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BERNARD CHARLOT E PROCESSOS IDEOLOGICO NA TEORIA DA EDUCAGAO CIP-Brasil. Catalogacio-na-fonte Sindicato Naclonal dos Editores de Livros, K. Charlot, Bernard C435m A mistificago pedagogica; re 2ed. _ciaise processos ideolégi ‘cagio/ Bernard Charlot; radugéo Ruth Rissin Josef. —2.ed. — Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. ‘Tradugao de: La mystifcation pédago- que. Bibliografia ISBN 85-27-0018-2 1, Educagdo — Teoria, 2. Educagéo — Aspectos sociais. I. Titulo. 86-1088 cpp ~ 370.1 cpu 37.01 Titulo original La mystification Pédagogique Traducao autorizada da primeira edigao francesa, pul em 1976 por Editions Payot, de Paris, Franca Copyright © Payot, Paris, 1976 Direitos exclusivos para a lingua portuguesa Copyright © 1986 by EDITORA GUANABARA S.A. Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro, RJ — CEP 20040 Reservados todos os direitos. E proibida a duplicagao ou, teprodugéo deste volume, ou de partes do mesmo, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrénico, mecanico, gravacao, fotocdpia, ou outros), sem permissio expressa da Editora. capituto 1 INTRODUCAO EDUCAGAO E POLITICA a A EDUCACAO TEM ‘UMA SIGNIFICACAO POLITICA DE CLASSE A educacdo é politica A educagao € politica. Esta afirmacao, ha ainda poucos anos, passava por uma profisséo de fé revolucionaria e cau- sava certo escandalo. Opunha-se a ela a vocacéo laica da escola, Era emprestar aos fundadores da escoia laica um anseio de neutralidade politica que estava longe de ser ¢ seu. Jules Ferry, a quem nao se pode negar a representati- vidade nesse dominio, declarava aos professores primarios: “Eu nado direi, e vocés néo me deixariam dizer, que n&o deve existir no ensino primArio, no ensino de vocés, nenhum espirito, nenhuma tendéncia politica... Como vocés nao amariam e nao fariam amar no Seu ensino a Revolucdo e a Republica !?”; as escolas “devem, desde a infancia, pre- parar o consenso dos cidaddos sob o regime da Revolucéio Francesa e da Republica, que é 0 seu coroamento definiti- vol”, © problema politico colocado para a escola laica da Terceira Republica resume-se bem no tema proposto em 1905 aos candidatos ao Certificado de Aptidao Pedagégica no Departamento de Haute-Loire: “& recomendado aos Profes- sores Primarios, por um lado, desprender-se dos incidentes da vida politica cotidiana e local, e, por outro lado, ensinar a Reptblica e a democracia. % possivel, para eles, seguir esta 1 Citado por Georges Snyers, Pédagogie progressiste (pur, 1971), Dp. 182. 12 A MISTIFICAGAO PEDAGOGICA dupla direcao? Por que e como 22” No espirito dos funda- dores da escola laica, laicidade nao significa, portanto, neu- tralidade pclitica. A escola laica se quer fundamentalmente republicana, em oposicao As opgdes monarquicas da escola catélica. Ela associa o engajamento republicano & recusa de toda intervencio nas querelas partidarias e eleitorais. Rei- vindicar a laicidade para apresentar a neutralidade politica como fundamento da escola é esquecer a origem dessa escola. Ela so é neutra no quadro de uma concordancia prévia a respeito de sua vocacao republicana. Ora, esse quadro é po- litico. A neutralidade politica da escola sé se define, portan- to, em funcdéo de um postulado, ele proprio, politico. A consolidagdo da reptblica burguesa e o desenvolvimento de sua escola fizeram, pouco a pouco, esquecer que a escola laica se gueria investida de uma missao politica — “esquecimento” que se assemelha fortemente a uma camuflagem, ela propria, politicamente significativa. Por isso, os tedricos e os mili- tantes politicos que denunciaram como burguesa a educacao escolar provocaram, de inicio, a indignacdo virtuosa de todos os defensores da laicidade. Era ignorar, ainda desta vez, que, desde o inicio du século, algumas vozes se levantaram para denunciar a orientacdo politica da escola laica: “Ja se obri- gam as criancas 4 submissdo cega, a aceitacdo muda do que existe. A maior das virtudes ensinadas: a obediéncia. O maior crime: desobedecer. Um bom estudante, quer dizer, para mais tarde, um bom operario, um bom soldado, um bom. escravo. O ensino da laica nao leva a outra coisa. Por toda a parte as consciéncias despertam. De todos os lados ressoam os germes das revoltas racionais. A escola esté 14, murada, sombria, inabalavel na rotina; ela bloqueia o futuro com o seu perfil negro” (Le Libertaire, de 23 de abril de 1905) 3. Hoje, com excecéo de alguns resquicios reacionarios (representados notadamente entre os professores pela U.NI. *, pelo S.N.A.L.C. * e pela Sociedade dos Agregados), cuja viru- léncia politica confirma, alias, a tese que combatem, a afir- macao de que a educacao é politica esta em via de tornarse 4 Cf. Nous les Maitres d’école, autobiographies d'instituteurs de la Belle Epoque, apresentado por Jacques Ozour ‘Julliard, 1967), p. 175, 4 Citado por Mona Ozour, L'Ecole, L'Eglise et la République (1871-1914 (A. Colin, 1963), pp, 240-241 U.N.I., abreviatura de Unicon Nationale des Instituteurs (Unido Nacional dos Professores Primarios); S.N.A.L.C., abreviatura de Syndicat No~- tional Autonome des Lycées et Colléges ‘Sindicato Nacional Autonomo dos Liceus e Colégios). (N. da T) gpucagho © PoLiTica a uma banalidade pedagégica. Mas a medalha tem seu rever- so: é tentador pensar que a analise terminou quando se jun- tou a palavra “politica” a uma realidade pedagogica. Ora, dizer da educagdo, ou da escola, ou dos programas, ou do controle pedagogico, etc., que sao politicos, nao é ainda dizer grande coisa. Tudo é politica, pois a politica constitui uma certa forma de totalizacao do conjunto das experiéncias vividas numa sociedade determinada. EKleicOes, uma greve, a aposta em corrida de cavalos, a seca, um jogo de futebol, uma bofetada, ete, todos esses acontecimentos tém uma significagao politica, Mas eles nao sao politicos da mesma maneira, Alguns sao politicos por definigao: as eleicdes, por exemplo. Outros sao politicos