You are on page 1of 57
Ciro Flamarion S. Cardoso + Acreditavam os Gregos em seus Mitos? — Paul Veyne +s Nos Submundos da Antiguidade — Catherine Salles ‘+ Poméia: Sexialidede e Amor no Mundo Antigo — Aline Rousselle O EGITO ANTIGO Colegio Primeiros Passos ‘+ O que é Historia — Vavy Pacheco Borges Colegio Tudo 6 Hist6ria ‘+O Mundo Antigo: Economia e Sociedade — Maria 8. 8. Fiorenzano Colegio Primeiros Vos ‘+ O Inventério das Diferencas — Paul Veyne '* Mitologia Grega — Pierre Grimal ‘+ Uma Introdugao a Histéria — Ciro Flamarion Cardoso Copyright © Ciro Flamarion S. Cardoso 123 (antigo 27) Artistas Grificos Revisao: Newton T. L, Sodré José E. Andrade Introducdo Afaléncia da ip ‘editora brasiliense s. 01223 — r. gen ‘sdo paulo — bra: A meus pais. INTRODUCAO O Egito faradnico no somente representa o pri- meiro reino unificado historicamente conhecido, co- ‘imo também a mais longa experiéncia humana docu- mentada de continuidade politica e cultural. Mesmo ‘nao incluindo o periodo greco-romano — embora 0s monarcas helenisticos e os imperadores de Roma tenham figu como “farads" em monumentos egipcios —, a historia do Antigo Egito se estende por uns dois mil e setecentos anos, de aproximadamente ité 332 a.C.: como todas as datas rel jativas 4 civilizacdo faraGnica sio anteriores & era crist8, eliminaremos doravante a mengao “antes de sto”, fa nio ser que por alguma razio seja necesséria. Tal_ historia conheceu, € verdade, fases_de_descentrali- zago, anarquia e dominio estrangeiro, mas durante estes Tongos séculos 0 stituiy uma mesma entidade politica reconhecivel.—_ wk continuidade e a longevidade sto ainda mais Ciro Flamarion S. Cardoso O Exito Antigo impressionantes do ponto de vista cultural: a antiga ingua egipcia manteve-se relativamente estével, em- sofrendo algumas mudancas, durante quatro mile quinhentos anos. E de cerca de 3000 a.C. até o muitos outros aspectos_ ininterrupta, a grande permanéncia dos padrdes culturais egipcios: escrita hieroglifica, concepgbes-acerca da Fealeza, rel transportado ao apogeu da XVIII dinastia, | | mais tarde, notaria sem divida muitas mudangas no pais; mas a sua dificuldade de adaptaco as novas circunstincias seria provavelmente bem menor do que a de um francés de 1781 — ou seja, contempo- raneo de Lufs XVI — que se visse trazido por milagre 4 Franca de hoje, apenas duzentos anos depoi | ‘iltimo faraé — no sentido exato da palavra || | =, Nectanebo II, morreu na 341, quando uma expedicao 1 gundo dominio persa sobre o p: trés séculos, portanto. Um milénio e | | dos iltimos estertores d entanto esta distante tando hoje IV, parte I, Paris, Editions A. et J. Picard, 1964, p. 707.) tos livros de divulgagao destinados ao grande pui- Tumba de Mahu, Tell-el-Amarna. (J. Vandier, Manuel d'archéologie égyptienne, tomo Fig. 1 — O chefe de policia Mahu se ocupa do abastecimento de seus subordinados — ‘A que se deve a atragio do Egito antigo? Em 10 iro Flamarion S. Cardoso 0 Exgito Antigo talvez. as suas ja mencionadas longevidade & wuidade. E um fendmeno fascinante 0 de uma através de numerosas transforma- Ges, arrosta impavida varias dezenas de séculos sem perda das caracteristicas essenciais que definem sua especificidade. Outra razAo parece set uma espécie de fascinio exético e nostalgico exercido sobre o nosso mundo secularizado de hoje por alguns dos elemen- tos culturais do Egito faradnico, em particular-area- leza de carater divi jorada, com sua obsessio pela imortalidade. Em nossa opinido, porém, 0 mais apaixonante dos tragos do velho Egito 6 outro, que trataremos de ilustrar com um exemplo. Na tumba do chefe de policia Mahu, em Akhetaton (Tell el-Amarna), que data do século XIV, vemos um mural representando tal funcionario ocupando-se da distribuicao de vi veres aos seus subordinados. (Ver a Figura 1.) A pri- meira vista, o que chama a atencilo so as convengBes da arte egipcia: as personagens de alta hierarquia (registro superior direito) sio representadas em ta- manho bem maior do que os homens comuns; as fi- guras humanas aparecem de perfil (embora com os olhos e os ombros de frente); inexiste qualquer et de perspectiva. E, noentanto, se obser perto a parte direita do mural, no registro superi entre Mahu e 0 outro dignatario (espécie de pri- meiro-ministro, acompanhado por um de seus altos funcionarios) que, vestido de uma longa tiinica, dé ao chefe de policia a autorizagao para retirar 0s vi- veres dos depésitos do rei, notaremos no chio um braseiro, o que indica que a cena tem lugar de manha cedo e no inverno. Logo abaixo, o transporte dos limentos inspira um quadro pitoresco de grande facidade. E no tiltimo registro, sempre a direita, estando as vitualhas j4 entregues, vemos, entre outras figuras, uma camponesa confortavelmente instalada sobre um grande cesto, gesticulando ¢ conversando com um tropeiro... E realmente fascinante tal mis tura de convengdo e naturalismo, a coexisténeia, que podemos seguir ao longo de ménias religiosas e mondrquicas com cenas de f cidade domést balho agricola e artesanal, es- portes e jogos — enfim, mil detalhes da vida quoti- diana de nobres e plebeus. No séeulo III, isto é, no Egito heleni sacerdote — Manethon — escreveu uma Histéria do Egito, hoje perdida. Dispomos, porém, de fragmen- tos da mesma, transmitidos por outros autores, e em especial temos as listas das casas reais ou dinastias do Egito faradnico que elaborou. Manethon deve ter utilizado os arquivos dos templos de