negros, nao tratando como sentimento romintico, lembrando certamente de Rosa Parks, costureirs negra que infringiu as leis segregacionistas estadunj. denses, recusando-se a dar 0 assento no énibus para o branco. Dr. Luther King, reverendo ativista negro, ajudou a mobilizar idas e vindas a pé de mulheres negras e homens negros em boicote aos transportes publicos, articulando classe, raga e género na irman. dade amorosa. Se o machismo fez Luther King mais conhecido que Rosa Parks, sonegando 0 mérito das mulheres negras terem espalhado cartazes pelas ruas, realizarem 0s trabalhos domésticos em suas prOprias casas e nas das patroas e frequentarem a igreja durante a noite sem usar o transporte publico por quase um ano, a lite- ratura feminista branca, segundo bell hooks, prefere revelar “o retrato da masculinidade negra que cons- tréi homens negros como fracassados, psicologica- mente fodidos, perigosos, violentos, maniacos sexuais cuja insanidade é informada por sua incapacidade de cumprir seu destino masculino falocéntrico em um contexto racista”.! vez, ncia de articulagdo entre raga, classe teoria feminista quanto na @ por certo criou inobservan- armante cenario ainda A auséi e género, produgo afro cias interseccionai de violéncia contra as : na década de 1980, logo apos ss egacias da mulher, as pul ceebavar. ‘a mulher universal. O Estado, se alimentava destas concepcoes para formu- cdo de politicas publicas. : da feminista negra brasi- “q atlantica”, é bastante Setores do movimento tanto na éntrica, jis produtoras do al. mulheres negras, pois, air urgirem as primeiras icagdes feministas por sua lagao e avalia Por outro lado, a morte leira Beatriz Nascimento®, emblematica neste sentido. negro argumentaram que O racismo motivou © crime, ocorrido em 1995, quando supostamente 0 homicida nao aceitou a intromissio duma mulher negra no rela- cionamento violento. Segundo a Folha de S.Paulo, no julgamento, a namorada do assassino, Aurea Gurgel da Silveira, também foi condenada por tentar desqua- lificar a vitima. Aurea disse que Beatriz Nascimento fazia orgias e aliciava menores, tentando manchar a meméria da companheira morta e defender a do réu confesso, seu agressor doméstico. Por estas raz6es poli- ticas, a interseccionalidade, na tradi¢ao do feminismo negro interessa a sua proponente, Kimberlé Crenshaw. Na compreenséo de Luiza Bairros, aponta possibili- dades de pensar os aspectos raciais da discriminacao de género, sem perder de vista os aspectos de género da discriminagao racial.

You might also like