enquanto sao conseqiiéncias da organizagdo econémica, social e politica da sociedade; uma greve, por exemplo, é, antes de tudo, um fenédmeno econémi- co, mas tem igualmente um sentido politico na medida em que coloca em causa a organizacéo social do trabalho. Outros acontecimentos so politicos porque tém conse- quéncias politicas: a seca é um fato climatico que co- loca problemas econémicos com repercussdes sociais e politicas. Outros aconteclmentos, ainda, 86 sao politicos na medida em que desviam os individuos dos problemas politicos, trazendo um exutério a suas frustracdes sdcio- politicas: aposta em corrida de cavalos ou jogo de futebol, por exemplo. Finalmente, o sentido politico de certos fatos é somente muito indireto: a bofetada é um ato repressivo, e pode-se considerar que prepara a crianca para a obediéncia social e politica, mas sua significagao politica nao é nem imediata, nem direta, A saturaciio em politica e as modalidades de politizac&o dos fenédmenos sociais sao, por- tanto, muito varidveis, apesar de todos, direta ou indireta- mente, terem implicacées politicas. Nao basta, portanto, afirmar que a educacdo é politica. O verdadeiro problema é saber em que ela € politica. Podem-se dar a idéia de que a educacao é politica, pelo ried quatro sentidos, que se articulam, alias, uns com os outros, A educacdo transmite os modelos sociats Primeiramente, a educacao transmite & crianca os mo- delos de comportamento que prevalecem numa sociedade. “4 A MISTIFICACAO PEDAGOGICA So modelos de trabalho, de vida, de troca, de relagGes afeti vas, de relacionamento com a autoridade, de conduta reli- giosa, etc. Definem o comportamento dos individuos em face dos outros individuos e das instituicdes e regulam sua partici pacéo na vida dos grupos sociais. Esses modelos sao transmi- tidos, seja por contato direto com a sociedade, seja sob a forma de normas teorizadas de comportamento. No primeiro caso, a crianca adquire-os por intermédio da influéncia difusa do meio, sem que uma intervencdo educativa voluntaria e siste- matica seja necessaria. A crianca assimila esses modelos imi- tando o adulto, identificando-se com ele e sofrendo a pressao da sociedade, que reage a toda forma de desvio. A Antropolo- gia Cultural estudou bastante esses fendmenos nas sociedades ditas primitivas. Margaret. Mead, por exemplo, mostrou como essas sociedades formam os adultos dos quais tém necessi- dade, docéis ou agressivos, virilizados ou feminizados, sem que tais critérios reconstituam sempre as qualidades que as sociedades ocidentais consideram como naturais nos ho- mens e nas mulheres4. Da mesma forma, a crianca, nas nossas sociedades, aprende “‘o que se faz” e “o que nao se faz” nesta ou naquela determinada circunstancia da vida social. Aprende a controlar e a exprimir suas emogoes, a tes- temunhar os marcos sociais de respeito ou de polidez, a observar as normas sociais de limpeza, a utilizar o dinheiro, etc. Mas os modelos de comportamento nao sao assimilados somente através do contato direto com o meio social. Sao igualmente objeto de uma transmiss&o sistematica e mais ou menos racional, sob forma de normas de comportamentos e de ideais. O adulto comunica a crianca regras explicitas de conduta e tenta mais ou menos justificd-las com referén- cia a alguns ideais: liberdade, honestidade, justiga, solidarie- dade, etc. A educacio transmite, portanto, as criangas modelos sociais de comportamento. Mas todas as criangas ndo adqui- rem os mesmos modelos, pois nem todas séo educadas no mesmo meio social. A sociedade nao é um todo homogéneo veiculando modelos de comportamento que fazem a unani- midade de seus membros. A sociedade compreende grupos diferentes, perseguindo suas proprias finalidades, tendo uma 4 Margaret Mra, Meurs et serualité en Océanie (Plon, 1969). gpucacho £ POLETICA 6 organizacao interna especifica, e elaborando modelos parti- culares de comportamento (grupos religiosos, culturais, sin- dicais, esportivos, politicos, etc.). O contato da crianca com esses modelos varia em fungao de sua inserc&o familiar. Mas, sobretudo, a sociedade é dividida em classes sociais, nfo so- mente diferentes, mas ainda antagénicas. Essas classes sociais tem concepgdes diferentes da vida, do trabalho, das relagdes humanas, etc., e traduzem essas concep¢des em seus ideais. Ora, a crianga participa dessa divisdo em classes da sociedade, por intermédio da familia a que pertence. Torna- se assim mais ou menos habil para exprimir seus estados de espirito, para fazer um trabalho manual, para manter certos tipos de relagdes com os outros, ete. Ela compreende, segun- do o seu meio de vida, o que 6 a linha de montagem, uma relha de arado, um estetoscdpio ou um diciondrio. Concebe o trabalho de forma diferente, segundo seja filha de operdrio, de camponés ou de advogado. Entretanto, isso nao significa que existe no seio de uma sociedade uma simples justaposicaéo de modelos e de ideais. A sociedade nfo é dividida somente cm classes distintas, mas também em classes que se digladiam. O conflito social do- minante é a luta de classes, que opée, em Ultima analise, uma classe dominante e uma classe dominada, aliando-se as clas- ses intermedidrias ora a uma, ora a outra. Da mesma forma, os diversos grupos sociais néo tém, todos, a mesma impor- tancia; um grupo religioso, politico ou sindical, por exem- plo, tem geralmente uma influéncia social maior do que um grupo esportivo ou cultural. Cada classe social e cada grupo social engendra modelos de comportamento ideais. Mas a erjanca nao se encontra, por isso, em face de uma pura di- versidade de modelos e ideais. Os modelos da classe domi- nante sio os modelos dominantes. Os modelos dos grupos influentcs sio modelos sociais influcntcs. Cada crianca assi- mila, antes de tudo, os modelos e os ideais da classe social a que pertence e dos grupos sociais com os quais esté em contato, Mas toda crianca sofre também a influéncia dos modelos socialmente