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CONCEITOS REGIONAIS: ALGUMAS NOTAS DA DISCUSSAO REGIONALISTA Dario Belbute Peres” Resumo O presente artigo procura discutir algumas nogdes relacionadas aos conceitos regionais, principalmente na sua vertente regionalista. Como exemplo, utilizamos a discussio do movimento separatista da “metade” sul do estado do Rio Grande do Sul que reivindica a criagéo de uma outra unidade administrativa denominada “Estado do Piratini”. Abstract The aim of this article is to discuss some ideas related to regional concepts with emphasis on the regionalist’s approach. As an example, it was used the discussion on the secession movement in the southem “half” of the Rio Grande do Sul state which advocate the creation of a new administrative unity called “Estado do Piratini”, Introducio Nossa proposta no artigo, é de construir algumas possibilidades metodolégicas a partir de uma revisio bibliogrifica © conceitual sobre as nogdes recorrentes as politicas territoriais politicas regionais. Estes termos, alias, por si s6, j4 permitem a Professor de Geografia na rede municipal de ensino (Porto Alegre-RS) ¢ mestrando em Geografia na UFRGS. Geosul, Florianépolis, v. 14, n. 27, p. 112-121, jan/jun, 1999 112 abertura de possibilidades analiticas, mas nossa intengdo é muito mais simples, trabalhando com nogées de alguns termos como “desenvolvimento regional”, “problemas sociais” e “regido”. Vamos partir desta perspectiva pois entendemos que a analise relacional sobre estes termos nos mostra o esforgo em tomar os discursos (por enquanto, cientificos ou nao) legitimadores. Veja-se o caso da regido' analisado como exemplo de construgao de objeto através dos instrumentos que permitem isto. E neste caso, toma-se como exemplo na medida em que trabalha-se com “representagdes”. Ou seja, algo que precisa de conhecimento e reconhecimento”. Na nogdo de regio percebe-se que a Ita pela sua classificagao (defini¢ao) deixa transparecer interesses capazes de construir a propria realidade: A regio e as suas fronteiras (fines) nao passam do vestigio apagado do ato de autoridade que consiste em circunscrever a regio, 0 territério (que também se diz fines), em impor a definigao (outro sentido de finis) legitima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do territorio, em suma, 0 Principio de divisao legitima do mundo social” . Junto a isto, atentemos para a expresso “desenvolvimento regional”, presente em discursos os mais variados. A utilizagdo/reivindicagao de desenvolvimento regional mostra como um caso particular de exclusio (se este ¢, de fato, o termo mais apropriado) ou de ndo-pertencimento vem carregado de relages de forgas, de luta de vantagens sobre “alguma coisa”. E novamente a regidio, na sua particularidade regionalista, mostra que o ter/trazer desenvolvimento associa-se a uma construgao social: ' Bourdieu, Pierre. O Poder Simbélico. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2* ed., 1998, ? Bourdieu, P. (1998), ibid, p. 108. ° Ibid., p.114. 113 Se a regio no existisse como espago estigmatizado, como “provincia” definida pela distincia econémica e social (e nio geogréfica) em relagio ao “centro”, quer dizer, pela privagdo do capital (material e simbélico) que a capital concentra, nao teria que reivindicar a existéncia’. Complementando, “o regionalismo se perpetua como preconceito, como expediente de dominagéo mais fecundo quanto maior for o atraso da area de sua aplicagao”’. O desenvolvimento (agora, regional ou nio) vem preencher uma lacuna, ou pelo menos pretende-se como tal. Lacuna esta que pode estar expressa no proprio jogo de definigao das fronteiras da regio. E 0s “problemas sociais” ? Trazemos esta expressio° como tentativa de um gancho metodolégico com a exposigao anterior. O sentido de “problema social” pode remeter, inicialmente, a duas concepgées. A primeira referente aos problemas enfrentados pela elaboragdo de “politicas sociais"/leis. A segunda, com origens mais especificas nas relagdes de trabalho (ou genericamente, entre “grupos sociais”). Em ambos a instituigo dos problemas sociais depende da época e local em que foram geridos, da mesma forma que podem “desaparecer” como tal. Em ultima andlise, o problema