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URRY Feiner Condenser do Forum de Ciba Calne EDITORA UFR Dien Ealvora Eseostve Condenadera de Praduis Ealtna Asioente Comedie Edtorat Jou Henrique Vlhons de Paiva ‘Afoaso Catlos Marques dos Sanos ‘Yeoune Mage Maria ‘eres Kopi de Bacros ‘Ana Catsivo (Ceclin Moria ‘Ywonne Mage (resident), Afonso Carloe Marques dos Santos, Ana Cristina Zaha Carlos Lesa, Fernando Lobo Carneiro, Pete ys Silvano Sansigo O PODER DAS BIBLIOTECAS a meméria dos livros no Ocidente one Sob a diregao de Mare Baratin e Christian Jacob Tradugio de Marcela Mortara Copyright © by Eaions Albin Michel, 1996 “Thao exiginal em ramet: Le poner de bblhigues a mémoire des Heres en Oecident. Pan ita te bao > poms dr Bre wo Oslo Baratin, Maree Jacab, Chinen; wadugio de Marea Mort Rio de Janeiro: Editors UFRJ, 2000, 382 ps 16 x 23 cm “Tradugio de: Le pouvoir der bibithéques 1. Liv - Hint 2. Biblitees ~ Histria 1 Brain, Mat, coord. I Jacob, Chistian, coord ep: 020) TN Treas coe Ianto de Cape Vege dla Nowe Guin, P. Somer, 1776 Revie de Tradagso Mata Thera Peso Kopichite Edighe de Teo ¢ Reviio (Coin Moreira ‘Maria "Terra Kopschite de Basos Prajto Grif ¢ Ellvragto Beinice Jnive Duane Universidade Federal do Rio de Jencro Forum de Cicia ¢ Coleara dtora UFR) ‘x. Pasteut, 250/als 107 Pia Verma ~ Rio de Janeco CEP: 22295-900 Fels QL) 295-1595 6 124 2 127 axe (21) 542-3899 « 542-4901 pdf wwew.diora.i be Ema edton@eitoralbe poi Sore Bonito (Cet ourrage, publi dans le cadre du programme de pariipation & |a publican, bade du sourien du Ministre Frangais des Afuires Entangire del Ambisade de France du Beet dels Mason ranaise de Rio de Janene. Ese lvr, publicdo no ambica do programa de paricipagio & publica, contou com © apoio do Minin Frands das Relais Exteriores da Embsnada da Fraga no Bra eda Maison Frame do Rio de Jeni Sumdrio Nota preliminar 7 Prefitcio Christian Jacob 9 I Da ordem dos livros i carta dos saberes: utopias e inguietudes Redes que a raz40 desconhece: laboratérios, bibliorecas, colegées, Bruno Latour 21 Ler para escrever: navegagbes alexandrinas, Christian Jacob 45 Bibliotecas portéteis: as coletineas de lugares- comuns na Renascenga tardia, Ann Blair 74 A biblioteca como interagio: a Icitura ¢ a linguagem da bibliografia, David Mekisterick 94 Warburg continuatus. Descrigo de uma biblioteca, Salvatore Settis 108 Novas ferramentas, novos problemas, Roger Laufer 155 © roven was aintiorscas Segundo Christian Jacob,” parece que a Biblioteca de Alexandria tera servido de centro de cilculo para uma vasta rede da qual era a fonte abastecedora. Nio € 8 toa que os Prolomeus eram gregos. O império de Alexandre sabia ‘muito bem as forgas que podem ser derrubadas com o impétio dos signos.”” Bruno Latour com a colaboracio de Emilie Hermant Ler para exrever: navegagies alexandrinas' ope Origem, modelo fundador de todo projeto de acumulagio da meméria cescrita, a Biblioteca de Alexandria parece, hoje em dia, surpreendentemente abstrata ¢ paradoxal.? Como péde tal instituigio apagar-se na tradigio, a ponto de nos deixar tio poucos documentos sobre seu funcionamento, seu pessoal, sua arquitetura, sua atmosfera?? Estudarmos Alexandria hoje € nos tornarmos nés mesmos alexandrinos e seguir um fio de Ariadne muitas vezes interrompido nos meandros da tradi¢io antiga. Alexandria nao é 0 protétipo dessas catedrais do saber que sio nossas salas de leitura. uma biblioteca de Estado, mas sem piblico,* cuja finalidade no é a difusio filantrépica ¢ educativa do saber na sociedade, ¢ sim a acumulagio de todos os escritos da Terra, no centro do palicio real que, por ele mesmo, constitu um bairro da cidade’ Biblioteca no sentido grego de “depésito de livros”, rolos de papiros arrumados em estantes ~ que, em Roma pelo menos, serio divididas em com- partimentos-, em nichos ou contra as paredes,*acessiveis a uma elite de sibios, € de homens de letras que léem, conversam, trabalham e, alvea, ensinam em galerias cobertas © nas salas adjacentes. A exemplaridade da Biblioteca de Alexandria reside menos na monu- mentalidade arquitetdnica,’ do que na decisio, tanto politica quanto intelectual, de reunir num mesmo lugar todos os livros da Terra, presentes ou passados, gregos e birbaros. Esta acumulagio vai induzir efeitos intelectuais particulares, fundar préticas eruditas de leitura e de escrita, e uma mancira erudita de gerit a meméria da humanidade, criando um novo objeto, o helenismo, ao mesmo tempo prdximo e distante, porque posto & distancia pela mediagao da escrita. 0 route ons mietiorecas Uma nova meméria Alexandria, ou a mais ilustre das cidades fundadas por Alexandre Magno, em 331 a.C., a oeste do delta do Nilo, tornou-se a capital do reino do Egito, da qual se apropriou em 306 um valoroso general, Prolomeu Séter, apés a morte do conquistador (em 323) eo desmembramento de seu império. Cidade nova, Alexandria, a grega na terra do Egito, devia a si mesma criar sua prépria meméria. Setdo os despojos de Alexandre sepultados em seus mutos, conforme a ttadigio. Seré a biblioteca fundada por Prolomeu Séter. ‘Alids, 0 timulo, como 0 muscu, que abriga a biblioteca, fazem parte do palicio real que ocupa 0 bairro de Bruchion em Alexandria.* “Aristételes € 0 primeiro, ao que se sabe, a ter reunido uma colegio (sumagagén) de livtos a tet ensinado aos reis do Egito a mancira de organizar (suntaxin) uma biblioteca”? A acumulagio pura dos livros deve ser acom- panhada de um projeto intelectual, de uma ordenagio, uma “sintaxe”. Segundo Estrabao, a Biblioteca de Alexandria ¢ 0 enxerto bem-sucedido de uma idia ateniense, nascida na escola filoséfica de Aristételes, o Liceu: uma comunidade de intelectuais, que se dedica & pesquisa e ao ensino e encontra na biblioteca um de seus instrumentos de trabalho, em dom{nios to diversos quanto a poética, as ciéncias, a histéria e, naturalmente, a filosofia.!” Sio 0s fildsofos que, em torno de Aristételes, apelidado “o leitor”,"" yuem para modificar a condigdo do livro: suporte de arquivamento destinado a preservar a literalidade dos textos das falhas da meméria humana, o livro é também reconhecido como fonte de informagio € de reflexio, lugar de elaboragao do saber, vetor do ensino. E preciso salvaguardar os livros em sua materialidade, em primeiro lugar para preservar o pensamento do fundador da escola, confiado a escrita. De modo mais geral, a reflexio filoséfica se desenvolve doravante no horizonte dos saberes antigos ou contemporineos, mobilizaveis pela leitura, prestando-se a citagio, a0 comentirio ¢ & critica, num novo espago € numa nova temporalidade intelectuais. A solugio de um problema, cientifico ou filoséfico, passa pela genealogia de sua formulagio e das respostas que Ihe foram dadas: seu exame critico, até mesmo sua refutagio, o inventério das aporias e das contradig6es sfo outras tantas etapas, decisivas que permitem 0 avango da reflexio. A doxografia abre ao mesmo tempo a profundidade temporal de uma histéria da filosofia ¢ 0 espago de um método heuristico baseado na confrontagio sinerénica das “teses em presenga”."* O livro é também um suporte que se presta a organizar colegdes de materiais em diferentes campos do saber. Assim, atribui-se a Aristétcles 46 Lem pana esennvon uma colegio de Politeiai (constituig6es politicas de 158 cidades ), de Costumes buirbaros, de Provérbios c de Problemas, Sob a forma de catélogos, esses tratados reorganizam a informacao colhida no decorrer da leitura de outras obras: esses objetos de saber sao tirados de seu contexto e reorganizados em catélogos teméticos, nos quais sua prépria acumulagio é produtora de sentido c uferece os materiais necessirios para novas elaboragées teéricas, histéricas ou politicas. De Atenas a Alexandria, a idéia nfo muda apenas de dimensio. Pro- priedade privada, integrada numa escola filos6fica independente da cidade de Atenas e financiada pela fortuna pessoal do escolarca e pela generosidade de seus alunos ou da monarquia macedénica (fiel & meméria de Aristételes, que foi o preceptor de Alexandre Magno), a biblioteca torna-se, em Alexan- dria, um negécio de Estado, € posta sob o patzocinio do rei, que Ihe asse- gurao funcionamento, Ihe define a missio ¢ lhe controla 0 acesso."” De seletiva € orientada, a biblioteca se torna universal. De biblioteca a servigo de uma escola de pensamento ¢, por conseguinte, exposta aos riscos de concorréncia € de cisio, até mesmo & eventualidade de uma heranga infeliz," cla se torna a biblioteca por exceléncia, pélo de atragio para os livros ¢ 0s leitores do mundo inteiro, Por sua riqueza, ela cria um novo objeto até entio impensivel: 2 totalidade dos textos escritos em grego ou traduzidos das Iinguas barbaras”, reunidos num mesmo lugar. A Biblioteca de Alexandria € um tesouro que partilham alguns leitores privilegiados, provavelmente sob forte vigiléncia. A autoridade do rei substitui a do escolarca. Nesse interim, apareceu a figura do bibliotecirio, que preside 20 funcionamento ¢ organizacio da instituigao, sem que, de resto, nossas fontes nos permitam esclarecer melhor a natureza das fungdes inerentes a esse cargo, 3 parte o fato de que ele implicava freqiien- temente 0 preceprorado dos filhos do casal real. Mas por que, precisamente, o fundador da dinastia ligida decide instieuir uma biblioteca universal nos locais do Museu, que acolherd seus raros leitores? E por que, depois de sua morte em 282 a.C., seus sucessores manterao a fundagio com tanto zelo? Os ganhos politicos e simbélicos sfo miltiplos. ‘Nessa terra do Egito onde, segundo Platio, um deus inventou a escrita quando a civilizagao helénica estava na infaincia,"* os novos soberanos querem afirmar a primazia da lingua e da cultura gregas, dotar sua capital com uma meméria e raizesarificiais, compensar sua marginalidade geogréfica por uma centralidade imbélica: toda a meméria do mundo numa cidade nova, a oeste do delta lo, uma cidade de imigrados, de colonos, de militares e de avencureiros, de gregos, de judeus, de niibios ¢ de egipcios. a1 © rows ons miatiorecas ‘A meméria escrita é uma heranga de que é preciso apoderar-se, um junho na rivalidade politica das poténcias mediterraneas. Ganho para quem? Nilo para os camponeses egipcios que vio softer anos de exploragao violenta, \os por uma administragio opressora, presos num sistema fiscal ¢ ico que constitui 0 reverso do cendrio alexandrino, Nem para a populagio cosmopolita que enche as ruas de Alexandria e se aperta diante las portas do palécio, nos dias de festa. Mas para a prépria famflia real, para corte, para a intelligentsia mediterranea, seduzida, recrutada e até comprada para acompanhar o tei, instruir seus filhos ¢ dar ao reino ligida um brilho cultural sem par. Com efeito, a biblioteca e o meio intelectual alexandrino serdo fortes fatores de mobilidade para os incelectuais € os eruditos do Mediterrineo helenistico e greco-romano: a viagem a Alexandria é uma etapa obrigatéria e, em geral, uma permanéncia prolongada, para quem é origindrio da zona de influéncia ligida, de Cirene 3s ilhas orientais do Egeu, como Cés ¢ Samos." Certas cartas de Arquimedes de Siracusa a seus colegas alexandrinos ‘mostram que a capital igida era o pélo intelectual e cientifico mais importante do mundo mediterrineo."