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FUNDAÇÃO ARMANDO ÁLVARES PENTEADO | FAAP

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

ESCRITA CRIATIVA

Vinicius Odassi Soares

AS COISAS IMPORTANTES DA VIDA

São Paulo

2019

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Vinicius Odassi Soares

AS COISAS IMPORTANTES DA VIDA

Monografia apresentada ao Departamento de Pós-Graduação da


Fundação Armando Alvares Penteado, como parte dos requisitos para
aprovação no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Escrita Criativa e
para a obtenção do título de Especialista em Escrita Criativa.

Orientadores: Rodrigo Petronio e Thais Rodegheri Manzano

São Paulo

2019

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Vinicius Odassi Soares

AS COISAS IMPORTANTES DA VIDA

Monografia apresentada ao Departamento de Pós-Graduação da


Fundação Armando Alvares Penteado, como parte dos requisitos para
aprovação no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Escrita Criativa e
para a obtenção do título de Especialista em Escrita Criativa.

( ) Recomendamos exposição na Biblioteca

( ) Não recomendamos exposição na Biblioteca

Nota: _______________

São Paulo, ____ de _____________de____/____/_____

_____________________________________
Professor (a)

_____________________________________
Professor (a)

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Agradecimentos

Quero agradecer:

à Professora orientadora Thais Rodegheri Manzano


que com seu vasto conhecimento dos grandes clássicos e o amor pela literatura me influenciou a ser
cada vez mais apaixonado pela escrita,
que com suas críticas construtivas, palavras e elogios, pacientemente e de forma sincera e direta, me
deu confiança para destravar meu processo criativo e fazer fluir as ideias que teimaram em se esconder
dentro de mim;

ao Coordenador, Professor e Orientador Rodrigo Petronio


que como coordenador desta pós-graduação se esforçou muito para a criação e ajustes do curso e para
ajudar em minhas diversas dificuldades,
que como professor e orientador trouxe, desde a primeira aula, inúmeras teorias, indicações e
ensinamentos, abrindo um universo de conhecimento a ser estudado e aprofundado;

à Professora Deise de Abreu Pacheco por me ensinar o quão importante são as recordações e
memórias de minha vida em meu processo criativo e mesmo em momentos que a distância se fazia
presente me apoiou, incentivou e envolveu, extraindo alguma beleza em lugares que eu não sabia que
sequer existiam;

aos Professores Josélia Aguiar, Nelson de Oliveira, Annita Costa Malufe, Milton Hatoum, Juliano
Garcia Pessanha e Gisela Anauate Bergonzoni que contribuíram com pérolas que sempre serão
lembradas;

aos colegas desta turma que contribuíram enormemente com sugestões, risadas, paciência e críticas
construtivas, muitas vezes me dando confiança para continuar;

aos amados Lia, Luiz, Alexis, Davi, Victória e Lukas, que sempre foram meus grandes mestres na
vida, influenciando, mesmo que inconsciente, em meu desenvolvimento como pessoa e autor;

e à minha querida Lucimara por toda parceria e cumplicidade; por estar em mais esta jornada me
apoiando, ensinando, corrigindo e incentivando, por me ajudar a superar minhas limitações, me
aguentar, e ser minha estrela-guia.

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Dedicatória

Dedico este trabalho a todos aqueles que se dispõem a subir os degraus desta escada infinita.

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Resumo

Este trabalho apresenta um projeto de um livro de 10 contos com a temática de Rupturas de


paradigmas e reflexões quanto ao caminho da vida. O projeto inclui histórias tais como a superação
dos limites de um garoto de 8 anos, o encontro entre um cachorro solitário e uma formiga aventureira,
o jogo de cintura para encarar as dificuldades cotidianas de um pai de família, as perdas de entes
queridos, as causas e consequências de nos esforçarmos para fazer a coisa certa, a dificuldade de
comunicação em relacionamento amoroso, a saudade de quem se vai e a valorização da presença de
quem amamos, a indiferença, a ilusão da sanidade e o se abrir à vida.

Palavras-chave:
Ruptura, Ausência, Relacionamento, Descoberta, Saudade, Recomeço, Diferenças, Indiferenças,
Ilusão e Superação.

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Abstract

This paper presents a project of a ten short stories book with the theme of ruptures of
paradigms and reflections about the way of life. The book includes stories such as the overcoming of
the limits of an 8-year-old boy, the encounter between a lonely dog and an adventurous ant, the juggle
of a father to deal with the daily difficulties of his family, the loss of beloved ones, the causes and
consequences of striving to do the right thing, the difficulty of communicating in a loving relationship,
the longing for the departed and the appreciation of the presence of the one we love, In addition to
reflections on indifference, illusion of sanity and openness to life.

Key-Words:

Break, Absence, Relationship, Discovery, Missing, Restart, Differences, Indifference, Illusion e


Overcoming.

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SUMÁRIO

1. Introdução....….…….………….…...……….…………….…..…………………..….…11
1.1 Percurso Autoral .………...…………………..…………………….……...……11
1.2 Atlas do Projeto……………….…….…………….…..………………...……....14
2. Ideia e Narrativa………………………………….…….……..………………….….….39
2.1 Gênero, Estrutura e Premissa..……………………….…….…………………...39
2.2 Ideia Governante……………………………..……………...….…….…….…..39
2.3 Storyline…………………..……………………..……….….....…...…….…….40
2.4 Sinopse…………………..……………………..……….…….....…….……..…41
3. Atlas dos Personagens……………………………….…………………......…….……..45
4. Manuscrito da Obra………………………………….…………………..…...….....…...62
4.1. Medo de Voar …………………………………….…….…..……...…...…........62
4.2. Sem Tempo a Perder …………………………….…….…..……………....…...69
4.3. Kundumnumqué…………………………………....…….……..…………...…..73
4.4. Faz o Brócolis …………………………………..…….….…...…………….......81
4.5. Vinte Minutos ………………………………………..…….....…………….......92
4.6. Jogo de Cristal ………………………………………….…….…………….......95
4.7. Relógio de Bolso ……………………………………..…….…….…...……......99
4.8. Estes Caras …………………………………………….…….…………...……101
4.9. Zé do Boné ………………………………………….…….…….…...…..…….103
4.10. Sonho em Paris ……………………………………….…….…..……......…….107
5. Conclusão……………………………………………………….…….…….…..……...119
6. Referências……………………………………………………….…….….…......…….121

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Sumário de Figuras:

1.Medo de Voar ………………………………………………….……………..…………….…...14


Figuras 1 e 2 - Desenho animado Speed Racer
Figura 3 - Irmãos brincando de Tarzan
Figura 4 - Fita dos Beatles usada no passeio de carro
Figura 5 - Pequena faca usada para cortar o cipó
Figuras 6 e 7 - Cipó e garoto saltando em cipó.
Figura 54 - Ermão 1, Ermão 2 e o Passat usado no passeio…………………………..……45

2.Sem Tempo a Perder …………………………………………………………..………………...16


Figuras 8 e 9 - Puppy solitário em apartamento.
Figura 10 - Miga aventureira
Figura 55 - Miga (ponto na janela) e Puppy………………………………...…………..…47

3.Kundumnumqué………………………………………………………………..…….....…….….18
Figura 11- Irmãos brigando

4.Faz o Brócolis ………………………………………………………………...………………....18


Figura 12 - Mesa farta preparada por Luigi
Figura 13 - Brócolis
Figura 14 - Pai e filho se abraçando
Figura 15 - Os ingredientes e a pipoca perfeita
Figura 16 - Infarto de Luigi
Figura 56 - Luigi tocando viola……………………………………………………………50

5.Vinte Minutos ……………………………………………………………....…………………...22


Figura 17 - Post de Instagram
Figura 18 e 19- Reportagem do acidente
Figuras 20 e 21 - “Uma mão lava a outra”

6.Jogo de Cristal ……………………………………………………………...….………….…….24


Figura 22 - Cristaleira que desmoronou
Figuras 23 e 24 - Distância em relacionamento
Figura 25 - Separação
Figura 26 - Começo, meio e fim
Figura 27 - Os Amantes, de 1928 - René Magritte

7.Relógio de Bolso …………………………………………………………….………………….27


Figura 28 - Relógio de Bolso
Figuras 29 e 30 - Férias na represa
Figura 31 - Mão do neto sobre mão do avô
Figura 32 - Eucalipto
Figura 33 - Cobra verde
Figura 34 - A Persistência da Memória - de Salvador Dali.
Figura 57 - Vô Benício…………………………………………………………………….55
Figura 58 - Neto e irmão na represa……………………………………………………….56

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8.Estes Caras ……………………………………………………………………….………………31
Figura - 35 - Violinista no metrô
Figuras 36 e 37 - Boné azul “New York” e Juilliard School
Figura 38 - Seguranças do metrô
Figura 39 - A Sainte-Chapelle, Paris - França
Figura 59 - Segurança do metrô e George………………………………………………….57

9.Zé do Boné …………………………………………………………………….………………...33


Figura 40 - Zé do boné no meio da rua

10.Sonho em Paris …………………………………………………………………..…………… 33


Figuras 41 e 42 - Vivendo em uma bolha
Figuras 43 e 44 - Museus
Figura 45 - Metrô cheio de Paris
Figuras 46 e 47 - escadas do metrô de Paris
Figuras 48 a 50 - Metrô de Paris e elevador deste
Figura 51 - Bolha explodindo
Figura 52 - Doce sonho
Figura 53 - Sarah comendo sonho sentada na mureta da rua
Figura 60 - Sarah se escondendo do Sol em verão de Paris………………………………..58
Figura 61 - Antônio assistindo TV…………………………………………………………60

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Introdução

1.1 Percurso Autoral

Esta coleção de contos surgiu da necessidade de escrever narrativas, na maioria inspiradas em


minha própria vivência ou de pessoas próximas, que demonstrasse rupturas.

Todos passamos por situações na vida que causam experiências marcantes e, muitas vezes,
aprendizados que mudam o rumo da história que construímos. Os temas apontados nestes relatos
passam por questões que qualquer ser humano está sujeito a presenciar.

Para desenvolver estes textos, utilizei técnicas aprendidas em aulas em diversas disciplinas,
destacando principalmente as técnicas de (1) Cena Pristina, (2) a ut pictura poesis (poesia como
pintura e pintura como poesia), escrevendo a partir de lembranças, fotografias, criando personagens,
cenas, situações a partir dessa descrição de imagens, (3) os arquétipos de Jung, Sizígia (Animus-
Anima) – dualidade, em seu aspecto de “Coincidência dos Opostos” - mostrar uma característica
tensionando o ânimus até chegar ao oposto.

Abaixo descrevo o que inspirou, a dualidade que procurei explorar, o desenvolvimento e a


pesquisa utilizada nas narrativas criadas.

O texto “Medo de voar” foi inspirado em aventura que tive quando era uma criança de oito
anos de idade, conduzida pelo meu pai e acompanhado de meu irmão mais velho, nas matas da Serra
da Cantareira em uma manhã de domingo. No conto, o passeio dá oportunidade de superar o medo
quando o pai encontra um cipó que pode ser usado para balançar como Tarzan e incentiva o garoto a
se superar. A dualidade explorada neste conto foi medo e liberdade.

No processo criativo foi elaborada entrevista com meu pai, lembrando da história que ocorreu
quando tinha cerca de oito anos de idade. Também foi feito pesquisa de referências da época como,
por exemplo, desenhos animados, carro, mapa da região, o objeto “faca” e fotos de família.

Por outro lado, a narrativa “Sem tempo a perder” foi inicialmente elaborada como exercício
para a oficina do professor Nelson de Oliveira (Narrativas comparadas III), com uma proposta inicial
de escrever um miniconto (ou um poema narrativo) com o tema longevidade saudável e produtiva.
O/A protagonista devia ter duzentos anos ou mais (quanto mais, melhor), nas palavras do professor
Nelson. O texto foi adaptado para o manuscrito tirando a ideia futurista para se encaixar a este.

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No processo criativo de “Sem tempo a perder”, senti a necessidade de escrever sobre a
diferença entre seres que tentam aprender e buscar seus objetivos e os que apenas querem se divertir
no momento presente sem pensar em construir. Para isso busquei seres que pudessem, ou por
personalidade ou por imposição, ter características opostas. A dualidade explorada foi de estagnação
e busca.

Foi feita pesquisa referente a vida das formigas e dos cães, além de busca por imagens na
internet.

O texto “Kundumnumqué”, por sua vez, foi inspirado no conto “O Peru de Natal”, de Mário
de Andrade, que foi apresentado e estudado na Oficina de Criação I, do Professor Rodrigo Petronio,
e em algumas vivências familiares, em especial na lembrança de um dia em que, cansado de ouvir as
brigas dos filhos adolescentes, tento encontrar alternativas para trazer harmonia aos momentos em
família. A dualidade utilizada foi incapacidade e habilidade. Foi, também, elaborada entrevista com
familiares e conhecidos a respeito de vivências que inspiraram o conto.

Na narrativa “Faz o Brócolis”, a ideia surgiu com o infarto sofrido pelo meu pai, em julho de
2018, durante as férias deste curso de pós-graduação de escrita criativa, em almoço de domingo com
a família reunida, que me fez pensar da importância de estar próximo na vida de quem amamos.

O “Exercício de Anatomia” passado nas aulas da professora Josélia Aguiar (Elementos de


Não-ficção), no qual eu fiquei incumbido de ler e analisar o livro “O ano do pensamento mágico”, de
Joan Didion, foi de enorme contribuição para a escrita deste.

Além do exposto, foi feita pesquisa do prontuário médico do pronto socorro relacionado ao
infarto, buscas na internet a respeito de pacientes que sofreram infarto e entrevistas com parentes e
amigos que já se envolveram em situações semelhantes. A dualidade inspiradora usada para elaborar
este texto foi ausência e arrependimento.

“Vinte minutos”, no entanto, é uma história baseada em fatos reais, na qual entrei em contato
inicialmente pelo aplicativo Instagram, e depois aprofundei através de pesquisas na internet, a
respeito do Dr. Michael Shannon que quando pediatra salvou a vida de um menino recém-nascido,
Chris Trokey, em 1981. Chris se tornou um paramédico e trinta anos depois salvou a vida do Dr.
Michael Shannon após grave acidente de carro. A dualidade que utilizei foi causa e consequência.

O conto “Jogo de Cristal”, o primeiro elaborado desta coletânea, foi desenvolvido desde a
primeira Oficina de Criação desta pós-graduação e foi motivado pela queda da prateleira de uma
cristaleira que, ao tentar regular a porta desta, na manhã após uma discussão em casa, a prateleira se

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solta e desaba, quebrando todo um jogo de vinte peças de cristal que foram presentes de casamento
duas décadas antes. A ideia de que a quebra de cristais é sinônimo de renovação instigou a criação do
texto. A dualidade explorada foi fim e (re)começo.

A vontade de escrever o conto “Relógio de bolso” foi inicialmente provocada após aula de
Oficina Criativa I, do professor Rodrigo Petronio, em leitura de texto de sua autoria “O Carretel”, na
qual exemplificou como um simples objeto do dia a dia pode ser usado para trazer lembranças que
tem potencial para gerar um texto. A leitura do texto acima citado e as lembranças do campo
despertaram minhas próprias lembranças de infância. No entanto, apenas em exercício da aula da
professora Deise Pacheco (Dedé), sobre Cena Pristina, que esta narrativa começou a tomar forma e
foi materializada.

O texto se refere à dualidade presença e ausência estando intimamente ligado às minhas


lembranças de infância com meu avô. No processo criativo, foi feita entrevista com parentes (primos,
tios, irmãos e pais) que contaram sobre as experiências e aventuras vividas e sobre o personagem avô.
Também foram encontradas fotos da família e elaborada pesquisa de como era viver na roça nos anos
setenta/oitenta.

A inspiração para escrever “Estes caras” nasceu em viagem de metrô, na capital paulista, após
volta das férias em Paris, na qual me comparei financeira e socialmente a um musicista que após
apresentação de violino, ao pedir dinheiro aos passageiros, foi retirado do vagão pelos funcionários
do metrô. A diferença entre classes sociais sempre foi tema de grande incômodo para este autor.

Em “Zé do Boné”, o lampejo de escrevê-lo surgiu ao ver um homem que perambulava nas
ruas da zona norte de São Paulo e imitava um ônibus ao andar entre os automóveis chamando a
atenção dos pedestres e motoristas por atrapalhar o trânsito e fazer sons de buzinas e frenagens. A
dualidade explorada foi expectativa e realidade.

Por último, a narrativa “Sonho em Paris” foi motivada em viagem que fiz com minha mãe em
2016 para Paris e que representou grande mudança na personalidade dela. Escolhi a forma de e-mails
diários para contar a história inspirado nos ensinamentos vistos nas aulas das professoras Gisela
Anauate Bergonzoni (diário) e Josélia Aguiar (combinação de diário e relato de viagem).

Também aproveitei viagem de férias à Paris em 2019 para ajudar a complementar as


referências quanto ao local, hábitos, fotos, etc. Desta vez, procurei explorar a dualidade limitação e
liberdade.

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1.2 Atlas do Projeto

1.2.1. Medo de voar

Figuras 1 e 2 - desenho animado Speed Racer


Fonte: https://www.animeshd.biz

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Figura 3 - Irmãos brincando de Tarzan
Fonte: https://innovaservice.wordpress.com/2014/06/25/tarzan-e-o-balanco-das-realidades/

Figura 4 - Fita dos Beatles usada no passeio de carro em direção à Serra da Cantareira

Figura 5 - Pequena faca usada para cortar o cipó


Fonte: mercadolivre.com

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Figuras 6 e 7 - Cipó e garoto saltando em cipó.
Fonte: br.depositphotos.com
***

1.2.2. Sem tempo a perder

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Figuras 8 e 9 - Puppy solitário em apartamento.
Fonte: https://br.pinterest.com

Figura 10 - Miga aventureira


Fonte: Sitedecuriosidades.com

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1.2.3. Kundumnumqué

Figura 11- Irmãos brigando


Fonte: iStock

***

1.2.4. Faz o Brócolis

Figura 12 - Mesa farta preparada por Luigi

Fonte: https://naserracatarinense.com.br/
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Figura 13 - Brócolis
Fonte: https://pt.dreamstime.com/

Figura 14 - Pai e filho se abraçando


Fonte: http://jamilkauss24.blogspot.com/

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Figura 15 - Os ingredientes e a pipoca perfeita
Fonte: https://www.panelinha.com.br/

Figura 16 - Infarto de Luigi


Fonte: https://www.iviver.com.br/

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Tocando em frente O sabor das massas
E das maçãs
Almir Sater É preciso amor
Pra poder pulsar
Ando devagar É preciso paz pra poder sorrir
Porque já tive pressa É preciso a chuva para florir
E levo esse sorriso Todo mundo ama um dia
Porque já chorei demais Todo mundo chora
Hoje me sinto mais forte Um dia a gente chega
Mais feliz, quem sabe E no vai embora
Só levo a certeza Cada um de nós compõe a sua história
De que muito pouco sei Cada ser em si
Ou nada sei Carrega o dom de ser capaz
Conhecer as manhas E ser feliz
E as manhãs Conhecer as manhas
O sabor das massas E as manhãs
E das maçãs O sabor das massas
É preciso amor E das maçãs
Pra poder pulsar É preciso amor
É preciso paz pra poder sorrir Pra poder pulsar
É preciso a chuva para florir É preciso paz pra poder sorrir
Penso que cumprir a vida É preciso a chuva para florir
Seja simplesmente Ando devagar
Compreender a marcha Porque já tive pressa
E ir tocando em frente E levo esse sorriso
Como um velho boiadeiro Porque já chorei demais
Levando a boiada Cada um de nós compõe a sua história
Eu vou tocando os dias Cada ser em si
Pela longa estrada, eu vou Carrega o dom de ser capaz
Estrada eu sou E ser feliz
Conhecer as manhas Fonte: Musixmatch
E as manhãs

Fonte: https://www.letras.mus.br

Música tocada na viola por Luigi e acompanhada por Noah.

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1.2.5. Vinte minutos

Figura 17 - Post de Instagram


Fonte: https://www.instagram.com/?hl=pt-br

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Figura 18 e 19- Reportagem do acidente
Fontes: https://www.dailymail.co.uk/news/article-3025001/Paramedic-saves-doctor- burning-car-
wreckage-30-years-man-saved-born-premature.html
https://www.theepochtimes.com/doctor-saves-premature-baby-30-years-ago-unaware-hes-saving-
his-own-life_2943643.html

Fonte: https://br.freepik.com

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Fonte: http://www.frispit.com.br/
Figuras 20 e 21 - “Uma mão lava a outra”
***

1.2.6. Jogo de Cristal

Figura 22 - Cristaleira que as prateleiras desmoronaram


Fonte: Elaborada pelo autor

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Figuras 23 e 24 - Distância em relacionamento
Fonte: https://miriambarros.com.br/

Figura 25 - Separação
Fonte: darkroastedblend.com

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Figura 26 - Começo, meio e fim
Fonte: https://www.tricurioso.com/

Figura 27 - Os Amantes, de 1928 - René Magritte


“Eu creio que uma leitura contemporânea - e fadada ao desprezo do próprio René Magritte, afinal,
seria uma leitura onde nem os métodos (no sentido filosófico, ou seja, desprezando o contexto
histórico e os objetivos da obra como crítica e expressão social) do autor seriam respeitados - pode
ser feita na obra Os Amantes, de 1928. Se uma obra é imortal, ela o é por representar uma situação
eterna, cristalizada, ou por poder ser lida conforme novas coordenadas e ainda assim, ter uma
mensagem para expor.

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Por isso eu creio que esse quadro pode ser a expressão da falta de comunicação na ilusão da própria
comunicação, a conexão da modernidade líquida contrapondo a relação das velhas sociedades ditas
lentas, baseada numa responsabilidade mútua. Pois, notem, apesar do quadro mostrar um casal se
beijando, o beijo, a relação firmada, é interrompida (até mesmo evitada, pode-se dizer) pelos sacos
na cabeça de cada amante. São amantes líquidos. Amantes que não querem o obstáculo do outro
para obstruir seus rios tão ávidos por movimento. “
Fonte:http://lounge.obviousmag.org/hepatopatia_cronica/2012/02/os-amantes-de-rene-magritte---
critica-a-modernidade-liquida.html

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1.2.7. Relógio de bolso

Figura 28 - Relógio de Bolso


Fonte: https://br.freepik.com/

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Figuras 29 e 30 - Férias na represa
Fonte: foto do álbum da família do autor

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Figura 31 - Mão do neto sobre mão do avô
Fonte: https://br.freepik.com

Figura 32 - Eucalipto
Fonte: https://www.jardimdeminas.com/

)(#
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Figura 33 - Cobra verde
Fonte: https://portallagoaonline.com/

Figura 34 - A Persistência da Memória - de Salvador Dali.