dominantes. Por isso, os modelos so- ciais dos quais a crianca se impregna tém uma significacao Politica. Refletem, com efeito, as relagdes de forca entre grupos sociais, e sobretudo entre classes sociais, no seio da Sociedade global. Ora, a politica é a express&o, ao nivel do Poder de Estado e da luta para conquistar esse poder, das 16 A MISTIFICAGAO PEDAGOGICA tensdes c dos conflitos profundos que agitam a sociedade global. Pode-se definir a politica, numa perspectiva idealista, como atividade de transformacao da realidade social a luz de ideais, Pode-se também, na tradigéo de Maquiavel, definir a politica como atividade fundada na forca. Pode-se igual- mente, com Lénin, afirmar, de modo ainda mais justo, que “o Estado é um organismo de dominacao de classe, um orga- nismo de opressao de uma classe por outra; € a criagao de uma ‘ordem’ que legaliza e consolida essa opressio, mode- rando o conflito de classes’. De qualquer maneira, a po- litica exprime relag6es de forca, inclusive entre ideais opos- tos. A dominacdo social de certos modelos de comportamento e de certos ideais traduz essas mesmas relagdes de forca que se manifestam, também, noutro plano, no dominio politico. A transmissio de modelos e de ideais pela educag&éo nao tem, portanto, somente uma significagao social. Tem igual- mente um sentido politico. A educacdo forma a personalidade Em segundo lugar, a educacao é politica porque forma a personalidade segundo normas que refletem as realidades sociais e politicas. A educacio age politicamente sobre o individuo, fixando, no 4mago mesmo de sua personalidade, estruturas psicolégicas de dependéncia, renuncia e idealiza- cao. Como escreve Freud, “‘o edificio da civilizacéo repousa no principio da renuncia as pulsdes instintivas”6. As pul- sdes da crianca chocam-se inicialmente com as proibicdes parentais e sociais. Depois, por volta dos cinco ou seis anos, isto €, no momento da liquidagéo do complexo de Edipo, a crianca interioriza essas proibigdes. Assim se estabelece, no seio mesmo da personalidade, o Superego como instancia repressiva e 0 Ideal do Ego como representante dos ideais. As normas sociais constituem, ent&o, o esqueleto mesmo da personalidade do individuo e nao sao mais vividas como barreiras externas, As pulsdes sexuais e agressivas que nao correspondem as normas sociais sdéo ou reprimidas, ou su- blimadas. Sado reprimidas no inconsciente quando os desejos sexuais agressivos entram em conflito com as normas sociais 5 Lenine, 6 L’Etat et la Révolution (Gonthier), p. 9. Preup, Malaise dans la civilisation (pur, 1911), p. 47. epucacko E POLITICA 1 de satisfagio da sexualidade e da agressividade. Sao subli- madas quando podem ser satisfeitas através de formas deri- yadas, mas socialmente reconhecidas e mesmo valorizadas: por exemplo, a sexualidade sublima-se em arte ou misticismo e a agressividade em esporte ou ambic&o politica. Na medida em que essas normas sociais interiorizadas pelo individuo traduzem as relagdes de forga no sein da so- ciedade, a formacao da personalidade tem um sentido polf- tico?. De maneira geral, a represséo e a sublimagao das pulsdes sexuais e agressivas estabelecem a idéia de que o prazer é um erro fora das normas sociais, que é preciso saber se resignai e se contentar com os prazeres socialmente reco- nhecidos, que a revolta é uma violéncia inaceitavel, que um ser civilizado coloca seus desejos depois de seu dever e que todo o mundo, rico ou pobre, obedece a essa moral da rentincia. A educacio forma assim a personalidade para suportar todas as frustragées ligadas a vida social, inclusive as que sido engendradas pela injustiga, pela desigualdade e pela dominacao de classe. A educagao é politica na medida em que constréi a personalidade a partir de bases psicolégi- cas que tém uma significagao politica. A educacdo difunde idéias politicas Em terceiro lugar, a educacao é politica na medida em que transmite as criancas idéias politicas sobre a sociedade, a justica, a liberdade, a igualdade, etc. Essas idéias politicas impregnam os modelos de comportamento e, as vezes, vemo- las passar do implicito para o explicito, quando os adultos explicam as criancas por que é preciso partilhar seus brin- quedos, nao bater nos colegas, obedecer aos pais, etc. De- sempenham igualmente um papel na elaboragdo das regras e dos ideais que regem o controle pulsional. Mas tém tam, bém uma forma propria de existéncia ao nivel das idéias que Marcuse, por exemplo, mostrou como o sistema capitalista acrescenta A repress&o civilizadora das pulsdes uma super-repressio que serve 80s interesses,da classe dominante. Da mesma forma, G. Deleuze e F. Guat- tari estabelecem um parentesco entre capitalismo e estruturas esqui- zofrénicas da personalidade: “O esquizofrénico coloca-se no limite do capitalismo: ele é a sua tendéncia desenvolvida, o superproduto, 0 pro- Corre € 0 anjo exterminador.” L'Anti-Cedipe (Editions de Minuit, 1972), 18 A MISTIFICAGAO PEDAGOGICA prevalecem numa sociedade. A educacao inculca na crianga idéias polfticas sobre a sociedade, sobre seus fundamentos, sobre sua organizag&o, sobre suas finalidades, etc. Propde- the certas explicacdes concernentes a liberdade, & justica, as greves, a0s patrdes, aos policiais, etc. A crianca assimila, assim, idéias politicas que, como os modelos sociais e os ideais, refletem as divisdes sociais, as lutas sociais e as rela- Ges de forga no seio da sociedade. Adquire, ao mesmo tempo, as idéias politicas de seu ambiente familiar e social, e as con- cepcées politicas dominantes, impostas a toda a sociedade pela classe dominante. A filosofia francesa do século XVIM, aue se dizia filo- sofia das ‘““Luzes”, denunciava as idéias falsas difundidas na sociedade pela Igrcja e pelos privilegiados para manter um obscurantismo favoravel 4 opressao 8 De fato, essa nogdo de idéias falsas nao é muito satisfatoria; a noc&o de ideo- logia, tal como foi definida por Marx, 6 bem mais rica de sentido. A educagaéo