sua época. Ape- sar de erros contidos em suas listas, ¢ outros devidos ivos copistas, e embora saibamos que houve isto politica), efémeras ou mesmo inexistentes, 0 contexto logico habitualmente seguido para a Historia egipeia continua usando 0 quadro defeituoso, mas segundo ‘vel, de tais dinastias. Engloba-as, es mais vastas: Reino Antigo, Reino Novo e Epoca Tardia, sendo tais fases Ciro Flamarion S. Cardoso basicas separadas.entre-si_por-trés-“peri medidrios", épocas de anarquia, descentr: poder, declinio econémico, ésperas Iu oliticas © mesmo fases de dominio estrangeiro. Apesar dos progressos constatdveis na cronologia da Hist6ria do Egito antigo, as vezes com base em fatos astronOmicos dativeis, muita incerteza subsiste em ‘quase todas as datas anteriores a 664. A margem de erro no inicio da Historia dindstica é de até 150 anos; as datas do Reino Médio sao em geral bastante se- guras; quanto ao perfodo que se estende do inicio do 10 Novo a 664, 0 erro possivel é de uma década jadro n® 1 resume a crono- até a conquista de Ale- xandre. A nao ser para as fases anteriores & primeira dinastia de Manethon, optamos pelas solugdes pro- postas recentemente, em matéria de datagao, por: John Baines e Jaromir Malek, Atlas of Ancient Exypt, Oxtor . 36-37. " silo, na _verdade, quase_exclusivamente Hist6rias dos_reis_extpcios: suas dinastias, batalhas, conquistas, construgdes € outros feitos:-Uma tal distorgo é em parte o resul- tado do carter predominante da documentagio es- crita e arqueol6gica disponivel, a qual ilumina sobre- tudo a religido e a monarqui trataremos de dar atencao s das dimensdes reduzidas da obra — as es 0 Exgito Antigo QUADRO I: CRONOLOGIA DA CIVILIZACAO DO EGITO ‘ANTIGO ATE A CONQUISTA MACEDONICA. Period Datas ances cde Cristo Dinasias de Manethon Paleoitio © Mesll- ‘ico Periodo da Unica (protoinistic) Dindstico Primitivo termedirio, Epoca Tardia parte da XV; XVI es Antes de 4500 (ou $500] Segundo outros) = ‘De 4500 (ou $500) a "3000 (ou 3100) - De 3000 (0u3 100), 2920 2920 — 2575 2575 2164 214-200 2040 — 1640 1640 — 1550 15501070 xvaxvit XVI a XX, 1070— 712 AXXX m3 & 0 Exito Antigo A FALENCIA DA “HIPOTESE CAUSAL HIDRAULICA” © povoamento do Egito é questao das mais dis i ‘igumas décadas, a teoria mais corrente a respeito ligava-o & formagao da ecologia norte da Africa. Isto porque, durante milénios, atual deserto do Saara foi regidio de savanas, habi tada por cacadores, pescadores e posteriormente p criadores de gado ¢ agricultores. A medida, porém, que se foi dando o progressivo ressecamento cl tico responsével pela formacdo do grande deserto, sendo 0 Nilo um curso de gua perene — por nao depender das escassas chuvas egfpcias, e sim de fend- menos atmosféricos que se dio bem mais ao sul, na regitio dos grandes lagos africanos e da ia—, © seu vale foi atraindo cada vez mais saarianos “brancos", do grupo lingiistico chamado hamita, aos quais se misturaram semitas ou proto-semitas vindos da Asia ocidental pelo istmo do Sinai ou atra- vessando o Mar Vermelho, e negréides que desceram © vale do Nilo no sentido sul-norte. Alguns autores, apoiados em argumentos principalmente arqueol gicos, afirmavam ter ocorrido também uma migra- ‘¢Ho ou conquista proveniente da Baixa Mesopota- mia, por volta de 3300-3100. Esta visio, que assegurava serem “caucaséid (brancos) em forma predominante os antigos egi ios, foi fortemente atacada por historiadores negro- africanos — C. Anta Diop e T. Obenga —, que com argumentos lingiisticos (semelhanga entre 0 antigo egipcio e linguas negro-africanas de hoje) e de outros ipos trataram de provar que os egipcios da Anti- dade eram negros. Se o desejo de apresenté-los 10, a nova teoria sobretudo poli- ticas (pan-africanismo). Este tltimo ponto aparece com clareza num trecho de A. Diop: “A redescoberta do verdadeiro passado dos po- vos africanos deve contribuir ndo para afasta-los uns dos outros, mas para uni-los na plenitude, para cimenté-los de norte a sul do continente, para tornd-los aptos a que cumpram juntos uma do historica para mé yem da huma- rrigine des G. Mokhtar, ed., Histoir générale de U'Afrique, I, Paris, Jeune Afrique- ‘Stock-UNESCO, 1980, p. 72.) Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo Em 1974, reuniu-se no Cairo um coléquio cienti- fico dedicado A questio do povoamento do Egito. Forca é confessar que, além de nfo chegar a resul- tados conclusivos (0 que é de fato impossivel com os dados que temos at reunio caracteri- zou-se as vezes por debates estéreis e dogmAticos, ba- seados em certos casos na distorgao dos fatos dispo- niveis. Felizmente algumas vozes sensatés fizeram-se entao ouvir. Mostrou-se ser absurdo querer estabe- lecer correlag Iinguas e sistemas culturais (a verdade € que termos ‘como “ham por exemplo, nao cor- respondem a conceitos claros). Foi lembrado_tam- bém que o Egito, situado na confluéncia da Africae da Asia, nunca esteve isolado, sendo inaceitavel pre- tender que sua populagdo foi exclusiva ou predomi nantemente “branca”, tanto quanto “negra”, j4 que tudo indica ter sido sempre muito. mesclada, pelo menos desde 0 Neolitico. E recordou-se que, no fundo, uma discussao abstrata sobre a cor da pele € bastante irrelevante diante de questdes bem mais importantes, como por exemplo a necessidade de jidades e continuidades técnico- intas épocas no interior do Egito, € entre o Egito © a Ni como for, 0 debate cerea do povoamento egipcio anteriormente & uni- icagiio