Nos fala sobre a noção da temporalidade e da memória. “A memória é uma forma de marcar o
tempo, uma forma interna e subjetiva. O tempo da memória não é o mesmo do relógio comum: um
momento que passou há muito pode ser lembrado como algo recente, e o dia anterior pode parecer
como algo que aconteceu anos atrás”.
Fonte: https://coletivolirico.com.br/uma-analise-da-obra-a-persistencia-da-memoria-de-salvador-
dali/

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1.2.8. Estes caras

Figura - 35 - Violinista no metrô


Fonte: https://www.classicfm.com

Figuras 36 e 37 - Boné azul “New York” e Juilliard School, escola de música e artes cênicas em
Nova Iorque, nos Estados Unidos

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/17592254764804791/?lp=true

+!#
#
Figura 38 - Seguranças do metrô
Fonte: https://www.fetraconspar.org.br

Figura 39 - A Sainte-Chapelle, Paris - França


Fonte: https://www.obonparis.com/pt/magazine/sainte-chapelle

***

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1.2.9. Zé do Boné

Figura 40 - Zé do boné no meio da rua


Fonte: https://www.correio24horas.com.br/
***

1.2.10. Sonho em Paris

Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/haus/design/

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#
Fonte: https://zaphodbeeeblebrox.wordpress.com/2011/02/11/bolha-de-sabao/

Figuras 41 e 42 - Vivendo em uma bolha

Fonte: Elaborada pelo autor.

+"#
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Fonte: Elaborada pelo autor.
Figuras 43 e 44 - Museus por onde Sarah passou

Figura 45 - Metrô cheio de Paris


Fonte: https://dicasparis.com.br/2016/09/como-andar-de-metro-em-paris.html

+$#
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Figuras 46 e 47 - escadas do metrô de Paris

Figuras 48 a 50 - Metrô de Paris e elevador deste


Fonte: https://br.depositphotos.com/

+%#
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Figura 51 - Bolha explodindo
Fonte: https://pt-br.facebook.com/Desconhecidos.Fatos/photos/estourando-uma-bolha-de-sab%
C3%A3o/896120687108295/

Figura 52 - Doce sonho


Fonte: https://www.istockphoto.com/br/

+&#
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Figura 53 - Sarah comendo sonho sentada na mureta da rua
Fonte: Elaborada pelo autor.
***

+'#
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2. Ideia e Narrativa

2.1 Gênero, Estrutura e Premissa

Este projeto consiste em uma coletânea de 10 narrativas do gênero conto, de diversos


tamanhos e que, apesar de serem independentes entre si, têm em comum o tema “Ruptura” e exploram
decepções, frustrações, quebras de paradigmas, morte, superação de limitações, mudanças de
opiniões, de conceitos e de hábitos em que resultam nas experiências importantes da vida.

A cada ruptura uma nova realidade se forma e contribui para a formação do ser humano e a
história da humanidade, com todas as suas dores e alegrias.

2.2 Ideia Governante

As rupturas são parte da experiência pessoal de qualquer ser humano. O estouro da bolsa no
parto, o dente que nasce, a perda da virgindade, os entes queridos que se vão. Querendo ou não,
passamos por mudanças durante toda a vida até ocorrer o último suspiro que leva à outra grande
mudança, a passagem final.

+(#
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Algumas vezes escolhemos mudar, outras a vida impõe, como forma de crescimento ou
simplesmente como uma nova realidade. O aprendizado, tanto pela vivência pessoal, quanto pela
observação da experiência de terceiros, é uma opção.

Através de narrativas que mostram rupturas, estes textos sutilmente tem a pretensão que o
leitor reflita a respeito do tema.

2.3 Storyline

2.3.1. Medo de Voar

Aventura, ansiosamente esperada, de um garoto de oito anos de idade, na companhia do pai e


do “ermão”, em um programa só dos “corajosos” da família, traz grande lição para o resto da vida.

2.3.2. Sem Tempo a Perder


Encontro entre Puppy, um filhote da raça beagle, e Miga, uma expedicionária e aventureira
formiga, surge uma nova amizade e a troca de experiências a respeito de como encarar a vida, ter
objetivos e como utilizar o tempo disponível.

2.3.3. Kundumnumqué

Os malabarismos de um pai de família ao tentar criar harmonia familiar entre filhos


adolescentes.

2.3.4. Faz o Brócolis

Em um almoço de domingo com a família reunida, o patriarca da família sofre um ataque


cardíaco e seu filho Noah faz uma análise a partir das recordações de infância, se questionando a
respeito de estar perto dos pais antes que seja “tarde demais”.

2.3.5. Vinte Minutos

Um recém-formado e esforçado médico obstetra, contrariando os protocolos médicos, insiste


em seguir sua convicção, trazendo consequências inesperadas para sua própria vida.

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2.3.6. Jogo de Cristal

A queda de uma prateleira que sustentava um jogo de cristais, presente de casamento, traz os
anseios à tona mudando o rumo de um relacionamento de 20 anos de um casal.

2.3.7. Relógio de Bolso


Memórias de um neto relacionadas ao período de infância, na chácara da família, na beira da
represa no interior do estado, traz as emoções ligadas a figura marcante e inspiradora do avô.

2.3.8. Estes Caras


Encontro sutil e contrastante entre dois personagens de classes sociais, educação e sorte
diferentes entre uma viagem entre duas estações de metrô na capital paulista.

2.3.9. Zé do Boné
Viagem realizada pelo simpático e calado Zé do Boné através das ruas da capital paulista em
seu ônibus desregulado e barulhento que, quando chega no ponto final, descobre que nem tudo na
vida parece o que ele pensa ser.

2.3.10. Sonho em Paris


Sonho de uma vida inteira de conhecer Paris traz grandes descobertas e mudanças profundas
na vida de duas primas quando uma delas consegue realizar a viagem.

2.4 Sinopse

2.4.1. Medo de voar

O conto narra uma aventura, ansiosamente esperada, de um garoto de oito anos de idade, e
realizada na companhia do pai e do “ermão” mais velho, ocorrida em uma manhã de domingo, em
um programa só dos “corajosos” da casa nas matas fechadas da Serra da Cantareira, em 1982.

A expectativa de encontrar animais selvagens na floresta e de vivenciar uma grande novidade,


assim como os heróis da televisão, para contar aos amigos de escola acompanha os passos na subida
da selva.

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"
As dificuldades e oportunidades do passeio trazem a possibilidade de enfrentar um importante
desafio, possibilitando aflorar a coragem de vencer riscos, a superação de medos e inseguranças,
dando a chance de levar uma grande lição para o resto da vida.

2.4.2. Sem tempo a perder

Miniconto a respeito do encontro entre o pequeno cachorro de estimação, Puppy, solitário,


carente e entediado, da raça Beagle, que vive sem grandes aventuras em um pequeno apartamento, e
uma formiga, Miga, expedicionária, aventureira e empolgada em aproveitar cada momento da vida e
atingir seus objetivos, em busca de mel.

Na interação de poucos minutos, eles se conhecem e, comparando suas conquistas e vivências,


trocam experiências a respeito de como encarar a vida, ter objetivos e como utilizar o tempo
disponível.

2.4.3. Kundumnumqué

Após dia cansativo de trabalho, pai e mãe, jantam com os filhos adolescentes, tentando ensinar
bom convívio aos filhos que se provocam e brigam por quaisquer motivos.

A comparação das vivências dos pais, quando adolescentes, em suas próprias famílias, com
as vivências dos filhos, que estão em pé de guerra, levam à conscientização da fase da vida, para os
insistentes conflitos da “aborrecência”, e a uma solução inesperada para melhor harmonia familiar.

2.4.4. Faz o Brócolis

Narrativa que mostra a história de Noah, homem de meia idade, que apesar do desejo de passar
mais tempo com os pais idosos, por causa das obrigações profissionais, mora em cidade distante e
não dá a devida atenção a eles, os visitando apenas “quando possível”.

Em um almoço de domingo, com toda a família reunida na casa do patriarca, o pai, Luigi, que
é a presença forte na vida de Noah, sofre um ataque cardíaco e é levado ao pronto socorro da cidade
pelos filhos, Noah e o irmão, Marcos.

O pai é um sujeito que se preocupa com a família e gostaria que todos estivessem próximos.
Mesmo com a gravidade da situação, o patriarca estava preocupado com o almoço de domingo que
preparava, tentando agradar toda a família reunida.

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"
Em meio ao acontecimento Noah analisa a vida pregressa com o pai, lembrando dos
momentos de dedicação e carinho que sempre recebeu do pai. Ocorre a conscientização de Noah de
que o pai não vai durar para sempre e precisa de cuidados. Ele decide se mudar de cidade para ficar
mais próximo dos pais antes que seja “tarde demais”.

2.4.5. Vinte minutos

Narrativa que conta a história de um médico, Dr. Leopoldo, recém-formado, esforçado e


obstinado por fazer o que considera certo, mesmo indo muito além do que o protocolo médico ensina,
que insistentemente tenta salvar a vida de um bebê recém-nascido que não dá mais sinais de vida. A
insistência em seguir sua intuição traz consequências inesperadas para sua própria vida.

2.4.6. Jogo de Cristal

Miniconto que conta a história de um casal em um relacionamento de vinte anos que se esfria
passando a ter indiferença e iminência de acabar devido ao distanciamento.

A narrativa se passa em uma cena na qual o marido tenta ajustar a porta da cristaleira da casa
deles e, ao tentar regular o móvel, a prateleira se solta e cria a possibilidade de perder todas as peças
que estão no móvel, inclusive o jogo de cristais que foi presente de casamento há duas décadas.

Durante o esforço para tentar evitar o que parece estar iminente, eles fazem uma análise dos
momentos que tiveram durante a vida conjugal, das frustrações, das carências e dos desejos mais
profundos de cada um, tomando a mais dura decisão nos últimos anos a respeito da ruptura de um
ciclo que abre caminho para novas vivências.

2.4.7. Relógio de bolso

Relato lírico que conta as memórias do protagonista relacionadas ao período de infância


quando passava as férias escolares, de verão, na chácara da família, na beira da represa, no interior
do estado, com irmãos, primos, tios e outros familiares.

As lembranças narradas são as brincadeiras, passatempos, a exploração da vida no campo e o


relacionamento com o avô, figura marcante e inspiradora que deixou saudades e ensinamentos para
as gerações seguintes.

2.4.8. Estes caras

Miniconto que mostra o encontro sutil e o contraste entre dois personagens de classes sociais,
educação e sorte diferentes.

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"
George toca seu violino em locais públicos em busca de trocados e teve seu sonho de estudos
interrompido pelas dificuldades do cotidiano. Procópio, estabilizado financeiramente, não tem
grandes problemas na vida e observa as dificuldades de quem é menos favorecido pelas circunstâncias
da vida.

O contato ocorre em uma viagem de duas paradas de metrô, na capital paulista, após volta das
férias em Paris de Procópio que presencia a apresentação musical de George, em troca de algumas
moedas coletadas em seu boné azul escrito “NY”.

2.4.9. Zé do Boné

Esta ficção conta a viagem realizada pelo simpático e calado Zé do Boné no trajeto da linha
de ônibus Vila Rosa, nas ruas da movimentada capital de São Paulo, através do itinerário e dos sons
de seu ônibus desregulado e barulhento.

Durante seu passeio, ele se depara com as dificuldades de dirigir um velho e barulhento ônibus
nas ruas do bairro e nas movimentadas avenidas disputando espaço com ônibus enormes aos olhos
dos possíveis passageiros, pedestres e comerciantes. Quando chega no ponto final, descobre que nem
tudo na vida parece o que ele pensa ser.

2.4.10. Sonho em Paris

História de duas primas que se comunicam por e-mail diários:

(1) Sarah, mulher aposentada, que vive em uma “bolha” sem quase ter contato com o mundo
exterior, mas sonha em fazer uma viagem à Europa e conhecer Paris. Mora isolada em um condomínio
fechado apenas saindo para o cabeleireiro em um shopping de alto padrão. Ela imagina que o velho
continente é muito mais evoluído, sem problemas sociais, as pessoas são todas educadas e não há
pobreza. Quando chega à Europa, em viagem com a filha, Patrícia, se depara com uma série de
decepções. “Isso é o primeiro mundo?”. O estouro da bolha nesta história fica claro com a superação
das manias e do nojo que sempre teve de tudo, mostrando que nunca é tarde para aprender.

E (2) Joana que também sempre sonhou em conhecer Paris e por influência da viagem e das
experiências de Sarah reflete a respeito de sua própria vida.

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"
3. Atlas dos Personagens

3.1. Medo de voar

Fonte: elaborada pelo autor

Figura 54 - Ermão 1, Ermão 2 e o Passat usado no passeio

Ermão 1 - Protagonista

Caçula de dois irmãos. Mimado. Oito anos de idade. Tem o desejo de impressionar os colegas
de escola, em especial o amigo Leopoldo. Ansioso e agitado, almeja uma aventura que consiga
histórias para contar. Na teoria é corajoso, na prática irá descobrir seus limites. Adora os desenhos
animados de aventura, como Tarzan e SpeedRacer.

Papai

Calmo, zeloso e cuida dos filhos com todo carinho e dedicação. Sempre foi aventureiro e quer
ensinar aos filhos a serem também, a enfrentar os medos e a superar desafios. Cresceu no sítio e,
quando era moleque, pulava das pontes e se balançava em cipós mergulhando no rio da cidade.

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#
Credita sua característica aventureira à sua liberdade de ter morado na roça e se aventurado com
amigos, irmãos e animais nas florestas.

Ermão 2 (mais velho)

Preguiçoso, desobediente com a mãe e dorminhoco. É protetor do irmão mais novo. Tem dez
anos. Sempre enfrenta os perigos primeiro e não deixa o irmão se arriscar sem ele tentar antes. É
calmo e racional. Adora aventuras, seleção brasileira de futebol e o Tarzan.

Mamãe

Professora de escola primária. Tem um papel superficial na história. Não vai na aventura pois
é apenas para os corajosos, mas acaba possibilitando, sem ter consciência, que aconteça a experiência
mais relevante graças ao seu carinho e zelo.

Ermão 1 (caçula) Papai Ermão 2 (mais Mamãe


velho)

Ermão 1 Descoberta/ Herói Admiração/ Colo/


(caçula) Exibição/ Inveja Mimado
Medo

Ermão 2 Proteção Inspiração/ Distância


Espelho

Papai Incentivo Orgulho

Mamãe Mimar / Afeto Segurança Afeto

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"
3.2. Sem tempo a perder

Fonte: https://br.pinterest.com

Figura 55 - Miga (ponto na janela) e Puppy

Puppy

Filhote da raça canina Beagle, de cores branca e bege, que vive em um apartamento de noventa
metros quadrados e quase não tem contato com outros seres, exceto a empregada que arruma a casa
de forma apressada, o alimenta e vai embora, além das visitas esporádicas da dona que está sempre
viajando e quase não fica em casa. Puppy está sempre entediado e não tem com o que se distrair.

Miga

Formiga segura, aventureira, com atitude e expedicionária que está em busca de mel para levar
para sua grande família. É formada em engenharia civil. Adora se gabar dos altos conhecimentos, dos
cargos que já ocupou, das grandes realizações que obteve e da estátua que construíram em sua
homenagem pelos grandes feitos.

Ela aproveita cada momento que tem sendo produtiva e buscando atingir seus objetivos.

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#
Puppy Miga

Puppy Carência e solidão. Amizade, diversão, frieza, complicado e


inveja.

Miga Carente, superficial, desocupado e Eu sou foda!


avoado.
Preciso me superar!

3.3. Kundumnumqué

Pai

Pai de família que fica buscando alternativas para ter harmonia em casa. Odeia as brigas e
provocações que os filhos adolescentes fazem entre si. Está sempre recordando as vivências com os
irmãos e os pais. Tenta entender se era briguento quando criança e adolescente.

Carmem (Mãe)

Mãe que trabalha em grande escritório de advocacia e sente frustração por não poder passar
mais tempo com os filhos. Acredita que sua ausência é responsável pelo excesso de brigas dos filhos.

Lucas

Pré-adolescente que não perde a oportunidade de provocar a irmã mais velha. Não gosta de
estudar e é bagunceiro. Adora esportes e assistir TV. Não gosta de tomar banho pois sempre é na hora
mais legal e importante do desenho animado.

Gi

Adolescente com os hormônios à flor da pele que não tem a mínima paciência com as
provocações do irmão caçula. De temperamento forte não lida bem quando é contrariada. Acha a
amiga da escola mais importante do que o irmão.
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"
Pai Carmem Lucas Gi

Pai Gostaria de ter mais Companheira Divertido, temperamental x princesa


jogo de cintura e alegre e
conseguir conduzir bagunceiro
melhor os filhos

Carmem Admiração odeio não ter Será um Orgulho e espelho


tempo grande
homem

Lucas Ainda herói Brilho nos discurso: “Eu “meninas”/


olhos, mimo sou o cara”
ciúme
real: inseguro

Gi “Chato e Proteção/ “pivete” Será que sou legal, bonita


controlador” / para admiração e inteligente? O que será
quem pede socorro que os outros pensam de
mim?

3.4. Faz o Brócolis

Noah

Homem de quarenta anos de idade, oitenta quilos, um metro e oitenta de altura. É pai de dois
filhos (uma garota de vinte anos e um rapaz de dezoito) e casado há vinte e três anos com Júlia.

Pondera para agir e falar, não gosta de ser impulsivo e tomar decisões importantes de forma
rápida. Tranquilo por fora e nervoso por dentro.

Na relação com o pai, sempre teve dificuldade de se abrir na adolescência, considerando esta
característica uma falha em sua personalidade. Gostaria de ter tido mais afinidade, amizade e
companheirismo com o pai.

Após o infarto do patriarca, quer dar apoio e cuidar mais dos pais que estão envelhecendo.
Percebe, também, como é importante aproveitar os momentos com quem ama antes que seja tarde
demais.
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"
Luigi

Fonte: elaborada pelo autor.

Figura 56 - Luigi tocando viola

Aposentado, setenta anos de idade, setenta quilos e um metro e oitenta de altura, que vive com
a esposa em cidade do interior de São Paulo. Gosta de vestir roupas leves e largas.

Os pais trabalhavam na roça. De infância pobre, cresceu no sítio e teve muitas aventuras que
tem orgulho de contar aos filhos e netos. Na escola, não fazia questão de ser um bom aluno. Se
esforçou muito na vida adulta para dar uma situação financeira confortável aos filhos.

Casou aos vinte e um anos de idade com a única esposa (Lilian), quando ela engravidou do
primogênito. Teve ao todo, três filhos homens. Quando se tornou pai passou a levar a vida a sério e
obteve boa estabilidade financeira e profissional. Considera a família como sua motivação maior de
vida.

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#
Sempre esteve próximo dos filhos e sonhava em ter todos, com suas famílias, morando em
sua casa. Para isso construiu uma casa muito grande, mas se frustrou, pois todos seguiram suas
próprias vidas.

Tem boa relação com os familiares. A vida inteira tomou as decisões da casa, característica
que resultou em uma esposa extremamente dependente e com dificuldade de tomar qualquer decisão.

Já teve algumas discussões com as noras, mas se arrependeu amargamente, pois poderia ter
afastados os filhos. Hoje prefere engolir sapos ou deixar passar a ter uma discussão com alguém da
família. Prioriza muito a união familiar.

Após se aposentar, se dedica a aprender viola caipira, fazer algumas atividades físicas, ficar
com a família quando estes podem em finais de semana, feriados e férias. Não tem grandes ambições.

Tem como grande prazer pescar e passar as tardes vendo o sol se pôr na chácara da família na
beira da represa no interior de São Paulo. Mas só faz esta atividade esporadicamente por causa da
distância e do desejo da esposa em ficar em casa.

Sua maior diversão é quando a família toda se reúne em sua casa para passar o fim de semana,
ocasião em que prepara verdadeiros banquetes de café da manhã, almoço e jantar.

Não gosta de ler livros, prefere atividades manuais, assistir documentários, jogos de futebol e
shows de viola caipira.

Cético em relação às religiões sente atração pelo esoterismo, mas apenas de forma superficial.
No fundo tem medo que a esposa mergulhe em um mundo que ele não possa controlar.

Vai aprender a se cuidar melhor em termos de alimentação, bebida, estilo de vida. E vai
adquirir a consciência de que a vida é frágil e que a qualquer momento não estaremos mais com quem
amamos.

Acredita que faz a pipoca perfeita e gosta de ensinar a todos as etapas minuciosamente.
Compara a elaboração da pipoca ao carinho que se deve ter com qualquer outra atividade da vida.

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Marcos

Filho caçula de Luigi. Está sempre desconfiado achando que os outros querem tirar vantagem
de tudo. Elabora muitas teorias de conspiração em sua cabeça.

Não costuma se alimentar bem, fuma charuto e sempre que decide fazer alguma atividade
física é radical nas primeiras semanas, mas depois desiste pois fica muito cansativo e entediado.

Pensa em mudar para o Canadá e não tem apego a ficar morando próximo à família.

Mãe (Lilian)

Professora aposentada que adora ler romances policiais e assistir séries e filmes de terror.
Introvertida e dedicada a suas atividades não costuma passar muito tempo com a família mesmo
quando estão todos reunidos.

André

Irmão mais velho dos três e que sempre foi mais independente. Pai dos dois netos caçulas de
Luigi. Mora na mesma cidade dos pais e costuma estar mais próximo deles, em relação aos outros
dois irmãos, vendo-o ao menos três vezes por semana.

Julia

Esposa de Noah. Foi morar com Noah na casa de Luigi e Lilian quando tinha dezoito anos,
grávida. Ela acabou adotando o sogro (Luigi) como pai quando o próprio pai faleceu quando ela tinha
vinte anos. Tem muito carinho pelos sogros.

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Noah Luigi Marcos Mãe (Lilian) André

Noah autocobrança/ admiração/ Parceiro / distância/ Admiração /


gratidão afinidades dissemelhança
insatisfação/ estagnação
falha

Luigi saudade solidão saudade companheirismo segurança

Marcos admiração admiração e afinidade


gratidão

Mãe mimar dependência mimar introversão orgulho


(Lilian)

André amizade cuidar / amizade autocobrança /


inspiração insatisfação/
segurança

3.5. Vinte minutos

Dr. Leopoldo Couto de Magalhães

Médico recém-formado que escolheu a faculdade de medicina para agradar a mãe. Se


encantou nas aulas de anatomia com a possibilidade de trazer os bebês à vida. Extremamente
perfeccionista, autocrítico e exigente com seus resultados sempre foi o primeiro aluno quando
estudava na melhor faculdade de medicina do país.