? Essa preeminéncia ecuménica, paradoxalmente, favorecerd a fundag de bibliotecas em outros reinos helenisticos, como Pérgamo ou Antiéqui Poder-se-ia também considerar que a criagio das bibliotecas helenisticas de menor importdncia, por exemplo nos gindsios,"* bem como o desenvolvimento das bibliotecas publicas em Roma, a partir de Jiilio César, que dirigiu as operagées da guerra de Alexandria, si cultural dos Ligidas. A fundacdo da Biblioteca de Pérgamo, que se propunha competir com o estabelecimento dos Peolomeus, ou mesmo suplanté-lo, teve como efeito um reforgo de controle sobre os intelectuais © 05 poetas que freqiientavam o pélo alexandrino.”” Bla teve outro efeito perverso, levando a uma forte supervalorizagio na politica frenética de aquisigio dos livros praticada pelos “corretores de bibliotecas"® dos dois reinos, o que fez.a feici- dade dos falsérios de todo género." as conseqiiéncias diretas da politica Reunir num mesmo lugar todos os livros da Terra implicava a apropriagio das “sabedorias barbaras” por uma politica de tradugSes, a mais célebre das quais foi a dos cinco livros do Pentatcuco, 0 texto sagrado dos judeus.”? Esta abertura para as culeuras estrangeiras tem seus limites, bem como sua Iégica. Marcaré ela 0 inicio de um dislogo entre as culturas? Provavelmente, ea forca simbélica da tradugio nao deixa de ter uma dimensio politica, restemunhando 6 fim dos antigos preconceitos helenocéntricos.®® Mas ela afirma também a 48 realidade onipresente de uma dominagio linglistica, politica, militar e econdmica. Ela € de fato a expressio de uma vontade simbélica de poder, ‘em que Alexandria, novo centro do mundo, afirma seu predominio sobre a totalidade do mundo habitado, até scus confins, querendo se apropriar de todos os tragos escritos por todos os povos, em todas as linguas ¢ em todos 0s lugares, ¢ traduzindo-os para o grego, isto 6, importando-os e aculturando- 0s no espaco lingiistico, cultural e mental do helenismo.* A tradugio em grego da Tora, se, como indicam todas as fontes judaicas antigas, foi efeti- vamente comanditada por Prolomeu Séter ou por seu filho Filadelfo, por conselho de Demétrio de Falero, pode ser interpretada como uma auténtica curiosidade, da parte do rei ¢ de seu cfrculo, por uma sabedoria estrangeira, € como a preocupagio pragmdtica de compreender e controlar uma cultura € erengas outras, ou mesmo de dispor da tradugio em grego de um texto jurtdico de referéncia, apropriando-se simbolicamente de um Livro que tinha a forga de uma Constituigio (politewna), no coragio do Palécio ¢ no espago cultural ¢ lingtistico do helenismo. A assimetria parece evidente, Mas qual era o interesse dos judeus que colaboraram ativamente na tradugio, uma vex que ela foi feiea, segundo a Carta do Pseudo-Aristeu, com o apoio de Eleazar, o sumo sacerdote de Jerusalém? Acaso a existencia de uma versio grega da Biblia, determinada pelo rei, no respondia & espera dos judeus helenéfonos da capital Kigida ou a um projeto de propaganda junto as clites pagis? Pelo menos, essas traducdes permitem aos hebreus, como aos egipcios, a0s fenfcios, aos babilénios, aos indianos € aos iranianos (corpus de Zoroastro),"* pensamento gregos. Certos autores indigenas fario cles prdprios o esforgo do bilingiiismo: o sacerdote Maneto, origindrio de Sebenites, escreve, assim, em grego um tratado de histéria eg(pcia, que ele teria dedicado a Ptolomeu Filadelfo, no qual uvilizou e traduziu numerosos documentos de arquivos sobre a cronologia das sacerdote babilbnio de Bel-Marduk, escreve uma histéria de seu pals. Essas dduas obras serio utilizadas pela erudigéo helenistica. Uma das manifestagbes mais originais desse encontro de culturas é o desenvolvimento do judafsmo alexandrino, e em seguida da escola cristi de Alexands entrar na literatura ¢ no jinastias farabnicas2” Do mesmo modo, Beroso, : Filo ¢ Clemente de Alexandria sio os autores mais rcpresentativos dessas duas correntes. A biblioteca, as grandes tradug6es, 0 patrocinio dos intelectuais: todos cles aspectos de uma politica voluntarista, para a qual nao se pouparam meios. Enviam-se encarregados de missdo as principais cidades onde se fazia o 49 comércio dos livros, como Redes ¢ Atenas.** O mandato do rei, segundo a Carta de Aristeu, & de “reunit na incegra, se possivel, todas as obras aparecidas no mundo intciro”, gracas a aquisigbes ¢ a transcrig6es sisteméticas.” Prolo- meu escreve cartas aos reis ¢ a todos os que tém algum poder, pedindo-lhes que Ihe fagam chegar as mios livros de poesia, de prosa, de retérica, de so- fistica, de medicina, de magia, de histéria ¢ de qualquer outro campo, como se se tratasse de preencher as segSes genéricas — as estantes — de um plano preestabelecido, abrindo mesmo a possibilidade de obras que fugissem a esta classificagio... Os livros so confiscados a bordo de todos os navios que entram no porto de Alexandria, copiados por escribas ~ entrega-se a cépia a0 proprietitio e se deposita o original na biblioteca. Nao se hesita, em certos casos, em furtar livros de grande valor, como as cépias oficiais dos trigicos atenienses, tomados emprestados contra uma caugio insignificance € nunca devolvidos...' Essas anedotas nos trazem uma informagio preciosa: o que in- teressava aos Ptolomeus eram os livros, no os textos, isto é, a posse das obras originais, nao das cépias.” Isso podia se explicar por uma razao de bom senso: as transcrig6es dos livros apanhados nos navios, sobrecudo efetuadas apressa- damente, tinham muitas chances de produzir um texto de pior qualidade que 0 volumen original, com crtos, ou mesmo omissbes ¢ cortes. Mas, a0 se apro- priar dos originais, sobretudo quando se tratava de livros importados no Egito por viajantes vindos de longe,* 0 reino Higida afirmava seu poder simbélico sobre o conjunto da terra habitada, cujas regides, cidades ¢ etnias vinham se inscrever nas colegées da grande biblioteca. Da mesma maneira, o exemplar oficial das obras dos poetas trégicos atenienses, a0 mesmo tempo em que ofe- recia a gatantia do melhor texto posstvel, constitu‘a também um objeto tinico, cuja posse, mesmo por meios contestiveis, reforgava o prestigio da capital egipcia. Os primeiros membros da dinastia ligida praticaram a supervalorizagio para enriquecer as colegées da biblioteca, tanto que a tradigao desapossa Prolomeu Séter do mérito de sua fundagio, para atribut-la a seu sucessor, Filadelfo."* A constituigio das colecées da biblioteca ¢ o fruro de uma politica sistematica de aquisigées, que busca a completude, a acumulagio ¢ todas as formas de saber e de criagio confiadas & escrita, aptas a serem em seguida redistribuidas pela classificacio nas grandes categorias literdrias, teatro poesia, ciéncias, hist6ria, retorica, etc. Este projeto enciclopédico nao ¢ senao a aplicagio hiperbélica do programa intelectual da escola aristorélica. ‘Antes de descansar nas prateleiras do Museu, os textos em papiro sio recopiados por escribas, identificados com uma etiqueta em que se inscreve 30 ‘© nome do antigo proprietério do livro, ow ainda o nome do revisor ¢ do editor. Guarda-se assim o vestigio da origem dos livros. A forca simbélica da concentragio dos livros num tinico € mesmo lugar deve sem diivida muito a esse horizonte geogrifico, que associa os textos a todas a cidades do mundo gfego, por autores ou proprictirios interpostos, e ilustra assim o poder de attagio do pélo alexandrino: os filélogos que trabalhavam no Museu podiam explotar variantes do texto homérico provenientes de Creta ow de Chipre, de Marselha ou de Sinope, atestando a dimensio ecuménica da colecio e, por conseguinte, do poder real que a reunira, Com efeito, a “grande biblioteca” de Alexandria funda uma nova relagdo com 0 tempo € espago. Hf 0 tempo da busca dos livros, de sua acumulagio progressiva que visa criar uma meméria total, universal, abolindo a distancia com 0 passado para propor num mesmo lugar de conservagao todos 05 escritos humanos, os vestigios do pensamento, da sabedoria ¢ da imaginagao. A colegio afirma uma vontade de dominio intelectual a uuma ordem & acumulagao de livros e de textos provenientes de r. épocas muito variadas.” impor jes e de Ha, cm seguida, a temporalidade particular prépria da leitura dos intelectuais admitidos nesse lugar, navegacées necessariamente limitadas € parciais nesse oceano de papiro, leitura que permice dialogar com os autores imais antigos, atualizar seus escritos ou seu pensamento, confronté-los com 95 livros contemporineos: a biblioteca gera didlogos diferidos, reiterados e imposstveis. Ela permite justapor idéias, fatos ¢ informacées formulados outrora por autores diferentes, separados no espago ¢ no tempo. Uma controvérsia, um problema ou uma idéia podem ser retomados a qualquer momento, resolvidos ou reativados fora de uma situagéo de interlocuga viva. Um enunciado cientifico, uma descoberta geogrifica, a localizacio de um ponto no mapa podem ser rediscutidos por um leitor posterior. Hé, en- fim, o tempo da transmissio: 0 da prépria dinastia, o da sucessio dos bi- biiotecirios, dos gramiticos editores de Homero e dos intelectuais, na genealogia dos mestres e dos alunos, o tempo de um trabalho cumulativo, em que todo novo sibio se situa em relagio a seus predecessores, em que todo pocta se situa em relagao a modelos. O tempo das polémicas, da filologia, da critica das fontes ¢ da imitagio literdria reintroduz a histéria, 0 progresso ¢ a evolusio. O fantasma de uma meméria absoluta em que a 4 especificidade dos tempos e dos lugares, os estraros ca sumulagio apagaria ria ea imensidade 31 de um ectimeno que excede ainda as fronteiras reais dos reinos helenfsticos” rio poder impedir a emergéncia de novas