social é uma construgo, mas que pressupée as etapas de reconhecimento © legitimagao. No primeiro, toma-lo digno de atengao” ou de outra forma, coloca-lo no cendrio dos debates publicos*. No segundo, um reconhecimento pelas instancias estatais, o que resulta em uma série de politicas que visam sua solugdo. Solugdes estas que 4 Ibid. p.126. Cabe observar, no caso do Rio Grande do Sul, os recentes discursos sobre uma autonomia ¢ recursos maiores para a “metade Sul” do estado, que ser exposto adiante, 5 Moraes, ACR, 1988, p.103. © aqui, muitas das conclusdes partem de Lenoir, Remi et alli. Iniciag3o a Pratica Sociolégica. Vozes, Rio de Janeiro, 1998. ” Lenoir, R. (1998), ibid., p.84. * Ibid, p84. 14 reforgam a figura de poderes publicos capazes de identificar, delimitar e controlar, precisamente tais situagdes. Novamente temos a necessidade do reconhecimento, da legitimagao; mas importante chamar a aten¢Jo novamente sobre 0 processo de construc&o. O objeto de pesquisa situa-se justamente na andlise dos agentes que lutam para impor a sua construgao/caracterizagao. O recorte territorial, além de nao ser um dado natural, mas sim uma construgdo social, carece de um resgate cronolégico, histérico. Importante extrair, entHo, como objeto de trabalho a apreensao desta logica de construgao da “‘realidade” que nada mais 6 do que “a permanente luta para definir a realidade”. Isto néo significa apenas uma analise do discurso, mas sim uma apreensio do que se institui e do que é representado (enunciado). Mas ha, ainda na idéia de desenvolvimento regional, uma questo: a administragao politica. O nivel regional, diferente de outros (nacional, estadual, municipal), mescla escalas de poder: a regio de identidade territorial e a regio definida pela administragao politica do territério”. Quando do confronto de interesses especificos com a homogeneizagdo do poder central (estatal) temos 0 regionalismo que também se estrutura na diferenca, no confronto/comparaggo econémico, cultural, com outras “regides”. A comparagao, se analisada no sentido de areas “melhores” ou “piores” traz inevitavelmente reivindicagdes de desenvolvimento para as segundas. Bourdieu, P, (1998), op.cit, p.118. Podemos acrescentar, a titulo de ilustragdo, um trecho da tese de Breithach (1988, p.23): “na formulagdo de diretrizes para o planejamento regional, por exemplo, 0 conceito de regio & suposto - ndo é discutido - uma vez que ¢ comum a regio parecer jé detimitada territorialmente, geralmente em fungdo de critério administrative neste caso”. Veja-se que a légica de delimitagdo territorial (ou da “realidade”) no é objeto de discussio. '° Tdéias expostas, como mais adiante, em Castro (1989). 11s Um caso regional A titulo de argumentacao metodolégica, podemos analisar © caso da periéddica manifestagdo de exclusio econémica da “metade sul” do estado do Rio Grande do Sul, l, que se propaga através da vertente separatista. Uma pequena pesquisa sobre o assunto em parte da imprensa escrita — na medida em que tal assunto ¢ divulgado em diversos meios de comunicag3o — nos mostra as origens ¢ contradigées das reivindicagdes ¢ propostas nele presentes. Bastante importante para o que pretendemos analisar, alguns trechos sio exemplares dentro da nogao de regiéo em Bourdieu (p.126, ja citada) como a “provincia” distante do “centro”. Observe-se 0 titulo e sub-titulo da reportagem™ MOVIMENTO PROPOE SEPARACAO DA METADE SUL Insatisfeitos com a situag&o econémica da regio, politicos tentam tirar do papel o plano de criar o Estado do Piratini. ‘A propria palavra regio vem carregada de insatisfagéo econémica. De privagio material e, portanto, um “espago estigmatizado”. O sentimento de exclusio, porém, nao é tio recente, como identifica-se através de um resgate cronolégico. A primeira idéia publicada de separagao, nos moldes que descrevemos, ocorreu ja na década de 50, quando o politico Iris Valls (pode-se supor, visando as eleigdes para deputado estadual) fazia campanha para a separagdo da “Regio das Missdes””. E argumentando que a referida regio “sé cresceria se tivesse um govemno voltado exclusivamente para ela”. Veja-se, em primeiro lugar a circunscrigdo de “regifio das Missdes” e a necessidade da regio, da autoridade nela presente. Além disto, esta passagem nos mostra o quanto um mesmo “fato”, como nos “problemas sociais” anteriormente expostos, 1 Jomal Zero-Hora, edicdo 11.654, 15.07.1997, p.10 (transcricdo). "? Jomal Zero-Hora, edicdo 9.001, 25.04.1990, p.10. 