É considerado um doutor dedicado, ético e confiável pelos colegas de trabalho. É muito


respeitado também pessoalmente por seu aspecto altruísta e solidário.

Paramédico Leopoldo Couto de Magalhães

Grato por estar vivo. Escolheu a profissão de paramédico por ter sua vida salva no parto depois
de muito sacrifício há muitos anos.

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3.6. Jogo de Cristal

Marido

Homem de quarenta anos de idade, oitenta e cinco quilos, um metro e oitenta de altura, é pai
de dois filhos (uma moça de vinte anos e um rapaz de dezoito) e casado há vinte e três anos.
Descendente de italianos e espanhóis.

Funcionário da mesma empresa há vinte anos. Sente frustração e grande vontade de mudar de
carreira e aprender novo ofício que pudesse ter mais desafio e ser mais prazeroso que o atual. Sente
que deveria ter sido artista e não escolhido o ofício por salário.

Sempre teve o hobby de praticar esportes, até machucar o joelho o que reduziu de forma
significativa suas possibilidades de diversão nos esportes, fato que aumenta sua frustração atual e
aumentou seu peso em treze quilos.

Pondera para agir e falar, não gosta de ser impulsivo e tem dificuldade de tomar decisões
importantes de forma rápida.

Tranquilo por fora e nervoso por dentro. Sempre sentiu atração pelas filosofias orientais e
praticou meditação por muitos anos, reflexo de sua confusão mental interna.

Esposa

Empresária, bem-sucedida, de uma empresa de informática que consome suas energias. Gosta
de usar o final de semana e as horas vagas para sonhar e programar viagens pelo mundo, que não
realizou, uma grande frustração.

Aos seus trinta e sete anos, com um metro e sessenta e cinco de altura e cabelos encaracolados
castanhos, tem orgulhos das sardas.

Pessoa direta sem papa nas línguas, extrovertida e não guarda para depois o que pode falar
agora. Impulsiva em suas decisões, mas nunca se arrepende.

Marido Esposa

Marido insatisfação solidão e carência

Esposa solidão e distância vazio

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3.7. Relógio de Bolso

Vô Benício

Fonte: elaborada pelo autor.

Figura 57 - Vô Benício

Patriarca de oitenta e cinco anos com seis filhos (três mulheres e três homens), doze netos e
alguns bisnetos. Viveu toda a vida no campo onde tinha um sítio e criava gado. Nunca teve uma
situação financeira confortável. Os filhos (com as respectivas famílias) se reúnem nas férias escolares
na propriedade que todos têm em comum na beira da represa de Jurumirim, interior do estado de São
Paulo, ocasião que vô Benício consegue ver todos seus descendentes.

Cansado da vida e viúvo, pensava mais na passagem do que nos anos que virão. Pensa em
como vai morrer e inveja os amigos que já partiram.

Tem um tique nervoso de bater as pontas dos dedos na mesa de forma ritmada.

Parou de fumar e de beber quando o primeiro filho homem nasceu para dar exemplo, o que,
infelizmente, não ajudou nos hábitos da maioria dos filhos.

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#
Neto

Fonte: elaborada pelo autor.

Figura 58 - Neto e irmão na represa

Saudoso e nostálgico sente falta das experiências vividas nas férias em que passavam na
chácara na presença do avô.

Vô Benício Neto

Vô Benício Orgulho

Neto Admiração e saudade

3.8. Estes caras

Dr. Procópio

Advogado criminal bem-sucedido, com a situação financeira estável que permite viagens para
Europa duas vezes por ano. Casado e sem filhos.

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George (Violinista)

Fonte:

Figura 59 - Segurança do metrô e George

Músico, vinte e três anos, magro, pai de uma menina de três anos, solteiro. Dá oitenta por
cento do que recebe à mãe de sua filha em forma de pensão, quando consegue.

Abandonou a bolsa de estudos que conseguiu na Juilliard School em Nova York por causa da
mãe doente no interior do nordeste do país. A mãe veio a falecer alguns meses depois. Não conseguiu
recuperar a bolsa.

Toca violino nas estações de metrô e nas praças de São Paulo em troca de moedas.

Sonha em ser descoberto como talento musical e voltar a estudar ou participar de uma
orquestra.

Procópio George

Procópio Minha vida é muito boa Dó. Inveja por ser músico

George Mão de vaca. Inveja por ter dinheiro Otimismo. Mas foi azarado

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3.9. Zé do Boné

Zé do Boné

Rapaz de trinta e três anos, negro, um metro e setenta e cinco de altura e sessenta e três quilos.
Usa sempre boné vermelho desbotado. A barba é rala.

Não conheceu o pai. A mãe foi embora. Já trabalhou como motoboy e motorista de caminhão
e de ônibus. Sofreu acidente de moto que causou grande trauma em sua vida. Nunca mais andou de
moto e só quer “dirigir” seu ônibus pelas ruas da cidade. É calado, os olhos estão sempre arregalados
e não importa o que aconteça está sorrindo.

Não gosta de ficar trancado em sua “casa” pois não pode dirigir.

A relação com os “passageiros” é de querer servir e ajudar sempre. Não entende o porquê de
os passageiros não subirem em seu ônibus, mas está sempre disposto a levar qualquer um em sua
loucura.

3.10. Sonho em Paris

Sarah (Significa "filha do rei", "princesa" ou "dama")

Fonte: elaborada pelo autor.


Figura 60 - Sarah se escondendo do Sol em verão de Paris

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Idade: não fala para ninguém. E ninguém pode comentar sobre este assunto na frente dela (63
anos). Foi a caçula entre as primas e irmãos.

Seu peso, também não comenta, 55 kgs, 1,60 m de altura. Rosto em formato triangular, pele
clara. Não toma sol, pois envelhece e dá manchas. Cabelos loiros, olhos azuis, óculos de gata que não
sabe onde estão, mas está sempre em cima da própria cabeça.

Quando aluna sempre foi uma das melhores da classe, e a mais bonita, nas palavras dela.
A mãe dela sempre dizia que a irmã mais velha era o mais inteligente e ela era a mais bonita.
Professora aposentada de história. Quando trabalhava em escola pública em bairro de classe
média de São Paulo, algumas vezes voltava para casa chorando, pois os alunos adolescentes a
chamavam de velha ou gorda.

Viúva de Jonas, sempre foi mantida e dependeu dele para tudo. Após a viuvez, a filha Patrícia
se mudou para morar com ela.

Não tem amigos. Só tem vida social com a família e a cabeleireira (quando vai ao salão).
Vive em condomínio fechado de alto padrão em São Paulo.

Manter as aparências é muito importante. Obrigou os filhos a fazerem primeira comunhão e


eucaristia por medo do que a família de católicos fosse pensar caso eles não fizessem.
Introvertida, adora fazer palavras cruzadas, assistir novelas, ler/assistir livros/séries de
suspense. Está sempre chique e maquiada.

Sonha em conseguir rejuvenescer. Adora ser elogiada pela beleza (e inteligência).


Não gosta de viajar, pois sai da rotina, mas quer conhecer Paris, pois acha que esta é a cidade
mais bonita do mundo. Acredita que deveria ter nascido na Cidade-Luz.
Não come nada que possa engordar (principalmente açúcar e alimentos com farinha) há 20
anos.

Sarah é uma pessoa superficial e nervosa, preocupada com o que os outros vão dizer. Sua
vaidade exagerada será reduzida drasticamente após perceber que Paris não é cidade perfeita que
esperava e que tem diversos problemas sociais. Ocorrerá a superação das manias por ter visitado outro
país e saído do casulo. Passa a ter mais autoconfiança, ser mais autônoma e querer aproveitar a vida
e aprender.

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Joana

Prima de Sarah. Tem 64 anos (um ano mais velha que Sarah). Casada com Antônio (dez anos
mais velho). Sempre morou em Piedade, interior do estado de São Paulo.

Pessoa religiosa. Vai à missa todos os domingos sem falta. Não viaja nem saí da cidade, em
grande parte por causa do marido.

Casou com o marido iludida pela segurança que um homem de dez anos mais velho
demonstrava, no entanto, ela que sempre o sustentou.

Falante, faz a pergunta para quem está conversando, apresenta alternativas para a resposta e
escolhe a resposta, sem deixar o outro responder.

Patrícia

Filha única de Sarah. Independente, advogada, gosta de viajar e sempre insistiu para a mãe
acompanhá-la em uma viagem para a Europa. Se sente responsável pela mãe depois que o pai faleceu,
se mudando para a casa dela.

Antônio

Fonte: Getty Images


Figura 61 - Antônio assistindo TV

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84 anos. Quieto. Já desistiu de dar sua própria opinião à mulher, pois ela não permite que ele
fale muito. Nunca gostou de trabalhar e nunca parou no mesmo emprego por muito tempo. Vive às
custas de Joana.

Sarah Joana Patrícia Antônio

Sarah vaidade amizade e amor companheira


verdadeiros

Joana amizade e amor frustração dependência


verdadeiros emocional

Patrícia Cuidado responsabilidade

Antônio muleta

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4. Manuscrito da Obra

4.1. Medo de voar

Domingo e eu estava acordado desde às cinco horas da manhã. Só íamos sair às oito. Rolava
na cama esperando o alarme do rádio-relógio do quarto de papai tocar.

Cansado de ficar no escuro, acendi o abajur.

- Que horas são? - meu irmão, dividindo o quarto comigo no sobrado de dois
dormitórios, perguntou.

- Seis.

- Ermão, apague a luz, estou dormindo - disse com a boca meio tapada pelo colchão.

- Tá bom ermão - obedeci contrariado e arrependido, voltando para o escuro.

Passei a experimentar grudar a língua no céu da boca e puxar para baixo fazendo sucção. Com
a língua solta fiz um estalo agudo e baixinho. Gostei do som. Fiz de novo e desta vez, fazendo bico,
saiu grave. Olho para ele e está imóvel. Tudo sobre controle. Poderia fazer uma música com esta
variedade de sons que se pode produzir. Produzo três sons em escala decrescente de tonalidade e já
estava treinado o suficiente para mostrar a todos quando acordassem.

- Ermão! - mais uma reivindicação veio da cama do lado e colocou meu lado artístico
no silêncio.

Resolvo ir para a sala para o dorminhoco parar de protestar. Como alguém consegue dormir
em um dia tão importante? Fechei a porta para isolar a luz. Já tinha recebido muitas reclamações.

Liguei a TV e estava passando Speed Racer, meu desenho favorito. O episódio era na selva.
Ele saltava com o carro e voava por cima das árvores de um penhasco. Adorava o design do carro
Mach 5. A cada vinheta do desenho, depois das propagandas, tentava desenhá-lo em meu caderno,
mas era muito rápida. Rabisquei o que consegui. Separei para mostrar assim que acordassem. Mamãe
sempre fala “que lindo!”. Desejei sair logo para nossa excursão.

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Já havia esperado a semana toda por este dia, mas estas horas finais eram as piores. Uma
grande aventura nas palavras de papai. Eu ia ter muita história para contar aos meus amigos na aula
de segunda. O Leopoldo ia arregalar os olhos.

Escuto a tão esperada música e pulo do sofá. Até que enfim. Corro para o quarto deles e entro
sem bater, esquecendo da última bronca por entrar sem avisar.

- Seu irmão já acordou? - mamãe pergunta.

- Está na cama ainda com a cabeça coberta.

- Acorde-o. Mas devagar para não assustar.

Saio em disparada pelo corredor e, ao chegar em nosso quarto, abro a porta de uma só vez.
Ele estava sentado na cama coçando os olhos.

- Ermão, mamy falou para você escovar os dentes. Vamos sair logo.

Chegam na sala e estou pronto. Camiseta e short do uniforme do time do Brasil, meia
comprida de futebol e tênis kichute com o cadarço na canela amarrado meio frouxo. O uniforme
completo foi presente de véspera da copa do mundo de 82. Meu tio disse que vamos ganhar este ano.

Ela prepara o café da manhã enquanto papy vai tomar banho para acordar. Demorou mais do
que o normal. Por mim nós nem comíamos, íamos direto para o carro. Vamos demorar uma hora para
chegar lá.

Pão com manteiga e chocolate quente coado. Odeio nata no leite. Ela coloca em nossas
mochilas sanduíche de presunto e suco Tang de maracujá como papai tinha pedido, pois vamos
demorar para voltar. Papai ganha o mesmo, mas em dobro.

- Vou colocar também uma laranja para cada. É bom comer uma fruta - ela diz e coloca
uma pequena faca de cabo branco com um buraco na parte de cima. Enrola em um
pano para não machucar ninguém. O pano seria a mesa para a parada para o
piquenique.

Ele reclama: “a faca está sem corte, mas dá para descascar as laranjas”. Ainda bem. Adoro
laranja.

Como rápido o pão enquanto mamãe amorna o chocolate. Bebo de uma só vez e fico
esperando todos acabarem.

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- Se cuidem e tomem cuidado - recebemos um beijo cada na cabeça.

- Sim senhora - respondi como aprendi na escola.

- Não me chame de “senhora”. Me chame de “você” - corrigiu a vaidosa - Eu sou jovem


- complementou.

Ela ia corrigir provas e preferiu ficar. Era uma aventura só dos homens da casa, ela disse.

Sou o primeiro a entrar no Passat branco. Tudo pronto. No toca-fitas a eterna fita cassete
tocando All You Need Is Love. Saímos em direção ao norte da cidade.

Nós perguntamos algumas vezes se faltava muito para chegar e pacientemente papai ia
respondendo “É logo ali”. Depois de dez respostas idênticas chegamos ao pé da Serra da Cantareira.
Estacionamos o carro no acostamento e entramos na selva.

Talvez víssemos um macaco, uma cobra ou até mesmo uma onça pintada. Índio não existe
nesta serra, disse o chefe da expedição.

Tinha receio, mas sabia que com ele estávamos seguros. Afinal, cresceu no sítio e sabia tudo
de bichos. Uma vez, fugiu do boi bravo e pulou a cerca da fazenda do seu Nicolau e da outra vez
enfrentou o cachorro preto com pedaço de pau.

Se aparecesse uma cobra, tenho certeza, daria um jeito. “Eu sou bicho do mato”, repetia
sempre. Ele deu um pau para cada um de nós e disse: “se aparecer algum bicho perto dá uma paulada”.

Caminhamos por cerca de meia hora mata adentro subindo a serra. Papai foi amarrando
pedaços de barbantes nas árvores para nos guiar na volta. Em alguns pontos, o tapete de folhas secas
era alto. Afundávamos as pernas até o joelho.

- Silêncio - disse olhando para copa de uma árvore.

- O que foi? - questionou meu irmão, procurando por algo.

Olhei em sua direção com os olhos arregalados. Papai apontava para cima. Era um pássaro
com um bico enorme fazendo um som engraçado. Eu já tinha o que contar para o Leo. Ele conhecia
os nomes dos pássaros. É um tucano-do-bico-verde.

Depois de admirar a estranheza da ave, e esta voar, continuamos a caminhada.

Andamos por mais uns vinte minutos e ele parou novamente. Ficou olhando para outra árvore
perto de um barranco de uns três metros de altura. Ainda bem que não caímos.
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"
- Outro pássaro? - o irmão perguntou, tentando enxergar contra o sol de meio dia.

Fiquei procurando e nada de cobra ou macaco.

- Não - respondeu sem dar mais informações - É uma pena, se tivesse um jeito - pensou
em voz alta, deixando os filhos mais curiosos ainda e continuou olhando para a árvore.

- O que você quer fazer? - meu irmão perguntou, interrompendo a meditação do


mandachuva.

- Esta árvore está na posição perfeita para vocês balançarem em um cipó - respondeu
com brilho nos olhos de moleque de trinta e três anos.

- Como o Tarzan? - perguntei imaginando a cara do Leo no momento em que eu


contasse.

- Sim, mas precisávamos de uma serrinha para cortar para poder balançar, está preso à
raiz.

Ele puxou algumas vezes o galho preso na raiz tentando soltar, mas fracassou. Pendurou-se e
constatou: “É bem firme lá no alto”.

Lamentei, invejando as histórias dele moleque. Pulava da ponte para mergulhar no rio. Saltava
de árvores. Roubava goiaba na árvore do vizinho e fugia de tiro de espingardinha de chumbo. Caia
do cavalo sem sela. Caçava galinhas. Pescarias. Guerra de mamonas ou de cocô de vaca. Desta última
parte eu não tinha inveja. Ele sempre fazia questão de contar as aventuras e como se divertia.

Não era desta vez que ia conseguir saltar como o Tarzan.

- E a faquinha da laranja - meu irmão pergunta.

- Precisava de uma serra. Esta pequena faca é muito fraquinha e está meio cega, vai
quebrar. O galho é grosso.

Abriu a mochila. Desenrolou o pano sem muita esperança e ficou a analisar de um lado para
outro. Completou: “deixa eu tentar”.

Mediu a altura com a palma da mão, olhando por onde passaria o galho e bateu algumas vezes
com força com a lâmina frágil. Levantou a sobrancelha. Fez bico com a boca para o lado esquerdo e
continuou batendo no grosso cipó.

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- Acho que pode funcionar - e continuou por meia hora, batendo com a ferramenta,
conseguindo apenas um quarto do necessário para cortar a madeira - mas não vai ser
fácil - completou.

Sentou na rocha onde estávamos descansando e disse “Vamos comer”. Olhou para a rocha e
para lâmina e ficou a raspá-la por uns dez minutos. Passou o dedão na lâmina e deu a impressão de
que ia se cortar.

Depois de comermos os sanduíches e bebermos os sucos, começou novamente a cortar e,


quinze minutos e muito suor na testa mais tarde, termina.

- Quem vai ser o primeiro?

Nós nos olhamos procurando um voluntário.

- Eu vou testar com o meu peso antes de vocês irem. Se aguentar comigo, aguenta com
o de vocês. Vou colocar o pé neste nó do galho para eu não escorregar e segurar bem
firme.

Ele puxou o cipó com força para baixo mais uma vez e apenas algumas folhas caíram em
nossas cabeças. Deu dois passos para trás pegando impulso, correu e pulou. Foi até em cima do
barranco e voltou.

- Está ótimo. Vou de novo para ter certeza.

Desta vez ele pegou mais impulso e foi bem mais longe. Quando voltou, os cantos da boca
estavam próximos às orelhas.

- Primeiro os mais velhos - papai disse confiante - segure bem firme para não cair.

Eu fiquei olhando e o mais velho obedeceu. Correu, colocou o pé no nó, segurou firme e levou
um empurrão com força. Foi até lá na frente e voltou. Caiu no chão de pé e deu um grito de alegria.

- Sua vez, ermão - ele disse querendo que eu fosse um cúmplice.

Já não queria mais ir. A inveja pelas aventuras foi sumindo até se transformar em instinto de
autopreservação. Encontrar o tucano era o suficiente para dizer ao Leo. A imagem de escapar do
galho e me espatifar lá embaixo era muito superior à valentia dos oito anos.

O mentor de aventuras ajoelha com a perna direita no chão e, olhando em meus olhos,
pergunta: “você quer ir?”.

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"
Balanço a cabeça para as laterais.

- Você está com medo, certo?

- Sim.

- Você está pensando que pode cair?

- Estou. Vai doer se eu cair.

- É normal ter. Eu tive também. E seu irmão também teve. Tenho certeza.

- Tive mesmo, mas foi muito legal.

- Tenho certeza, o Tarzan sentia pavor na sua idade. Mas ele foi assim mesmo. Daí um
dia ele fez tantas vezes que sentiu coragem. Quando nós sentimos este pavor de alguma
coisa que queremos muito fazer, temos que tentar assim mesmo. E, se conseguirmos,
é mais divertido ainda.

Eu prestava atenção às palavras dele imaginando que se os dois tinham tido medo, não deviam
ter ido.

- Sentir medo é normal e todo mundo tem, mas só os corajosos vencem este sentimento.

Ele olhou para meu rosto covarde e esperou alguns segundos. Imaginei o Tarzan pequeno
caindo de uma árvore muito alta e ele adulto já corajoso. Quantas vezes ele ficou apavorado até
conseguir?

- E se você for e eu te empurrar bem fraquinho? Só para você ver como é gostoso.

- Pode ser - concordei mas a imagem de meu corpo caindo tinha se instalado em minha
mente.

Subi e levei um empurrão que me levou até antes da borda do barranco em velocidade
reduzida. Quando ia enxergar depois do barranco o cipó me trouxe de volta. Gostaria de ter visto
meio metro mais adiante.

- Gostou? - meu irmão perguntou com expectativa no rosto.

- E se aumentarmos agora a força e você for mais rápido um pouco?

Concordei com a cabeça.

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Papai me deu as instruções novamente. Apoiei o pé no nó. Apertei com minhas mãos no cipó
com toda minha força e fui com um empurrão bem forte.

Sobrevoei até a parte mais alta do barranco. Desta vez, consegui enxergar a cidade lá de cima.
Era lindo ver tudo distante. Quando voltei, estava realmente me sentindo feliz.

- Quer mais uma vez, ermão? - ele perguntou abrindo mão de sua vez na fila.

Concordei com a cabeça sem perder um segundo sequer.

Agora não precisava mais de um manual. Papy me puxou e empurrou com toda sua força.
Subi até ir ao ponto mais distante possível. Era muito alto. A adrenalina disparou meu coração como
nunca antes. Não passava nada em minha mente e a respiração tinha cessado.

A pele macia das mãos pequeninas entrava nas ranhuras do cipó ao apertar com força. O vento
forte gelava minhas bochechas e a sensação de liberdade e paz tomaram conta de mim. Vi o horizonte
recortado da cidade, os prédios pequenos, com um novo olhar. Eu era um pássaro e enxergava da
perspectiva dos deuses. Um coração livre do peso do corpo. Livre para ver a imensidão do mundo.

Voltei e papai me segurou com um abraço. Quando parei, puxei o ar novamente. Estava com
a cara pálida e com o brilho nos olhos de quem tinha ganho um troféu.

- É isso aí ermão, você é o Tarzan! - ele gritava espantando até os passarinhos mais
preguiçosos.

Passamos mais duas horas brincando e nos divertindo. Cada um era o Tarzan da vez. Quase
nos desentendemos de tanto que queríamos repetir a façanha, quando papai disse “vamos embora que
vai entardecer”, descemos a serra sem conseguir encontrar os barbantes amarrados nas árvores e
saímos na rua em um ponto quinhentos metros à frente do passat estacionado.