depende de fontes — restos humanos, icono- grafia, dados lingiisticos e etnolégicos — em certos casos insuficientes, problemdticas ou mal distribuf- das, além de ainda mal exploradas em detalhe. Por exemplo, restos humanos paleoliticos 6 foram acha- dos na Baixa Nabi tico cobrem esta tilt Alto Egito (ou sej 1s do Neolitico e do protod 1a e — insuficientemente — 0 Baixo Egito ou Delta). Alguns destes restos sto tao fragmentarios que no puderam ser objeto de estu- dos de Antropologia Fisica. (Ver: Le peuplement de U'Egypte ancienne et le déchiffrement de Vécriture méroitique, Paris, UNESCO, 1978.) Deixando de lado o tema do povoamento, de que maneira, partindo de grupos dispersos de caga- dores, pescadores e agricultores primitivos, chegou- se a um.tinico reino egipcio — embora persistente- mente dual em carater (0 faraé era “rei do Alto e sua coroa era dupla)? Estudos paleoecolégicos recentes, realizados em particular por K. Butzer e B. Bell, verificaram que, entre 3300 e 3000, ocorreu no Egito uma queda pro- nunciada da pluviosidade. A agricultura e a criaco de gado, antes possiveis numa faixa de cinco a seis quilémetros de cada lado do rio, e em vales tributa- rios (wadis), com a extenso das areas desérticas passaram a ser praticdveis mente no vale do Nilo, e no delta formado pelo rio ao desembocar no Mediterraneo. Por outro lado, entre 3100 e 2700 deu-se uma diminuigao dos niveis médios da cheia anual do Nilo. Tudo isto indicaria, entdo, uma cres- cente dependéncia da Agua do rio, no periodo 3300- 2700, & medida que o pais se tornava mais seco. A atual ecologia do Egito, com suas trés regivdes:_o 18 Ciro Flamarion S. Cardoso OEgito Antigo com maior extenstio de terras ardveis ¢ de ‘contendo também muitos pantanos; 0 Vale, faixa de terra ardvel apertada entre desertos, jidade continha igualmente_manchas est que na Ani Pantanosas; eo deserto estéril. Ao mesmo tempo, Besenvolveu-se crescentemente uma agricultura de- pendente da irrigag3o, com aproveitamento ¢ con- frole do fendmeno natural das cheias anuais do Nilo. (Ver a Figura n? 2.) Sendo assim, é forte a tentagdo de atribuir a ‘unificagdo do Egito num s6 reino, ocorrida por volta ido ano 3000, a necessidade de uma administracao centralizada das obras de irrigago para o-bom fun- jgrfcola num pais de clima no século pas- i¢o no Egito, © J. Vercoutter: para sua posterior estabilidade, 4 quem se extasie muito a respeito da esta- ‘de do povo egipcio... Esta caracteristica... foi favorecida pela necessidade de um governo politicamente forte para assegurar a irrigagao... (cuja) manutengao nao pode ser assegurada se- do por um poder central forte que impor a todas as provincias. Assim, todo o sis- tema politico egipcio repousa sobre uma neces- sidade , geografica, da qual nao temos equivalente algum em nossas sociedades ociden- Fig, 2 — Mapa do Egito e da Nibia (o limite entre Egito € Mie anion ora feaidade de Eon juny d primeira catarata do rio Nilo). (Cyril Aldred, Os Egipcios, Lisboa, Verbo, 1972, p. 33.) (Note-se oe Sempre coincidiremos com as opges em matéria de trans- trigao de nomes de localidades antigas presentes neste ‘mapa.) .”" Jean Vercoutter, L’Egypte ancienne, Pa- ris, Presses Uni s de France, 1968, 6% ed., p. 18; existe em portugués: S40 Paulo, DI- FEL.) Sera accitével uma hipétese deste tipo? Para comecar a discussdo a respeito, forcoso é constatar temas antigos de irrigagdo pela Arqueo- A agricultura irrigada nunca cessou no pais da Antigdidade aos nossos dias, 0 que sigi ue 0s consertos € sucessivas construcdes novas de ues € canais destroem os tragos de sistemas mais velhos. Hoje como no passado, a maioria dos autores continua interpretando a cena representada na ca- beca de tacape do rei Escorpiao (por volta de 3000) como significando o rito solene de inauguracao dos trabalhos de um canal de irrigagdo, ou pelo menos como um rito agrario vinculado a agricultura irriga- da. Uma tradigao relativamente tardia, veiculada por Herédoto, atribui ao primeiro rei da primeira dinastia de Manethon — Menes (no comprovado indubitavelmente com este nome pela Arqueologia) — a construgao de um dique para proteger o Delta das inundacdes mais violentas, ou, segundo outra interpretagdo, para drenar o territ6rio 4 volta da cidade de Ménfis. Se tal tradigao é duvidosa, no Museu Metropolitano de Nova Iorque hé uma espé- O Egito Antigo cie de bandeja de pedra de comecos da I dinastia que nao nos deixou cédigos ou compilagdes de leis. Quan- do muito podemos constatar que no principal texto tio funerdria egipcia, o Livro dos Mortos, a confissdo negativa do morto no tribunal de Os alguns elementos que podem ser interpretados ido de que desviar ou sujar a 4gua dos canais 10 mundo dos mortos, de um » Tefletindo um dado real do fatéria feita a base de uma documentacao mais do que duvidosa é a atribuigéo a Amenemhat III (1844- 1797), ou a outro rei da XII dinastia, da construgio de um imenso reservat6rio de agua para controle da inundagdo na regiéo do Fayum,equipado com enor- mes canais, diques eeclusas. John Wilson, J. J. Clére, Arthur Weigall e muitos outros autores dio a entender que 0 Moeris” (atual Birket Karun) seria artificial. Por incrivel que parega, firma- ilo de tal envergadura se sustenta exclusivamente em certas passagens de autores g1 manos (Herd- doto, Estrabao, Diodoro da Si sem qualquer base na Arqueologia ou em documentos da época faradnica! Certos autores de fins do século passado e Ciro