preenche uma funcao politica mistifi- cadora, menos difundindo idéias falsas do que veiculando idéias verdadeiras que, destacadas das realidades econémi- cas, sociais e politicas das quais emanam, apresentam-se como auténomas e séo recuperadas por um empreendimento, consciente ou inconsciente, de camuflagem da realidade. Assim, a idéia de liberdade nao é falsa, mas sua teorizagao burguesa, que impregna a idéia tal como é difundida na so- ciedade, deu-lhe uma significacéo que permite fazer dela um uso ideolégico. O homem é efetivamente mais ou menos livre no seu trabalho, em suas relacdes com o préximo, na sua vida cotidiana, etc. Mas essa liberdade apresenta sempre uma forma determinada, em condigées soziais determinadas. Por exemplo, o individuo é teoricamente livre para escolher a profissio que deseja exercer. Mas 6, na realidade, submeti- do ao mercado de trabalho regido pelas leis do sistema eapi- talista, leis que exprimem a opress&o de uma classe social por outra e que contradizem, assim, 0 contetido tedérico da idéia de liberdade. O uso ideolégico da idéia de liberdade consiste em tratar a Liberdade como uma idéia auténoma e % De Bry, em 1790, escreve, falando dos déspotas: “Era sobre os vicios ¢ vs errus dos povos que “estava tundada sua dominagao; era preciso, Portanto, fomentar esses vicios e reforgar esses erros para manté-la." (Essai sur Véducation nationale, 1790, p. 3). Condorcet desenvolveu abundantemente esse tema, muito difundido na época. epUCAGAO £ POLITICA 19 justificar, pela idéia de Liberdade, a auséncia de liberdade efetiva nas condigées concretas de existéncia. Impondo suas idéias politicas, a classe dominante con- segue assim fazer passar ideologicamente suas finalidades, seus interesses e sua concepgdo da sociedade para os da so- ciedade global. Essa ideologia da classe dominante impregna os modelos culturais dominantes de uma sociedade e confi- gura os sistemas dc representagdo (moral, direito, religiao, arte, filosofia, etc.). Seu objetivo ultimo é mascarar, por tras de uma igualdade tedrica dos individuos e uma unanimi- dade social mitica, a desigualdade, a injustica e a opressdo que reinam na sociedade e que se traduzem na divisdo social do trabalho e na luta de classes. A educacgao é, portanto, politica, na medida em que transmite, sob sua forma expli- cita ou por intermédio dos modelos de comportamento e dos ideais, idéias politicas, e notadamente as da classe dominante. A educagdo é encargo da escola, instituigdo social Em quarto lugar, a educacgao € politica na medida em que € encargo da escola, instituig&o social cuja organizacaéo e funcionamento dependem das relagdes de forga sociais € politicas. A escola é uma instituigfo educativa: esforga-se por colocar em acao os meios mais eficazes para alcangar as finalidades educativas perseguidas pela sociedade. Transmite as eriancas modelos explicitados e estilizados de comporta- mento, isto é, modelos mais puros, mais esquematizados, do que aqueles que a crianca adquire através de contato social direto, Ensina as criancas a se controlar, isto é, dominar seus impulsos sexuais e agressivos, e facilita a sublimacao inculcando-lhes certos ideais. Explica-lhes, direta ou indi- retamente, o que é a sociedade, como ela funciona e quais sio os deveres dos cidadéos, Em suma, a escola visa a uma transmissdo mais eficaz dos modelos e das normas de com- portamento, dos fundamentos éticos do controle pulsional e das idéias sécio-polfticas. A escola desempenha, portanto, um papel politico na medida em que propaga uma educacao que tem, ela propria, um sentido politico. Assim, os grupos sociais e as classes sociais procuram fazer da escola o instrumento de suas fina- lidades, de seus interesses e da difusdo de suas idéias. A es- 20 A MISTIFICACAO PEDAGOGICA cola é 0 campo de lutas que traduzem as tensdes e os confli- tos quc atravcssam a socicdadc, a comcgar pcla luta de clas- ses. A escola se diz laica e politicamente neutra, mas serve, antes de tudo, aos interesses da classe dominante — apesar de nao ser totalmente fechada aos modelos, aos ideais e as idéias das outras classes sociais. &, ao mesmo tempo, vitima e fonte de propagacéo da ideologia dominante, pois con- funde os modelos, as normas e as idéias da classe dominante com os da sociedade, e mesmo da humanidade. Nao cria a ideologia dominante. Esta é engendrada pelas estruturas e pelas proprias relagdes sociais, e a escola contenta-se em adota-la. Mas reforga a ideologia dominante dispensando uma educagéo que se diz humanista, puramente cultural e independente das realidades sociais. A escola pretende prote- ger-se das realidadcs c das lutas sociais e dar a todos a mesma cultura individual. Mas, refletindo as finalidades educativas de uma sociedade de classes, a escola transmite uma cultura individual que tem uma signifieacao politica de classe. Além disso, na medida em que seu isolamento com relac&o As rea- lidades sociais Ihe traz uma garantia de objetividade cultu- ral, ela mascara, ainda melhor, a significac&o politica de classe dessa cultura individual do que o faz a formac&o por contato social direto, A escola n&o pode escapar a esse papel politico, pois depende de muitas formas da sociedade, isto 6, quer de um grupo social (Igreja, municipalidade, partido politico), quer de um poder de Estado que exprime os interesses da classe dominante. Depende deles: — para seu financiamento e sua gestdo: financiamento privado ou publico, gratuidade total, parcial ou nula; — para seu controle; controle por um Estado, uma Igreja, um Partido, uma municipalidade, por uma associacdo de pais de alunos, etc.; — para o recrulamento de seus professores e de seus alunos: recrutamento local ou nacional; recrutamento por simples inscrig&o, por exame ou por concurso; atrativo finan- ceiro e social da fungdo de professor ou diplomas concedidos pela escola, etc.; — para o reconhecimento social do valor da educagdo que ela dispensa: valor dos