Naquela noite, o sono veio fácil com o sorriso no rosto e o brilho na aura, sonhei sermos dois
Tarzans que saltavam de árvore em árvore. Papai era a Chita.

Na segunda feira contei para o Leo, que não acreditou, dizendo para os outros amigos que eu
era um mentiroso. Eles me deram o apelido de Jane e jurei nunca mais contar minhas aventuras ao
Leopoldo. Meu irmão, me vendo chateado, disse que era inveja por ele não ter a valentia do homem
das selvas.

A partir deste dia, sempre que reconheço um medo em minha vida lembro de papai dizendo:
“Sentir medo é normal, mas só os corajosos aprendem a voar”.

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"
*** Fim ***

4.2. Sem tempo a perder

Puppy observava, pela vidraça do apartamento, deitado no chão, a longa fila de carros quando
viu uma sujeira, um ponto, no vidro. Levantou a sobrancelha esquerda, abaixou, deixou a cabeça cair
para o lado e roçou a orelha direita. Como pode ter esta sujeira aqui? Será que está aqui há muito
tempo? Como a Rose está relaxada!

- E aí, beleza? - perguntou o ponto.

Ele não entendeu como um ponto podia estar falando.

- Ei, é com você! - insistiu o ponto - qual o seu nome?

Ao piscar algumas vezes, o ponto tomou uma forma que há muito não via e respondeu - Sou
Puppy. E você, quem é?

- Miga, de “for-Miga” - o inseto disse de forma orgulhosa, com o peito aberto, e


perguntou “É aqui a unidade trinta e três?”.

- Aqui é a trinta e um. Como você entrou aqui? Se a Rose te achar você será
imediatamente aspirada - disse Puppy, torcendo o pescoço, procurando pela
limpadora.

- Entrei pela fresta da janela. Mas não se preocupe, só estou de passagem. Onde fica a
unidade trinta e três? Ouvi falar que lá existe um grande pote de mel. Dizem que as
abelhas estão sendo extintas. Não devem durar muito. Preciso encontrar mel logo.

Puppy mostrou com o focinho a direção da porta dos fundos e completou - É daquele lado.
Faz tempo que não vejo uma igual a você.

- Igual a mim?! - se gabou, saltando ao chão e caindo em pé com o peito aberto - Igual
a mim não existe. Venho de uma linhagem única. Tive educação com grandes mestres.
Sou formada em engenharia civil. Tenho mestrado em técnicas de construção e
preservação de formigueiros verticais, horizontais e subterrâneos. Doutorado em
estocagem de alimentos para as quatro estações, com ênfase em épocas de enchente.
Exerço um cargo importante em minha colônia. Fui condecorada pelas grandes

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"
realizações que obtive. Não vou ficar falando para você pois não tenho tanto tempo
disponível, mas fizeram até uma estátua de mim.

O cãozinho não entendeu nada do que ela tinha dito a partir da palavra “linhagem” e gostaria
de poder estar roendo um osso gostoso e depois tirar uma soneca.

- E você, qual o seu treinamento? - perguntou Miga antes que ele dormisse.

- Eu faço xixi e cocô no tapete descartável. Também sento depois de um único comando
e finjo de morto depois de me darem um biscoito. Só depois do biscoito. Tudo isso
aprendi no primeiro grau de adestramento com o Tião. Ele também me ensinou que
não devo comer as cadeiras e o sofá de casa. Minha dona contratou ele por causa do
sofá que foi para o lixo. O Tião era legal, ele sempre chegava com cheiro de carne na
mão que saia do bolso da calça.

- Interessante. Essa sua dona Rose é brava?

- Rose não é minha dona. Minha dona é gente boa.

Seguindo seu passo determinado em direção à porta da frente, perguntou: Você é filhote de
qual raça?

- Sou um Beagle. Mas não sou filhote, sou um pré-adolescente e logo terei dois anos de
idade - disse sorrindo.

- Deve ser legal viver tanto tempo assim. Dois longos anos. Na minha espécie, formiga-
faraó, quem conseguiu viver mais tempo foi a minha tataravó-rainha. Ela se cuidava
muito, meditava, se exercitava todos os dias, não comia produtos industrializados. Só
açúcar orgânico. Viveu treze meses prósperos com muito aprendizado.

- Os cães da minha raça costumam viver muito mais do que dois anos. Minha avó viveu
dezesseis anos, alguns conseguem viver até mais.

Puppy balança a cabeça sacudindo suas orelhas.

- Ual, dezesseis anos - disse coçando as antenas - se eu tivesse tanto tempo quanto sua
avó poderia fazer muitas coisas bacanas. Construiria muitos formigueiros e treinaria
uma infinidade de exércitos de formigas operárias.

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O pequeno cachorro pulou na frente dela querendo que Miga parasse de caminhar e prestasse
atenção nele. Deu uma babada no chão para tentar impedi-la de continuar, mas ela saltou, deu uma
pirueta no ar passando por cima da saliva do cãozinho, e continuou em busca de seu destino.

- Onde está sua dona? - questionou o inseto.

- Minha dona é muito ocupada, está sempre viajando pela empresa. Ela trabalha com
turismo. Ela também tem que dar atenção para os filhos. Ela é divorciada. São três
filhos, mas já são grandes. Eles reclamam da ausência dela.

- E a Rose. Ela é legal? Ela mora aqui? - perguntou Miga, chegando no meio da sala de
estar.

- A Rose vem uma vez por dia colocar comida para mim. Ela também arruma a casa,
que eu desarrumo. Gosto de fazer uma bagunça só para ter um agito. Ela é meio fria e
estranha. Não gosta de brincar comigo. Arruma tudo, põe ração no meu pote e sai
correndo.

- E você tem mais algum amigo?

Puppy deita e olha para cima do lado direito procurando lembranças.

- Eu tinha um amigo labrador, o Preto. Nós ficávamos uivando um para o outro. Éramos
uma dupla e tanto. Pensamos em montar uma banda. Às vezes o zelador ligava aqui
para reclamar. Eu não estava nem aí. Ele morava na unidade quarenta e dois, mas foi
embora. Os donos não queriam que ele ficasse apenas com a Rose deles. Ele era
bacana. Foi morar no sítio. Também dou umas latidas para os humanos da televisão.
Se você quiser podemos latir juntos. O único problema é que nunca consigo pegar eles
e eles não encostam em mim. As vezes bato o focinho na caixa de vidro. A Rose fica
brava comigo e usa um pano para limpar. Eu adoro quando consigo morder, dar uma
fungada e umas lambidas em um humano.

Ele começa a balançar rapidamente o rabo. E continua.

- E o cafuné…, na-da melhor do que um cafuné bem feito! Forte e com pegada. Com a
ponta dos dedos ou até mesmo com uma escova. Só de lembrar já dá uma moleza e
minha língua já começa a cair pro lado. O mundo podia acabar em cafuné. Mas e aí,
vamos brincar? Tenho uma bolinha e um osso artificial com odor de bacon, mas o
sabor já acabou.

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O pequeno inseto aperta o passo.

- Minha missão é muito importante. Não tenho tempo a perder. Estou em busca de mel.
Nunca vi um filhote que não vê a dona.

- Eu escuto a voz dela quase todos meses. Os humanos acham ela muito bonita. Eu
prefiro o cheiro. Há uns cinco meses eu senti o cheiro dela, foi uma delícia! - disse
Puppy ao começar a andar.

O cãozinho dá três voltas no mesmo lugar e, se agachando, para em uma posição estranha.

- O que você está fazendo? - ela pergunta com os olhos arregalados.

- Fique tranquilo. Sou limpinho. Só faço cocô no tapete descartável que fica neste canto
da sala. Também como uma ração que deixa o cocô com odor de sândalo. Quer sentir
o cheiro?

- Cocô odor sândalo! E o xixi, é sabor mel? - Miga dá uma gargalhada.

Ao chegar à porta da frente, ela diz - Agora tenho que ir, finalmente vou achar mel, o néctar
da saúde. Dizem que quem come vive mais. Quem sabe eu consigo viver dezesseis anos.

- Calma, fique mais. Gostei muito de conversar com você. Fazia muito tempo que eu
não conversava com alguém de verdade ao vivo. Seu cheiro é interessante.

- Eu também gostei muito de conversar com você, mas preciso encontrar aquela doçura
e completar minha missão. Eu sou muito importante em minha colônia. Já estou
buscando faz nove meses. Mas quando eu achar, volto pra te contar.

- Vou te esperar então. Eu não vou sair daqui, prometo - disse Puppy deitando no chão
e observando Miga passar por debaixo da porta, desejando ir com a amiga.

*** Fim ***

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4.3. “Kundumnumqué”

Nós tínhamos chegado em casa cansados de mais um dia de trabalho e fazíamos juntos o
jantar, que não demandava tempo nem disposição, enquanto nossos dois filhos assistiam à televisão.
Macarrão com almôndegas de frango congeladas.

- Lavaram as mãos? - Carmem, zelosa, pergunta, cuidando da saúde da ninhada.

- Está limpa mãe - Lucas tenta ludibriar.

- Ele não lavou e estava jogando bola na escola - Gi não perde a chance de descontar a
última provocação, como sempre.

- Todos lavando as mãos para o jantar - digo, tentando manter a paciência, que prometia
ser curta.

As coisas já foram mais tranquilas nas refeições. Estes dois estão sempre brigando. Esta fase
da vida é complicada. Ela sempre rosnando e latindo para todos os lados. Ele a irritando. Todos já
fomos adolescentes, mas eu era tão implicante assim? Preciso perguntar para meus pais.

- De novo macarrão - Gi reclama.

- Aí, como você é chata - o irmão dá sua versão da verdade da vida.

A mãe pede para ninguém reclamar, tentando comer tranquila e eu completo com "é o que
tem para hoje, crianças".

- Devia ter perguntado para eles - a mãe diz, desejando ter mais tempo para cozinhar,
querendo estar mais presente.

- Nunca concordam quando nós perguntamos. Se um escolhe frango, o outro quer bife.
E assim vai - eu disse pegando o guardanapo.

Eu não era muito “aborrecente” nesta idade. Mas às vezes acontecia. Meu pai falava
"Kundumnumqué..." nestas situações.

Nas primeiras vezes eu não entendia nada. Devia ser algum índio kundum. Ele falava isso e
dava um monte de lição de moral. Depois de ele repetir três vezes o "Kundumnumqué", fui perguntar
o que queria dizer. Daí ele explicou: "Kundumnumquédoisnunbriga". Eu disse um “Ahhhh” com uma
exclamação para a expressão tão esquisita.
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- Seu filho veio com recado da professora na agenda - mais uma provocação da irmã.

- Como você é dedo-duro.

- O que aconteceu? – questionei, preocupado e fiquei feliz de a Gi ter contado. Nunca


olhávamos as agendas.

Carmem serve o prato para as crianças e se oferece para colocar para mim. Respondo “não
precisa”.

- Ele cortou um tufo de cabelo da Aninha no intervalo. Bem da Aninha que é minha
melhor amiga.

- Ela falou que eu era menininha - o travesso disse, se defendendo.

Prometia ser um jantar daqueles. Não sei o que era pior, a arte com a Aninha e o recado da
professora ou ter dois filhos gladiadores em tempo integral.

Todo mundo já brigou na escola. Até hoje sinto dó do Sílvio. Ele nem teve culpa. Se eu me
lembro bem eu devia ter mais ou menos a idade do Lucas. Estávamos brincando no pátio na hora de
ir embora, esperando nossos pais e meus hormônios disseram para eu dar um murro nele. Os
hormônios são iguais ao diabo. Eu mirei bem no meio do peito e dei um murro. Ele arregalou os
olhos. Os hormônios me tentaram de novo: “dá outro”. Fui e acertei ele de novo. Ele deu um passo
para trás meio cambaleando e lá veio o capeta jogar minha mão no peito dele novamente. Eu tava
possuído pelo bicho ruim. Lancei o quarto sem deixar ele pensar. Ele tropeçou e caiu no chão. Quem
me segurou foi o Marquinhos. Não mirei no rosto pois ia ter que pagar os óculos. Mamãe ia ficar
muito brava. Arranjei briga só para ver como era brigar. Ele não entendeu nada. Nem eu. Ele ficou
um tempão sem olhar para mim, mas pelo menos não contou para a professora. Espero que o fato de
ele ser hoje viciado em cocaína e ter uma coleção de armas em casa não tenha a ver com isso. Não
vou contar isso para as crianças.

- Você não devia ter cortado o cabelo dela - a mãe diz com os olhos fixos e sobrancelhas
em “v” olhando para o filho - E você devia defender o Lucas. Irmão é para a vida toda.
As amizades vão embora.

- Ah, mãe - Gi protesta, enquanto Lucas disfarçava um sorriso.

- Sua mãe tem razão. Isso não se faz. O cabelo é muito importante para as meninas - eu
disse antes de ouvir a cobrança da esposa por não se manifestar - passe o sal, por favor.

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Outra vez, o Osvaldo quis me bater na terceira série. Só por que eu falei que a irmã dele era
gostosa. Fui falar justo da irmã do menino mais encrenqueiro da sala. Arranjava briga com qualquer
um respirando perto. Ele me levantou pela camiseta e fiquei todo torto no ar balançando os pés.
Disfarcei falando “a palavra dita era bo-ni-ta”. O Zeca-fofoqueiro havia inventado. Eu nem sabia o
que queria dizer gostosa, estava com nove anos. Estava só repetindo as falas do meu irmão mais velho
e dos amigos dele. O apelido dela era “coxinha”, mas só os alunos do último ano chamavam ela assim.
Nós pirralhos não.

- Não quero mais ver vocês brigando. Tanto com os colegas quanto em casa - a mãe
disse, tentando acalmar os ânimos, mas não acreditando ser possível.

- Vamos comer - disse, faminto, e já agoniado com tanto barulho.

Realmente brigas em casa incomodam. Eu não lembro se eu brigava muito em casa. Mentira,
lembro sim. Todos os dias. Mamãe dizia que eu tinha muito ciúmes do meu irmão mais novo. Fui
durante nove anos o caçula e veio o Dani estragar meu reinado. Difícil para uma criança desta idade
ficar indiferente. Eu era o caçula e perco o colo assim do nada.

Eu vivia batendo nele. Fazia tudo para irritá-lo. Escondia os brinquedos. Puxava as calças dele
para baixo. Falava para ele abrir a boca e fechar os olhos e punha pimenta malagueta na língua.

Quando eu estava com doze, meu pai conversava comigo quase todos os dias explicando
pacientemente que “eu não devia sacanear e bater no Dani’. Irmãos se amam e tudo mais que
adolescente nenhum quer ouvir.

Um dia ele se enfezou e veio bufando lá do quintal. Ele nunca havia encostado a palma em
mim. Eu corri para o canto da sala e fiquei encurralado. Não tinha para onde correr, eu tentei. Se não
tivesse grade na janela eu teria pulado. Mas mesmo que tivesse uma saída, ele ia me alcançar. Naquele
dia ele estava muito irritado com as provocações. Ele me alcançou, segurou minha perna com a mão
esquerda e deu um único tapa na coxa. Não doeu muito na pele, mas ardeu como ferrete em brasa
usado para marcar gado na consciência. Ele ainda disse “Nunca mais bata no Dani”. Eu nunca mais
bati nele.

- Amor, você brigava muito com seus irmãos? - perguntei, tentando aliviar a
consciência.

- Eu me defendia. A tia era terrível. Ela me fazia assistir filme de terror com ela à noite
no escuro e depois se escondia debaixo da nossa cama na hora de dormir.

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Gi pede para passar o parmesão ralado.

- Daí a mão dela ia subindo apalpando a cama. Pegava no meu cabelo e fazia som de
fantasma. Às vezes ela gritava, outras fazia uma gargalhada aterrorizante quando eu
estava quase dormindo. Também imitava uma risadinha bem aguda de bruxa. Depois,
eu ficava tendo pesadelos a noite toda. Pelo menos meu sono era pesado.

- Como a tia era ruim - disse Gi sorrindo. Até que enfim uma reação positiva dela.

- Vou fazer isso - emendou o arteiro, já conseguindo uma careta feia da irmã.

- E você não fazia nada a respeito? - questionei, interrompendo mais uma vez.

Uma hora eu conseguiria um clima bom. Não quero brigar nem bater. Isso só vai piorar as
coisas. Conversar não estava funcionando também. Será que iam ficar assim a adolescência inteira?
Ela com catorze e ele dez. Isso ia demorar uma eternidade ainda.

- Eu batia nela e corria para a vó. Falava “ela me deu um tapa” ou “puxou meu cabelo”.
Como eu era menor e tinha fama de ser a boazinha da dupla, vovó sempre me dava
razão e ainda brigava com ela. Às vezes eu fazia só de pirraça.

- Posso fazer isso - repete Lucas - eu sou o menor e tenho fama de bonzinho - disse com
sorriso maroto e uma sobrancelha meio erguida.

Lá vai começar.

- Querem suco de maracujá? É calmante - ofereço.

Na verdade, eles precisavam de suco de alface. Quando Gi nasceu ganhamos uma centrífuga
de fazer sucos. Estava curioso. O que aconteceria se eu pegasse um pé de alface e passasse na
centrífuga? Fiz e tomei enquanto cuidava da neném. Carmem chegou em casa umas duas horas depois
e eu estava dormindo profundamente no sofá. Ela tentava me acordar, me sacudia e eu não me mexia.
Levantava meu braço e minha mão estava mole. Soltava e caia na almofada. Meu sono nunca foi
pesado daquele jeito. Foi à cozinha para pegar água para jogar em mim e viu que estava tudo sujo de
extrato de alface. Eu não sabia o poder sonífero da alface. Vou fazer este suco para eles.

- Se vocês não pararem vou colocar os dois sentados na mesma cama até se abraçarem
e fazerem as pazes, igual quando eram crianças - a mãe diz em tom de ameaça.

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"
Quando faziam as pazes se abraçavam e choravam unidos dizendo "ti amuuuuu". Eram fofos.
Uma vez até fui lá vê-los depois de colocá-los de castigo e disseram "Pai, não se meta. Isso é coisa
entre nós dois". Obedeci. Foi antes da adolescência.

- Não adianta mais. Agora fingem e continuam brigando - Carmem comenta


desanimada.

- E seu irmão, brigava muito com vocês? - perguntei.

- Comigo e a tia não. Ele brigava com meu primo. Em uma ocasião, se desentenderam
e ele pegou o martelo do meu pai. Disse para meu primo que ia atacar na cabeça dele.
Meu primo continuou provocando e provocando. Ele se preparou para atacar o martelo
com toda a força. Tomou distância e de repente a bisavó, que estava cuidando de nós
todos enquanto mamãe trabalhava, disse com a paciência e voz calma costumeira dela
"não ataca o martelo no seu primo, vai estragar o martelo".

As crianças riram e tivemos alguns minutos de paz.

- Eu lembro desta história de sua irmã te assustar.

- Ela judiava do meu irmão também. Ela falava para ele que a vó tinha achado ele no
esgoto boiando e cocô boia. Ele chorava muito “eu não sou cocôôô”.

- Credo mãe - Lucas deu sinais de existir salvação se sensibilizando - E seus irmãos,
pai?

- Meu irmão também era sacana. Ele comeu uma coxinha estragada em um boteco na
rua e estávamos no nosso quarto. Este em que vocês dormem hoje. Eu tava na cama e
ele começou a soltar várias bufas muito fedidas. Tava com cheiro de azedo misturado
com carniça. Podre mesmo. A fedentina tomou conta de todo o quarto. Não existia
oxigênio mais.

Os dois estavam atentos à história. Enquanto eu estivesse contando, não iriam brigar.

- Quando eu percebi ele já estava correndo. Fui atrás dele fugindo da bomba de gás
lacrimogêneo, mas ele foi muito rápido e me trancou no quarto. Ficou segurando a
maçaneta. Fiquei tentando abrir a porta com toda minha força, mas como ele era dois
anos mais velho e mais forte, não consegui. Corri para pular a janela, esquecendo da
grade. Não consegui nem colocar a cabeça para fora. Definitivamente não gosto de

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grades. Ele ficou dando risada do lado de fora. Ainda sinto o cheiro de azedo quando
lembro disso.

- Fica quieto. Se você fizer isso te mato - Gi se antecipou ao caçula.

- Meu irmão não era de brigar, mas estávamos andando perto da igreja quando passamos
por uns cinco alunos do Assis Barreto - eu disse lembrando de outra história.

Lucas pergunta “Assis Barreto?”, dá uma garfada na almôndega e a enfia inteira na boca. Sem
engolir, pede mais uma.

- Era uma escola pública. Ficava em frente à escola em que estudávamos. As duas
escolas tinham rixa e muita provocação: nós éramos riquinhos mimados e eles eram
os marginais. Estávamos com o uniforme escolar. Os alunos do Assis passaram
conversando e o mais alto no meio do bate papo conta para o outro: "eu arrebentaria o
nariz dele". O tio escuta aquilo e se intromete na conversa: "arrebentaria nada,
fracote". Eu fiquei me perguntando por que ele falou aquilo, nem era com ele. Se
conheciam? Não. Ele não conhecia os meninos, mas sabíamos. Eram do Assis.

Gi pergunta em quantos eles estavam. No dia fiz a mesma pergunta e contei.

- Estavam em cinco e nós em um e meio. “Hoje eu volto todo roxo para casa”, pensei.
Mamãe vai ficar uma fera. O rapaz com cara de encrenqueiro, um loirinho, vira para
o tio e diz: “Como é? Não sei se vale a pena sujar a mão com você”. Não vale mesmo,
implorei nas minhas ideias.

Aquele dia eu rezei. E as preces foram atendidas.

- Passa um amigo do tio e percebe o clima tenso. Este amigo era todo musculoso e
grandão. Fazia kung fu e intimidava qualquer um. Estávamos salvos. Ele diz: ”tudo
bem aí, quer uma ajuda?”. O tio responde: ”Não. Tudo sobre controle. Pode ir embora.
Depois nos falamos no fute”. Estava tudo perdido de novo. Não sei se vamos
sobreviver para este fute. O amigo do tio vai embora sem olhar para trás.

Carmem oferece mais massa para mim. Por enquanto, não quero. Lucas pede outra
almôndega.

O tio olha nos olhos do loirinho alto e diz "Está com medo?". Qual bicho picou ele para ficar
provocando desta forma? O cara fechou a mão para dar um soco no tio, enrugou a testa, e eu fechei
os olhos.
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"
Os dois pararam de mastigar, esperando o soco. Lucas estava com a boca aberta.