fendas, entre os antigos ¢ os ccontemporineos: a tomada de consciéncia da historicidade dos saberes, da sgenealogia dos problemas e das diferentes solugbes que foram propostas, jé presente na biblioteca do Liceu bem como nos desenvolvimentos doxogriificos de certos tratados de Aristételes, se imp6e doravante com forga. Os intelectuais de Alexandria, de origens geogréficas diversas, mantém todos certa relagio com o passado ¢ a otigem, como se a utopia livresca dos Prolomeus no pudesse abolir a histéria: busca dos “primeiros inventores”, dos corifeus das grandes disciplinas intelectuais; preocupagéo de estabelecer gencalogias disciplinares;® curiosidade pela origem dos usos das crengas, pelos tempos iiticos, pelas fundagées de cidades, mas também pela histdria universal que, cla propria, pode ser escrita sob a forma globalizante de uma “biblioteca histérica” nas dimensoes de uma sé obra, como testemunharé Diedoro de Sicflia, no século I aC. A relagéo da biblioceca com o espago no é menos paradoxal. Alexan- dria € um centro magnético que atrai tanto os livros quanto os intelectuais, tanto os objetos preciosos quanto os animais raros."" A terra habitada pelos homens, em sua imensidéo e diversidade, se resume num lugar se declina nas etiquetas que designam os livros por seus autores, seus editores, © eventualmente sua provenigncia geogréfica. Prolomeu Séter, filho de Lagos, a dinastia que ele funda perpetuam o sonho de universalidade de Alexandre Magno, mas também, paradoxalmente, modificam sua légica. A tradigio historiogréfica atribufa a Alexandre o projeto de conquistar 0 ecimeno, depois da expediggo asidtica: ele estaria pretendendo voltar-se para 0 Ocidente, quando a morte o surpreendeu na Babilénia. Os Kigidas, por outro lado, guerem encerrar 0 mundo habitado no interior de seu palicio, no coragio de sua capital, afiemar a universalidade de seu poder pelo ajuntamento € a acumulagio das amostras, dos seres vivos e dos livros, isto &, da meméria coletiva do helenismo, jé entéo desenraizada do solo das cidades gregas para ser enxertada na terra do Egito. Eratéstenes de Cirene, 0 terceiro bibliotecdtio titular, nfo saber resistir 4 biblioteca como convite a geografia, Ha uma simetria impressionante entre a condensagio do mundo num bairro de Alexandria, sob a forma de uma biblioteca universal, de colecées, de um parque zooldgico, de uma comunidade de intelectuais vindos de todos os horizontes,*? e essa nova maneira de visualizar 0 mundo, isto é, de apropriar-se dele sob a forma de um modelo 2 miniaturizado ¢ sindtico, a carta geogréfica, tragada em Alexandria por Brat6stenes.* Ele dé ao ectimeno a forma de um manco de guerreiro macednio, a climide,* assimilando assim © macrocosmo ¢ © microcosmo: com feito, © plano da cidade, no desgnio de Alexandre Magno, tinha cambém, precisamence, a forma de uma climide.** E no se pode deixar de observa uum outro jogo de espelhos entre a biblioteca e a cidade, uma vez que os cinco bairros de Alexandria eram denominados de acordo com as primeiras letras do alfabeto grego: Alfa, Beta, Gama, Delta, Epsilon. A cidade da biblioteca universal se oferecia 4 leitura como um abecedério, no qual o Pseudo- Calistene identificou uma mensagem acronima: Alexandros Basileus Genos Dios Ektisen (polin amiméron), “o Rei Alexandre, da raga de Zeus, fundou mitivel)”# [uma cidade ii Essa vocacio ecuménica ¢ esse jogo entre 0 macro ¢ 0 microcosmo, a expansio e a condensagio reaparecem nos métodos de classificagio da informacéo compilada: as coletineas de maravilhas, de costumes ou os diciondrios de palavras raras escolhem as veres a ordem geogrifica para arquivar a informagio méxima num espago a ser percorrido pela leitura.” O cctimeno se torna assim o principio de um vasto conjunto de lugares que se prestam a redistribuir e reorganizar a informagio colhida no curso das viagens na biblioteca. Alexandria € um espago utdpico onde os literatos inventam uma nova relagéo com o local, que nfo deixa de lembrar sua nostalgia das origens: o lugar e © tempo, duas manciras de en da biblioteca no espago do helenismo. Com efeito, essa comunidade erudita, cosmopolita, imigrada, desarraigada, se interessard pelas curiosidades locais, pelos usos indigenas, por esses mitos das cidades e dos campos gregos que se tornam problemas intelectuais, sob 0 efeito da objetivacio ¢ do distan- mento prdprios a escrita. Mas se, a partir do novo centro do mundo 0 olhar dos leitores se torna mfope ¢ se perde em paisagens particulates, nfo ¢ apenas por fidelidade a uma origem ¢ por orgulho patriético, como Calfmaco de Cirene. A Biblioteca de Alexandria cria um espago abstrato do qual sibios de origens diversas vio poder apropriar-se, Esse espaco é 0 do helenismo, horizonte comum de textos, es, que dependem, doravance, de rarefas as — arquivar, editar, comentar, elaborar mapas, escrever a histéria, relectuais e tradi crengas, modelos coleti recensear, Poder-se-ia dizer que uma das chaves da cultura alexandrina é a jo paradoxal que ela mantém com a meméria. No Egito, pats cuja antiglidade fascinava os gregos desde Herédoto, Alexandre criou uma cidade 33 0 rovex as winisovecas nova. Ela deve dotar-se de uma memeéria artificial, para além das cradigoes sobre sua fundagio, que a ligem a Proteu, 0 Velho do Mar da Odisséia.® A auséncia de uma tradigio e de uma meméria locais explica talvez como a iblioteca, esse lugar de meméria artificial, criado por uma politica voluntarista, teri podido atrair ¢ reter gregos de todas as origens. Vemos aparecer aqui © papel essencial da cultura (paideia) como elemento de coesio constivutivo da identidade helénica, substituindo as antigas soli s, familiares: € territoriais, que vai marcar tio fortemente o conjunto do perfodo helenistico € greco-romano.® A cultura alexandrina reside nesse jogo entrea proximidade € a distancia, entre a minticia do trabalho erudito, absorvido pelo detalhe das palavras, ¢ a amplitude do olhar retrospectivo que abrange todo 6 patti mbnio escrito do helenismo: uma cultura viva, uma vez que os letrados estio iades efvi impregnados das mesmas crengas religiosas, de referéncias literirias ¢ de ‘modelos intelectuais comuns; mas também uma cultura posta & distancia pela mediagio da escrita, constitufda em corpus, em textos que suscitam a retificacio, © comentério, a explicagio, e que geram projetos de escritura que sio outros tantos itineririos de leitura Ler para escrever Ler para escrever: de fato, os leitores da Biblioteca de Alexandria sto profissionais do saber ¢ da pena ~ do eilamo. A biblioteca é seu horizonte, seu ambiente de vida: Eratéstenes, terceiro bibliotecitio, passard nela cerca de quarenta anos.*" Como ¢ que eles liam? Como se situayam nessas colegdes vertiginosas? Seguiam um método, ou se deixavam guiar pelos acasos da des- coberta, pela acumulagio das notas e pela marcago empitica dos documentos? Lembremos que o livro ainda nio é um cédice que se folheia, ¢ sim tum volimen que se desenrola com a mio direita e que se enrola 20 mesmo ‘tempo com a.mao esquerda. A materialidade do livro e as exigencias de seu ‘mancjo afetam as modalidades de apropriagio do texto, o processo de construcio do sentido, ¢ isto vale, aliés, para o livro manuscrito, impresso ou apresentado na tela de um computador. Desenrolar, enrolar. A leitura, como de resto a escrita nesses rolos de papiro, € uma mecinica ¢ uma viagem: entre 2,50m. ¢ 12m de uma fita vegetal frdgil de manipular, numa altura média de 16cm a 30cm. O texto esté escrito em colunas paralelas. O comprimento das linhas se adapta 20 comprimento dos versos dos textos poéticos, mas hi excegoes.®> Para prosa, o comprimento das linhas é varidvel: como observa E. G. Turner, 4 os discursos so escritos em colunas mais estreitas que a histéria e a filosofia, € 05 comentérios (dupomnémata) ocupam Rs vezes colunas muito mais largas.* As palavras nao so separadas, e uma pontuagio sistematica, elemento essencial para a organizagéo sintdtica da frase, parece surgir 6 tardiamente, assim como (0s acentos.** Num rolo de comprimento médio, era possivel encontrar 0 texto incegral de uma tragédia ou dois ou trés cantos curtos de Homero.% Conforme © gestual adotado, era possivel ter sob os olhos simultancamente virias colunas de texto — quatro colunas permitiam ler entre 100 ¢ 180 linhas, conforme © tamanho da letra, 0 que corresponde a poemas relativamente curtos, como as elegias, as sitiras, os epodos ¢ as églogas.” © campo visual determinava pois um “contexco” no sentido préprio, que nio deixava de ter efeitos nanticos, mesmo para textos breves como os epigramas, os fragmentos selecionados ou as notas eruditas nos textos-catdlogo, que, por outro lado, se prestavam a uma leitura descontinua ¢ fragmentéria. Quando a viagem {ermina, 0 livro esta enrolado pelo avesso, no fim do texto; as vezes ali se encontra de novo © nome do autor, o titulo € © mimero do rolo, ¢ As vezes meira linha do rolo seguinte, no caso de obras em virios volumes. livro em forma de colo se presta mais a uma Icitura continua © a uum movimento linear (para a frente, para tris) que & procura de passagens pccisas. As duas mios sio mobilizadas, Na auséncia de paginacio™ ¢ na mpossibilidade de inserir marcadores para indicar as interrupgées da leitura 6 que permitem as piginas do eédice escritas em reto-verso” ~, 0 rolo de papiro solicita a meméria do leitor. Compreender a natureza das operagées Intelectuais € mnemotéenicas implicadas pela leitura é de uma importincia nucial para interpretar 0 trabalho dos sébios e dos letrados alexandrinos. O )tiprio fato de que seus escritos multiplicam as referéncias, explicitas ou no, 4 reutilizagio de materiais eruditos ou de palavras raras, e mesmo os jogos de referéncias intertexcuais de um autor para outro, indica claramente que A Ieitura se encontrava na origem de todo texto alexandrino. O livro medieval, ny forma de cédice, pode dar lugar a artificios de meméria sofisticados, fepousando As vezes numa analogia estrcita entre a configuragio material de ‘wma pagina precisa e sua imagem interiorizada, sua “forocépia mental” (iiferentes espagos de escrita no interior da pégina, miniatura, cores, letra Inicial iluminada, etc.). O rolo de papiro alexandrino oferecia apenas a sicesslo linear de colunas de escrita sem separagio das palavras, com pontos dle referencia visuais muito menos patentes:* intervalos, chanfraduras para sublinhar visualmente a passagem de uma forma métricaa outra (por exemplo, sua 55 © rooen ons ateiioreens nas tragédias), um trago vertical posto entre duas linhas para distinguir os parigrafos (por exemplo, a citagéo de um verso num texto em prosa ou as mudangas de interlocutores nos textos draméticos). As vezes, encontram-se cscritos na margem esquerda da coluna os titulos dos poemas reunidos em coletanea (por exemplo, numa edicio de Pindaro ou de Baquilides). E no entanto, as prdprias exigéncias do suporte tornavam necessitias Priticas de memorizagio, no decurso da leitura. Procurar uma passagem particular num rolo devia ser uma tarefa dificil. Nao se pode falar em paginacZo, embora em certos papiros as colunas de texto fossem numeradas,"? Aliés, E. G. Turner no hesita em dizer que tal suporte “no encorajava 0 trabalho erudito cuidadoso”, e até mesmo explica o fato de que 0s autores antigos tenham sido pouco inclinados a verificar suas referencias, ou ainda tenham preferido escolher seus exemplos métricos ou gramaticais nos primeitos versos de um poema, isto é bem no comego do rolo.