diplomas, adequacg&o dos progra- mas as necessidades da sociedade, acordo da sociedade no que concerne ao modo de controle pedagégico, etc. EDUCACKO E POLITICA ai Essa dependéncia multiforme da escola com relagéo a sociedade determina, ao mesmo tempo, as finalidades da instituicéo escolar (formagdo de crentes, de cidadios, de trabalhadores, de funciondrios, de técnicos, etc.; formacgao de massa ou formacdo de uma elite) e sua organizagao interna (poder de decisao e de organizacao, tipo de ensino, modo de controle pedagégico, forma de selecao, etc.). Por ser uma instituigio social, a escola dispensa, portanto, uma educa- c&o que tem sentido politico 9. A educacdo é bastante politica. Transmite modelos so- ciais e normas sociais de comportamento. Inculca na crian- ca ideais sociais que formam sua personalidade. Propaga idéias sécio-politicas. & encargo da escola, que é uma insti- tuigdo social. Tudo isso prova que a cducagiio é um fend- meno socialmente determinado. Mas os modelos e os ideais sociais, assim como as idéias sociais e as pressdes sociais que se exercem sobre a escola, sio miltiplos e muitas vezes anta- gonicos, A educacao efetivamente recebida pela crianca, bem como o poder politico, esta, antes de tudo, a servico da classe social dominante. Na medida em que traduz as relacdes de forca no seio da sociedade global, a educagdo é mais do que social, é politica. Antes de continuar minha reflexao, gostaria de mostrar que nao se trata, neste caso, de uma descoberta. Apesar do que pensem sobre isso os partidarios da laicidade e da neu- tralidade politica da educagéo, ha muita tempo que se sabe no sd que a educagaéo tem um sentido politico, mas ainda que é um fendémeno de classe. A significagdo politica da educagdo é historicamente conhecida A significagao politica da educagéo manifesta-se na his- toria das instituicdes e das tecrias pedagdgicas. Os escribas egipcios e mesopotamicos ja colocavam seu conhecimento de uma escrita ao mesmo tempo secreta e extremamente com- Plicada a servico da difuséo no império das diretivas impe- riais. Sofistas gregos e retéricos do Baixo Império Romano ® Tomei o exemplo da escola, porque ela é hoje a principal instituicdo SS Mas poder-se-la fazer uma andlise do mesmo tipo a respeito ia familia, 22 A MISTIFICAGAO. PEDAGOGICA ocuparam altas fungdes politicas. O interesse bastante co- nhecido dirigido por Carlos Magno as escolas nao decorria apenas de motivos religiosos; era necessdrio, para ele, tratar da formac&éo dos homens que assegurariam o bom funcio- namento das instituigdes do Império Carolingio. Na histéria da Franca, numerosos foram os reis que se interessaram pelo funcionamento da Universidade e, a partir da reforma_pro- mulgada em 1596 por Henrique IV, alé a Revolugao Fran- cesa, nao ha um s6 soberano francés que nado tenha tomado medidas no dominio da educac&o. A importancia politica da educacao foi sempre compreendida pelos politicos. De maneira mais geral, a historia das idéias pedagégicas mostra que a pedagogia, isto é, a teoria da educacao, é filha das crises sociais e politicas. & essencialmente em perfodo de crise social e politica que uma sociedade se interroga sobre a educacio que da a juventude. As sociedades estaveis des- critas por Margaret Mead nao se colocam problemas peda- gogicos, pelo menos enquanto no estado em contato com a educacao ocidental. A educacdo é, para elas, uma atividade social evidente, nao-problematica, a tal ponto que os poucos fracassos da educacao, produzindo individuos atipicos (nao- conformes as normas de sua sociedade), aparecem como incompreensiveis, mas nao fazem emergir teorias pedagégi- cas. Fazer pedagogia, elaborar uma doutrina da educacio, nao é uma atividade inerente a toda vida social. O pensamen- to pedagdgico sé nasce numa sociedade atravessada de con- flitos. Quando uma sociedade coloca 0 problema da educa- cao, é porque se interroga sobre si mesma, sobre seu passado e sobre seu futuro. Os problemas da democracia ateniense geram Socrates e Plataéo (o que nao quer dizer, evidente- mente, que sejam suficientes para explicar todos os aspectos de seu pensamento!); as guerras religiosas do século XVI dio nascimento A pedagogia dos jesuitas; Rousseau pensa profundamente na ascensdo social da burguesia; a escola laica da Terceira Republica é fortemente marcada pela der- rota de 1870 e pela escalada da pequena e média burguesia radical; 0 pensamento pedagégico de Makarenko sem divida nao existiria sem a Revolucfio Russa. Poder-se-iam, assim, multiplicar os exemplos. De modo geral, a pedagogia é filha das crises sociais e politicas. Quando, numa sociedade, as tensdes crescem e os conflitos se exacerbam, a propria edu- cagao deixa de aparecer como um processo essencialmente EDUCAGAO E POLITICA 23 cultural e individual, e se revela explicitamente como 0 cam- po das lutas sociais, o que ela é sempre implicitamente. A pedagogia, reflexio sobre a educacao, teoriza entéo o que existe de conflitivo na educacgéo. Mas, como veremos dentro em pouco, ela nao pensa em termos sécio-politicos as lutas sécio-politicas que perpassam os processos educativos. Me- tamorfoseia os conflitos sécio-politicos em desacordos filo- sdficos, religiosos, éticos, culturais e técnicos, A significagdo de classe da educagdo é historicamente conhecida Mas a educag&o nfo tem somente um sentido politico. Tem também uma significagdo de classe. Através das mul- tiplas relagdes entre educacao e politica, é sempre uma légi- ca de classe que se manifesta. 