- O outro aluno do Assis segura no braço do loirinho e fala: “Estamos atrasados para o
jogo. Vamos embora”. E, olhando para meu irmão, fala “toma cuidado moleque”, e
saíram andando. Desta vez ele não provocou de volta. A temperatura gelada da pele
do meu rosto foi voltando ao normal aos poucos.

Desta vez o kundunnãoquis. Ainda bem.

- Eu daria logo um murro nele - a testosterona da pré-adolescência de Lucas estava


falando mais alto.

- Deixa de ser tonto - a irmã não perdeu a oportunidade novamente.

Minha lista de histórias acabou. Estou cansado das discussões. Resolvi deixar que brigassem
e concordar com eles. Não há mais o que fazer. Desisto. Estou cansado.

Coloquei mais massa e almôndega em meu prato. E bastante pimenta. Fui lamentando da vida
enquanto colocava pimenta. Não sei quanto tempo passou, nem quão ardido ficou.

- Tonta é você. Tonta e gorda - continuou Lucas.

- Mãe, olha ele. Está me chamando de gorda.

- Ihhhhh! Chamou de gorda - eu disse me rendendo ao clima - Não deixava. Ihhhhh!


Detonou!

- Gorda mesmo - Lucas completou sem perceber a provocação do pai.

- O que é isso pai? Gi perguntou indignada.

- Yeahhhh, chamou ele de tonto. Não deixava. Arrasou. Humilhou.

Os dois viraram para mim e depois se entreolharam com interrogações flutuando em suas
cabeças.

- Para pai - Lucas disse dando risada.

- É, para pai - a aliada concordou sem conseguir segurar o riso.

Não parei. Agora eu era o astuto.

- Gorda e tonto, Yeahhhhh!

(*"
"
Eles começaram a gargalhar e Lucas saiu correndo para o banheiro segurando para não se
urinar. A irmã correu atrás e foi no outro banheiro.

Carmem deu uma risada e disse “descobrimos como acabar com as discussões”.

Desde então, todas as vezes em que estamos reunidos e começam a brigar entre si, acabam
unidos contra mim e dando risadas. As discussões nunca mais se estenderam. A “aborrecência” ficou
bem mais tolerável. E agora eu sabia “Quando um não quer dois não brigam”, mesmo que o “um”
seja um terceiro.

*** Fim ***

)+"
"
4.4. Faz o Brócolis

Primeiro fim de semana de julho, todos os compromissos adiados para visitar os pais dele em
Serra do Amanhã, no interior de estado.

- Vamos descer? Estou sentindo o cheiro de café. Já são nove. Estou com fome - Júlia
disse, ansiosa para saber qual seria o menu.

A luz do sol entrava pela fresta da janela aquecendo o rosto amassado de Noah.

- Vamos. Vou tomar uma ducha para acordar - Noah levantou, estranhando os móveis
que não eram de sua casa.

Ao se encontrarem na cozinha, a mesa estava posta para o café da manhã.

- Bom dia Seu Luigi!

- Oi. Dormiram bem?

- Não lembro, estava dormindo.

- Ele ainda está dormindo, mas pelo menos, desta vez, não assaltou a geladeira
sonâmbulo - disse Júlia.

- O café está na mesa, mas esqueci de comprar os croissants.

- Imperdoável pai. Afinal, todo café da manhã colonial tem croissants caseiros feitos às
três da manhã. Vamos nos contentar hoje com os outros três tipos de pães, quatro tipos
de frios, dois bolos, três sucos naturais, geléias e várias frutas suculentas. A qualidade
do Luigi Grand Class International Resort já não é mais a mesma - disse, rindo e
piscando para Júlia.

A vida corrida na capital não permitia muitas visitas à casa dos pais, mas quando alguém ia
chegar, o pai enchia a geladeira de guloseimas.

- Para o almoço, estou fazendo vatapá, costela no bafo, nuggets, fritas e salada.

- Pelo jeito, todo mundo vem - Júlia concluiu.

- O André vem mais tarde por causa de um evento na escola da Yarinha.

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"
- A que horas ele vem? - Noah estava ansioso para ver os sobrinhos.

- Lá pelas duas.

- E a mamãe, já acordou?

- Já. Faz tempo. Está lendo no quarto - respondeu Luigi, quando escuta os passos de
Marcos e Pauline descendo as escadas.

- Bom dia!

- Pauline, você está com cara de japonesa com os olhinhos de sono - brincou Júlia.

- Eu sou japonesa - sorriu.

- Chegaram na hora certa, vamos tomar café da manhã - disse Luigi, convidando todos
a sentar.

Após muitas risadas, o cozinheiro resolve voltar ao preparo do almoço - Pessoal, vou
continuar com o vatapá.

- Eu te ajudo. O que falta fazer, pai? - questionou Noah.

- Nada, pode deixar. Eu faço - disse Luigi se levantando sem ser notado pela maioria
que conversava sobre como seria morar no frio do Canadá.

A prosa seguiu por mais de hora, quando Luigi pediu para Marcos fazer o arroz.

- Vatapá, farofa, batatas e mandiocas fritas, costela, cebolas, pimentões assados,


nuggets, buffet de salada e o Marcos está fazendo o arroz para dar “sustança” - Noah
disse antes de puxar o fôlego.

- Daqui a meia hora está tudo pronto. Vou ao banheiro - disse Luigi, saindo da cozinha
com cara de poucos amigos.

- Ele estava apertado - Marcos comenta, vendo o sorriso no rosto do irmão.

O cheiro da comida se espalhava por toda a casa quando a mãe chega e, cochichando, diz “seu
pai está com dor, mas não quer contar para vocês”. Ela vai lavar as panelas de cabeça baixa pela
traição e complementa - Não vai falar que eu falei, hein?

- Vou lá ver, deve ser “gases-puf” - Noah brincou.

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Chegando ao quarto, bate na porta três vezes “Pai, a comida está quase pronta, vamos para a
cozinha?” e estranha o rangido da porta ao abri-la devagar. Ele sempre foi muito cuidadoso com os
detalhes da casa.

Luigi levanta da cama disfarçando o incômodo. Passando pela sala, se senta no sofá e o filho
questiona “tudo bem pai, o que foi?”.

- Estou com uma dor no peito, não deve ser nada, igual da outra vez.

- Onde dói? Sente algo no braço?

- Tudo aqui - revelou gemendo com a mão no centro do peito.

- E o braço?

- Doendo também.

- Vamos para o pronto socorro - Noah disse esperando o costumeiro “não”.

- Não é nada. Já vai passar.

Marcos ao entrar na sala, curioso, questiona o que estava acontecendo.

- Papai está com dor no peito e não quer ir ao hospital.

- Seus exames estão em ordem, não estão?

- Sim. Levei ao médico há duas semanas. Está tudo normal.

- Dói muito?

Luigi não era de reclamar e sempre procurou ensinar aos filhos que não deviam incomodar os
outros. Se ele estivesse reclamando, algo realmente estava errado. Ao mesmo tempo, sempre
estimulou que qualquer desconforto que um de nós tivesse deveria ser contado para ele. Ele resolveria.

- Parece que passou uma jamanta, mas eu já tive isso mês passado, fui ao hospital e não
era nada - disse, virando de lado em uma tentativa frustrada para se livrar do
desconforto.

Agora estavam preocupados. “Uma jamanta” era uma expressão forte e pesada que ele não
usaria se não fosse realmente sério. Os eufemismos habituais só seriam deixados de lado em um
momento crucial. Agora, o desafio seria convencê-lo. Talvez a jamanta ajudasse.

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- Eu lembro de você ter contado, mas, pai, Noah tem razão. Vamos para ter certeza, pelo
menos você toma um remédio para não sentir mais dor.

- Está bem - estranhamente concordou, abrindo mão da teimosia espanhola. A jamanta


tinha buzinado.

Noah pediu para a mãe pegar a carteira com os documentos do pai e avisou Júlia. Marcos
ajudou Luigi a chegar no carro.

- Qual caminho eu faço? - questionou Noah ao passar o cartão no leitor da portaria do


condomínio.

O hospital Sagrado Coração não era longe. Em dez minutos estaríamos lá. Tudo em Serra do
Amanhã era próximo. Os moradores reclamavam quando demoravam cinco minutos parados em um
semáforo, dizendo que pegaram muito congestionamento. Noah e Marcos davam risadas quando
comparavam ao tempo perdido no trânsito da capital, onde moravam. No entanto, qualquer segundo
poderia agora ser decisivo. Ainda bem que não estamos em São Paulo.

- Vai em direção ao shopping. Cuidado com os radares - sussurrou, sem encontrar


posição agradável e com um olhar de dúvida.

- Vamos para o hospital Sagrado Coração? - Marcos indagou.

- Não, o convênio descredenciou. Cuidado, cuidado, cuidado com o radar! Ai-ai-ai.

- Já reduzi, pai, fica calmo - disse indignado, olhando para Marcos. Dane-se o radar!

- E onde é o outro hospital?

- Vinte minutos mais para frente do Sagrado Coração, lá perto do centro.

Noah cochichou para si mesmo “É muito longe”. Vinte a mais! É muito tempo. Lembrou do
professor do cursinho que sofreu um AVC. A mulher correu com ele para o hospital. O médico disse
que se ele demorasse mais um minuto poderia ser fatal. Mesmo assim ele ficou paralisado na parte
do rosto e no braço direito. Passou a escrever na lousa apenas com a mão esquerda. Nunca mais
entendi sua letra. Não podemos bobear. Dá tempo de chegar a este hospital? Noah voltou a acelerar
na reta longa.

- Pai, vale a pena ir no Sagrado Coração mesmo - disse Marcos insistindo.

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- Também acho - Noah estava indignado com o momento inoportuno para tal mudança
do convênio. Sabia que uma diária de internação em um hospital deste nível custaria
muitos milhares de reais - Tem certeza que já está descredenciado mesmo?

- Olha o radar, olha o radar, Ai-ai-ai.

- Já reduzi, calma! Eu olho, fica quietinho - Noah esqueceu novamente da existência


dos radares.

- Vamos no Sagrado Coração mesmo? - Marcos insistiu.

- É, pai, damos um jeito! O importante é tratar o mais rápido possível. Não sabemos o
que pode ser.

- Vire na próxima a direita e cruza os trilhos do trem, é mais rápido.

Cruzando a velha estrada de ferro desativada, lembrou do ferrorama que ganhou quando
criança. A ferrovia vinha com cinco postes e dois sinaleiros. Colar os adesivos foi uma competição.
Sempre dava briga com o irmão para ver quem iria desengatar o vagão cargueiro da locomotiva e
acionar o comando de alavanca.

Foi muito sacrifício para Luigi dar o presente caro à época, considerando as condições da
família. O mimo do ano repartido para os dois filhos. Foi quando descobriu que o Papai Noel morava
em casa, não tinha roupa vermelha nem barba e bigodes brancos. Não ficou decepcionado.
Maravilhado era a palavra certa. Este Papai Noel estaria sempre conosco.

Depois de adultos, todos os anos, nos dias dos pais, ele comprava presentes para os filhos que
já eram pais. Noah não entendia a lógica de receber este presente, não era dia dos filhos.

A casa grande foi construída para que todos os filhos e suas famílias morassem com o
patriarca. O plano foi frustrado quando estes se casaram. Se deixassem, Luigi ainda estaria dando
mesada.

- Vamos então - Luigi concordou mais uma vez com quem era influente, a dor.

Chegando ao hospital, os enfermeiros foram rápidos e o levaram para a emergência


imediatamente. Marcos fez a parte burocrática, mostrando os documentos e assinando os papéis.

Passada meia hora, a enfermeira chamou.

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- Vocês são os filhos do seu Luigi? - perguntou um médico de sobrancelhas rebeldes
que empurravam os óculos de fundo de garrafa para frente sem sucesso.

- Sim, Noah e Marcos.

- Sou o Dr. Celso - disse, cumprimentando com aperto de mão diligente - O pai de vocês
teve um infarto. Nós fizemos os exames de diagnóstico preliminares e ele precisa ser
operado imediatamente. A equipe já está preparada.

- Mas os exames dele estavam todos em ordem!? Ele levou os resultados ao médico
algumas semanas atrás - questionou Marcos, desconfiado.

Marcos sempre suspeitou dos hospitais, médicos e indústria farmacêutica. Eles sempre
querem tirar dinheiro de nós. Nos dão remédios que curam causando outras doenças. As vacinas eram
o motivo principal de ele torcer o nariz. Achava que a população era cobaia do sistema. Estão
injetando vírus em nós.

- Às vezes os exames não dizem tudo. Fizemos o cateterismo e ele está com uma das
artérias obstruída em noventa por cento e a outra com noventa e cinco por cento - disse
o médico.

Anestesiados, os filhos não conseguiam entender como era possível.

- Vamos corrigir a obstrução do fluxo sanguíneo. Não podemos perder tempo. Se


quiserem podem ver ele rapidamente, pois ele já vai para a sala de cirurgia.

Sem terem reação, Noah e Marcos concordaram. Luigi estava deitado na maca, com eletrodos
no peito e uma agulha colocada no antebraço. Os filhos deram um rápido beijo na testa dele. Luigi,
se despedindo, disse: "Faz o Brócolis, vai estragar!”.

Como isto podia estar acontecendo? Ele sempre se cuidou. Sempre nos ensinou a comer muito
bem, evitando gordura, comidas industrializadas, sal, açúcar... Estes exames servem para alguma
coisa? E a mamãe, como fazemos, damos a notícia? Acho melhor não falar ainda para ela. Não queria
preocupá-la antes de ter uma boa notícia para contar - pensou Noah.

- Vamos esperar para falar com a mamãe - disse Marcos, como se estivesse escutando
os pensamentos do irmão.

- Verdade. Vou só mandar uma mensagem à Ju para ela cuidar de tudo e dizer que não
vamos para o almoço.

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"
- Ok, pede para ela avisar Pauline.

Noah começou a digitar as mensagens e parou. Isto não podia ser verdade. Não tinha lógica.
Não com ele. Tanta gente se alimenta mal, é tão rancoroso e não acontece nada. Como pode? E se
acontecer o pior? Ninguém na família teve ataque cardíaco até aquele dia. Todos foram de idade.
Nem consegui falar para ele não se preocupar, pois ia dar tudo certo.

Podia ter dado um conselho, uma palavra de motivação. Papai ia gostar se eu lembrasse da
história de quando ele era pequeno e fugiu do touro no sítio. Estava no meio do pasto e não tinha para
onde correr. Apareceu um touro enorme. Os dois se entreolharam de relance. O bovino pateou a terra.
Papai sabia que este sinal não era coisa boa, mas procurou não se mexer. O bicho fez “rrrrunf...
rrrrrrunf”, balançou a cabeça e começou a encará-lo. Era seu território. Ele sabia que ia ter que correr.
Calculou qual era a direção mais próxima da cerca e mais distante do brutamontes. Correu em
disparada. O touro correu atrás. Quando chegou perto da cerca, se jogou escorregando no mato. Ralou
os braços e as pernas. Ele conseguiu passar por debaixo da cerca e, depois de tomar fôlego, mostrou
a língua para o chifrudo. Pai, esta cirurgia é como o touro. É só criar coragem, correr, pular e mostrar
a língua. Mas agora não tinha mais tempo. Ele já estava na mesa de cirurgia.

Enviada a mensagem à mulher, Noah conferiu o celular três vezes seguidas, mas nada de
resposta. Ela devia estar cuidando das crianças.

Pensou se devia mandar uma mensagem para os tios, mas não ajudaria em nada. Quando a
notícia se espalhar as pessoas poderão ficar ansiosas por ter alguma novidade para contar. O ser
humano é esquisito mesmo.

- Melhor ligar para o André - disse Marcos.

- Eu ligo, pode deixar - Noah quis se ocupar.

O pai havia dito, quando perguntei em que poderia ajudar na cozinha, que ele tinha acabado
o que precisava fazer - “finalmente posso descansar”. Ele disse isso pois o tempo dele estava se
esgotando? Uma despedida. Ele, mesmo de forma inconsciente, estava sentindo? Deixa de ser idiota,
vai dar tudo certo.

- Tentei ligar, mas ele não atende - Noah disse - daqui a pouco tento de novo. Acho que
a cirurgia vai demorar, vamos tomar um café, já são três horas.

Na cafeteria, Noah pediu um capuccino e uma esfiha para cada um e comeu a sua em duas
mordidas.

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"
- Depois eu mastigo - comentou o ogro reparando nos olhos arregalados do irmão.

O aroma da cafeína o fez recordar do dia, aos doze anos, em que Luigi o levou até a padaria
e insistiu para que ele bebesse cerveja. Com dois copos americanos a língua de Noah tinha vida
própria e o pai aproveitou para perguntar se ele se sentia mal pelos colegas da escola serem ricos.
Naturalmente disse que sim, nada melhor do que o álcool para potencializar um drama, nunca falaria
isso sóbrio, a diferença de nível econômico pareceu um abismo naquele momento etílico.

- Não sei se este diagnóstico está correto - disse Marcos, achando que o hospital pudesse
fazer a cirurgia apenas para lucrar.

- Acho difícil eles forçarem uma cirurgia deste porte, e ele estava com muita dor. Vou
tentar ligar para o André novamente - Noah interrompeu o assunto não querendo
continuar com a desconfiança.

Desta vez André atendeu ao telefone e, após receber a notícia, disse que deixaria os filhos
com a avó e iria para lá.

Quando o irmão chegou ao hospital, Noah achou melhor ir ficar com a mãe enquanto Marcos
e André ficavam de plantão. Ainda estava indeciso sobre o que falar, mas os três concordaram que já
deviam contar sobre a cirurgia e ele ficou incumbido de dar a notícia.

No caminho de volta para o condomínio, as questões saltavam na cabeça. Quanto tempo ainda
o pai terá de vida? Deus devia dar um timer para sabermos quando iremos. Assim, as pessoas se
prepararam e programavam suas vidas…., ou não.

Luigi invejava quem morria dormindo, sem dor, sem dar trabalho. Dizia que quando chegasse
a hora dele queria “dormir e não mais acordar”. Ninguém na família teve ataque cardíaco até aquele
dia, todos morreram de idade. Imaginou os ancestrais das cavernas morrendo velhinhos….ou
devorados. Lembrou da série de televisão Família Dinossauro, na qual a tradição era pular do
penhasco quando chegassem a uma idade específica. Ideia absurda! Ainda bem que a medicina está
bem evoluída. Espero!

E mamãe, como vai ficar? Se acontecesse o pior, seria difícil se adaptar sem ele. Ela era muito
dependente, não dirigia, não ia ao mercado, não saia de casa para quase nada, talvez apenas para o
cabeleireiro e para a loja de um e noventa e nove. Papai fazia tudo. Com quem ela iria morar? Seria
uma decisão dela. O ideal seria todos ficarem próximos. Mas a distância e as estruturas da vida de
cada um dificultavam este planejamento. Vai dar tudo certo.

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"
Já tinha escutado sobre um estudo de psicologia que revelava quando um cônjuge morre ou
se divorciam, o outro, em média, demora a mesma quantidade de meses para superar os anos de
relacionamento. Eles estão casados há quarenta e seis anos, isso dá cerca de quatro anos chorando.

Chegou ao condomínio e a mãe veio ansiosa para saber notícias - Como ele está?

- Ele está bem, mãe.

Noah não conseguiu olhar nos olhos dela, disfarçou mexendo no celular, mas resolveu ser
direto.

- O que ele teve foi um infarto mesmo, já foi medicado para a dor e está passando por
uma cirurgia para desentupir as artérias.

- Nossa, meu Deus, como pode? Eu falo para ele não comer costela e beber menos. Ele
tava comendo toda semana.

- Sério? Achei que ele estivesse se cuidando. Ele não come estas coisas apenas com a
família reunida, cerca de uma vez por mês?

Ela balançou a cabeça olhando para o chão.

- E também ele bebe uísque todos os dias quando fica tocando viola. Não tem se
cuidado, não. Que Deus cuide dele - disse desnorteada.

A palavra “Deus” repetida duas vezes chamou atenção de Noah. Não tinha religião, mas
gostava de estudar os ensinamentos orientais. As teorias ensinavam a não ter apego. Como não ter
apego a quem sempre cuidou de mim, deu todo suporte e se sacrificou tanto pela família?

Eu não sei muito qual teoria está correta. Nunca me identifiquei cem por cento com estas
filosofias. Sempre procurei considerar o que fazia eu me sentir bem, às vezes com inveja de quem
não pensava muito a respeito e só ia vivendo e ouvindo os padres. Aceitando tudo sem questionar.
Poderia criar uma nova religião na qual o primeiro mandamento seria não ter religião. O segundo
seria não ter dogmas e o terceiro não acreditar em mandamentos. Apenas sentir no coração. Os fiéis
estariam salvos, mas não seriam fiéis. Mas e quando o perigo de perder alguém ou a morte aparece.
O que nós pensamos? Para onde vamos? A fragilidade faz qualquer ateu rever a descrença. Deve ser
egoísmo meu. Mesmo tendo estudado espiritismo e budismo não consigo me sentir confortável. Eu
faria tudo diferente, Ele errou a mão aqui. Sacanagem com quem fica. Para quem vai deve ser bom,
ficar livre de tudo isso.

)*"
"
Será que outras pessoas sentem inveja de quem morre como eu sinto? Chego a ficar feliz por
quem parte. Um misto de alívio no peito, leveza e pesar por estar preso aqui. Enjaulado neste corpo
com uma missão a cumprir. Provavelmente vou morrer sem saber qual é. Outra coisa com que não
concordava. Deus, nós devíamos ter nascido com manual para saber o que fazer. Qual o meu dom?
Tenho uma missão? Tantos anos e ainda não sei nem com o que devo trabalhar. Até para dar esmola
fico na dúvida se estou piorando ou melhorando a situação do mendigo.

- Você comeu? Melhor ir almoçar - disse a mãe de Noah, interrompendo seu delírio - já
são quase cinco da tarde.

- Não estou com fome, mas acho melhor comer alguma coisa mesmo. Comi apenas um
salgado. Quem terminou de preparar o almoço?

- A Pauline e a Ju. Elas foram levar as crianças para dar uma volta no lago. Você não
está cansado, quer dormir um pouco?

Os netos de Luigi chegam do parque correndo e com fome - cadê o vovô para fazer pipoca e
tocar a música da maçã na viola? - pergunta a caçula da família.

Noah lembrou da letra da música “Tocando em frente”, sua predileta, que sempre cantava
com o pai enquanto ele tocava viola caipira, o passatempo favorito da vida do aposentado.

- Eu vou fazer pipoca para você, Yarinha.

- A pipoca do vovô é mais gostosa - disse com bico nos lábios.