Flamarion S. Cardoso comegos deste foram bem menos crédulos. Assim, G. Maspero fala, com razio, da “lenda do lago Moe- ris”, atribuindo-a a uma falsa interpretagdo, por Herédoto, do fenémeno da inundacao que presen- ciou no Egito. Da mesma maneira, A. Moret mostra que 0 que os faraés do Reino -Médio fizeram, se is, foi Tegularizar e drenar um lago natural, no sentido de reduzir sua extensio e assim obter novas superficies cultivaveis, e nlo de inundar a regido transformando-a em “‘depésito re- gulador da inundagao". Nao ha diivida de que os faraés da XII dinastia tenham executado obras de drenagem acio no Fayum, provavelmente des- de que Senuosret II (1897-1878) transportou para la sua capital, ganhando assim uns 450 knt_ de novos terrenos cultiviveis. Mas também € seguro que 0 atual Birket Karun é um lago natural — ou que esta dele: foi drenado, regulari Antigiidade, mas nao “construido’ Na descricao da agricultura irrigada egipcia a primeira coisa que deve ser esclarecida é que suas condigdes eram diferentes das que imperavam na Mesopot ‘A inundagdo anual do Nilo é muito menos violenta do que a dos rios Tigre e Eufrates, ¢ também muito mais regular em sua data. Além dis- to, comeca em julho, ea retirada das aguas, em fins de outubro, coincide com 0 momento adequado para semear. Depois, entre a colheita e a nova inundagio, passam-se varios meses, permit serto dos diques e canais. Depois que 0 cereal é se- gado, o solo dos campos se torna seco e se fende, 0 Egito Antigo ficando pronto para ser penetrado em profundidade igua e pelos aluvides fertilizantes da inundagio. ‘Assim, nao so necessarias no Egito as importantes ‘obras de protecdo contra a cheia fluvial imprescin- diveis na Baixa Mesopotamia. Por outro lado, os ‘meses mais quentes coincidem com o periodo em que a terra ardvel est4 coberta pelas 4guas da inundagdo; nos meses de seca — os menos quentes — a agua do Nilo e dos reservat6rios basta para regar campos € hortas. Em circunstancias tao favordveis, o sistema hidré rigacao por tanques desenvolvido na idade foi bem mais simples do que o da Meso- is aqui uma boa descrigao: fe em que a terra ao longo do rio fique dividida em compartimentos — tan- ques — por diques levantados em Angulo reto em relaco ao curso fluvial; um canal iniciado a montante conduz a Agua do rio ao tanque, onde canais menores € valas a estendem unifor- ‘memente por todo o compartimento; outro canal recolhe 0 excesso de égua e o leva a um se- gundo tanque, ou entio de volta ao rio, a ju- sante, A irrigagdo de tanque s6 pode produzit uma colheita por ano, porque, quando o desce abaixo de certo nivel, os canais que ali ‘mentam os tanques secam. Mas, com 0 rico solo do Egito, uma colheita € o bastante, ¢ 0 tema tem a vantagem de canais curtos, da fac manutengao e Ienta elos. sedimentos. Isto significa que cada aldeia era io Ciro Flamarion S. Cardoso O Egito Antigo \dependente; ao passo que 0 trabalho necessario para obtengdo de um exce- dente de alimentos estava folgadamente ao al- cance de uma pequena unidade social, Woolley, “Los comienzos de la J. Hawkes e L.Woolley, Historia dad. Desarrollo cultural y cientifico, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1966, p. 489.) 105 recentes mostraram que o sistema egi igagdo por tanques tinha um cardter Jocal a principio: nao ha qualquer prova de uma administragao centralizada de redes de irrigacao até © Reino Médio, isto é, até mil anos depois da unit ‘cago do reino egipcio. Nestas condigdes, tudo indica que.o papel da agricultura irrigada foi enorme na formacio e consolidacdo das confederagies tribais (mais conhecido pelo termo grego ‘nom antigo compreendia cerca de quarenta nomos. A irri- gacdo no pode, porém, ser vista como a causa do surgimento do Estado centr: egipcia: pelo contrario, um sistema centralizado de obras hidraulicas para a agricultura irrigada sureiu como um resultado tardio da existéncia de um Es- tado forte. Note-se que o abandono da “ lado um sistema planejado e centralizado de irriga- do, mesmo tardiamente, nas novas condigdes 0 con- stitucional unificado da rede de canais e ques acabou por transformar-se em algo necessari sua auséncia poderia agora provocar uma catistrofe ica” nao quer dizer que, abandonada esta, seja impossivel integrar a irrigagao como um fator entre varios outros, em modelos causais mais amplos. ‘A que atribuir, entao, a unificagao do Egito? Existem muitas teorias a respeito, di em virtude da escassez de dados e fontes. Muitas das tentativas contempordneas de explicagdo (L. Krader, B, Trigger, R. Carneiro) enfatiza guerra, & conquista, ao ‘entre 0 quais a irrigagdo, pelo menos indiretamente; foi elemento de peso. 0 Egito Antigo j4 no I milénio. Os instrumentos de metal eram_tao- ‘caros e valiosos que os seus donos os marcayam com ‘0 seu sinete,-apés-pesé-los, antes de entregi-los aos. trabalhadores.