* Referiam-se, pois, 4 suas leituras citando, as mais das vezes de cor, © nome do autor, as vezes © titulo de sua obra, 0 mimero do livro, isto é do rolo de papiro, mas a “referéncia bibliogréfica” ndo ia muito além. A pritica habitual consistia em atribuir a um autor uma idéia ou um enunciado, mesmo sob a forma de falas relatadas no estilo indireto. A escritura dos poetas alexandrinos se apresenta como um vasto processo de reativagio de uma meméria de leitores, em que palavras, hemistiquios, esquemas métricos sio reutiizados, num jogo de variagGes ¢ alusGes que exige a mesma virtuosidade dos destinatdrios desses poetas, a saber, uma capacidade de refarer novamente as ligagées entre um texto ¢ aqueles aos quais cle remete, que ele pressupse, que imita, ou mesino que plagia. A meméria permanece, pois, 0 suporte indispensdvel da escrita: ela permite a recomposicio, a selegio, a mobilizagéo das lembrangas de leitura num novo projeto literdrio ou cientifico e, como ral, é compartilhada pelo autor ¢ por seu leitor e constitui o horizonte de inteligibilidade do texto. ‘A meméria visual podia ser um componente desse processo, pela relacio que se estabelecia entre a superficie do papiro materialmente visivel e o locus de ‘uma passagem, seu contexto no sentido prdpr Conforme seu comprimento, um rolo pode conter uma obra completa ‘ou uma de suas partes. © inventirio das colecées da biblioteca do palicio, no tempo de Prolomeu II Filadelfo, preservado pelo tardio Tzetzes, ® dé a cifta de 90 mil rolos “nao misturados” (amigei), que contém uma obra inteira ou vatios textos breves do mesmo autor, € de 400 mil rolos “mistura- 56 dos"(summigeis), que se adicionam, isto é, rolos que contém cada qual um livro — um tomo ~ diferente de uma mesma obra, como demonstrou recente- mente Luciano Canfora:® as Histérias filipicas do historiador Teopompo compreendiam 58 rolos, as Histérias de Poltbio, 40, as Tabuas de Calimaco, as quais voltaremos, eram compostas de 120 rolos. Se aceitarmos essas cifras, a biblioteca no tempo de Calimaco e de Eratéstenes continha cerca de 500 mil rolos. © niimero das obras era sem «hivide claramente inferior, se admitirmos que os diferentes “livros” de uma ‘mesma obra constitufam outros tantos “rolos” distintos. A politica sistemtiea dde aquisigbes praticada pela biblioteca favorecia certamente também as c6pias plas de uma mesma obra, que ofereciam outras tantas variances de um smo texto, Todavia, 0 conjunto constitula a mais vasta colegio de livros dda Antigiiidade. O poeta Calimaco, ligado a biblioteca sem ser dela o respon- sivel efetivo,” empreendeu a tarefa de recensear-the as riquezas. Suas Tdbuas dos autores que se ilustraram em todos 0: aspectos da cultura e de seus escritas, em 120 roles, se prendem a um duplo projeto.% Elas esto evidentemente cm relagio com as colegées da biblioteca, mesmo que esta nfo sejaexplicitamente mencionada no titulo.” Embora nao se trate, sem davida, de um catélogo no sentido estrto,” essas Tabuas t8m uma fungio de guia bibliogrifico apto 1 orientar as pesquisas dos héspedes do Museu. Seu objeto é tanto 0 conteiido quanto a estrutura da biblioteca. Com efeito, essas Titbuas so recortadas em grandes rubricas ~ a epopéia, a retética, os fildsofos, os historiadores, os mé- dicos, a poesia e seus diferentes g@neros, etc., que refletem talver a repartigéo ddos livros em diferentes armaria, 20 longo do perfpatos do Museu.’! Existia .é mesmo uma segSo para as obras diversas, na qual Calimaco havia part: mente recenseado quatro autores de manuais de confeitaria.” No interior dde cada rubrica, os autores sio enumerados por ordem alfabética, com al- jgumas informagses biogréficase a lista das obras atrbufdas. Deste modo, se passaria de um princfpio de classficagao topogestica para um principi vencional de catalogagio, Alguns testemunhos sugerem que as Tébuas com- portavam também © niimero de linhas dos textos recenseados e seu incipin, fn mesmo tomavam partido a respeito de problemas de autenticidade e de 73 'Tais mengSes pressupdem, com toda evidéncia, o recurso aos priprios livros. Pode-se supor que os rolos da biblioteca tinham pequenas etiquetas, como alguns dos papiros literétios encontrados no Egito, coladas no dorso do rolo ¢ sobressaindo da prateleira para permitie a identificagio do autor (nome no genitive) e do titulo do livro.”* 7 © route o4s motiorecas Como sublinka Luciano Canfora,? os “Catilogos de Calimaco s6 eram utilizaveis por aqueles que jé eram conhecedores dos lugares”. E é tentador evocat aqui uma anedota relatada por Vitrivio, mesmo que seu testemunho a respeito de Alexandria possa estar sujeito a caugio (por exemplo, quando cle considera que a Biblioteca de Pérgamo foi fundada antes da de Alexandria «Ihe serviu de modelo!) ’* Segundo Vierivio, Ptolomeu instituiu jogos em hiomenagem 3s Musas ¢ a Apolo, com recompensas pata os escritores que saissem vencedores, O rei formou um jiri de seis alexandrinos e, para completd- Jo com um sétimo, pediu “aqueles que se encontravam na chefia da biblioteca” que lhe sugerissem um candidato preparado para essa tarefa. Eles mencionaram entio um certo Aristéfanes, que, com a maior atengio ¢ a maior aplicagio, dia apés dia, lia do principio ao fim todos os livros da biblioteca, ¢ na ordem. Esse leitor assiduo e metédico era o mais indicado para participar do juri O primeiro concurso era o de poesia, Os seis outros jurados estavam dispostos a dar o primeiro prémio a um poeta que, visivelmente, obtivera um grande sucesso popular, o segundo, aquele que fora mais aplaudido depois dele, ¢ assim por diante. Mas Aristéfanes se distinguiu, escolhendo o poeta que foi ‘o menos apreciado pelo povo, Indignagio do rei c da assisténcia. Aristéfanes levantou-se €, em meio ao siléncio geral, declarou que um sé dos concorrentes cera um verdadeiro poeta, ¢ que os outros recitaram obras que nao eram deles. ‘A assembléia ficou estupefata, o rei estava céptico, O jurado devia justificar- se. “Confiando em sua meméria, ele tirou de certos armaria um grande ni- mero de rolos e, comparando esses textos com os que haviam sido recitados, forgot os autores a confessar que os tinham roubado”.” Eles foram punidos. Quanto a Aristéfanes, o rei Ihe deu as maiores gratficagbes e o pds na chefia da bil Essa anedota’* nos relata como Arist6fanes de Bizancio (257-180 a.C.), tum dos maiores nomes da filologia alexandrina, se tornow o responsivel pela biblioteca e sucedeu assim a Eratéstenes, que talver jt tivesse atingido o limite de idade de oitenta e dois anos. A meméria constitui o tema central dessa narrativa, Meméia dos alsos poetas, que recitam as obras de outrem, recitagio diferente daquela dos rapsodos, que tinham uma parte ativa de ctiagio ¢ de remodelagem dos materiais da tradic¢éo, uma vez. que ela se apéia aqui na literalidade dos textos contidos na biblioteca.” Quanto & performance espe- tacular desempenhada em piblico por Aristéfanes, cla remete, sem duivida alguma, &s técnicas da meméria, em uso tanto na sofistica grega como nas retdrica e educagao greco-romanas, repousando num conjunto ordenado de “lugares” nos quais a informagio podia ser codificada sob a forma de 58 Pois é 0 mesmo proceso mneménico que permice a um s6 tempo comprovar 6 flagrante delito de pkigio, identificando 0 contexto ¢ o autor original dos poemas recitados pelos concorrentes indelicados, e encontrat os préprios rolos de papiro no interior da biblioteca. Vierivio nos di provavelmente a chave da meméria de Aristéfanes, quando esclarece que este lia todos os livros em sua totalidade (perlegeret) e “na ordem” (ex ordine), a saber, em sta sucessio nas prateleiras, ¢ na sucessio dos armaria ao longo do pértico.® A memori- zagio dos livros é regida pelo mesmo principio de ordem linear ¢ continua que 2 memorizagio da arrumacio geral da biblioteca." Seas Tiébuas de Calimaco refletem a disposigio topogeifica dos armaria no peripaco do Museu de Alexandria ¢ sua vocagao para feunir todos os textos relativos a um campo de saber ou a um género literdrio particular, entio fica claro que um dos aspectos fundamentais da organizagio da biblioteca e do dom{nio intelectual que ela pressupunha em seus usuérios reside nessa ordem espacial, que supunha que se pudesse associar a lembranga de uma leitura a um dos armérios c, no interior deste, a uma prateleira precisa."® Viertivio nos convida a refletir sobre a meméria do leitor alcxandrino, confrontado com cerca de 500 mil rolos, que s6 podia confiar num percusso metédico » longo das estantes, cuidadosamente memorizado, pata ter a certeza de reencontrar os livros que tinha lido.* Assim mesmo, era preciso que um texto cstivesse disposto em seu lugar ¢ classificado na categoria adequada, uma vex que a localizagao de um livro traduzia uma forte deciséo intelectual sobre set felacionamento com um campo de saber ou com um género literério. E significativo que alguns dos poucos testemunhos antigos sobre as Tdbuas de slimaco se refiram precisamente a etros de atribuigio ou classificagio: ‘Calimaco erra ao catalogar Prédicos entre os retdricos, pois esté claro que cle€ um filésofo”. O erro de catalogacio se traduza, de fato, numa arrumagio exrOnea do rolo numa estante onde nio tinha seu lugar. Actescentemos um ‘estranho jogo de eco entre a narrativa de Vitrivio ¢ os fragmentos conservados de Aristéfanes de Bizancio. Encontramos af, inicialmente, uma revisio ¢ um complemento das Tabuas de Calimaco, o que s6 uma verificagio sistemética do contetido da Biblioteca de Alexandria permitia.