1 ela que impregna os modelos culturais e os ideais, que nutre a ideologia dominante vei- culada pela educacdo, que tira proveito da repressio das puls6es sexuais e agressivas, e que se exprime nas finalidades e na organizacdo interna da instituigdo educativa. Essa sig- nifiecagiio de classe da educagao, que, as vezes, pensamos en- contrar apenas em nossa época, sempre foi sublinhada no curso da histéria, nfo sé por marxistas, mas também por pensadores burgueses. Quero apresentar aqui algumas pro- vas disso. Que me desculpe o leitor pela extensio das cita- ces; elas me parecem Uteis para confirmar que toda educa- cao 6 educacao de classe, e que se sabe disso ha muito tempo. — N. Krupskaia, em. 1926: “Enquanto existir uma sociedade de classes, a escola sera ine- vitavelmente escola de classes. Toda a questéo esta ai: qual € a classe que esta no poder e qual a classe que dirige a escola, sendo diferentes os objetivos das classes?... Estando no poder, a burguesia tenta transformar a escola de massas em instrumento capaz de escravizar os trabalhadores: ensina as criangas a obedecer, a ser fovernadas, separadas e as ludibria com preconceitos religiosos e nacionalistas. A burguesia tem outras escolas para educar as crian- gas 10." — Thiers, em 1849: “® preciso evitar abordar na escola as doutrinas sociais que devem ser impostas As massas, a religiéo por exemplo. Pensar em 10 N. Krupskaia (Julho de 1926), Citado por Daniel Livpennenc, L'In- ternationale communiste et l’école de classe (Maspero, 1972), Pp. 5. 24 A MISTIFICACKO PEDAGOGICA fazé-las aceitar pelo raclocinlo essas grandes verdades seria uma Insigne loucura |!.” — Guizot, em 1816: “Se fosse possivel condenar o povo a uma ignorancia irrevoga~ vel, por mais injusta que fosse tal interdicéo, imaginar-se-la que as classes superiores, na esperanca de assegurar seu império, tentassem pronuneia-la e manté-la, Mas a Providéncia nao permitiu que essa injustica fosse possivel; e ela a ligou a tais perigos, que o interesse, de acordo com o dever, impede os Governos de cometé-la ." — Um anonimo, em 1786, e Verlac, em 1789: “Nao, 0 povo néo é nem mau nem idiota, é a ignorancla que © deprava,..; tentemos acalmar seus murmirios, dando-lhe a idéia da verdadeira felicidade; iluminemo-lo nesse caminho fatal que o leva aos crimes; indiquemos-Ihe ainda os meios de se preservar contra tantos males que nao vém nem da natureza, nem de sua condicéo, mas apenas de sua negligéncia 1%.” “Esse camponés vai tornar-se Doméstico, Soldado, Artesao, etc., e se sua razio nao foi esclarecida, se, sendo jovem, nao se Ihe ins- pirou uma forte inclinagéo para o bem, se nfo foi prevenido contra © funesto perigo das paixdes que nele devem nascer, quanto nao se deve temer que sev primeiro passo no mundo nao seja uma queda, neste mundo onde vera o poder de um lado e a impoténcia do outro, aqui a abundancia, e acola a pobreza, nuns, a fadiga e a dor, em Outros, os prazeres e a moleza 44.” — Charles Démia, em 1668: “® ainda dessa falta de boa educagdo que nasce a dificuldade que se tem de encontrar servidores fiéis e bons operdtios; que se véem tantos preguigasos e vagabundos pelas ruas... um formigueiro de mendigos...”, fonte de desordem publica e a cargo da Santa Casa #3, E assim se poderiam alinhar paginas e paginas de con- fissées também reveladoras do carater de classe da educacdo. Que n4o se diga que se trata, nesse caso, de uma oposigao caduca, relegada & pré-histéria social por uma democratiza- cao do ensino no final do século XIX e ao longo de todo 0 11 ‘Thiers (Discurso & Assembléla, 1849). Citado por A. Brost, L'Ensei- gnement en France (1800-1967) (A. Colin, 1968), p. 150. Guizor, Essai sur Uhistoire et sur Vétat actuel de Vinstruction pu- blique en France (1816), pp. 4-5. Anonimo, Instruction du peuple divisée en trois parties; de la morale, des affaires, de la santé (1786), pp. X-XI. Vertac, Nouveau plan d éducation pour toutes les classes de citoyens (1789), pp. 102-103. Charles Démra, Remontrances faites & Messieurs les Prévots des Mar- chands, Echevins et Principauz habitants de la Ville de Lyon, touchant la Nécessité et U'Utilité des Ecoles Chrétiennes pour Uinstruction des enfants pauvres (1668), P. 61. a 1" 15 EDUCACKO E POLITICA 25 século XX. C. Baudelot e R. Establet mostraram recente- mente que, por tras da unidade aparente da escola francesa atual, encontram-se duas redes de escolarizac&o distintas e praticamente sem comunicagéo: a rede primério-profissional para os filhos do proletariado e a rede secundario-superior para os da burguesia. Por intermédio dessas duas redes, a escola atual participa da reproducdo das classes sociais e da dominacao de classe 16, b A PEDAGOGIA OCULTA A SIGNIFICACAO POLITICA DA EDUCACAO POR TRAS DE SEU SENTIDO CULTURAL A educacdo é, ao mesmo tempo, cultura e integracdo social A educagao € politica. A educacgio é um fendémeno de classe. E essas duas coisas so conhecidas ha muito tempo. No entanto, como vamos ver agora, as teorias pedagdégicas ocultam sistematicamente a significac&o politica da educa- ¢ao por tras de seu sentido cultural. A educacao é politica, mas ela nao é a politica, nem tampouco da politica. &, antes de tudo, um empreendimento de formagao das criangas. Essa formacio desempenha dois papéis: por um lado, cultiva o individuo e, por outro, asse- gura sua integracao social. Uma crianca nasce. Ja sabe fazer certas coisas, que aprendeu durante a gestacio: ma- mar, chorar, agitar-se, etc. Adapta progressivamente essas condutas as novas condigées que encontra apés seu nasci- mento. Mas esses comportamentos elementares sao insufi- cientes para que possa satisfazer por si mesma suas neces- sidades e se abster da ajuda de outra pessoa. Encontremo-la uma vintena de anos depois, para determinar em que a edu- 19 C. Baupetor e R. Estaster, L’Ecole capitaliste en France (Maspero, 1971). & preciso observar que, se os resultados estabelecidos pelos ati- tores nao so contestados, sua interpretagao, entretanto, nao tem una- nimidade entre os pensadores marxistas: cf. 0 prefficio de Nicos Pou- lantzas ao livro de D. Lindenberg citado mais acima: “A reprodugio das posicées nas relagdes de duminac&o ideologica e politica, assim como apela para os aparelhos, apela igualmente para outros aparelhos além dos aparcihos tdeolégicos de Estado, notadamente para o proprio apa~ relho econémico” (p. 13). Retornarel a essa idéia, fundamental para a