-O torno para fabricagio de ceramica usado no Egito foi, durante séculos, mais lento © que era empregado na Mesopo- strumento simples, baseado no ‘pio do contrapeso, para elevagdo de recipientes oduzido no séc. XIV, en- inete mesopotamico uns seis- ECONOMIA E SOCIEDADE quanto aparece em centos anos antes. ‘Tudo isto nao justifica, porém, que se fale em “estagnagdo tecnoldgica”, e menos ainda que sejam propostas teorias simplistas (como a de William C. Hayes ha algumas décadas) a respeito de uma “psi- cologia egipcia” marcada pela falta de espirit As técnicas de produsio utilizadas pelo Egito faraGnico se fixaram na sua maioria — como ocorreu na Mesopotamia — durante 0 surto de inovacdes tecnolégicas que se estende aproximadamente de 3200 a 2700; depois, houve algumas invencdes iso- ladas e aperfeigoamentos, mas nao qualquer mu- ‘danga radical do nivel tecnologico. A comparacao do Egito com a Mesopotimia levara, porém, a constatar certo atraso do primeiro em relagdo @ segunda: 0 nivel técnico geral era mais baixo no Egito, 0s egip- cios demoraram mais a adotar certas inovagdes ha introduzidas na Mesopotamia. Assim, a subs- {ituigao do cobre pelo bronze em escala aprecidvel s6 ocorreu durante 0 Reino Médio, um milénio depois da Baixa Mesopotamia. Por outro lado, o metal levou muito tempo para substituir a madeira e a pedra na fabricacdo da maic isto sO acon- teceu de maneira significativa com a difusdo do ferro, receber passivamente sucessivos empréstimos tecno- ogicos provenientes da Asia Ocidental. E_possivel jue a idéia da agricultura ea da escrita. tenham ‘yindo-ao-Egito-da Mesopotamia: _mas_as_solucdes egipcias dadas a estes e outros problemas foram extremamente originals, € hoje jé nfo se aceita a hipdtese de uma origem asidtica da civilizacdo exip- cia. Quanto a questo da “‘estagnacdo tecnologica”, afirmar que ocorreu no Oriente Préximo pelo fato de haver este conhecido um surto de inovagdes seguido ¢ aperfeigoamento sem mu- danca radical, implica duas camente ilegitimas: 1) a identificagio do progresso técnico exclusivamente com a invengdo; 2) compa- 28 Ciro Flamarion S. Cardoso rages historicas com 0 mundo contemporaneo. Por ‘ionar os periodos em que dar o que significou para 0 Egit so das forgas produtivas Fayum a partir do Reino M uma nova zona agricola? Por outro lado, a dugdo permanente ou ocorre, em toda a hist altamente desenvolvido. Em todas as sociedades pré- ‘capitalistas, o que temos sao fases de “revolucao tec- a”, de surgimento de nova tecnologia, is se seguem periodos mais ou menos longos em que 0 novo nivel técnico € explorado e aperfeigoado, e se estende a novas regides. A origem da idéia de uma estagnagao tecnolégica “oriental” vem de uma projecdo sobre 0 passado de comparacdes feitas entre a Europa ja industrializada e paises como a India ou a China no século XIX de nossa era. Ora, compa- rages entre sociedades situadas em pontos extrema- mente diferentes de evolugdo econdmico-social care- murais das tumbas. A vida agricola se desenvolvia segundo um ciclo bastante. curto, se considerarmos as produgies ba igo duro e cevada em especial) e linho.—, em funcdo das trés estacdes do ano que eram tipicas do pafs: a inundacdo (julho- 0 Egito Antigo outubro), a tivavel do seio das Aguas, época-da-semeadura (no- vembro-fevereiro) ea colheita (marco-junho). Com a anova cheia do rio, vemos que 0 ciclo da agricultura. basica durava pouco mais de meio ano-apenas. Isto quer dizer que era possivel dispor de abundante mao- de-obra para as atividades artesanais da aldeia, para trabalhar nas instalagdes de irrigagdo, e para as grandes obras estal reais, monumentos Em certos casos, a semeadura era realizada an- as Aguas se retirassem totalmente, no barro wuido, fazendo-se que o gado menor (ovelhas, cabras, porcos) passasse sobre o campo para enterrar as sementes. Se quando se semeava a terra ja estava seca, o arado-e a enxada serviam para recobrir o grio, A enxada também servia para quebrar os tor- res de terra; para tal as vezes se usava igualmente ie de malho. Tanto 0 arado-quanto_a.en- xada_egipcios-eram_instrumentos_muito_simples_¢ eves de madeira. Como entre a semeadura e a co- Iheita se passavam de quatro a cinco meses, durante ‘05 quais os campos dispensavam a. umidade proveniente da dltima inundacio er: mais intensivos, que exigiam irrigacdo permanente, até 0 Reino Novo transportando agua em vasilhas dependuradas numa vara, e depois do século XIV Flamarion S. Ca Oe ae Es O Egito Antigo Cenas da vida agricola wW Fig. 4 — Irrigando com o shac ‘Montet, Egypte éternelle, Ve . 26.) Antigo). (Gustas tienne, Paris, Pa sundo Lepsius).) Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo cada a horticultura, sendo produzidos alho, cebola, pepino, alface e outras verduras e legumes; também. eram plantadas Arvores frutiferas, ¢ videiras. Varias plantas (como 0 sésamo) eram tengo de azeite; 0 azeite de Chegando a época da da cevada eram cortados pelo meio com uma foice de madeira com dentes de silex, enquanto o linho era arrancado. Depois 0 cereal era pisoteado pelo gado maior para separar o grio da palha, peneirado € ‘guardado em celeiros de forma grosseiramente c6- tinham a forma de paes de acticar), foram muito ativos nas lopes, gruas € asnos; 0 cavalo if servia em primeiro lugar para puxar o arado, para separar os gros da palha e para o transporte, O ca-— ‘valo era usado para puxar carros, € nao montado. ‘Vacas e bois eram-usados. também para a alimen- “fagdo (carne, leite) ¢ sacrificados aos deuses. Os pas- tos se localizavam com freqléncia nos. pantanos ou seus arredores, sendo particularmente extensos_no Delta. A umidade de tal ambiente nao era propicia ‘aos bovinos, raz&o pela qual o rebanho era renovado: regularmente mediante importagées de animais da Nubia e da Asia. Tanto a criagio de gado quanto a de aves (gansos, patos, pombos) eram feitas em duas etapas. Numa primeira fase, os animais viviam em liberdade; em seguida, alguns deles eram seleciona- dos para a fase de engorda, durante a qual eram