116 depende de épocas e locais para serem geridos e que venham a requisitar reconhecimento, legitimagao — algo que é trabalhado no nivel da representagao. Em um contraponto bastante interessante observamos que os argumentos usados na reivindicagio separatista so praticamente os mesmos proferidos pelo ex-governador do estado do Rio Grande do Sul quando da atribuida discriminacao econémica da regio Sul em relag4o ao Pais. Mas este mesmo politico desaprova a secessdo estadual"*. Podemos concluir que os mesmos argumentos, com recortes regionais e reivindicagdes “diferentes” (somente em um deles esta presente o separatismo territorial) tem também uma mesma finalidade de promogo pessoal’*. Uma hipstese de trabalho representativa — na medida que tal tarefa é muito mais extensa — associada a algumas de nossas conclusées anteriores, 6 a andlise de discursos parlamentares referentes 4 regio proposta pelos separatistas'. Analisar qualitativa e numericamente a referéncia ao recorte “metade Sul” nos discursos parlamentares estaduais pode apontar a dimensio deste fato. Voltando a esséncia desta discussdo separatista temos também discursos contrarios ao movimento bastante claros e enfaticos , que reconhecem na concentragao de terra e renda a raiz '3 Jomal Zero-Hora, edigdo 10.022, 28.01.1993, p.11. “4 Aqui, estamos talvez levantando uma hipétese percebida na coincidéncia entre “anos eleitorais” (com eleigées nas esferas federal ¢ estadual) ¢ intensificagio da campanha separatista: uma noticia em 1988, dez em 1990, nove em 1993, trés em 1994, duas em 1997. Além disto, uma pequena nota nos ajuda a pensar sobre estes fatos: “Lider do PSDB, 0 ex-prefeito de Rio Grande, Paulo Vidal, rebate 0 movimento de criag4o do Estado do Piratini, englobando a metade sul. pura loucura. Uma idéia isolada que se presta aos interesses politicos de alguém com pretensto de virar govemnador na marra. Refere-se ao ex-prefeito de Pelotas Irajé Rodrigues que procura arranjar espago para uma candidatura a deputado federal. Esta metodologia j4 apresentada por Castro (1989) para 0 caso nordestino permite analisar a importincia que 0 recorte regional possui no encaminhamento de reivindicagdes. 15 117 do problema’, Isto vai de encontro aos argumentos de perda de representago politica invocados pela maioria dos “‘separatistas™”. Neste ponto, o resgate histérico mais geral ( com base em uma escala territorial mais ampla) nos fomece algumas idéias'*. A concep¢ao de nagdo como uma dimensio espacial associa-se em muito, no caso brasileiro, a de pais"? como territério e nao como sociedade. Nesta perspectiva, “quem” deixa de ter uma representago politica é a metade Sul do Rio Grande do Sul: Cabe frisar 0 fato de nao ser uma crise setorial, da agropecuaria, o que é¢ apontado como necessidade de “‘socorro”, mas toda a regio. Na impossibilidade de haver uma reconversio da atividade econdémica predominante, essencial para a integracao comercial, o discurso distribui ao todo regional a necessidade de politicas de desenvolvimento econémico.”” Algumas conclusdes Longe de esgotar um assunto como o do regionalismo/separatismo — no caso, com a pequena exposico sobre um exemplo rio-grandense — vamos apontar algumas idéias capazes de fixar a nossa posicao de andlise. °6 Jornal Zero-Hora, edicdo 10.156, 11.06.1993, p. 18. 17 Aqui temos afirmagSes levantadas em Heidrich (1998), p.10: “muito embora este desempenho [econdmico] no configure situaco grave se for levado em consideragdo que 0 sul congrega apenas 22 % da populago gaticha, 0 fato de ter sido tradicionalmente rico ¢ aglutinado influéncia politica nos planos estadual ¢ federal, indica ser a estagnacdo relativa ¢ a perda de influéncia politica um dos niicleos da defesa ¢ da reivindicago regional”. 1 Algumas idéias expostas em Moraes (1988), op.cit, neste caso, particularmente cap. 5 ¢ cap. 7. °° Estado-nagio talvez seja mais apropriado, mas mantivemos uma idéia original do autor. Heidrich (1998), op.cit,, p.10. 