® E, sobretudo, Eusébio de Cesaréia, citando Porfirio, nos informa que Arist6fanes de Bizancio compds Juma obra de “Citagdes (ehdogat) paralelas de Menandro ¢ dos autores que cle plagiou”:% exatamente 0 mesmo exercicio de meméria letrada encenado por Vierivio! Mas os Pinakes de Calfmaco, provavelmente, nao se limitavam a essa fungio de “tébuas de orientagio” na organizasio das colegses da bil ioteca, 9 0 rooee ons a1etiorecas rara-se de um © préprio titulo sugere um projeto intelectual mais vas monumento & gléria do helenismo, de um “Iéxico nacional dos escritores de lingua grega”,®” dando uma visibilidade nova ao projeto dos Prolomeus. Se cerca de 500 mil livros ja se encontravam nas coleg6es no tempo de Prolomeu II Filadelfo, era preciso dispor de um instrumento de mediagio entre os rolos de papiros e as obras, substituir por um inventirio metédico a simbélica da acumulagio, Sem diivida, as Tébuas so inspiradas pelo mesmo sonho de tota- lidade que © conjunto da biblioteca. Mas, como escreve Roger Chartier a propésito dos livros-catélogo do século XVIII, “uma biblioteca universal (pelo menos numa ordem do saber) s6 podia ser imaterial, reduzida 4s dimensbes de um catélogo, de uma nomenclatura, de um recenseamento”.** Com efeito, trata-se nada menos que de condensar uma biblioteca num cratado ~ aqui 120 rolos -, um livro dos livros, uma ordenagio do mundo da escrita, onde a acumulacio € regida pelo recorte do saber, sujeita a uma razfo classificadora que nio deixa de lembrat os grandes empreendimentos de ordenagio do Licew aristotélico. As Tabuas permitem circunscrever a acumulacao, classificé-a, hie~ rarquiaé-la, quantificé-la através de listas, catdlogos e dispositivos transversais ¢, a0 mesmo tempo, reunir critérios de descrigio untvoca do livro, para evitar a8 confusbes resultantes da similitude dos titulos ou dos autores, Tais projetos bibliograficos, a0 longo da histéria, tiveram muitas vezes a tarefa de compensar as lacunas das bibliotecas reais, ou mesmo de definir uma “biblioteca ideal, liberada das limitagées que imp6e toda colegio particular: uma biblioteca das bibliotecas, imacerial, virwual”” Mas, em Alexandria, a universalidade das Tabuas coincide com a universalidade da biblioteca, ela a duplica de um mo- do condensado quase carcogritico.”” Condensagio da meméria escrita do hclenismo, a biblioteca engendra priticas intelectuais em que a leitura é indissocidvel da escrita. Af reside a verdadcira dimensio de Alexandria como de toda biblioteca onde, segundo 1a expressio de D. F. McKenzie, “novos leitores criam textos novos, cujas significagdes novas dependem diretamente de suas novas formas’" A acumulagio dos livros suscita formas de escrita especificas, que tm como vocacio controli-la e dominé-la, ativar uma meméria coral, mas virtual. A biblioteca forja um novo olhar de leitor, distanciado, atento & forma, & literalidade ¢ & propria legibilidade da obra. A multiplicagio dos livros, os problemas de atribuigio ¢ autenticidade, 4 proliferacio das variantes na auséncia de qualquer norma de estabelecimento € de reproducao dos textos explicam a emergéncia das técnicas da edigfo 60 Lem Pana esenrven filolégica, uma das atividades essenciais da erudigio alexandrina.”® Se as liotecas filoséficas em Atenas tinham como tatefa preservar os textos originais © fundadores da escola, isto é, salvaguardar textos autdgrafos © auténticos, Alexandria deve recorrer a um método artificial, a uma técnica, para reabsorver a pluralidade das variantes num texto iinico.” A edigio filo- logica nao se assemelha a um processo de “publicagio", no sentido moderno do termo. E um trabalho execurado nae para a biblioteca. E sé muito lentamente se verd esse trabalho difundir-se fora da biblioteca ¢ manifestar- se, por exemplo, nos papiros literdrios encontrados no Egito." Zenddoto, 0 primeiro bibliotecirio, € também o primeiro editor de Homero, no sentido alexandrino. Entre seus colegas, que pertencem & primeira geracio de sdbios trabalhando na biblioteca, Alexandre, 0 exélio, se ocupara dos textos trigicos, ¢ Licofronte, das comédias.” O plano parece organizado: tratava-se de langat tum olhar eritico € distanciado sobre as diferentes versbes das grandes obras literdrias do helenismo, no Ambito de uma classificacio dos géneros literérios. A partir dai, os textos ficam presos a uma tradigio em que se acumulam alceragdes, interpolagbes, esquecimentos e simples erros de cépias, outtas tan tas escérias que é preciso limpar para ler Homero, Arist6fanes ou Euripides, Reabsorver a pluralidade das variantes num texto tinico, operando escolhas crfticas ¢, eventualmente, justificando-as, é privilegiar a qualidade do texto sobre a quantidade dos livros ¢ pér ordem entre as cSpias miltiplas de uma ‘mesma obra literéria, todas diferentes por seu comprimento, pelo nimero ¢ pela ordem das linhas, ¢ as veres por sua prépria literalidade. Pelo visto, ppoderfamos concluir que a conservagio de todos os livros & talvez tio perigosa para a transmissio dos textos quanto as éleas da meméria oral. A conservacéo que se inscreve na légica do fantasma de acumulagio dos Ptolomeus, aleria a saturar a meméria com variantes miltiplas, nas quais é mais certo o leitor se perder que nas arcias do Egito: a decisio critica se impée retificar, editar, isto 6, substivuir uma versio tinica a uma disseminagio ingoverndvel, romper com a tradigio para proceder a reconstituig6es, Através desse novo olhar dirigido pelos bibliotecérios para a literalidade dos textos, vemos se desenvolver uma hierarquia implicita de niveis: o autor ea obra (a Iiada de Homero); 0 livro (objeto material, composto de vitios tolos de papiro, existente em varios cxemplares, cuja proveniénciae proprietérios anteriores eventualmente se conhecem);o texto (sucesséo de microproblemas,” dle corrupgoes locais, de deslocamentos, de acréscimos e desaparecimentos de avras ou frases, de dificuldades a serem interpretadas). Um dos objetivos da filologia alexandrina talved sejareabsorver 0 intervalo entre esses t2s niveis, 6 faré-los coincidir 20 méximo. Com esse objetivo, vemos surgir uma nova instincia, 0 editor (diorthdts), intermeditio entre o Ele cria um novo objeto intelectual, um texto que existe independentemente da acumulagao dos livros no interior da biblioteca ¢ das vicissitudes de sua ‘ransmisso, mas resulta de uma intervencio critica ativa. Contrariamente aos ‘Snimos da transmissio anterior, o editor se apresenta no primeiro is sobre a letra e 0 préprio sentido do for, texto € 0s leitores, stores plano, como autor de escolhas cru fexto. Mas, a0 mesmo tempo, ele abre um novo espago de polémicas indecisé © texto é doravante objeto de controvérsias, De um editor alexandrino a ou. tto, hé por veves transmissio e acumulacio de conhecimentos, mais freqie temente polémicas ¢ corregdes em segundo grau, visando as retficagGes intro- duzidas pelo seu predecessor.” Zenédoto nko foi o autor da edigho definitiva do texto de Homero, como também nao o foram seus sucessores, Aristéfanes de Bizancio e Arisarco, que abriram caminho da longa histéria da filologia homérica. s: Editar 0 texto de Homero é reconhecer sua natureza problematica Mas como se apresentaya uma edigo de texto em Alexandria? Seu autor escolhia provavelmente um “texto de referéncia”,» isto é, um ou vitios tolos de papiro, ¢ inserevia na margem que separava cada coluna do texto, & esquerda do verso ou da passagem em questio, um signo pictogrifico que materializava uma decisio critica. A edigao era, pois, mais uma leitura critica ¢ anotada que a redacio integral de um novo texto. Alids, 0 pouco espace ispontvel entre cada coluna de texto s6 permitia o uso de signos convencionais © nio de anoragées detalhadas. Zenddoto inventow e utilizou 0 obelés (0 Sbe- to), que Ihe permitia assinalar os versos que decidia suprimir, por motivos de conveniéncia, repetisio ou contradiglo, Aristéfanes de Bizincio desenvolveu ainda mais esse sistema de signos.” © asterisco marcava as linhas repetidas, © sigma e 0 antisigma, as inhas consecutivas que tinham a mesma significasio, € que cram, por isso, permutiveis. Aristarco também acrescentou novos sig: nos, como a diplé periestigmené (diple), em que manifestava sua discordancia da Ieitura de Zenddoto, ou ainda o asteriseo acompanhado do dbelo, que dlesignava versos auténticos, mas que tinham sido deslocados de seu lugar de insergio original. O signo “X” chamava a atengio para uma curiosidade da expresso ou um enigma a ser resolvido."® Com Aristarco, a critica textual alexandrina nao altera 0 texto, mas 0 com uma fianja de signos que o balizam, modalizando-o, e sugerem ddeslocamentos, supressSes ou comentirios.™ Trata-se de uma estrita economia a Lee rina eseneven srifica, regida por um sistema de piceogramas que cada editor podia adaptar € personalizar. Como observa James 1. Porter, a edigfo filolgica alexandrina € um “palimpsesto transparente” aplicado sobre o texto.""* © rolo de papiro assim marcado por signos marginais sobrepunha o traco vistvel de uma leitusra, ou mesino de leituras miltiplas, reiteradas e recorrentes, a lineatidade do texto, escalonando-se em linhas do mesmo comprimento ¢ alinhando-se em colunas da mesma altura. A decisio final — incorporar ou excluit um verso, desloci-lo no corpo do texto ~ cabia ao leitor, que podia ou nao aceitar 4 Proposta do editor. Esse leitor era, ele préprio, um profissional da filologia homérica, ou mesmo um editor potencial, e no 0 “grande pubblico”, nem mesmo 0 piblico letrado que, como testemunham os papitos contemporineos, ainda lia Homero através das formas pré-alexandrinas de seu texto. A difusio das edigdes dos fildlogos alexandrinos consistia, pois, menos em recopiar um {exto novo que em transportar, num outro exemplar, © conjunto dos signos ctiticos marginais ttacados pelo mestre. A edisio suscita 0 comentirio. Era essa, alids, a fungio dos signos convencionais, chamar a atengéo do leitor profissional para um ponto problemético do texto que merecia uma discussio numa obra auténoma — 0 comentirio -, seja para justficar as escolhas criticas, seja para esclarecer os contetidos do texto e os realia aos quais se refetia, Em geral, esses comentac vinham explicar e justificar 0 signo marginal, cuja motivagio. permanec sibilina, Podia tracar-se de explicagdes orais, como no caso de Zenédoto que, até onde vao nossos conhecimentos, nao parece ter redigido comentdtios para explicar suas decis6es criticas. Os piccogramas marginais funcionavam, entio, para seus ouvintes (estudantes?) como outros tantos signos mnemotécnicos, que recriavam wm lago entce uma explicagio oral e © locus do texto 20 qual cla se aplicava.' Mas os sucessores de Zenédoto confiatam 2 escrita a significagio de suas anotagbes criticas."