ce- vados, is vezes a forga. O gado menor compreendia ovelhas, cabras-e-porcos. Sé no Reino Médio foi introduzido um tipo de carneiro cuja 18 era utilizAvel, mas de fato quase néo foram achados exemplos de tecidos de 1a, sendo 0 linho a base da vestimenta. A iminuigdo do numero de representagdes pictoricas relativas criag&o de gado durante 0 Reino Médio levou a que certos autores afirmassem ter ocorrido entio sua diminuigdo, 2 medida que as terras culti- vadas se estendiam as expensas das antigas pasta- ens. ‘A agricultura e a criagdo eram complementadas pela pesca = importante apesar de certas limitagdes religiosas ao consumo de —, praticada no Nilo, nos pAntanos e nos canais com rede, anzol, nassa e arpio, Boa parte dos peixes era secada ao sol. Tam- bbém a caca era praticada no deserto e nos pantanos, usando-se para tal 0 co, 0 arco ¢ 0 laco, e captu- rando-se aves selvagens com redes. Finalmente, as. terras pantanosas eram zonas de coleta de papiro — ra a alimentagéo ¢ para produgio de fibras de las utilidades,-A coleta compreendia também a de qualidade ma ou média disponivel no icOmoros, acécias, palmeiras etc.). {i0_dispomos de cifras de populacdo_para-o Egito faraénico. Para 0 periodo greco-romano, as fativas baseadas em autores antigos (Diodoro da Josefo) giram em torno de sete mi . Como no cont junto as técnicas ligadas Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo nos interessa, talvez seja possivel consi pelo menos como ordem de grandeza ou limite supe- r. Isto nos daria uma densidade de populagao (le- indo em conta somente as,terras cultivaveis) de mais de 200 habitantes por knit , muito elevada para ‘a Antigdidade. O Egito era um dos ‘“formigueiros humanos” do mundo antigo, em virtude da sua cextraordindria fertilidade renovada anualmente pelos aluvides do Nilo. Sendo a vida agricola inteiramente dependente da inundacdo, quando esta faltava ou era insuficiente ocorria a fome — apesar das reser- vas acumuladas pelo Estado — e morriam de pessoas. Temos muitos documentos es vezes pictéricos) que se referem a tais €pocas cala- mitosas. Numa delas, durante 0 Primeiro Periodo lo parece houve casos de cani- cidas pelo rio fabricagao de do Nilo, recolhida logo depois da inundaca cagao do pao e da cerveja de cereais; producto de vinho de uva e de tamara; fiagdo e tecelagem do \duistrias do couro; utilizagaio do papiro e da para produces diversas (material para es- crever, cordas, redes, embareagdes, méveis, portas Por outro lado, ao contrario da Mesopotat o Egito dispunha, em terras submetidas sua jut digo direta — as colinas que bordam o vale do © Sinai, o deserto oriental, a Nébia —, de rica pro- visto de pedras duras, usadas para vasos, estatuas, construgdes religiosas e funerérias, de pedras semi preciosas (turquesas) e de metais (ouro, cobre, chum- bo). A madeira de boa qualidade para construgao naval e para uso nos palicios e templos era, porém, iportada (cedros da Fenicia, obtidos no porto de los), como também a prata, o estanho necessario ara o bronze, a ceramica de luxo, o lépis-lazili e outros artigos. O cobre era endurecido com arsénic: ienticios (pao, cerveja) etc. JA o arte- sanato de 1ux0, de alta especi ‘excepcional — ourivesaria, de vasos de pedra dura ou de faianga, miveis, tecidos finos, barcos, pintura e escultura etc. concentrava-se em oficinas mais importantes, rtencentes ao rei e aos templos. © monarca era também responsavel pela organizagao da mineragio © das pedrei as (exploradas através de expedigdes e pelas grandes construgdes e obras pi as. ‘As tumbas do Reino Antigo mostram o pequeno comércio local pela troca de produto por produto, € 0 Pagamento in natura de varios servigos. Em transa- (ges maiores e para o célculo dos impostos (que eram Pauos em espécie), o padrao pré-monetario de refe- réncia eram pesos de metal (shat, deben). Embora Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Exito Antigo existisse alguma especializacao produtiva regional (; cidade de Ménfis ntrava a melhor metalurgi: © Delta era o principal centro pecuario ete.), € 0 Nilo permitisse um trafego intenso de embarcagoes, a circulagio de produtos entre as di- versas regides do pais fazia-se admi segundo parece, sob o controle de funcion4rios reais. Quanto _ao_grande_comércio exterior, por terra ¢ térias-primas ¢ artigos de luxo, tinha~as-mesmas caracteristicas da mineragao e das pedreiras: organi zava-se sob a forma de grandes expedicdes oc: ordenadas pelo rei. Nos primeiros tempos inclu: giram comerciantes com alguma importancia: mas 0 controle estatal sobre 0 grande comércio persistiu. De fato, comerciantes — localizados nos portos aton, Ménfis, Tanis — eram agentes ir0s (sirios) a servigo do monopélio comercial do Estado. Assim, um dos tragos mais visiveis da economia totalidade da vida econémica “‘pas- e seus funcionérios, ou pelos templos. 