118, Como processo e construgio a regiio também nao prescinde de representagio. O que podemos questionar é em que graus variam as diversas representagSes analisadas em seus casos patticulares. Ou de outra forma, as caracteristicas que assumem enquanto colaboradoras nesta construgao. Ou ainda, de uma forma mais especifica, mas ndo menos esclarecedora: a analise da dimensao politica do confronto de interesses —regionais —_aponta, necessariamente, para a questio do regionalismo. Este deve ser entendido como a mobilizagdo politica de grupos dominantes numa regiio em defesa de interesses especificos frente a outros grupos dominantes de outras regides ou ao proprio Estado. O regionalismo, portanto, é um conceito eminentemente politico, vinculado, porém, aos interesses territoriais.”" A constante necessidade de um resgate hist6rico (entenda- se com as suas devidas contextualizagées) apontando para os embates de mobilizagao politica, a identificagdo de interesses especificos na relagio com o nivel regional, o rastreamento dos recortes territoriais com as suas justificativas, séo importantes como instrumentos de andlise. Um pequeno exemplo disto pode ser extraido em uma sintese do argumento regionalista (talvez mais apropriadamente, dos argumentos) no Rio Grande do Sul: No passado — no periodo entre a Republica Velha ¢ o Estado Novo — o regionalismo gaticho foi definido como 0 comportamento Politico que aceita a existéncia do Estado- nagéo mais amplo, mas que procura 0 Javoritismo econémico e o patronato politico da unidade politica menor. Caracterizou-se por sua oposigao a alianga entre Sdo Paulo e Minas Gerais, em defesa do principal produto da economia gaticha — 7 Castro (1989), op.cit., p.392. 19 © charque —, produzido pela economia de base latifundidria. Hoje, por razdes ligadas a diferentes setores, mas predominantemente ao capital industrial, o regionalismo aparece retomado, como uma razéo impulsionada pela necessidade de desenvolvimento. Algo entretanto soa diferente, pois dada a diferenciagdo social da regio entre aquele periodo e o atual, o argumento regionalista parece mais fortalecido para o seu interior, posto que objetiva a consolidagao da idéia de que o argumento seja bom para todos. Desta forma, a construgéo da identidade entre o interesse especifico e o geral configura-se como modemno mecanismo do dominio politico. Nesse ponto de vista, pelo territério e pelo vinculo das pessoas e das idéias ao mesmo, constitui-se uma das maneiras do poder efetivar-se.” Retomando, igualmente, a questo do estigma dentro do regionalismo™ é importante esclarecé-lo como aprofundamento dos casos particulares na medida em que ele é o fundamento simbélico ¢ econémico e de unificagao do grupo para a tomada de “ Além disto, a aboligo do estigma implica na supressio do jogo de disputa pelas fronteiras da regiéo — no campo do ‘simbélico e, para o exemplo que descrevemos aqui, talvez pouco trabalhado ainda. * Heidrich (1998), op.cit, p. 15 (0 grifo refere-se A obra de Joseph Love. ‘O Regionalismo Gaticho. Perspectiva, So Paulo, 1975) ? id levantado por Bourdieu 1998, op.cit., p.125. 120 Referéncias bibliograficas BOURDIENU, Pierre. A identidade e a Representagdo. Elementos para uma reflexdo critica sobre a idéia de regido. In: O Poder Simbélico, 2ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 107-32 BREITBACH, Aurea Corréa de Miranda. Estudo sobre o Conceito de Regido. Fundagao de Economia e Estatistica (FEE) — Porto Alegre, RS, série teses n. 13, 1988. ‘CASTRO, Ina Elias de. Politica e Territorio: evidéncias da pratica regionalista no Brasil. Dados — Revista de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, vol. 32, n. 3, p.389-404, 1989. HEIDRICH, Alvaro Luiz. Interesse Econémico e Identidade Territorial no Rio Grande do Sul. S80 Paulo, 1998. Tese de doutoramento, FFLCH - Departamento de Geografia, USP. LENOIR, Remi. Objeto Sociolégico e Problema Social. In: CHAMPAGNE, Patrick et alli. Iniciagdo a Prdtica Sociolégica, Petrépolis: Vozes, 1998. p. 59-106 MORAES, Anténio Carlos Robert. Ideologias Geogrdficas: Espaco, Cultura e Politica no Brasil. S40 Paulo: Hucitec, 1988. RBS JORNAL. Zero-Hora, Porto Alegre, v. 24-34, 1988-1997. 121

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