interpretacio do papel social e politico da escola, 26 A MISTIFICAGAO PEDAGOGICA cacdo a transformou. Ela adquiriu comportamentos, conhe- cimentos, ideais, técnicas, etc., que fazem com que seja con- siderada como educada e que caracterizam sua personalidade. Essa transformacao individual constitui um primeiro resul- tado da educacao: a educagao cultiva o individuo. Além disso, 0 campo de acdo social desse individuo esta conside- ravelmente alargado. Ele participa agora da atividade de diversos grupos sociais, e sobretudo esta prestes a “ganhar a vida”, isto é, a se inserir numa certa posigaéo na divisao so- cial do trabalho. Essa outra transformagao define um segun- do resultado da educacio; a educag&o assegura a integracao social do individuo. Evolucéo do individuo e modificacéo de suas relagées com o ambiente social, ou ainda cultura e integragio social: tal € 0 contetido minimo da idéia de educagao, tais sao os dois aspectos de toda educaciio, quaisquer que sejam as teo- rias pedagdégicas em que se inspire. O problema 6, entao, saber se é a cultura individual que determina o lugar do individuo na sociedade ou se é 0 lugar do individuo na socie- dade que determina a cultura individual. A priori, pode-se ou considerar que a cultura individual é 0 objetivo da edu- cacio e que a situacdo social e profissional nao é senéo uma conseqiiéncia do nivel cultural do individuo, ou colocar, ao contrario, a integracao social como objetivo efetivo da edu- cac&o e a cultura como conseqiiéncia individual da formacao social. Sendo a educacéo, ao mesmo tempo, integracdo social e cultura individual, parece que néo ha nenhuma razdo para colocar uma como fundamento e outra como conseqiiéncia, antes que o inverso, Afirmar que a educacao é politica € considerar que é a cultura individual que é determinada pela situacao social, e nao o inverso, Formacao cultural e integracéo social sao inseparaveis de modelos de comportamento e de ideais. for- macao da personalidade, aquisicéo de conhecimentos e de idéias sécio-politicas. Ora, vimos que os modelos, os ideais, as idéias e as normas de comportamento propostos a crianca dependem de seu ambiente social e, antes de tudo, da classe a que pertence. A partir do momento em que cada individuo nao se veja oferecer possibilidades semelhantes de cultura pessoal, em que a cultura que Ihe é proposta depende de sua origem social, e em que seu destino social reproduz essa ori- gem social, é impossivel sustentar que as diferencas culturais EDUCACAO E POLITICA 27 sfo a fonte das diferengas sociais; parece, ao contrario, cla- ramente, que as diferencas sociais estéo na base das diferen- cas culturais. A crianga é, antes de tudo, formada para ter certos com- portamentos sociais e ocupar certo lugar na sociedade. Numa, sociedade dividida em classes, a situac&o social do individuo resulta essencialmente de seu papel na divisao social do tra- balho. E preciso, portanto, para compreender a significacaio politica da educagéo em nossas sociedades, no isolar sua fungao cultural de sua funcdo social e nfo esquecer, sobre- tudo, que a educagao prepara o individuo para ocupar um lugar na divisdo social do trabalho. Tal é, por tras dos fins ideais enunciados pela pedagogia, 0 resultado real mais im- portante da cducacao. Os jovens e seus pais nio se enganam, alias, a esse res- peito. Raros sao os pais que fixam conscientemente fins para a educac&o que dao aos filhos. Eles lhes transmitem espon- taneamente os modos de vida e os modelos culturais aos quais aderem também espontaneamente, Dessa maneira, orientam a educagdo dos filhos em func&o de fins que s&io imanentes a sua sociedade e a sua classe social, e que eles nao teorizam a nao ser em caso de crise, isto 6, de fracasso ou resisténcia por parte da crianga. Alids, mesmo quando os pais se fixam fins educativos explicitos, seus comportamentos educativos reais, bem mais influentes que esses fins tedricos, sio muitas vezes pouco conformes a esses fins ideais. Para os pais, o problema da educacao das criancas é, antes de tudo, o de seu futuro, isto é, o de sua insercio profissional dentro da sociedade; quanto ao resto, a educaciio segue seu curso cotidiano e nao oferece problema particular enquanto a crianga néo manifestar oposic&o sistematica aos pais e nao se encontrar em posicao de fracasso escolar. Os pais, muito lucidamente, interessam-se, antes de tudo, pclo que € 0 obje- tivo real da educagdo atual, isto é, pelo futuro social e pro- fissional dos filhos. A pedagogia alega o sentido cultural da educacdo € mascara ideologicamente sua significagdo politica, e sobretudo sua significagdo de classe _A educagao tem, portanto, um sentido, ao mesmo tempo sécio-politico e cultural. Tomar consciéncia da significagao 28 A MISTIFICAGAO PEDAGOGICA social e politica da cducacéo é compreender que a cultura do individuo é determinada pelas realidades econémicas, sociais e politicas, Mas n&o é assim que a pedagogia, isto é, a teoria da educacdo, julga a educacao. Ela considera, a0 contrario, que a situacfo social do individuo é uma conse- qiiéncia de sua formacdo cultural, e que se pode conceber a cultura do individuo sem referéncia direta 4s realidades so- ciais. A cultura é, para ela, um processo intelectual, moral, religioso, estético, etc., que, certamente, tem conseqiiéncias s6cio-politicas, mas que ndo é, por natureza, um fendmeno social e politico. Pode-se interpretar em dois sentidos muito diferentes a idéia de que a educacdo é politica. A educacio é politica, dissemos nés, porque é determinada pelas reali- dades sociais e pela situagao social do cducando. Mas pode-se considerar inversamente, como o faz quase sempre a pedago- gia, que a educacdo é politica porque determina as realidades sociais e a situacgao social do educando; por conseguinte, é preciso procurar em outro lugar o determinante da propria educacéo. Uma das expressées mais acabadas desta segunda interpretacaéo encontra-se em Romme, que, em 