Luigi tem todo seu processo para fazer a pipoca perfeita, sempre repetida com disciplina
monástica e didaticamente ensinada a cada estouro. Pegar antes de tudo a panela e as bacias. Secá-
las com todo cuidado, várias vezes. Isso é importante. Se não se preparar pode dar tudo errado. Você
está fazendo pipoca e não buchada de bode. Depois os ingredientes: o milho de ótima qualidade, o
óleo, o sal e o medidor para as proporções certas. Não pode colocar óleo demais pois encharca e fica
oleoso. A pipoca gostosa é a sequinha e crocante. Se colocar de menos, os grãos não esquentam por
igual. Não deixar cair uma gota de água, pois pode esfriar e não estourar direito. Daí só estoura pela
metade. Cada grão pode se tornar, com a sua ajuda, uma pipoca cheia de sabor e saúde. Se colocar
tudo de qualquer jeito vai queimar e precisar começar tudo de novo. Mas às vezes, na vida, você não
consegue começar tudo de novo. Uma oportunidade perdida pode ser única. Esquentar o óleo um
pouco e colocar o milho. Mexer para esquentar de todos os lados dos grãos de forma gradual no fogo
médio, pois se ele esquenta rápido só estoura meio milho e fica piruá. Uma pipoca que morre como

*+"
"
meio piruá não se realiza, não desabrocha e não atinge seu potencial máximo. Mexer até começar a
estourar e, no momento exato, não antes e nem depois, colocar no fogo máximo. Quando segue todos
os passos a semente se torna uma linda pipoca perfeita e completa. Tem que fazer direitinho, assim
como tudo na vida.

Noah decide fazer direitinho e morar perto dos pais, e estabelece a meta de três meses para a
mudança. Vou comunicar ao meu chefe e pedir transferência para a unidade de Serra do Amanhã.
Nesse prazo eu já terei me mudado. O escritório fica a um quilômetro da casa de papai. Combinarei
com a Ju e as crianças. Ficarei dividido entre as cidades por enquanto, e eles vão se mudar quando
for possível.

Luigi teve alta depois de sete dias da cirurgia e passa bem. Os custos do hospital foram pagos
com a poupança para emergências dele, feita para não dar despesas aos filhos, e com o reembolso
parcial do convênio. Ele mais do que nunca sente que precisa cuidar da família, principalmente de
Julia e dos netos.

Agora, quando Luigi senta para tocar viola, a poltrona vazia à sua frente lhe enche os olhos
de lágrimas. A música “Tocando em Frente” nunca mais terá a mesma harmonia.

Noah não se mudou para perto dos pais. Não sente inveja mais das pessoas que se vão, e sim
das que ficaram, pois, no dia da alta de Luigi, dormiu e não mais acordou.

*** Fim ***

*!"
"
4.5. Vinte minutos

Vinte e três horas e cinquenta e cinco minutos do décimo terceiro dia de dezembro de mil
novecentos e setenta e um. Dr. Leopoldo, exaurido, já havia feito doze partos. A lua cheia induzia
além do habitual. Ele se alimentou pela última vez no café da manhã.

Adorava a profissão. Um excelente doutor, nas palavras das enfermeiras. Tinha sido o melhor
aluno da melhor faculdade do país. Perfeccionista e autocrítico, odiava falhar. Neste dia, teve sua
provação máxima; depois de rápidos onze meses de carreira, não teve sucesso ao trazer o bebê da Sra.
Elisa. Nasceu, chorou e voltou ao céu. Fez todos os procedimentos médicos e muito mais. Tentava se
isentar, mas a dor do fracasso dissolvia qualquer raciocínio para aliviar a alma.

Chorou escondido no vestiário antes de se trocar para ir embora. Porém, às pressas, escutou
seu nome nos alto-falantes. Outro nascimento. Enxugou as lágrimas sem conseguir tapar as
rachaduras no peito.

Vestiu o avental e correu. A grávida tinha treze anos de idade.

- Eu sou o Dr. Leopoldo Couto de Magalhães e vou fazer o parto do seu bebê. Qual é o
seu nome? – Perguntou enquanto se apressava com a maca pelo corredor.

- Janaina. Está doendo – respondeu gemendo.

- Fique calma, vai dar tudo certo! Você já sabe se é menino ou menina? – disse, tentando
distraí-la e aliviar a dor.

- Não, eu não sei. – Ela respondeu com a testa enrugada.

- Quando você fez ultrassom?

- Nunca fiz. Por favor, não conte para minha mãe.

Leopoldo, ao perceber a ausência de contrações e dilatação, questionou sobre a quanto tempo


estava doendo.

- Desde ontem, quando acordei – disse, com a voz trêmula e com medo de levar mais
uma bronca.

Com os olhos arregalados, o doutor engoliu seco. Hoje não é meu dia. A garota estava sozinha
e ninguém na família sabia que ela estava grávida.
*#"
"
Chegaram à sala de parto e a equipe a preparou.

- Podemos começar – Leopoldo escutou da enfermeira e lembrou de toda tristeza da


perda do bebê da Sra. Elisa. A mão tremia.

Após os primeiros procedimentos, o doutor percebe: o bebê não estava na posição correta e
seria necessário fazer cesárea de emergência. Sempre criticou cesárias em excesso, mas não era o
caso.

Retira a criança e, após a palmadinha, nada de choro. Ele sente as pernas tremerem e procura
se convencer de que daria tudo certo. Tenta animá-lo repetidamente, e nada. Olha a mancha no pulso
do bebê em formato do contorno de uma pomba e imagina ser um sinal para continuar.

Janaina chora ao ouvir o silêncio do bebê e a agitação da equipe médica.

Leopoldo não se dá por vencido e continua tentando. Cinco minutos se passaram e nada. Dez
se foram e continua insistindo. Entrando em desespero, implora pelo choro salvador.

Após vinte minutos, emocionalmente esgotado e sem esperança, desiste. Entrega o bebê para
a assistente. Abaixa a cabeça. Cai de joelhos e chora na frente de todos.

Enquanto ouve Janaina em prantos, ele sente toda a injustiça da vida e resolve no mesmo
momento não fazer mais partos. Não se sentia apto nem competente para continuar. Pensa em ser
clínico geral, dar aulas ou abrir uma floricultura. Qualquer profissão serviria. Estava decidido. Nunca
voltaria a passar por isso.

Respira fundo. Com dificuldade, apoia a mão na maca e levanta. Olha outra vez para o bebê imóvel.
Pede perdão a Deus pelas duas vidas. Sai da sala cabisbaixo, sentindo todo o desespero da jovem.

Anda dois passos em direção ao banheiro quando escuta o choro mais alto e forte que jamais
havia ouvido de um recém-nascido, como se o menino zombasse da morte e mostrasse a todos que
seria saudável e nunca iria desistir.

***

Dr. Leopoldo sai cedo de sua clínica, pois ficou encarregado de comprar o bolo de aniversário
de treze anos de sua filha. Ele custava a acreditar como o tempo passara rápido. Já era quase virada
do milênio. Vê o retrato, pendurado na parede, dele com os sócios no jogo de golfe. Cerca de três
décadas de carreira haviam passado. Atrasado para a festa, sai em disparada com seu carro quando
um ônibus atravessa no farol vermelho. Não teve tempo de desviar e o automóvel capota.

*$"
"
Acordou recebendo o oxigênio da paramédica. Olha para o lado e vê o carro destruído.

Na maca, a profissional do SAMU pega seu documento para preencher os formulários e


percebe o nome igual ao do colega, Leopoldo Couto de Magalhães. Ela chama o socorrista
homônimo, conta a coincidência e o apresenta ao Sr. Leopoldo.

O senhor deu trabalho, chegou a ter uma parada cardíaca. Demorei vinte minutos para
conseguir fazer o senhor voltar, mas não desisti. Graças a Deus o senhor está bem - disse sorrindo e
orgulhoso.

O socorrista, com o olhar interrogativo, completa: “Curioso termos nomes iguais. Minha mãe
me deu este nome em homenagem ao médico que fez meu parto e me salvou após cerca de vinte
minutos sem eu chorar. Um verdadeiro milagre. Foi o primeiro nascimento da história sem sequelas
depois de tanto tempo sem respirar. Qualquer outro teria desistido”. Explicou ainda que este era o
motivo de ele ter se tornado paramédico.

O doutor, estendendo a mão para agradecer ao xará, questiona “ quantos anos você tem?”.
Segurando a mão de maneira firme mas com ternura, ele responde: trinta anos. Dr. Leopoldo olha o
contorno de pomba no pulso do braço estendido do paramédico e diz: Eu lembro deste dia como se
fosse ontem!

*** Fim ***

*%"
"
4.6. Jogo de Cristal

Sábado de manhã, a guerreira descansa das batalhas vencidas na semana assistindo aos anseios
de turismo na televisão e reclama ao marido:

- Estou ficando esgotada de ver tudo isso que você está consertando.

- Mas quem está fazendo sou eu e em silêncio.

- Mas está me cansando – insiste.

Móveis montados e as caixas no canto da sala trazem o peso da história. Paredes nuas deixam
o ambiente pastel.

- Só o ajuste na porta torta da cristaleira e vou parar. Cinco minutos.

A cristaleira recém-adquirida, cândida como um vestido de noiva, com três prateleiras de


vidro, majestosa e imponente, tinha sido comprada a fim de guardar, principalmente, as quarenta
peças do jogo de cristais. O melhor presente de casamento, nas palavras dela. Após um bom vinho,
as taças usadas eram sempre lavadas e guardadas imediatamente.

- Vou ficar no quarto - a mulher finaliza a conversa.

A mudança para o novo bairro, sonho desde a época de sedução, chamegos e mãos
entrelaçadas, poderia trazer o encanto das épocas passadas. A sala, com mais espaço, tornaria possível
receber amigos em uma noite de queijos, risadas e vinhos. A cama, agora maior, evitaria o costumeiro
esbarrão da madrugada.

No criado mudo, o retrato deles no dia do casamento na beira da represa. A barriga, envolvida
pelo vestido herdado da vovó, ainda não aparentava, mas prometia uma família feliz. O sol se pôs na
água trazendo um fundo lapidado às fotografias. Cada tia levou um prato de comida, como em um
arraial. “O enlace mais lindo já visto” foi o comentário de vovô.

Recorda o começo difícil, a gravidez aos dezessete anos, ambos ainda nos estudos, a urgência
de ele conseguir o diploma. O dobro de matérias em um único ano. A formatura. A empolgação do
primeiro salário. O primeiro aparelho de som comprado trouxe música.

Deixa escapar uma leve simpatia sem deixar escorrer lágrimas ao lembrar da chegada da
primogênita. As bochechas apertadas pelos colegas e professores da faculdade ao trocar as fraldas na

*&"
"
mesa da biblioteca.

O menino veio quatro anos depois com cara de anjo. Encheu de alegria a irmã que achava ser
seu presente. Preocupou ao demandar, às pressas, com um mês de existência, a cirurgia no coração.
Os dias de UTI. O coelhinho de pelúcia, com o apelido de “Feliz”, foi comprado e colocado no berço
de casa à espera de seu retorno e combatia o desassossego. Foi fiel companheiro até a adolescência.
A cicatriz da operação ficou de troféu para ser exibida para as meninas.

As dificuldades financeiras foram sendo resolvidas com uma dose elevada de persistência,
sacrifício e apoio dos avós. Ela nunca se conformou de não conhecer a Europa, mesmo tendo dinheiro.
Ele sempre adiou. Raiva. Quero viajar.

Ela reconhece ter orgulho de o casamento ter durado tantos anos. Poucos amigos conseguiram
um relacionamento com tamanha longevidade. Compara ao matrimônio dos pais dele. Diferente dos
meus pais.

Impulsiva e sem papas na língua, olha o vaso de flores vazio. Queria ganhá-las. Queria ser
vista nos olhos. Queria ter conversas desmedidas sobre assuntos triviais em um jantar lírico e qualquer
galanteio bobo e incauto. Queria alguém para ouvi-la reclamar dos problemas sem tentar resolvê-los.
Já não fazem filmes românticos como antigamente.

Na sala, ele pega a caixa de ferramentas e coloca ao lado da cristaleira. Abre a porta com
tento. Afrouxa os três parafusos o suficiente ao arranjo necessário. Só um tico para cima e passa do
impecável. Droga. Torta para o outro lado. O par tem que ficar alinhado.

Sempre funcionário da mesma empresa de contabilidade. Estava desencantado com o ganha-pão.


Devia ter chegado longe. Quero aprender coisas novas. Já passei dos quarenta.

Inveja o dinamismo da vida profissional da esposa que já havia sido vendedora em loja de
brinquedos, documentadora em uma empresa de informática, professora de meditação e de esperanto,
trabalhado com marketing, jornalismo e computação, e, precisando gastar mais energia, tornou-se
empresária.

- Alguns milímetros e ficará na posição correta – sussurra a si mesmo.

Ele queria mudar de emprego, mas dificilmente conseguiria ter o mesmo salário em outro
lugar. Gostaria de falar de suas angústias e dilemas, mas calado e ruminante, preferia se omitir. Não
vai adiantar mesmo.

Com esmero, coloca-a no ponto exato. Pronto. Agora só falta apertar os parafusos para acabar.
*'"
"
Ao ver a cicatriz na mão, atesta estar sempre ocupado nos finais de semana. Retocava,
melhorava e reforçava. As pessoas perdem tempo com televisão e tagarelice. Mesmo quando assistia
ao futebol, trabalhava ao notebook, sendo interrompido apenas no grito de gol. Lembrou que a esposa
queria ir ao parque. Tenho muitas coisas a fazer.

O apoio da prateleira de cima da cristaleira se solta. Dois copos vão direto ao chão. Ele agarra
a base de vidro a fim de evitar um desastre. No chão, os estilhaços imobilizam os pés descalços. Uma
taça desliza em direção à borda, como se quisesse pular ao precipício e, em uma tentativa de
equilíbrio, os pés comprimem pedaços dos estilhaços daquela história. Paralisado e encurralado, sente
o peso fadigar. O suor na testa. Mãos e pernas tremem pelo desequilíbrio insistente. Sem suportar
nem encontrar saída, solta o grito de socorro.

Ela corre em direção à sala de jantar.

- A droga da prateleira soltou – o desastrado reclama, tentando equilibrar as taças de


sobremesa, shots e copos na bandeja improvisada para não cair nas duas prateleiras
abaixo.

- Calce seus chinelos. O que eu faço?

- Tire tudo de baixo, preserve o que está na base - responde com alguma esperança, se
equilibrando ao se apoiar melhor.

Não conseguiriam suportar o peso acumulado que os próximos anos traria. Nem mesmo
queriam.

A caneca pesada de chopp corre veloz, deslizando em mais uma tentativa suicida em direção
à borda.

Poderia ter feito tantas coisas diferentes. Tocado a pele e beijado sua nuca de forma incessante.
Morrido de ciúmes. Rosas vermelhas. Enfrentar a fila do restaurante no dia dos namorados. Um elogio
mentiroso do esmalte azul nas unhas. Sentimentos e pensamentos bem semeados mudariam a
situação. Elogio à reaproximação. Ter separado tempo para Roma.

A taça cai em cima da prateleira do meio, os suportes desta também se soltam, e, estagnados,
sem qualquer reação salvadora, uma avalanche de taças de cristais desce ao chão. Quarenta peças
destruídas em poucos segundos. Nenhum par representaria as últimas duas décadas. Perdidos.
Reticência.

Com as transparências espalhadas, surge um filme instantâneo dos momentos juntos e ela
*("
"
chora sem derramar lágrimas ou reclamar. Tudo acabado? Talvez nunca devesse ter começado. Quem
é o culpado? O que faço aqui? Tempo perdido?

Ele, saudoso dos tempos felizes de solteiro, não quis mais permanecer. Resolveu que iria
aprender a se comunicar. Ser romântico para novamente fazer uma bela mulher sorrir. Queria alguém
por quem iria satisfazer os desejos. Iria viajar. Conhecer o mundo e dançar. Iria apaixonar e se
apaixonar.

Ela invejou as amigas solteiras bem resolvidas e decidiu virar a página. Não ia mais querer
adivinhar. Faria suas vontades com alguém que a quisesse admirar. Seria carinhosa e iria retribuir.
Teria um relacionamento sem expectativas exageradas, com comunicação aberta, clara e sincera. Iria
mostrar o que era importante sem se anular. Se apaixonaria e iria apaixonar.

E no vazio ao redor dos dois surgiu o espaço a ser preenchido. Passaram, então, a deixar suas
mentes desguarnecidas. O desejo a um outro princípio se incorporou. O sol penetrou pela janela ampla
e, ao se refletir nos fragmentos ao chão, iluminou suas retinas. Os restos eram restos e novas
transparências iriam surgir. Aos poucos, em silêncio, anestesiados, limpam a sujeira gerada pelo
passado sabendo inexistir coincidências.

Varrem os restos. Ela, em um impulso abençoado pelo magnetismo da lua nova, o abraça
forte, com desejo de renovação. Colocando o rosto em seu peito, sente o aconchego há muito não
sentido e escuta o som da eterna harmonia.

*** Fim ***

*)"
"
4.7. Relógio de bolso

Irmãos, primos e primas passávamos as férias de verão na chácara da família no interior de


São Paulo. Jogar bola, peteca, buraco e “Oito Maluco”. Era um desafio, uma competição, fazer o
pedido enquanto estrelas cadentes riscavam o céu. Eu sempre perdia e se fosse hoje seria
diagnosticado com déficit de atenção. Cavar túneis nos barrancos e levar bronca pelo perigo de ser
soterrado. Balançar no pneu de trator amarrado na grande mangueira. Trepar em árvores e nadar o
dia inteiro na represa de Jurumirim, às vezes com melancias, eram as atividades mais gostosas.

Não podíamos entrar na água por uma hora depois do almoço, que era cronometrada pelo
vovô Benício em seu relógio de bolso com o vidro lascado e números finos enquanto, de forma
ritmada, batia as pontas dos quatro dedos da mão direita, marcada pelo trabalho de uma vida na roça,
na velha mesa de madeira da varanda da casa principal.

Sempre começava pelo dedo mindinho em direção ao fura-bolo, e a cada sequência de três
corridas de dedos dava dois toques mágicos com o dedão. Não era simplesmente bater com o dedão,
era um “grand finale” com harmonia, ritmo e equilíbrio dos grandes mestres. Talvez o maior maestro
que pudesse existir, pelo menos o grande maestro da minha vida com todos os exemplos que trouxe
para os filhos e filhos dos filhos.

Vovô sempre roubava para nós os últimos dez minutos da hora exigida por papai para
digestão, quando, após um beijo no velho rosto, partíamos em disparada para o mergulho que aliviava
o calor seco de trinta graus. As minhas pequenas pernas corriam em disparada levando todo o meu
meio metro de corpo até a represa, sedento por um deslizar nas águas refrescantes. Mas o coração
ficava abraçado com vovô, que observava, sem ter noção de como um dia poderia fazer falta.

Foi única a vez em que ele ficou bravo com meu primo, que eu chamava de tio. O primo pegou
no meio do arbusto uma cobra verde, daquelas da cor da água, pela ponta da cauda e ficou girando,
girando e girando. Coragem ou loucura? Ele continuou a girá-la e a girá-la, se agachou e em um
impulso de corpo inteiro a soltou e a atordoada voou. De um helicóptero virou um foguete. Foi até lá
em cima quase no topo do grande eucalipto. Quando ela voou meu coração disparou, as meninas
gritando e os meninos sem respirar, saímos todos correndo com medo da chuva de serpente. Zonza,
pousou e se agarrou em um dos galhos mais altos para que o meu primo não a pegasse de novo. Ficou
encolhida, observando, curiosa e tentou entender como podia voar se não era um sabiá. Mas não quis

**"
"
mais descer. Não quis se arriscar. Aqui em cima é mais seguro. Vovô protestou batendo o chapéu de
palha na perna. Não faça isso menino. Esta cobra é venenosa. Agora é venenosa e sabe voar.

Jogávamos peteca, no campinho improvisado. A rede era amarrada entre o coqueiro e a viga
do telhado da casa. Parávamos o jogo para vovô atravessar a quadra, arrastando suas sandálias de
couro em seu passo vagaroso. Quando terminava a travessia, dizia “sorta o boi”, apitando o reinício
da partida.

No casamento do primo Zé, na beira da represa, onde cada tia levou um prato, como em um
arraial. As barracas de dormir armadas na entrada do pomar. O altar montado com um grande arco
em varetas de bambu cheias de folhas. O mergulho refrescante do noivo cinco minutos antes de o
padre chegar. Tudo muito simples. Vovô elogiou: “O mais lindo que já vi”.

O pomar, abundante em mangas, verduras e mexericas poncãs, era visita obrigatória e


suculenta. O sol judiava da pele sem protetor solar, dia após dia, mas só era percebido depois de
semanas esturricando, quando precisávamos de Hipoglós para conseguir dormir. Os tapas do tio
espanhol nas costas eram ardidos, mas engraçados quando eram nas costas dos outros.

Ao fim de cada tarde, o sol se punha com graça, pureza e inocência. Víamos a grande e linda
bola de fogo descer por trás dos eucaliptos, no topo das montanhas. E a cor laranja nas águas mornas
que massageavam nossas peles. O grão de areia da praia, na beira da represa, era o centro do meu
universo. E o barulho dos grilos mais próximos, interrompiam o silêncio e a paz da distância da
cidade.

Sinto tristeza por não experimentar mais aquelas sensações. Hoje, quando sinto o cheiro de
esterco de vaca, fico imediatamente leve e saudoso.

*** Fim ***

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"
4.8- Estes caras

Entro no metrô no vagão de sempre. Encosto na porta da frente, a mais próxima da escada
rolante costumeira. Alguém pode achar egoísmo, pois estou no caminho da saída. Estou preparado
para, se alguém reclamar, explicar. Gostaria de contar. Vou descer na próxima vez em que a porta
abrir, daqui a duas estações. Não antes e nem depois, só na próxima vez, quando a porta onde estou
apoiado abrir. As pessoas reclamam de tudo. Mas se alguém reclamar já estou pronto.

Entra um rapaz com cara de nerd e coloca uma caixa de um instrumento musical no chão. No
meio do corredor. Perto da outra porta. Ele vai se equilibrando enquanto o trem parte para a próxima
estação. Abre a caixa e pega o instrumento. É um violino bonito e bem lustrado. Eu gosto de que
toquem música na viagem, quando a música é boa, lógico. Não gosto de sertanejo, rap nem de funk,
mas nunca ouvi funk aqui. Graças a Deus é um violino. Gosto principalmente dos grandes mestres.
Vivaldi, Chopin, Mozart, Beethoven e Tchaikovsky. É cada vez mais comum músicos no metrô. Deve
ser a situação do país. Adoraria ter sido músico, mas isso não dá dinheiro.