305 devem ser considerados parte inte- grante do Estado, mesmo se, em certas ocasides, houve atritos entre a realeza e a hierarquia sacer- mesmo quando nao integravam os numerosos monopélios estatais, eram estritamente controladas, regulamentadas e taxadas pela burocracia governa- mental. Para fins do Reino Novo, um importante documento — 0 papiro Wilbour (XX dinastia) — mostra que, sob Ramsés V, a semeadura da totali- dade das terras reais e dos templos (ou seja, de parte muito considerdvel e talvez majoritéria da superficie cultivada) era controlada admi governo central. Ao retirar-se a narios avaliavam a extensdo efetiva de terras araveis disponivel naquele ano em cada campo submetido a autoridade de um administrador; levando em conta este dado e igualmente a mao-de-obra com que t administrador podia contar, fixava-se a quota gros que se esperava do campo em questo para os celeiros piblicos, distribuindo-se em fungao disto os Seja em forma de colheitas, rebanhos, produtos artesanais e-matérias-primas provenientes de seus pr inas ¢ expedicdes de mineragao préprios campos, el era cada ano coneentrada pelo rei e pelos templos. Estes agiam, em seguida, como gigantescos centrada: nos niveis superiores, favendo viver uma Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo aristocracia burocratica, sacerdotal e, no Reino Novo, também militar; nos niveis inferiores, remunerando 0 trabalho dos artesdos especializados e alimentando 0 trabalhadores que executavam as obras piblicas. Um tal regime econdmico, com a conseqiiente depen- déncia de comerciantes, artesos e prestadores de servigos, ndo poderia ser favordvel a uma urbani- ‘40 comparavel & da Baixa Mesopotimia, onde a iativa privada tinha um campo de agio bem maior. Alguns autores (como John Wilson) suge- riram, mesmo, que até o Reino Novo o Egito teria sido uma civilizagao sem cidades. Isto pode ser um exagero, pois a verdade é que, nas maiores aglome- ragdes (Ménfis, Tebas), os bairros residenciais, mer- cados, oficinas, construidos com materiais pereciveis (ao contrério dos templos de pedra), ndo deixaram vestigios que a Arqueologia possa estudar. Seja como_ for, no Egito um forte poder monérquico precedew © pleno desenvolvimento da urbanizac&o, da espe- cializagio ocupacional, do comércio exterior, da ‘burocracia, e péde assim manter tal desenvolvimento sob sua égide controle. _ “No entanto, a afirmagdo — comum em obras antigas — de ser o rei o tinico proprietario das terras egipcias nao é exata. Desde o Reino Antigo, ao lado das extensas propriedades do rei, encontramos uma propriedade dos templos, formada por doacdes reais que, por outro lado, freqiientemente isentavam tais terras de impostos e seus habitantes de trabalhos forgados para o governo. Também achamos diversas gradagdes de propriedades privadas em maos de altos de ao exercicio de fungdes piblicas ¢ & necessidade de manter o culto funerdrio. E verdade, porém, que todas as formas de propriedade existentes ao lado da do rei dependiam da aprovagdo do monarca (inclu- sive no caso de heranga paterna ou materna). No Reino Novo, verios uma extensio impressionante dos bens dos templos e a formago de uma classe de proprietirios militares, beneficiarios de concessbes reais. Uma grande propriedade do antigo Egito nao era em geral realmente extensa segundo padrdes atuais: Metjen, funciondrio graduado da IV dinas acumulou 125 hectares de terras, sendo 75 em pr. priedade e 50 em virtude do exercfcio de funcdes pi- blicas. Por outro lado, as propriedades maiores no formavam blocos continuos ou compactos: estavam dispersas em parcelas situadas em diferentes regides do pais, as vezes muito distantes entre si, Certos textos — como o “conto dos dois irmaos” — mos- tram a existéncia de pequenos proprietirios, sobre os quais pouco sabemos. Em certos casos se trata, de fato, de arrendatarios, os quais adquiriram, porém, © direito de transmitir por heranga ou mesmo de vender suas parcelas. Nos periodos de decadéncia do poder mondrquico, as aristocracias provinciais cons- tituiram propriedades privadas extensas & margem de qualquer controle, sendo tal situagao anulada ao restabelecer-se o governo centralizado. ‘A base da mao-de-obra do antigo Egito eram os ‘camponeses, maioria absoluta da populacdo, Viviam Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo em aldeias, pagavam impostos ao Estado (em certos | casos, a um templo ou senhor que gozasse de imuni- | dade fiscal) em forma de cereais, linho, gado outros produtos, e também se prestavam a coi balhos forgados, a nivel local (obras d nas obras piblicas. Qual o status de tais campone- ses? Na falta de documentagao suficiente a respeito, ss divergem. Sabemos que, desde o III mi- iam-se em equipes de cinco, por sua vez agrupadas em deciirias e centirias, sob 0 comando de capatazes. Na sua maioria, provavelmente esti- vessem indissoluvelmente ligados & terra que cultiva- yam, embora também haja sinais da existéncia de outros tipos de mao-de-obra rural (arrendatérios, assalariados pagos em espécie, escravos estrangei- | ros). Afirma-se com freqiiéncia que os camponeses | formavam comunidades aldeas. Alguns elementos apéiam, de fato, 0 caréter comunitério das aldeias: familias restritas relativamente 4s comunidades. Mas a verdade é que a agricultura irrigada, se conside- rarmos 0 nivel técnico vigente, s6 poderia ser man- tida mediante uma constante cooperagio comuni- taria a nivel local, de modo que no parece provavel ter ocorrido uma total dissolugio das comunidades aldeas. Além da mao-de-obra ocasional fornecida pelos camponeses na época da inundac&o, quando os tra- balhos agricolas se paralisavam, as obras put ‘empregavam_também_trabalhadores_permanentes, remunerados em espécie. A Arqueologia revelou ver- dadeiras “‘cidades operdrias" (por exemplo, na ne- crépole tebana e em Tell el-Amarna). A escravidaio teve certa importfncia econémica nas minas e pe- dreiras estat no Reino Novo, também nas terras reais ¢ dos templos. Houve igualmente tropas mili- tares auxiliares constituidas de