1792, apre- sentou & Convengdo Nacional, em nome do Comité de Instru- cdo Publica, o Relatério sobre a Instrugdo Publica Conside- rada em seu Conjunto: “Nés representamos as diferentes profissdes e fungées da sociedade, as mais indispensdveis a nossas necessidades naturais e politicas, ordenadas num sistema geral, segundo o grau de inteligéncia, a natureaa e o grau de instrugéo que elas pressupdem. “A arte da instrucao consiste em apresentar todos os conhecimentos humanos ordenados num sistema geral e cor- respondente, segundo sua natureza e desenvolvimento gra- dual, que se deve estender tanto quanto os progressos do espirito humano. “£ entre essas duas escalas, de nossos conhecimentos e de nossas necessidades, que todos os cidaddos de todas as ida- des e dos dois sexos, exercendo as forcas que receberam da natureza, e avancando livre e gradualmente, poderdo, a cada passo, adquirir, por um lado, novas forgas intelectuais e fisi- cas para aplica-las, pelo outro, em sua propria utilidade ou na utilidade publica. “O nivel em que cada um parard nessa carreira sera aquele que a propria natureza marcou em suas faculdades EDUCAGAO E POLITICA 29 como o término de seus esforcos. Qualquer outro obstaculo sera um atentado ao direito de todo cidadao de adquirir todas as perfeicGes de que é suscetivel 17.” Existe uma escala de cultura do espirito humano, sem outros limites que os determinados pela natureza de cada um. Existe uma escala das profissdes e das fungdes na so- ciedade. Essas duas cscalas se correspondem. O nivel atin- gido na primeira justifica, portanto, o lugar ocupado na segunda. E nesse sentido que, em Romme, e, de maneira mais geral, na pedagogia, a educac&o é considerada como politica. Os grandes pedagogos nao ignoram que a educacdo é politica. Nao é por acaso que se encontram entre eles pen- sadores que desenvolveram, ao mesmo tempo, uma teoria po- litica e uma teoria pedagdgica, como Plataéo, Locke, Rousseau, Kant, Alain, etc. Esses grandes pedagogos, alids, sublinham, eles mesmos, a importancia politica da educacao. Além disso, nao abandonam, quando tratam da educac4o, toda referén- cia A politica; Rousseau fala da tirania do bebé, Locke trata da educagdéo do sentido da justica e do sentido da proprie- dade, etc. Mas, no momento em que dao ao processo educa- tivo uma interpretagao politica, julgam esse proprio processo como cultura intelectual, moral, religiosa, estética, etc., sem nele integrar diretamente elementos politicos. Para eles, a educacao € politicamente importante porque tem conseqtién- cias politicas. Mas, em sua natureza, a educacdo é um fend- meno cultural determinado por objetivos espirituais cujo fundamento é filoséfico, e nao sécio-politico. Plataéo, por exemplo, trata da educacéo principalmente em duas obras intituladas (titulos significativos!) a Republica e as Leis. Sabe que a educacdo tem uma significagao politica e afirma que “entre as mais eminentes magistraturas do Estado, a educacao 6, de muito, a magistratura mais importante” (Leis, VI, 765 e). Mas € porque “O ponto de partida que convém na ordem politica... € 0 de comegar por cuidar da juventude, para que ela se torne tdo perfeita quanto possivel (Eutifron, 2d): a educagao é politica porque a educacao, “ponto de par- tida”, tem conseqiiéncias politicas. Por isso, Platéo define um itinerdrio pedagégico, nao em termos politicos, mas em 'T © relatério de Romme ¢ reproduzido, com outros textos, em: C. Hirreau, Litastruction publique en France pendant la Révolution (1881-1883), PP. 314-315. 30, A MISTIFICAGAQ PEDAGOGICA termos culturais e metafisicos. Bem mais, Platéo denuncia vigorosamente os sofistas que, na Cidade, utilizam a retérica para fins politicos. Da mesma forma, em Rousseau, a edu- cacao de Emile deve prepara-lo para 0 respeito ao contrato social, mas seu grande principio é seguir a Natureza. Quanto ao radical-socialista Alain, considera a poesia de Homero e a geometria de Tales como as bases de uma educagdo que permitira ao cidadao nao abdicar em face do poder. Assim, portanto, mesmo quando os pedagogos tém uma nitida cons- ciéncia das conseqiiéncias politicas da educacéo, 0 eixo de sua reflexdo pedagégica nao é politico, Definem a educagéio com referéncia ao mundo das Idéias, 4 Natureza, 4 Razio, ao progresso espiritual e moral, etc. De sorte que sua pedago- gia é uma reflexfio sobre a Cultura do Homem, e nao sobre a socializacado politica da crianga. A pedagogia apresenta, sem cessar, a educagéo como processo cultural e oculta assim a significagdo social e po- litica da educacio. De fato, a educacao nao tem apenas conseqiiéncias politicas. E sccial e politicamente determinada. Nao sao simplesmente os resultados da educacao que sdo po- liticos, 6 também o proprio processo educativo. Se a educa- cao tem conseqiiéncias politicas, € mesmo, precisamente, porque € politicamente determinada. Mascarando a signifi- cacao politica interna da educacao, a pedagogia nao é vitima de um erro, de um esquecimento ou de uma negligéncia; de fato, ela funciona como uma ideologia. A pedagogia camufla ideologicamente a realidade econémica, social e politica da educacio por tras de consideracdes culturais, espirituais, morais, filosdficas, etc. O que ela mascara, antes de tudo, é a significacdo politica da educag&éo numa sociedade onde sevicia a dominacdo de classe, é a influéncia exercida sobre a educagao pela divisio social do trabalho e pela luta de classes. Meu projeto, nesta obra, é analisar o funcionamento dessa pedagogia ideolégica. Como procede a ideologia para camuflar ideologicamente a significagao econémica, social e politica da educac&o? Toda pedagogia é inevitavelmente ideo- Iégica? A elaboracéo de uma pedagogia ndo-ideolégica & possivel? Na medida em que a idéia de Cultura serve de biombo ideologico para a pedagogia, comecarei este estudo pela ana- lise do papel ideolégico desempenhado pela idéia de cultura,

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