Ele começa a tocar. Eu conheço esta música. É ……...Despacito, a música da moda. Não é
clássica, mas tem um ritmo gostoso. Ele toca com uns trejeitos engraçados. Faz-me lembrar de um
concerto na Sainte-Chapelle. O violinista tinha uns movimentos parecidos. Esta viagem foi fantástica.
Todas as paredes da capela são de vidro. Foi em um entardecer e o sol iluminava os vitrais refletindo
a luz colorida em toda a igreja. O concerto foi uma apresentação de uma obra de Vivaldi. Sinto meu
pescoço e braço arrepiarem com as lembranças vindas à cabeça. Sorriso.

O rapaz toca bem violino. Queria dar dez reais pra ele, ou vinte, mas só tenho notas de cem
na carteira. Ele ficaria muito feliz com uma nota de dez, normalmente eles não ganham notas assim.
Ganham de dois, algumas moedas às vezes, mas não as de dez. Esta dá pra pagar um almoço para
estes caras. Como alguém consegue comer com uma dezena de reais?

Estava lembrando da Sainte-Chapelle, em Paris. Igreja linda. Toda aquela iluminação natural
filtrada pelas pinturas nos vitrais com a melodia me embriagando. Aquilo elevou minha alma e
cheguei ao céu. Foi fantástico. Fiquei dias flutuando. Não vejo a hora de ir novamente ver uma
apresentação neste pedaço do céu.

Ninguém aprende violino no Brasil sem estudo. É um instrumento difícil. Meu filho toca
quatro instrumentos: violão, bateria, harpa e flauta. Não conseguiu aprender violino. Nem com as
aulas.

!+!"
"
O trem chega na estação seguinte. A porta onde estou encostado não abre, pois só a do lado
direito dá passagem. Se alguém perguntasse eu teria esfregado na cara. Tenho controle da situação.
Não estou atrapalhando ninguém. Eu poderia ir de carro para o trabalho, mas no centro é ruim, pega
muito trânsito e acho mais cômodo ir de metrô. Esta linha é vazia, com ar condicionado e confortável.

O rapaz continua. Ele deve ter estudado muito para tocar bem assim. Ele acaba o primeiro
trecho da música e bato quatro palmas. Faz um pequeno discurso de agradecimento e passa o boné
azul escrito NY para arrecadar uns trocados. Quase ninguém dá dinheiro, alguns dão algumas moedas,
deve ser porque todo mundo usa cartão de crédito hoje em dia e não carrega dinheiro na carteira. Ele
realmente tocou bem, merecia receber uns trocados.

- Estou sem trocado, mas você está de parabéns - digo quando ele passa ao meu lado.

- Valeu - ele agradece com um sorriso no rosto ossudo e branco e continua a passar o
boné.

- Você estudou violino em alguma escola? - pergunto admirado.

- Na Juilliard, em Nova York - continua andando.

Mentira, tenho certeza. É mentira, apesar da boa pronúncia do nome da escola. Ninguém
estuda em uma escola destas e pede dinheiro assim.

Ele começa mais uma música e em poucos segundos chegamos à estação seguinte. Ele
interrompe a apresentação, agradece a todos e se despede. Eu achei estranho apenas tocar o começo.
Escuto a mensagem no alto-falante “Não é permitido o comércio de ambulantes e pedir esmolas no
metrô”. O nome dele é George. É magro, meio pálido e se veste mal.

O guarda o conduz para fora do vagão. Ele tentou explicar. Estava só trabalhando, mas o
funcionário não quis saber, estava seguindo ordens. Uma pena. Bons músicos deviam poder fazer
estas apresentações. Devia ser permitido, como em Nova York.

George, na plataforma, observa uma senhora americana pedir informação ao funcionário que
o acompanhava. Este não fala inglês. George a orienta sobre como chegar ao destino dela. Ela
agradece. Ele sorri.

Ele é escoltado pelos seguranças até a catraca.

Eu desci na estação seguinte.

*** Fim ***


!+#"
"
4.9. Zé do Boné

Entro em mais uma jornada. Hoje será divertido. Espero muitos passageiros. Gosto deste
ponto, onde minha viagem começa. Tem um ar caseiro. Os muros da casa em frente são brancos, mas
as paredes de dentro são verdes. Os números são azuis.

Hora de partir, antes que me atrase e fique preso em algum compromisso. Não aguento ficar
só observando. Não posso e não quero me atrasar. O momento é agora. Preciso ir embora.

Entro em meu ônibus e parto. Quase canto os pneus de tanta vontade de dirigir, mas estas
máquinas são pesadas e o motor é a diesel, faz um vrom. Correndo, consigo sair da rua da casa. Agora
eu sigo meu caminho. Ando durante três quarteirões. Não pego trânsito algum nestas vias menores.
O horário e os astros ajudam.

Passo perto da praça e do mercado do seu Jerônimo, mas não paro, ainda não tem passageiros
dando sinal para entrar.

Três quarteirões e chego na esquina com a avenida, tchi-tchiii. Está muito movimentada. Dou
sinal para entrar na primeira faixa. Os motoristas ficam observando, mas não dão passagem. Entro de
uma vez na frente de um caminhão. Eu precisava arriscar. O piloto me dá uma buzinada e grita “quer
morrer?!”. Foi calculado. Sorrio e sigo sem me importar, mas o suor escorre na testa.

Dois pontos e ninguém dá sinal. Domingo nesse horário é vazio mesmo. Estou com fome.
Não tomei café da manhã. Vou parar no bar do Seu Manuel. Fica logo alí depois da sorveteria.
Estaciono o valente, tchi-tchiii, e desço para comer algo. Entro e as pessoas ficam observando.

- José do boné, você precisa regular isso, está fazendo muito barulho. Leve para a garagem e
não saia de lá enquanto não arrumar esses apitos - diz o dono do boteco.

Não falo nada. Concordo com a cabeça. Sorrindo.

- Já falei isso para você das outras vezes e não fez nada. Assim não dá - completou o português
bigodudo.

Ele reclama todos os dias quando passo por aqui, sempre a mesma coisa, o ônibus gritando, o
freio apitando, a porta batendo e o motor roncando. Quando paro aqui ele me dá um ovo cozido azul

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"
do vidro grande no balcão. Ele sempre me dá um destes e um café. Adoro este cheiro. Fico com mais
vontade de dirigir ainda. Seu Manuel gosta de mim. É meu amigo.

Dou adeus, rindo, e escuto os clientes do seu Manuel cochichando, mas não entendo o que
dizem.

Entro e fecho a porta, blaaam, chamando a atenção dos pedestres. Dou partida, vrom, vrom,
vrom e engato a primeira empurrando para a frente com minha mão direita. Alguém grita "para de
atrapalhar o trânsito" e dá uma buzinada. Este trânsito de São Paulo é caótico mesmo. O pessoal é
tudo maluco.

Dirijo até o próximo ponto. O freio grita um barulho longo e agudo Ihhhhhh. Os transeuntes
ficam me mirando. O portuga tem razão. Preciso arrumar isto. Abro a porta, ninguém entra. Fecho-a
puxando a alavanca que faz novamente um som de batida com força, blaaam. Calor. O tempo está
muito seco. Não vai chover.

A mulher grande, escura, e bochechuda, comendo salgadinho, olha em minha direção. Eu


lambo o beiço. Ela sobe as duas sobrancelhas, primeiro a direita e depois a outra. A boca dela com
lábios finos faz um arco com os cantos para baixo. Careta feia. Não está vendo, estou trabalhando!?
Dou dois toques na buzina fom-fom para cumprimentá-la. Ela vira o rosto. Mal humorada.

Parto novamente, troco de marcha e ouço outra buzina, "Aprendeu a dirigir por
correspondência?", grita o motorista do carro vermelho dando risada. Não sei qual é a graça. Achei
ter dado seta, eu juro. Paciência.

Engato a segunda marcha puxando o câmbio para trás e acelero, vrom. Todo mundo fica
olhando. Estou com sede. Dirigir nestas avenidas me deixa com a garganta seca. Não trouxe água.

Piso no acelerador e o coletivo adiante reduz a velocidade do nada. O semáforo fechou. Aperto
o pedal do meio e ele diz Ihhhhhh. Alguém freia atrás quase em cima, mas não encosta. Meu queixo
cai quando reparo que tem ônibus para todos os lados. Estou correndo risco entre estes enormes. O
motorista de trás gesticula com os braços. Ele mexe os lábios, mas não escuto. Gesticulo com meus
braços também, igual ao boneco de vento da loja de pneus.

Uma vez parei na borracharia, tchi-tchiii, e desci. Veio o cara de dentro da loja achando ter
um pneu furado para consertar. Eu fui até o boneco de vento e fiquei balançando os braços igual ao
amigo de vento. O dono da loja ficou me olhando e olhando. Não me intimidei, continuei balançando,

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"
dançando e dançando. Ele não entendeu minha performance. Sorri pra ele e continuei rebolando e
rebolando. Os braços lá em cima girando e girando. Foi tão bom! Eu sei, sou simpático.

O farol abre e o coletivo da frente sai. Eu vou atrás, vrom. Escuto seu João da mecânica gritar
"Boa tarde, Zé do boné!". Devolvo o cumprimento com a mão direita. Aparece um carro ao meu lado
com uma criança de cabelo vermelho e ferro nos dentes. Ela está no banco de trás e fica me
observando sem piscar. Talvez os olhos saltem para fora. Dá até medo. Mostra a língua. Eu devolvo
e ela se encolhe. Não consigo mais vê-la. Deve estar debaixo do banco.

Esta função é difícil, mas eu adoro ir pelos carros. Sinto o vento da liberdade na cara. O cheiro
da fumaça me deixa animado. Fico suado nesse calorão. Não tenho ar condicionado, mas vejo
diversos rostos e expressões. Todos simpáticos.

Escuto uma freada tão alta quanto a minha e uma batida. Olho pra trás para ver do que se trata
e por pouco não encosto no carro adiante. Ufa! Esta foi perto. Saio do veículo e vejo um motoqueiro
caído. Meus olhos se enchem de lágrimas. Abaixo a cabeça e coloco as mãos nos olhos. Já caí de
moto com meu irmão. Na época doeu muito. Eu me ralei inteiro. Passei no farol vermelho e atropelei
um cachorro. Nem um dos dois sobreviveu. Eu, depois disso, só ando de coletivos. Tenho saudades.

Encontro o Fernando.

- Tava sumido Zé do Boné. Achei que não ia mais voltar para estas ruas. Onde estava?

Respondo com algumas palavras. Ele balança a cabeça, com a boca aberta, olhos arregalados
e enruga a testa. Acho que ele não entendeu o que eu disse.

- Cuidado com este trânsito, hein!? Só tem louco aqui. Se eu fosse você ficava nas vias menores
- diz ele se despedindo.

Como um veículo deste porte pode ficar só nas ruas menores? Faço a linha toda para atender
meus passageiros.

Aceno com a simpática mão direita e vou embora.

Vrom até o próximo ponto. Abro a porta com a alavanca e a mulher com as duas crianças
corre e sobe, no coletivo atrás de mim. O sinal não era para eu parar. Uma pena. Gosto de crianças.
Continuo em frente.

Cheguei no grande cruzamento e observo um McDonald's. Estaciono e fico olhando. Não


posso ir lá. Já levei bronca. Vou cumprir com minha obrigação. Preciso chegar na parada final no

!+&"
"
horário. Engato primeira e vou sem dar seta, vrom. Engreno a segunda. Acelero forte e continuo.
Vrom. Buzino fom-fom e engato terceira. Ando por dois quarteirões e freio forte no ponto final,
ihhhhhhh.

Chego e dois rapazes vestidos de branco me seguram e colocam em um carro de chapéu


vermelho com uma luz acesa girando. Eu protesto reclamando. São surdos?

O alto diz “Você fugiu de novo para dirigir seu ônibus imaginário?! Por que você não dirige
lá dentro mesmo? Vai morrer nestas ruas. Fica me dando trabalho!”. O gordinho masca chiclete como
um camelo.

Eles me levam para casa branca, colocam em mim uma camisa que me abraça, mas não deixa
eu mexer meus braços, e meu ônibus continua fazendo vrom, blaaam, fom-fom, ihhhhhhhhhh.

- Fica quieto Zé! - os dois dizem em uníssono.

Sorrio. Tchi-tchiiiiiii.

*** Fim ***

!+'"
"
4.10. Sonho em Paris

Joana sai da missa de domingo de manhã apressada. Era a primeira vez, nos últimos anos, que
deixava a igreja sem se despedir do padre. Mal conseguiu prestar atenção ao sermão, desejando
notícias da prima.

Chegou em casa e, se incomodando com o insistente rangido ao abrir o portão enferrujado, se


depara com o marido sentado na velha cadeira de balanço na varanda.

- Oi, Antônio! Os meninos apareceram? Não, né? Faz tempo que você está aí? Viu se o
Jaime da mecânica passou? Duvido que ele tenha aparecido. Aquele preguiçoso. Disse que vinha e
não veio. Sempre a mesma coisa. Até parece que está me evitando - disse Joana sem deixar o marido
responder, como de costume e, entrando apressada pela porta da sala, enquanto Antônio concordava
com a cabeça fumando seu cigarro, completou - Vou ver se chegou o e-mail da Sarah. Eu olhei antes
de sair para a missa e não tinha chegado.

Após sentar na cadeira da escrivaninha do computador, Joana limpa os óculos com o tecido
da blusa e abre um sorriso lendo a tão aguardada mensagem da prima:

1º dia

Querida Jô,

Como estão as coisas aí? E o Antônio, os meninos e os netos? Espero que todos estejam bem.

Ontem fez quatro anos que o Jonas morreu. Foi no ano de dois mil e um. O tempo passa
rápido, não é verdade?

Chegamos bem em Paris e já estamos no hotel. A viagem foi boa. Foi interessante viajar de
avião pela primeira vez. Eu estava com medo. Deu um frio na barriga na hora de partir, mas correu
tudo bem. Exceto pelo contratempo, dentro do avião, antes de decolar. Eu quis ir ao banheiro depois
que acendeu o sinal de apertar os cintos. Eu estava muito apertada. Falei para a Patrícia que seria
rápido e eu poderia fazer xixi nas calças se eu não fosse. Ela insistiu para eu não ir, mas fui assim
mesmo. Realmente estava me segurando. Disfarcei até a aeromoça passar, corri e abri a porta do
banheiro puxando a alavanca, mas era a porta errada. Era a de emergência e deu a maior confusão.
O voo atrasou meia hora por causa disso. Eu acho que o aviso de “Saída de Emergência” é muito
pequeno. Como uma pessoa apertada consegue ler em inglês naquela placa vermelha com luz
amarela? Absurdo! Devia ser tudo em português. Fiquei morrendo de vergonha. Eles deveriam

!+("
"
sinalizar melhor estas coisas. Imagina que perigo! Poderiam ser mais cuidadosos. A Paty teve que
dizer que ia se responsabilizar por mim e que não ia me deixar sozinha novamente, como se eu fosse
criança e precisasse de uma babá. Filha cuidando de mãe. Ainda não preciso disso. Com uma
confusão dessa, só lembrei de ir ao banheiro depois de uma hora.

Não gostei do que eles serviram no voo. Tinha massa, pães, carne, uma saladinha mixuruca
e um doce. Eu não como farinha e açúcar. Minhas refeições são muito regradas.

Quando aterrissamos, pegamos as malas e depois chamamos um táxi. O motorista era meio
seco. Você sabe que não falo francês desde a adolescência. Acho que a última vez foi aos treze. Eu
só tirava dez nesta matéria. Naquela época, as escolas eram boas, escola pública com aulas de
francês. Eu estava falando do taxista. A Patrícia conversou com ele e se entenderam. Você sabe que
minha filha é muito inteligente. Eu não entendi nada. Deve ser um francês moderno este que eles
falaram. Se fosse aquele francês clássico, eu teria compreendido. Também estou destreinada, são
muitos anos. Mas não precisa fazer contas da minha idade.

Na vinda para o hotel, vimos de longe a Torre Eiffel. Ela é linda, com luzes brancas dos pés
até o topo que ficam piscando à noite. Aqui, nesta época do ano, escurece tarde. Estava claro até as
dez horas.

A maioria dos franceses tem a pele clarinha igual a minha. Sempre imaginei que devia ter
nascido aqui, você sabe. Já foi a cidade mais importante do mundo, com muita riqueza e glamour.
Talvez eu tenha sido uma rainha francesa em outra vida (risos).

Já jantamos. A Paty está tomando banho. Vamos deitar para acordar cedo e ir passear. Aqui
já passou da meia-noite. Estou cansada. Passar pelo aeroporto e tudo mais foi desgastante.

Beijo no coração.

Da sua prima.

Sarah

P.S..: Eu estou feliz por conhecer Paris. Queria que você estivesse aqui conosco. Amanhã te
escrevo outro e-mail, como te prometi. Um por dia.

Joana sorri ao saber que a prima está bem e chegaram em segurança. Viu a foto de ambas, na
estante, quando bebês, lambuzadas de brigadeiro, com as colheres de pau na mão. Sarah nasceu
exatamente um ano depois de Joana. Consideravam-se almas gêmeas. Nas festas de aniversário na
!+)"
"
adolescência, trocaram entre si o primeiro pedaço de bolo em todos os anos, sem exceção. Cresceram
dividindo segredos e pensamentos.

Sempre tiveram medo de viajar de avião e sonhavam em conhecer Paris. Assistiram ao filme
“Duas garotas em Paris” treze vezes no único cinema da cidade de Piedade e ficavam discutindo
quem era Dayse e quem era Sofia, as duas irmãs gêmeas que fugiam para Paris em busca de um
grande amor. Todas as histórias da cidade-luz sempre as faziam suspirar.

Sarah, depois de casada, não costumava sair do condomínio fechado em que morava, em São
Paulo. Apenas para ir ao salão de beleza uma vez por semana, pelo menos esta foi a vida antes da
viuvez.

Joana estava feliz pela prima que agora estava na Europa. Um dia eu também vou viajar.
Quem sabe no ano que vem quando completo sessenta e cinco. É uma data importante. Não conseguiu
tirar da cabeça a curiosidade sobre o que as duas estariam fazendo naquele momento e como seria o
próximo e-mail de Sarah, até que pôde lê-lo no dia seguinte.

2º dia

Amada Jô,

Não recebi nenhuma resposta sua. Sei que você não gosta de escrever e-mails e de tecnologia,
mas podia pelo menos falar que recebeu minha mensagem. Gostaria de poder te mandar algumas
fotos, mas a Paty disse que não trouxe o cabo para transferir da máquina fotográfica para o
computador. Depois quero te mostrar todas.

Hoje acordamos cedo e ela queria sair correndo para irmos ao Museu do Louvre, daquele
jeito acelerado dela. Mas teve que esperar. Você sabe que, para ir ao banheiro, eu sou um reloginho.
Ela ficou me apressando, mas não funcionou. Só conseguimos sair às nove e meia.

O Museu do Louvre é enorme. Conhecemos a ala egípcia, vimos múmias, sarcófagos, tumbas
e muito mais. Fomos, também, aos aposentos de Napoleão Bonaparte. Nos aposentos, me senti em
casa, mas não na ala egípcia. Quanta múmia velha e enrugada. Será que fui casada com Napoleão
na outra vida? Espero que o Jonas não tenha lido isso lá do céu (rs).

Vimos também o quadro da Monalisa. Eu já tinha lido que era um quadro pequeno e não
estava com muita expectativa, mas adorei ter visto pessoalmente. Achei até maior do que eu esperava.
Só não gostei pois estava muito cheio. Você sabia que uma vez jogaram ácido no quadro? Tiveram

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"
até que restaurar. Outra vez jogaram uma pedra e, ainda, uma xícara de café. E, ainda, roubaram o
quadro. Até acharam que aquele pintor, o Picasso, era o ladrão. Que absurdo né?

No Louvre, o que eu mais gostei foi uma estátua de um anjo quase beijando uma mulher,
parecia de verdade. Feita em mármore. Era tão delicada e suave. O nome desta escultura é “Psiquê
ressuscitada pelo beijo de Eros”. Não sei o que significa, mas achei romântico.

Você precisa ver as poses que as pessoas fazem imitando as estátuas. A Paty tirou foto destes
turistas. E você tem que ver os japoneses. Acho que são japoneses. Talvez sejam chineses ou
coreanos. Eu não sei. Para mim eles são muito parecidos. Mas o que eu achei muito curioso foi que
quando um começa a bater fotos de um quadro ou uma estátua aparecem mais uns vinte e começam
a bater várias fotos também da mesma obra. Daí um vai para outra obra de arte e o cardume vai
atrás e começam de novo. Se eu fosse japonesa eu ia tirar foto de um hidrante só pra ver eles me
copiando (risos).

Ficamos cerca de quatro horas lá. Só conseguimos ver uma parte. Sai muito cansada, mas
com a alma renovada.

Depois, na saída do museu, nós vimos uma noiva de vermelho tirando fotos à noite em frente
à pirâmide que fica do lado de fora. Apaixonante, com toda aquela iluminação e reflexo nos espelhos
d’água.

A Patrícia me contou que está super feliz por eu ter vindo com ela. Ela me convida há anos
para viajar para vários lugares e reclamou de eu nunca querer sair de casa e ficar sempre enfurnada
no condomínio. Desta vez, ela me convenceu quando disse que seria para conhecer Paris. Estou
gostando de viajar, mas não tem lugar melhor que a nossa casa. A minha cama é melhor que a deste
hotel. Vai saber quem usou este lençol. E se os talheres foram bem limpos. Vou te contar um segredo:
trouxe meus talheres, só uso os meus.

Aqui é verão. Está fazendo trinta e seis graus. Você sabe que não gosto de tomar sol, pois
envelhece. Minha pele é muito branquinha e delicada, igual à dos franceses. Uso chapéu, filtro solar
e fico indo de sombra em sombra. Corro em zig-zag atrás das sombras dos postes e das árvores. A
Paty acha engraçado. O importante é ter a pele protegida para não envelhecer.

Agora vou dormir. Estou cansada e amanhã tem mais. A Paty disse pra eu fazer o reloginho
despertar mais cedo amanhã para não pegarmos uma fila grande. Vou tentar, mas não sou bem eu
que mando.

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"
Se puder responda.

Beijo grande.

Sarah

Joana, ao acabar de ler o e-mail, desejou ver as fotos o quanto antes. Queria visitar o museu
do Louvre e ver os quadros mais famosos do mundo. Sentir o vento parisiense nos cabelos e ouvir os
franceses.