™ Esse dispositivo, constituide por um texto balizado com signos marginais ¢ um comentério distinto, sugere a leitura paralela de dois rolos de papico, com os problemas de sincronizagio © manuseio que podemos imaginar. Era talvez para dar uma autonomia a0 rolo do comentétio que nele se reproduzia ‘uma breve citagao do verso ou da passagem discutidos (0 lemma), remetendo assim ao texto original." Essa forma de comentitio linear (os hupomnémta) coexistia com tratados monogrificos (os sugerammata) dedicados a um assunto particular.' Neles, os autores podiam reorganizar segundo uma ordem femética as diferentes interpretacdes recolhidas nos bupomnémata, O que eta 6 0 rooen pas auntiorscas na origem uma sucessio de explicagées pontuais, no quadro de um comentsrio linear continuo do texto, tornava-se entZo tum conjunto de objetos intelectuais ‘e semanticos aurénomos. Um dos melhores exemplos ¢ o tratado consagrado por Aristarco i disposigio dos navios gregos, na Iiada, © a sua colocagio relativamente 20 muro do acampamento, discussie que vinha acompanhada por um “diagrama” ilustrativo:!” uma vasta erudigio mitogréfica, literdria, gramatical e geogréfica era mobilizada pata esclarecer 0 texto. Erudigao: tal 6, com efeito,a impressio imediata de todo leitor moderno dos textos e fragmentos alexandrinos. A poesia e a prosa veiculam doravante uma massa inédita de informag6es, de realia ¢ de referéncias. Se a Biblioteca de Alexandria, ordenada pelas Tébuas de Calimaco, se apresenta como um corpus organizado por subdivisées genéricas rigorosas, em que os textos tém um titulo, um comprimento, um incipit e um autor, ela é também um vasto espago oferecido is navegagbes da leitura: espaco de compilacio e busca da informagio, mas também de producio de objetos de saber, méveis e trans- misstveis, gracas as operagées da técnica letrada e aos jogos de associagio produzidos pela meméria dos leitores. A biblioteca, como imensa base de dados, se presta 4 descontextualizagao dos enunciados e dos fragmentos de saber, 2 sua circulagio e As suas permuras. A literatura erudita de Alexandria se alimenta desses caminhos de leitura em que, 20 longo dos rolos, extraem-se informagSes, para redistribut-las em novos textos tematicas, em listas, catélogos e dicionarios, formas abertas a uma expansio perpétua, ¢ que duplicam, no formato do livro, 0 modelo de acumulagio infinita constitutive da biblioteca. Com efeito, a leitura gera formas de escrita espectficas. A prépria continuidade do texto literirio © 0 encadeamento dos versos ¢ das palavras constituem como que um vasto conjunto de “lugares” de meméria, ligados pelo fio condutor da lei capazes de reativar objetos de saber ~ notas pontuais, variantes morfologi cde uma palavra, lista de curiosidades, esclarecimentos sobre um nome préprio, ete, Escrevera partir dos textos lidos, nas diferentes formas que sio 0 comentario linear, a monografia ou 0 léxico, consiste, antes de mais nada, em produzie saber a partir dos “lugares” textuais, segundo uma légica a0 mesmo tempo digressiva e analégica, Por exemplo, um papiro de Oxirinco, datado do século 1a.C., mostra como o canto VII da IMada serve de pretexto para uma longa lista de nomes que existem sob duas formas diferentes, ¢ para uma exposigio sobre 0s costumes funerstios, enquanto outro papiro (século I d.C.), consagrado ao canto XXI, desenvolve uma digressio de histéria natural a propésico do ura, 6 verso 203, em que sio mencionados de maneira distinta os peixes ¢ as enguias."® Trata-se efetivamente de lugares de memiéria, nos quais estio armazenados fragmentos do saber coletivo. Poder-se-ia sugerir uma analogia com a nogio contemporinea de hipertexto, em que o leitor estabelece lagos entre 0s enunciados, independentemente de sua proximidade fisica num texto real, O hipertexto se presta a uma nova formatagio a uma redistribuigéo infinica da informagio, de acordo com fios condutores que sfo tragados pelo prdprio Icitor, seguindo © curso de sua reflexio ¢ de suas perguntas, mas sobretudo de sua meméria,™ Encontramos freqiientemente, na literatura helen(stica, obras que de- sempenham o papel de encruzilhadas, de interfaces entre textos-fonte e textos- ilvo, verdadeiros dispositivos de triagem, classificagio e redistribuicéo da informagio, queso como que a materializagio livresca das bibliotecas imaceriais atmazenadas na meméria dos letrados da Idade Média." Sio as colegbes de palaveas raras, de curiosidades natura, culeuras,lexicas ou semanticas colhidas 10 longo dos textos antigos, que podem ser redistribuidas em novos textos, ‘em ordem alfabética e/ou temdtica, ou conforme as regides geogrificas ¢ os diferentes dialetos. Nas Denominasées émicas, Calimaco anota as diferentes formas dos nomes de peixes, de ventos, etc., nos dialetos gregos. Reunir todos 0s livros gregos numa s6 biblioteca contribuiu provavelmente para essa utopia, lingtistica em que se declinam as falas locais das cidades e palavras raras, incompreensiveis sem diciondrio, Os léxicos ¢ as coletineas de glosas, nio classificados, ou classificados (em ordem alfabética, temética, geogrifica), constituem uma constante da erudigfo alexandrina, desde Filitas de Cés. Aristofanes de Bizincio, figura emblemstica do leitor alexandrino, compos, lum niimero impressionante dessas coletineas: Das palavras suspeitas de no terem sido usadas pelos antigos," Da denominagao das idades (dos homens, das mulheres, dos animais domésticos, dos animais selvagens, das aves...),""* Dos nomes de parentesco,"® Expressies dticas"* Glosas lacénias,"* Provérbios nao mésricos,""" Provérbios métricos.'"” Calimaco também reuniu uma Colegdo das maravithas de toda a Terra, classificadas por lugares. essas curiosidades foram recolhidas ao longo de suas leituras de Eudéxio, de Teopompo e de Teofrasto. Conservamos alguns fragmentos de suas outras obras, ligadas as mesmas priticas de catalogasio: Dos costumes bdrbaros, Das fundagdes de ilbas e cidade, Dos rios do mundo habitado. Aristéfanes de Bizincio também escreveu uma obra, Das cortexds, que, conforme os trés fragmentos conservados, relacionava 135 mulheres atenienses de vida Ficil, provavelmente encontradas nos textos edmicos, ¢ explicava a origem de seus nomes e apelidos.'"* Todo o problema 65 0 rove as ninttorecas é saber se esses textos-catdlogo sio notas de leituras pacientemente acumuladas ao longo de uma vida letrada, na prépria presenga dos textos lidos, ou se so de um aro de rememoracio, em que 0 autor busca em suas lembrancas de Icitura, isto é, em sua biblioteca mental, 0 conjunto dos extratos ligados a um mesmo campo temitico. Mobilidade dos fragmentos de saber atomizados, unidades minimais do conhecimento, fatos brutos e palavras raras que passam assim de um livro para outro: a multiplicidade das fontes, a diversidade dos contextos se apagam no principio do catilogo. O texto alexandrino & como uma mise en abyme da biblioteca: € uma colegio no interior da colegio (sunagégi). Reflete a vocagio da biblioteca: acumular, presa da vertigem do saber universal e da exaustividade, numa busca propriamente infinita, Exemplares do fantasma alexandrino, esses textos poupam longas caminhadas de rolo a rolo, oferecem tum saber formatado, distribuido segundo entradas temétieas, que se presta, a partir daf, a uma reciclagem perpétua ¢ a novas contextualizagées, quer s¢ trate de abrir novos catélogos, redistribuindo a informasio segundo entradas diferentes, quer a eles se refira um naturalista, um historiador, um poeta, um sge6grafo para encontrar as informagées pontuais de que precisa, sobre o modo de vida dos insetos, o coaxar das rs, um ritual religioso da Areédia, topénimos cretenses, uma variante mitica rara ou uma palavea grega saida do uso lin- giistico corrente. Tanto os poemas de Calimaco quanto os Argonduticos de Apolénio de Rodes e, mais tarde, no tempo de Adriano, a Descriio da terra +abitada de Dionisio, o Periegeta, para dar apenas alguns exemplos, teste- munham essa reciclagem vertiginosa das lembrangas de leitura. Trata-se de uum motor essencial na transmissio do saber na época alexandrina, ¢ os tra- balhos dos autores de Aupomnémata e de suggrammata pudecam, gragas a esse processo de compilacio, alimentar os escélios nos cédices bizantinos e chegar até nds, sob uma forma certamente truncada, no fim desse longo processo de digestio erudita."” Essas listas e esses catdlogos no deixam de se relacionar com os cadernos de “lugares-comuns”, estudados recentemente por Ann Blair,"”° nos quais os lecrados da Renascenga consignavam, durante toda a vida, sob entradas teméticas, suas notas de leitura, materiais brutos prontos para serem. reutilizados em novos livros. Como os catdlogos alexandrinos, essas coletineas sio dispositivos produtores de saber ¢ texto. A acumulagio é a figura essencial, € se acomoda com a repeticio e as contradigdes. Ela privilegia mesmo, em sua légica taxindmica, os fatos mais estranhos ¢ os menos certos. Lembremos, 66 Len rans exexever por meméria, a Histéria natural de Pltnio, 0 Velho, no século I de nossa era, em que ele se orgulha de ter acumulado em 36 volumes mais de 20 mil assuntos, extraidos de 2 mil volumes escritos por uma centena de autores. Os 490 mil rolos de Alexandsia constituem uma meméria total, mas saturada, dificil de ser gerida, © favorecem a emergéncia de dispositivos textuais que déem melhor visibilidade aos conteiidos do saber. Os resumos, os extratos escolhidos ¢ as doxografias sio outras tantas manifestagdes da “tensio entre a exaustividade e o essencial”, que Roger Chartier observa nos Mlorilégios portéceis do século XVII, obcecados pela eliminagao, triagem e tedugio.” Serio eles a sinica oportunidade de preservar 2 legibilidade no espago da acumulacio? A historia da filosofia antiga, para desespero, as vezces, dos modernos, se resume num catélogo de opiniées, de doxai descontextua- lizadas. Os tratados bioligicos de Aristoteles e Teofrasto se difratam nas per- jguntas-respostas concisas dos Problemas pseudo-aristorélicos ow nos catélo- tyos de mirabilia dos paradoxégrafos, em que a acumulagio caleidoscépica dos ddados supre a ordem intelectual A poesia alexandrina testemunha o mesmo jogo de mite en abyme entre ‘biblioteca e os textos que ali se escrevem, Essa poesia, em suas formas mais letradas, se aproxima de uma literatura experimental, escrita por ¢ para fprandes leitores."