- Um dia ainda viajo para Paris. Você está me ouvindo, Antônio? Sabia que não. Você
nunca me escuta. Eu fico falando e você aí, nem me dá bola - disse Jô olhando para o marido que
dormiu no sofá enquanto assistia ao programa de auditório de domingo, com três latinhas de cerveja
vazias ao lado no chão.

Antônio, como se estivesse respondendo, ronca alto e, engasgando e tossindo, acorda. Levanta
a cabeça com os poucos fios de cabelo despenteados e deita novamente. Vira para o outro lado e
continua seu cochilo.

- O que será que elas vão fazer amanhã? - sussurra Joana enquanto pega a sujeira
deixada pelo marido.

Ao acordar, no dia seguinte, lê mais um e-mail de Sarah.

3º dia

Minha querida prima,

Descobri o porquê de os perfumes franceses serem os melhores do mundo. As pessoas aqui


não tomam banho todos os dias e alguns tem um cheiro ruim, ainda mais com este calorão. Quando
andamos de metrô, deu para sentir o cheiro forte. A Paty disse que no Brasil, também é assim. Não
posso afirmar, pois não ando de metrô no Brasil há muitos anos.

O metrô daqui é cheio das escadas, não é fácil subir, tem que ter as pernas fortes. Ainda bem
que faço exercício todas as semanas. Algumas estações têm elevador e escada rolante, mas não são
todas. A Patrícia disse que a maioria dos elevadores fica escondida.
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"
Hoje visitamos a Torre Eiffel. A Paty a chama”Torrinha”. De “inha” não tem nada. É
gigante e muito mais impressionante do que nas fotos. Subimos até o topo. Ela é dividida em três
níveis. Demoramos cerca de uma hora na fila de elevadores para conseguir ir ao ponto mais alto. A
vista de lá é linda, deu para ver as luzes da cidade se acenderem aos poucos ao anoitecer. Tirei
várias fotos. Quero te mostrar quando te encontrar.

Fomos também na loja de souvenirs, comprei lembrancinha para todos. Não vejo a hora de
dar seu presentinho. Comprei também um chapéu para mim. Paguei dez euros. Adoro lojinhas, posso
passar mais de hora nelas, mas a Paty não tem muita paciência e pede para irmos embora.

Estou achando as ruas um pouco sujas por aqui perto do hotel. Tem lixo nas calçadas. A Paty
disse que é porque tem muito turista e que no Brasil é até pior. E que o centro de São Paulo cheira
mal. Eu nunca vi.

Nós fomos à padaria comprar pão para comermos à noite e a atendente pegou o baguete com
a mesma mão que segurou o dinheiro e deu para a cliente. Este pegou e colocou debaixo do braço,
bem perto da axila, sem embalagem nenhuma. Que nojo! Ainda bem que não gosto de comer nada
com farinha.

A Paty tomou um sorvete sabor cerejeira japonesa. Se eu pudesse com açúcar teria
experimentado. Ele era muito bonito.

Hoje estou cansada. Amanhã lhe escrevo mais.

Beijinhos

Sarah

Joana fica olhando por alguns segundos para a tela do computador e rabisca no bloco de papel
três mulheres e a torre Eiffel. Poderia ter pego todas suas economias e ido sem pensar no amanhã.
Foi convidada, mas tinha o Antônio. Não tinha coragem de deixá-lo sozinho. A Maria Elvira podia
se engraçar com ele, igual a quando eles namoravam. Era melhor ficar de olho.

- Antônio, e se fôssemos fazer uma viagem? Podíamos sair de Piedade um pouco. Podia ser
para Gramado, Foz do Iguaçu ou um cruzeiro de final de semana em Santos, daqueles que vão até o
Rio e voltam. Este deve ser muito caro e você não vai querer ir, né? Aposto que você não quer, não é
verdade? Também tem medo de enjoar, né? Fica aí só assistindo TV. E não gosta de passear. Se eu
soubesse tinha casado com o Alberto. Se bem que ele já morreu. Pelo menos eu estaria livre. O

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Alberto era legal. E eu escolhi você e o deixei escapar. Ele ficou careca. Você também. Ele acabou
casando com a Ritinha. Eu não sou de falar mal dos outros, mas que mulher chata. Fala sem parar e
sem dar trégua. Não é à toa que ele já morreu. Fugiu dela. Isso sim. Ela vai à igreja e depois fica
fofocando sem parar. Fala mal até do padre Alceu - diz Joana andando em direção à cozinha para
passar um café. Amanhã, depois que a Sarah mandar o e-mail, vou escrever para ela.

- Aham - o marido respondeu sabendo que o plano da viagem não ia adiante.

4º dia

Olá Joana,

Como vocês estão? Pergunto, mas não espero que responda. Aqui está tudo bem.A Paty está
te mandando um beijo.

Hoje pegamos um metrô para irmos à igreja Sacre Coeur. Eu não aguentava mais subir
escada e daí achamos um elevador na estação. Dei graças a Deus porque tinha elevador e a Paty
apertou o botão para chamá-lo. O elevador chegou e entramos rápido com medo de a porta fechar.
Quando a porta fechou respiramos fundo e percebemos que estava todo urinado. Nós não tínhamos
percebido pois não estava molhado no chão. Estava muito calor e a porta e as paredes do elevador
eram de vidro. Bateu o sol e evaporou. Ficou uma sauna de urina. Depois que a porta fechou não
tivemos reação e não conseguimos fugir. O elevador subiu bem devagar. Em câmera lenta mesmo.
Demorou uma eternidade para chegar lá na plataforma de embarque. Que tortura! Saímos e
respiramos novamente. Depois que chegamos na plataforma vimos que tinha uma escada rolante.
Como alguém pode urinar dentro de um elevador? Que nojo! Voltamos para o hotel para eu tomar
banho.

Esta linha de metrô é bem velha e o trem é muito barulhento. Existem outras linhas mais
modernas aqui, mas esta parecia que tinha vindo do túnel do tempo. Minha filha disse que o metrô
de São Paulo é um dos mais modernos do mundo. Você acredita nisso?

No almoço, a Patrícia comeu um prato que chama “fuagrá” (não sei como escrever em
francês). É fígado de pato ou de ganso. É considerado uma iguaria. Eu experimentei. É amanteigado
e suave. Bem melhor do que aquele fígado que comi quando tinha quinze anos por causa da anemia.
Você lembra? Achei que estava ficando velha e parei de comer quase tudo. Graças a Deus depois de
comer fígado de boi pararam de cair os tuchos de cabelos e consegui recuperar minhas madeixas.

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"
Credo, nunca mais quero ter anemia. E também não quero comer fígado, só se for o “fuagrá”. Só
voltaria a comer o de boi se fosse para rejuvenescer uns vinte anos. Daí valeria a pena.

O garçom do restaurante, ao qual fomos, ficou bravo comigo, pois eu estava demorando para
escolher meu prato e fiquei perguntando para a Patrícia o que era cada item do menu. Ele atendia
sozinho cerca de umas vinte mesas. Ele até bufou. Corria pra lá e pra cá sem respirar quase. Eu não
gosto de ir a restaurantes, muito menos aqui em Paris que os garçons são mal-humorados.

Também fomos ao Museu d’Orsay. Amei este museu. Ele fica em uma antiga estação
ferroviária. Tem uma janela em que a vidraça é um relógio enorme e tem vista para o rio Sena. Lá
tem vários quadros famosos. O d’Orsay é menor que o Museu do Louvre e bem mais gostosinho e
charmoso. Eu acho.

Já ia me esquecendo. Eu tive um pesadelo com o sorvete de cerejeira japonesa. Sonhei que


tinha experimentado e a minha barriga começava a crescer igual ao homem de marshmallow. Credo.
Deus me livre.

Agora vou tomar meu banho para irmos jantar, só vou te escrever amanhã.

Beijinho e boa noite.

Sarah

Joana quis fazer um milhão de perguntas à prima. Decidiu escrever um e-mail perguntando
mais sobre “fuagrá”, Museu d’Orsay e o impaciente garçom. Respirou fundo e começou a digitar
“Querida prima, seus relatos são muito interessantes”. Olhou para o teto e viu as teias de aranha
acumuladas. Levantou e foi pegar uma vassoura na área de serviço.

Enquanto limpava o teto, ficou a imaginar como seria ser atendida por um garçom francês e
como poderia fazer para ele não ser rude com ela. Sorrir é sempre eficiente.

- Antônio, quer uma cerveja? - pergunta Joana, deixando para depois sua mensagem.

5º dia

Joana liga o computador e não há novas mensagens enviadas por Sarah. Passa o dia
atualizando sua lista de e-mails sem receber qualquer informação da prima. Lembra das poucas
palavras que começou a escrever no dia anterior, mas desiste. Estava com preguiça e deixou para
depois.

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- Antônio, o que será que aconteceu? Será que está tudo bem com a Sarah e a Paty? Ai meu
Deus! Talvez tenham roubado o computador da Paty. Eu falei para ela tomar cuidado. Para ficar longe
das multidões. Será que aconteceu algum desastre? Vou ligar a TV para ver se tem alguma notícia.
Fez o sinal da cruz e pegou seu terço.

A preocupação se estendeu por toda a noite. Tomou um calmante para dormir. No dia
seguinte, as horas demoraram a passar até que chegou a mensagem tão aguardado.

6º dia

Doce prima,

Desculpe não ter te escrito ontem. Mas o cabo do notebook da Patrícia estragou e não
conseguimos sair para comprar outro, as lojas já estavam fechadas. Hoje, ela conseguiu um novo
quando saímos de manhã.

Ontem fomos aos Jardins de Luxemburgo. Lá é muito bonito. Talvez eu tenha morado lá na
outra vida. Para falar a verdade não acredito em outra vida. O terreno tem vinte e cinco hectares
(não sei quanto é um hectare, mas é grande), com gramados floridos, fontes, esculturas e um palácio.
Pude me imaginar passeando em carruagens com criados me abanando. Que calor que faz aqui na
Europa!

Quando voltamos fomos passear na avenida Champs-Élysées. Achei muito cheia, mas tinha
um monte de lojas de grife. Em uma delas, estavam vendendo sapatos masculinos coloridos por
quinze mil euros cada par. Eram horríveis. Melhor fazer uma plástica. Eu acho.

Ainda ontem, teve um desfile de carros da marca Ferrari. Achei sem graça, mas a Patrícia
tirou fotos. Ela disse que eles são muito caros, mais de um milhão de reais. Quem ia querer gastar
dinheiro com carros tão caros? Não faz sentido.

Nos restaurantes, que têm varanda para a calçada, as mesas são colocadas de uma forma
que as cadeiras ficam todas do mesmo lado da mesa. Todo mundo fica olhando para a rua. Lembrei
do quadro da Santa Ceia.

Hoje, fomos em um bairro que se chama Montmartre. Neste bairro tem um cabaré chamado
Moulin Rouge. Este tem na fachada um moinho de vento vermelho. Lá tem um show de dança muito
famoso. Quando estávamos na frente deste lugar, vimos uma mulher, que estava com a bolsa aberta
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e tirando fotos, ter a carteira roubada. O ladrão pegou a carteira e fugiu. Ela nem viu. Deus me
livre! Fiquei tão assustada que fomos embora e desistimos de ver quanto custava o show no Moulin
Rouge.

Na volta para o hotel, passamos por uma rua que tinha fezes no meio da calçada. Cocô de
gente mesmo. Um cheiro horrível. Cheio de moscas. Saímos correndo e atravessamos a rua. Que
gente porca! E eu achei que não tinha destas coisas na Europa. Primeiro mundo, é? Que nada!

Mas depois, à noite, fizemos um passeio em um barco-restaurante que se chama Bateau


Mouche, no rio Sena, com jantar. Tinha inclusive artistas tocando violino e cantando. As pontes
ficam lindas à noite com a iluminação refletindo na água. A Paty disse que fiquei bêbada. Eu não
estou acostumada a beber, você sabe. Só tomei duas taças de vinho. Mas eu só estava alegre. Ela
exagerou.

Agora vou deitar.

Beijos e abraços.

Saudades

Sarah

- Antônio, a Sarah respondeu. Você acredita que tinha dado problema no computador da
Patrícia e por isso ela não escreveu o e-mail? - disse Joana com um sorriso e a alma leve. Amanhã é
o último dia delas em Paris e voltarão para o Brasil. Podíamos ir visitá-las no próximo final de semana
em São Paulo. Vamos? Aproveitamos e saímos de Piedade um pouco - pergunta Joana sem perceber
que estava sozinha na sala.

7º dia

Querida Joaninha,

Voltaremos hoje à noite para o Brasil. Este é o último e-mail que escrevo daqui. Pena que
você não me respondeu. Espero que estejam bem.

Hoje, acordamos e saímos às sete da manhã, eu queria aproveitar bem o último dia em Paris.
Tomamos café da manhã em uma padaria aqui perto. Comi três croissants e tomei um capuccino.

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Acho que exagerei nos croissants, mas eles são muito levinhos e estava uma delícia. Comeria tudo
de novo.

Saímos e caminhamos por uns vinte minutos. Quando me dei conta, estávamos na frente de
uma doçaria de paredes rosas com uma vitrine toda enfeitada. Eu olhei e minha boca encheu de
água. Disse para a Patrícia “vamos comer um doce?”. Ela ficou me olhando por alguns segundos
com ar de interrogação e me disse que eu não como doce. Respondi que a vida passa muito rápido
pra ser muito vaidosa. Tem que aproveitar. Não é um desfile de beleza. É uma viagem linda, cheia
de experiências, sabores, emoção e aprendizado. Estes sessenta e três anos voaram. E se amanhã eu
morro. Quero conhecer lugares e ter experiências diferentes. Eu sei, não quero engordar, mas
também tudo tem limite. Já que estou viva eu vou viver!

Escolhi um doce que eu tinha certeza de que o nome era “bomba”, mas ela disse que o nome
é “sonho”. Era um sonho enorme, com um monte de recheio e cobertura de açúcar fininho. A Paty
escolheu um que chama “macaron”, de sabor rosas. Estranho né? Compramos e, como não havia
mesas, saímos de lá andando. Ela quis voltar para o hotel para podermos comer em um lugar mais
limpo do que na rua, mas eu salivava tanto que não aguentei esperar. Sentei no degrau da vitrine,
na calçada mesmo, e comi o doce inteiro. Lambi até os dedos. A Paty disse, com voz grave, “Satanás,
saia do corpo da minha mãe”. Eu fiz o sinal da cruz três vezes e disse “me respeita menina”. Ela
ficou olhando para mim com os olhos arregalados enquanto eu saboreava aquele creme delicioso.
Talvez eu até tenha engordado um pouco, mas, pra falar a verdade, estou me sentindo mais leve. Só
de lembrar já estou com água na boca.

Quero fazer uma viagem para Roma com a Paty no ano que vem, mas ela ainda não sabe. A
Anita, minha cabeleireira, sempre falou muito bem da capital italiana, os avós dela são de lá. Quero
aprender a me virar melhor e estudar inglês. E, talvez, depois, francês ou italiano. Para viajar, é
importante falar uma outra língua. Quer ir conosco? Pensa nisso!

Agora estamos arrumando as malas para ir para o aeroporto. Quando chegar em casa, eu te
ligo.

Beijos e reze para que tenhamos uma boa viagem.

com amor

Sarah

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Joana, tentada pelo convite, morde o lábio inferior, inspira forte e, expirando longamente, se
levanta. Pensativa, vai à sala ver se o marido estava acordado, enquanto ele assiste ao jogo de futebol.

- Antônio, você acredita que a Sarah comeu aquele doce “sonho”? Daqueles fritos com
um monte de açúcar em cima. E ainda disse que era enorme. Ela não comia doce há mais de década.
Deve ter engordado nesta viagem. Este ar francês mexeu mesmo com ela. Nem a reconheço. Ela disse
que vão viajar no ano que vem para Roma. Está toda animada. Até me chamou para ir com elas.

Antônio enruga a testa ao levantar as sobrancelhas e, sem desviar os olhos da televisão, coça
o pescoço atrás da orelha direita.

Joana se senta ao lado dele no sofá e, olhando em direção à televisão, diz: “Eu vou! Quem
sabe também conheço Paris e como um sonho”.

*** FIM ***

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5. Conclusão

A ideia de fazer a pós-graduação em escrita criativa surgiu em 2015 em meio a uma


insatisfação profissional, talvez “crise dos 40”. O trabalho não me desafiava e não me trazia
aprendizados que eu considerava interessantes.

Procurei um novo hobby e me senti atraído por desenvolver minha criatividade.

Comecei a fazer algumas oficinas de escrita criativa e, mesmo sem ter qualquer experiência
prévia, me senti motivado por criar textos. Estava me divertindo, no entanto, por não conseguir
dedicar muito tempo semanalmente tive a percepção de que precisava de um envolvimento maior.

Fiquei sabendo que existia pós-graduação em escrita criativa, quando procurava um curso de
graduação, e a ansiedade tomou conta de mim. Estranhei a sensação de um forte frescor quente que
tive no peito e, na noite que aconteceu esta descoberta, não consegui dormir de ansiedade.

Sabia que fazer uma pós-graduação envolvia muita dedicação e sacrifício. A indecisão tomou
conta mais uma vez de mim. Mesmo não seguindo uma religião, pedi orientação aos meus anjos da
guarda e que eles me dessem um sinal caso fosse para eu fazer este curso. Foi quando imediatamente
senti o coração palpitar como nunca antes e o peito esquentar como se estivesse pegando fogo, mas
de uma forma refrescante, leve e extremamente agradável. Não tive mais dúvida que tinha que me
inscrever e tentar ser aceito no curso.

Fiz a minha matrícula e fui chamado pelo coordenador do curso Rodrigo Petronio para uma
conversa que me questionou se era isso mesmo que eu queria. Meu currículo não mostrava nem sequer
um item que descrevesse qualquer experiência em escrita. Com certeza ele tinha razão em me chamar
para confirmar se eu não estava me matriculando de uma forma totalmente equivocada. Creio que eu
fui o único dos alunos desta turma chamado para esta conversa por tão diferente que era meu histórico.

Comecei a fazer as aulas e logo na primeira percebi que a grande maioria dos colegas tinha
vasta experiência na área, alguns com livros publicados e outros com grande experiência de escrita
em revistas, televisão, etc. Senti que eu era um peixe fora d’água. E me perguntei, o que estou fazendo
aqui, mas “continuei a nadar”.

Com o passar do tempo fui aprendendo algumas teorias e anotando outras para um dia
entender melhor e aprofundar. Fui me maravilhando com o mundo da escrita e literatura cada vez
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mais. As dificuldades foram muitas por, acredito, eu ser realmente muito cru nesta área, a ponto de
pensar que não era capaz algumas vezes.

A paixão que alguns professores têm pela literatura me trouxeram ânimo e motivação. Diante
deste cenário procurei me dedicar e seguir as orientações destes. Colocar as palavras no papel dando
vazão aos sentimentos foi me trazendo satisfação e leveza.

Com esta matéria-prima, as ferramentas ensinadas e alguns elogios, comecei a ter resultados
que me traziam mais confiança. Fiquei estimulado a continuar.

Sei que ter feito esta pós-graduação é um grande passo no caminho de me tornar escritor. No
meu caso um gigante primeiro passo. Ainda tenho muito a aprender, mas tenho consciência de que
comecei de uma forma profunda e com uma qualidade ímpar. A vida é um eterno aprendizado.

Hoje estou apaixonado pela escrita e consegui confirmar que é isso que eu quero para mim.
Talvez a primeira vez em minha vida eu tenha tanta certeza assim de seguir um caminho.

Desta forma, só tenho a agradecer ao coordenador, aos orientadores, aos professores e aos
colegas pela dedicação, carinho e atenção. Também por tudo que aprendi, tanto na parte técnica
quanto à motivação e direcionamento.

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"
6. Referências

6.1. ANDRADE, Mário de, O PERU DE NATAL E OUTROS CONTOS DE MÁRIO


DE ANDRADE, Editora do Brasil; Edição: 1ª (1 de agosto de 2017);

6.2. Mckee, Robert. STORY, Editora: Arte & Letra; Edição: 1ª (1 de janeiro de 2017);

6.3. TCHEKHOV, Anton. TREZE CONTOS, Edições Best Bolso; Edição: 1 (27 de maio
de 2016);

6.4. VOGLER, Christopher, A JORNADA DO ESCRITOR - ESTRUTURA MÍTICA


PARA ESCRITORES, Editora Aleph; Edição: 1 (16 de setembro de 2015);

6.5. TCHEKHOV, Anton. O BEIJO E OUTRAS HISTÓRIAS, Editora 34; Edição: 1ª (1


de janeiro de 2006);

6.6. MAUPASSANT, Guy de, CONTOS ESCOLHIDOS DE GUY DE MAUPASSANT,


Editora: D. QUIXOTE (28 de fevereiro de 2012);

6.7. DIDION. Joan. O ANO DO PENSAMENTO MÁGICO, Editora: HarperCollins;


Edição: 1ª (1 de julho de 2018);

6.8. LISPECTOR, Clarice, LAÇOS DE FAMÍLIA, Rocco Digital; Edição: 1 (4 de agosto


de 1998);

6.9. SONTAG, Susan. DOENÇA COMO METÁFORA, Companhia das Letras (4 de abril
de 2007);

6.10. MÁRQUEZ, Gabriel García, COMO CONTAR UM CONTO - Record; Edição: 54


(1 de julho de 1986);

6.11. By DAILYMAIL.COM REPORTER, “PARAMEDIC SAVES DOCTOR FROM


BURNING CAR WRECKAGE 30 YEARS AFTER THE MAN SAVED HIM WHEN
HE WAS BORN PREMATURE”. Disponível em: <https://www.dailymail
.co.uk/news/article-3025001/Paramedic-saves-doctor-burning-car-wreckage-30-years-
man-saved-born-premature.html>. Acesso em: 04/12/2019;

6.12. By Blog Coletivo Lírico, Cultura Genial, “UMA ANÁLISE DA OBRA: A


PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA DE SALVADOR DALÍ”. Disponível
em:<https://coletivolirico.com.br/uma-analise-da-obra-a-persistencia-da-memoria-de-
salvador-dali/>. Acesso em: 04/12/2019;

6.13. SIQUEIRA, Vinicius, “OS AMANTES, DE RENÉ MAGRITTE - CRÍTICA À


MODERNIDADE LÍQUIDA. Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/hepatopatia

!#!"
"
_cronica/2012/02/os-amantes-de-rene-magritte---critica-a-modernidade-liquida.html>.
Acesso em: 04/12/2019;

!##"
"
“Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto
vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida”.

Fernando Pessoa

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