* Ela se alimenta da meméria das leituras, se constr6i na referencia, na imitagio, na alusio, senio na polémica."™ Poder-se-ia aplicar integralmente & pocsia alexandrina esta reflexio de Michel Schneider: “De {que ¢ feito um texco? Fragmentos originais, combinagées singulares, referencias, acidentes, reminiscéncias, empréstimos voluntirios”.°O trabalho dos editores « fildlogos sobre a lingua grega, seu leéxico, sua prosédia, s6 podia se refletir ‘na eseritura poética: muitas vezes, a escolha de tuma palavra ou imagem é em si um ato critico, uma tomada de posigio nos debates dos fildlogos que editam Homero ou Hesfodo. Pois, como observa Roberto Pretagostini, a imitagio ‘Jos autores mais antigos toma um sentido novo quando seus textos sio fixados literalmente, s20 editados, € constituem o objeto de polémicas flolégicas.° A pocsia € indissacidvel da poética,”” a tal ponto ela afirma opgdes estéticas fortes, pelos modelos que ela reivindica ou recusa, ou mesmo que ela subverte, som essa mistura de ironia ¢ virtuosidade cara aos literatos alexandrinos. Os Ieitores, compartilhando dos mesmos cédigos ¢ referencias, saboreavam como conhecedores esses jogos de imitagio e variagio mais ou menos criptografados. A Icitura era uma arte da meméria, sensivel & musicalidade das palavras, & particularidade das formas e ao ritmo dos pés. Os dialetos gregos se fundem, a (0 oven nar nimtsorscas em Alexandria numa lingua artificial, sem ligagdo com as priticas lingiiisticas do cotidiano: Iingua que cultiva freqtientemente a obscutidade, 0 arcaismo ou a forma rara, e que dé, com deleite, novo contetide semantico a palavras escolhidas a dedo nas coles6es lexicograficas. Reencontramos na poesia 0 jogo de distancia ¢ de pruximidade tio caracteristico do conjunto da cultura alexandrina: escrever em gtego, levando a lingua a seus limites extremos, exumando sua meméria morfolégica, semfntica ¢ contextual, e convidando 20 supremo prazer de decifrar como um idioma estrangeiro a linguagem dos préprios antepassados. As dinimicas do saber A cultura de Alexandria se reduziria a essas metamorfoses do escrito, a circulacdo vertiginosa das palavras ¢ dos objetos de saber que fariam da biblioteca uma das antecipagées dos hipertextos contemporineos? Isso seria negligenciar as verdadeiras motivagdes intelectuais desses processos, que contribuem ativamente para a produgio de conhecimentos. Sem diivida, o patrocinio real favorece o desenvolvimento de uma pesquisa Fundamental, que pode se apoiar na observagiio direta, e mesmo na experién as dissecagGes do médico Herdfilo, a mecinica de Herdo e de Filo de Bizin- cio, as medidas geodésicas de Eratéstenes.™ Mas, mesmo nessas disciplinas, a biblioteca se apresenta como o instrumento privilegiado do trabalho cientifico, Ela oferece 0 corpus no qual o médico (pensemos em Galeno, no século II de nossa era), 0 gedgrafo, 0 etnégrafo eo historiador encontrario os materiais, necessdtios a seu empreendimento. Todo saber se funda no saber precedente. O conhecimento écumulativo € se desdobra em ttadigao. A biblioteca capitaliza essa heranga, permite aumenté-la gragas &atividade coletiva dos que exploram, O trabalho intelectual pressupSe que se faga referéncia a tudo que jé foi escrito sobre o assunto, que se mobilizem os conhecimentos arquivados nos livros. Todos os livros da Terra num s6 lugar, isto é, todos os pensamentos jamais formulados, os fatos jamais relarados, as observagGes consignadas, os problemas e suas solugdcs. Poder-se-ia, assim, reconhecer em Alexandria um dos protétipos desses “centros de céleulo”, cuja importincia na génese de nossa modernidade foi sublinhada por Bruno Latour: lugar para o qual convergem os materiais documentirios, as medidas, as amostras botinicas, 2ool6gicas ou pedolégicas, as observagdes locais e pontuais, cuja acumulagio permite operagSes novas, fora do alcance dos que produziram esses dados parciais. Alexandria vé se 68 Len pana eseneven desenvolverem os dispositivos que asseguram a produgio de um saber global a partir da codificagéo ou da tradugéo de informagoes locais: por em série, ‘comparar, organizar em ordem alfabérica, geogréfica ou temética, reabsorver as heterogeneidades e introduzir uma comensurabilidade dos dados, que permite sua combinardria e suas permutas. O melhor exemplo disso nos € dado pela carta geogréfica tracada pelo bibliotecdrio Eratéstenes.!™ Ninguém estava mais bem situado para revisar os antigos mapas da Terra, que, 20 que parece, tinham chegado a Biblioteca de Alexandria misturados com as torrentes de livros que aflufam para o palécio dos Ptolomeus. Para retificare reatualizar ‘esses mapas, ele dispunha de uma abundante documentagio escrita, narrativas de viagens, périplos, relatos de exploracio e descri¢ao regionais: tratava-se de uum corpus heterogéneo e de uma visio do mundo fragmentada numa plur dade de pontos de vista e de linguagens (6 viajante, o etnégrafo, o historiador, 0 diplomata, etc.). Como explorar essas informagées parciais e organizé-las, num todo coerente ¢ homoggneo, isto é, num mapa? Traduzindo 0 conjunto dlesses dados na linguagem gréfica e no espago matemético da geometria criclidiana, que acabava justamente de ser codificada nos Elementos em Ale- xandria, Desde entio, as localizagdes e as formas de territérios podem ser transportadas sob a forma de pontos ¢ linhas para uma superficie gréfica — uma vez que a projegio ortogonal escolhida por Eratdstenes permitia explorar as possibilidades silogisticas das linhas paralelas e perpendiculares. Assim, 0 mapa ~ em grego “tbua”, pinax~ & uma biblioteca geogréfica miniaturizada, homogénea, coerente, dominivel pelo olho e pela meméria, onde toda a in- formagio disponivel foi inscrita numa forma jé agora imutével, apta a ser reproduzida, difundida ¢ depois retificada.""" A multiplicidade das fontes se reabsorve num artefato nico, assim como os diferentes manuscritos de Homero se fundem na edigio de Zenddoro. Na vida intelectual que se desenvolve em torno da Biblioteca de Alexandria, vemos, assim, se afirmar um modelo de trabalho em que o recurso as fontes escricas ¢ predominante. Se os principios tedricos da geodésia de terreno sfo conhecidos — ¢ disso Eratéstenes fornece magnifica ilustragio ica calculando a circunferéncia da Terra a partir da medida do arco de metidiano entre Alexandria e Siene—, a geografia alexandrina se apéia, quanto ao essencial, na mediagio do escrito. Nio dispondo da infra-estrutura € da logistica da Academia de Cigncias Francesa no século XVIII, ou das sociedades de geografia européias do século XIX, que permitiram progressos decisivos na exploragio € na cartografia do mundo, a0 preco de ambiciosas viagens ‘ceinicas ou de campanhas geodésicas na escala de todo o tertitdrio, Eratdstenes, o. © rote oas como Estrabio e Ptolomeu, tem de construir uma representagao do mundo A distincia, reunindo itineréios, relatos de viagens, descrig6es regionais, informagdes pontuais sobre uma localizacio, estimativas de distancia em dias de marcha, em dias de navegagio, em parasangas ou em estédios."”? Alids, essa informagio péde ser transmitida por etapas sucessivas, o viajance original j€ tendo sido compilado por autores de monogralias regionais ou pelos ge6grafos mais antigos."* O trabalho em biblioteca se impée a quem quer escrever uma histéria ow uma geografia universais, comparar constituig6es politicas ou costumes humanos, reagrupar os mitos gregos num corpus siste- mitico, Alguns ficario chocados com isso, como Polibio, que valoriza um modelo pragmético de histéria que repousa na viagem © na experiéncia, implica testemunhos diretos, ou até mesmo um envolvimento pessoal nos acontecimentos narrados: Timeu de Tauroménio surge como 0 exemplo maldito do *historiador de biblioteca”, que s6 tem um conhecimento media- tizado dos fatos, contrariamente a0 historiador viajante, inspirado pelo modelo de Ulisses, que assiste aos acontecimentos ¢ encontra seus protagonistas.™ Mas isso negligenciar o alargamento do horizonte préprio da pesquisa em biblioteca, na qual a acumulagio dos livros faz recuar as fronteiras do tempo ¢ do espago ¢ permite a0 leitor compartlhar uma infinidade de olhares e experincias, Estabelecer o texto de Homero e construit a carta da Terra implicam, no fundo, operagses vizinhas: nivelar as variantes, confronté-las num mesmo espaco de visibilidade, fazer da critica formal dos documentos o instrumento da validagéo das informagées. A retificagio dos filélogos aparece como um Paradigma importante do trabalho intelectual em Alexandria, 0 tinico meio de estabelecer a verdade em dominios conjeturais. Porque é da selegio ¢ interpretagio das fontes que decorrerd a representacio de um pats distante ou de um acontecimento passado, fugindo a qualquer verificagao empirica. E, de fato, Eratéstenes apresenta seu empreendimento como “a retificagio dos mapas antigos”,!% da mesma mancira que Zenddoto.e Aristarco retificaram (diorthisi) as cépias antigas da Iliada © da Odistic Num nivel mais fundamental, 0 mapa helenistico, 0 texto homérico pontilhado nas margens com pictogramas eriticos, as “colecoes” de palavras, de citagdes e de objetos de saber sio outros tantos “méveis imutdveis”, termo pelo qual Bruno Latour designa 0 conjunto desses dispositivos visuais que fixam ¢ codificam informagoes pontuais e heterogeneas, permitem atualizé-las, combind-las, filtré-las ou completé-las, transmiti-las sob uma forma estivel. 0 Len pana exeneven “Transportar as coordenadas de longitude ou de latitude para um quadriculado tracado segundo as instrugdes de Prolomeu implica o mesmo tipo de tecnologia do intelecto que recopiar em rolos de papiros os signos diacriticas de Aristarco, ou reageupar em lista alfabética, tematica ou geogréfica, informagées recolhidas nos livros. De Eratéstenes a Estrabao, 0 mapa alexandrino é esse dispositivo que circula de um geégrafo para outro, como meméria do saber averiguado, mas também como espace muito concreto do trabalho geogrifico: verificar 6s célculos, completar o mapa, retirar dele os lugares que nfo existem, mo- dificar uma linha ou uma localizagio, acrescentar novas posig6es. Do mesmo modo, 0 texto de Homero, de Zenddoto a Aristarco, passando por Aristéfanes de Bizincio, € também uma forma de “mével imutivel”, em que cada fildlogo pode controlar, cortigir ou, a0 contritio, ratificar 0 trabalho de seus colegas. Quanto as “colecées” alexandrinas, elas vao irrigar, para o melhor como para 6 pior, oda literatura greco-romana ealimentar o grande rio das enciclopédias, da Antigiiidade tardia ¢ da erudigio moderna. Vai longe o tempo em que os intelectuais gregos podiam pretender estar oferecendo um saber inaugural, validado pela autoridade quase oracular de sua enunciacio, A biblioteca cria um espago de saber coletivo e evolut espago ¢ tempo ut6picos, onde os resultados de uns sio 0 ponto de partida dos outros, onde calculos ¢ enunciados podem ser desconstruldos, criticados, reduzidos a nada, ou, 20 contritio, validados, tornando-se assim fatos. A biblioteca, paradoxalmente, gera a desconfianca para com o escrito, a parandia de leitores obcecados pelas armadilhas da mentira e da ficgio dissimulada sob as aparéncias da historia. Pensemos em Polibio ¢ em Estrabfo a propésito dda credibilidade de Pfteas ou dos relatos de viagens & India de Megistenes, Defmaco ¢ Patroclo... O escrito nao é investido de uma autoridade intrinseca. Ele no imobiliza © pensamento, ¢ sim o dinamiza. A prépria acumulacao das opinides ¢ sua exposi¢ao suscitarZo o ceticismo, as vezes afirmado de mancira provocante: Ieiamos Hometo sem Zenédoto, tal 6 a mensagem implicita de Timo de Fliunce, quando ele aconselha o poeta Aratos a ler Homero em antigos exemplares e nao naqueles que softeram a retificagao alexandrina.!” Voltemos aos mapas antigos, de antes da retificacao de Eratéstenes, vitupera Hiparco!™* A vertigem cética como mal das bibliotecas? ‘O tratado alexandrino produz conhecimento a partir da exploragio das fontes escritas, Constituem-se assim bibliotecas disciplinares ¢ fileiras intelectuais, e cada novo tratado se abre com uma genealogia que é também Juma bibliografia: isso ¢ verdade tanto para os gedgrafos como para os mecinicos, 1 © rover ons maniorteat 105 médicos ¢ os astrénomos." F durante a leitura dos predecessores que se efetua a triagem entre os enunciados verdadeiros ¢ as inveng6es, entre os delirios mitogréficos ¢ as verdades cientificas: tribunal implacdvel da cigncia alexandrina, antecipado por cada novo autor mediante esforgos milltiplos para validar seus resultados, argumentar suas asserg6es. multiplicar seus aliados, invocar “autoridades” ¢ transformar assim suas conclusGes em “caixas pretas” impenetriveis. ‘Com isso, cada novo tratado reflete € condensa a biblioteca que tornou possivel. A critica das fontes, a exploragdo dos resultados adquitidos, © resumo dos sistemas anteriores reduzidos a algumas citagGes, oucras tancas insctigdes da leitura na propria escrita, com suas aproximagGes ¢ As vezes suas idias preconcebidas. O tratado torna-se, sozinho, a biblioteca disciplinar e sintetiza as aquisigdes anteriores, poupando assim ao leitor 0 trabalho de remontar a gencalogia do saber e de se reerir aos textos originais. Esse desejo de resumir, de ajuntar o saber, de extrat-lo da multiplicidade dos livros para dele fazer um contetido domindvel ¢ transmiss{vel toma formas miltiplas: 0s prolegdmenos criticos ¢ bibliogrificos dos geégrafos ¢ dos cartégrafos; 0 de- senvolvimento dos manuais didéticos, que tornam certos campos de saber acessiveis a leitores no especalizados sob uma forma resumida, sistematiaa- a geografias 0 desenvolvimento dos livros-biblioreca, que reutilizam fontes diferentes a servico de um projeto global: uma histéria ou uma mitografia universais, tas como a Biblioteca histérica de Diodoro da Sicilia ou a Biblioteca mitolégica do Pseudo-Apolodoro. Diodoro explica perfeitamente a I6gica que conduz, da grande biblioteca com milhares de livros, a0 livro tinico que resume essa biblioteca: uma das razbes de seu empreendimento é a dificuldade que en- contfam seus leitores, amadores de histéria, para ter acesso aos préprios li- vros.""° O exaustivo ¢ 0 universal, a Terra inteira e sua histéria numa sé obra: Diodoro da Sicilia € ainda uma testemunha de um fantasma bem alexandrino. da, reescrita: a gramética, a astronomia, a mecinica, a geomet Conclusito Alexandria ou a meméria do saber. Afinal de contas, a modernidade dessa biblioteca universal reside menos no sonho real de reunir todos os livros da Terra que nos procedimentos intelectuais usados pelos Icuados ¢ pelos sabios para dominar essa acumulagio ¢ tornar produtiva essa meméria absoluta. ‘A acumulacio dos livros suscitou a classficago, a emergéncia de uma ordem que cortespondia a uma organizagio sindtica dos campos de saber € n dos géneros literdrios. As Tabuas de Calimaco sio 0 mapa de uma biblioteca ideal... Mas o valor dos livros, concebidos como capital intelectual operando para sua prépria frutificagio, nfo podia se satisfazer com a utopia de uma meméria total: as separagdes temporais entre os antigos € os modernos, as fronteiras disciplinares, a discriminagao das fontes intivduzei a seletividade, ‘6 esquecimento e a perda como condigdes do progresso do pensamento ¢ do saber. Cada novo autor, resumindo 0s livros que leu ¢ remobilizando-Ihes as aquisigdes, preparava-Lhes assim a obsolescéncia, sento a ruina, Para desespero do leicor moderno, os eruditos alexandrinos fazem da referéncia as fontes uma arte da controvérsia: eles nos informam mais freqiientemente sobre a seletividade ca orientagio de sua leitura que sobre os textos originais que assim compilaram. AA biblioteca suscita 0 nascimento de livros que refletem ¢ condensam sua universalidade: estes tiltimos nos esclarecem sobre a expectativa de leitores ddesejosos de dispor de resumos, de sinteses, condensando o méximo de saber de livros num minimo de espaco. As doxogeafias seriam a causa do naufrégio da biblioteca filos6fica? A tentagio enciclopédica criada pela biblioteca tende a reificar os contetidos de saber e a torné-los méveis, traduaiveis, permutdveis, indepen- dlentemente mesmo dos textos originais ¢ dos autores que os produziram. A circulagao, a difusio dos enun c sua transformagio em novos escritos, sio uma das figuras mais importantes do trabalho intelectual em Alexandria: trabalho de reciclagem, em circuito fechado, cuja Idgica pode, ela prépria, ter contribuido para 0 esquecimento © a aromizacio da totalidade. jos edos saberes, eem seguida sua reutilizagio Christian Jacob n 2 13 4 16 7 18 19 20 a 2 2B 4 25 26 7 28 29 (© rover ons maiorecas Ver, por exemplo, Knore-Cetina ¢ Amann, 1990, p. 259-283, e a coletinea de Lynch € Woolgar, 1990. Ver 0 magnifico exemplo desenvolvide por Mercier, 1987, 1991, p. 25-34. Ver Jacob, 1992. © livto eis sobre a grande questio (histtiea ¢ cognit impresso permanece 0 de Fisenstein, 1991. Tufte, 1984 € 1990. Dagogaet, 1987. Para uma desctigéo etnolégica dos gestos obsigatérios do realismo, vero excelente artigo de Ashmore, Edwards Potter, 1994, p. 1-14. Vee.0 magnifico livro de Marin, 1989. Trystram, 1979. Ivins, 1953; Booker, 1979. Edgerton, 1991. Laour, 1988, p. 3-44. Mallard, 1991 ‘Ver o apsixonante exemplo dado por Bowker, 1994. ‘Agradego ao fordgrafo Stéphane Lagoutte por ter trado para mim estas fotos 1) da cinoticidade do Ver sua critica em Merchant, 1980. Parauuma andise muito foucaltiana desta criagio pel contabilidade dos pan6pticos, ver Miller, 1992, p. 61-86, e para uma iil compilagio das invengoes téenicas Tigadas a essas enumeragGes, ver Beniger, 1986 Ver abaixo, p. 68-72. Ver Serzes, 1993. 2. Ler para escrever: navegagdes alexandrinas Uma primeira versio deste texto, muito condensada, foi apresentada na abercura do colquio “Alexandria ou a meméria do saber”. Sua génese deve muito a mew ‘ensino na Universidade Johns Hopkins (Baltimore), de feereiro a abril de 1994, no ambito de um seminétio para graduates (Dept. of Classics). Agradeso aos cstudantes por sua atengio e pela qualidade dos debates que animaram. A redasio dafinitiva beneficou-se das condig6es privilegiadas de trabalho oferecidas pelo ‘Geary Cencer forthe History of Ansan de Humanities (Santa Monica, Califia), Agradeso a seu direwor, Salvatore Secs, pelo convite, ¢ 20 pessoal do Scholars Department e das Resource Collections por sua ajuda constante. Enfim, devo um reconhecimento amigo a Julia Annas, Luciano Canfora, Frangois Hartog, Claude Imbere, Krzysztof Pomian, Jacques Revel e Salvatore Seti, que aceitaram ler este me tteissugestes, Este trabalho é uma etapa intermedisria 290 Norse cm vista de um livro de conjunto sobre a erudigio alexandrina, no qual o dossié das referencias ¢ das fontes ser plenamente desenvolvido. Para noslimirarmos a algumas obras recentes, o ssencial de nossos conhecimentos sobre a Biblioteca de Alexandria é apresentado ¢ discutido por: Parsons, 1952; Peiffer, 1968; Fraser, 1972 (em particular, 0 capitulo 6: “Prolemaic Patronage: ‘The Mouseion and Library"); Canfors, 1986, 1993. O dossié consagrado & Biblioteca de Alexandria podera também ser visto em Préfice, n. 12, mar.fabt. 1989, p. 67-103. Os testemunhos antigos so, freqlentemente, ardios e patciais ou alusivos, ou mesmo fortemente reelaborados, recopiando-se, as veres, uns aos outros. Entre ‘0s mais sugestivos sobrea fundagéo da biblioteca, mencionemos a Carta de Arte, 9-10; Epifinio, bispo de Salamina de Chipre a partir de 367 d.C. (De ponderibus et mensuris, PG, XLVI, p. 252); Galeno, Commensare des epidemics (XVII, Le p. 606-607, Kilhn); Tzetzes, De comaedia (Kaibel, Com. Grace. Fragm., p. 19, Pb 20). A identificagio dos bibliotecitios alexandinos e sua sucessio nos sio co- nhecidas através de uma lista (lacunar) conservada no Pap. Oxyt. 1.241, col. Il Cavallo, 1988b, p. 38, usa mesmo, a propésito das bibliotecas helenistica, a ex- pressio “bibliotecas piblieas sem publico”, que convi palécio. reservar is bibliotecas de 6 se tratart, aqui, da biblioteca do palcio, endo da biblioteca que se encontrava no Serapeu de Alexandria, e que, segundo Epifinio, era chamada “a filha da pri reira” (op. cit p. 325). Ver Fraser, 1972, p. 323-324, Ver o esclarecimento de Fraser, 1972, 1, p. 324. Sobre as bibliotecas heleniticas: Canfora, 1986. Uma coletinea dos testemunhos antigos sobre as bibliotecas pode ser encontrada em Platthy, 1968. A auséncia de “sala de leicura” & acompanhada da auséneia de mobila specifica A iconografia antiga sugere que se podiaescrever sentado numa cadeira, 0 rolo de papiro nos joelhos. Uma estelafunerdtia ateniense,

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