escravos, e existiram escravos domésticos, as vezes numerosos. A econo- ‘no entanto, nunca foi “escravista” no 1e 0 foi ada Grécia clissica e helenistica ou tra- intermedidrio necessario entre seu_povo e 0s deuses, Ao contrério dos demais egipcios, 0 monarca, podia ter diversas esposas legitimas, rosas concubinas. A fat merosa), os sacerdotes & (saru) que, a0 que tudo indica, eram mais ricos do | que os seus subordinados e mesmo, nos periodos mais recentes da hist6ria faraénica, m saber ler eescrever. A origem de tais assemt e notiveis, porém, talvez remonte a instituigdes clanicas ou tri- bais. No Reino Novo ha sinais de um reforgo das uma aristocracia tendente a hereditariedade. Esta Giro Flamarion S. Cardoso, situagdo ainda estava em gestagio no Reino Antigo Ted area rated ce see gra eet ceo s ural Hentojunifienda par eid era Yesruage analfabetos, submetidos a tributos ¢ trabalhos for- ‘cados, A arbitrariedade e corrupgdo dos funciondrios e mesmo a castigos fisicos. J4 vimos que entre eles os escravos eram uma pequena minoria. Tanto na agri- acusados de divisio do trabal cional. No entanto, a produ baixa, compensando-se tal fato, quando necessério. com a abundancia de mao-de-obra garantida uma populagdo densa. Estas massas populares ex; radas eram mantidas na submissto pela vigilancia, pela repressio e por fatores ideolbgicos (em especi ‘crenga no cardter divino da monarquia). Em certas ccasides, porém, explodiram terriveis sublevagdes. is célebre se deu no Primeiro Periodo Interme- hi : didrio, e segundo A. Moret teve forte influéncia na 10s comprovados, embora esporddicos, de reno: 7 vac dos quadros aristocraticos com pessoas de ori- Bee ee a er cer ae pOde a Coroa optar p« 40 de tal aristocracia local, com c amie penne opel saree der |) | Ce: es criba ou a abrir caminho & ascensao social; Novo, em virtude do atraso na entrega de suas ragdes em geral, no entanto, dadeiras castas heredi corpo social. ‘Numa situagio social intermedidria encontra- a-se a constituiglo de ver- ; jas em todos os niveis do ee ‘mos os numerosos escribas e outros funci riores, e os sacerdotes de menor hierarq artesdos ¢ artistas altamente especializados que esta- vam a servigo do rei, dos templos e da corte. Na larga base da pirdmide social, formando a maioria absoluta da populago, estavam os traba- 0 Egito Antigo O PODER: SINOPSE DA HISTORIA FARAONICA A unificagaio Instrumentos de silex do Paleolitico foram acha- dos nas colinas ¢ terragos que correm paralelamente as duas margens do Nilo no Alto Egito. Sao seme- Ihantes aos implementos paleoliticos do resto da Africa do Norte. O fim da ditima glaciagio (Warm) nas altas latitudes correspondeu, no continente afri- cano, a aceleracao do processo de ressecamento que, com flutuagdes, vinha afetando a Africa havia ja varios milhdes de anos. Em particular, isto significou a gradual formaco do deserto do Saara e, segundo Parece, uma consideravel concentragdo de migrantes no vale do Ni Os primeiros sinais de atividades agricolas fo- ram descobertos em sitios arqueolégicos do extremo ocidental do Del mostram 0 desent plantando cereais e cerfimica grosseira, do Fayum e do Médio Egito, foice de madeira com incrustagées de silex que con- tinuaria sendo tipica do pais nos tempos farad- nicos. A terminologia da fase final da pré-hi exipcia, conhecida como pré- — pela existéncia de objetos si feitos de cobre martelado, sem fusio do minério — € bastante confusa, pela mull des redundantes lados. O dinastico, A. Flinders Petrie, realizou seus descobri- mentos principais na localidade de Nagada e props distinguir duas fases ou culturas pré-dindsticas: Na- gada I, mais antiga, e Nagada I. Posteriormente, novas descobertas arqueol6gicas foram feitas em di- jor das escavagdes relativas ao pré- ”. Ocorre, porém, que a fase de el-Amra c cide com a de Nagada I, a de el-Girza a de Semaina com parte da I dinas torica, enquanto as de el-Badari e de Deir Tasa so contem- Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo — Fase de el-Badari (incluindo a de Deir Tasa); 4500 (ou, segundo certos autores, 5500) a 4000; — Fase de Nagada I (el-Amra): 4000-3600; — Fase de Nagada I! (el-Girza): 3600-3100 (ou jente, além das incertezas da cronologia e da periodizagdo, é ter ocorrido um progresso cultural que se acelera nos iltimos séculos anteriores & uni- ficagao. E assim que, na fase de Nagada II, apare- ‘cem pecas de cobre preparadas seja em bigornas, seja em moldes, depois da fusao do metal. Ora, en- quanto o cobre martelado, significando 0 uso de metal formado naturalmente, nao implica -grandes transformagdes nos padrdes metalurgia exige uma complicada tecnologia de apoio — minas, transporte e armazenamento do mi- nério —, além das técnicas para a fusio, a forja, o refinamento e o molde, Isto significa, necessaria- mente, uma transformagdo social e politica de peso, revelada pela pos: \de de organizar a contento um complexo integrado por numerosas interligadas. Os cemitérios de Nagada II existéncia de uma sociedade estratificada e ni litaria como no passado. Ha também indi is e culturais com a As io de lépis-laziili, influéncias da Baixa Mesopota- mia. Ao mesmo tempo, a Arqueologia mostra pela primeira vez 0 surgimento de niicleos populosos que j& sdo mais do que aldeias: Hierak6émpolis, Koptos, Nagada, Abydos. O registro arqueol6gico mostra que a fase final de Nagada II no manifesta diferengas primitivo posteriores, mas é, pelo contrério, muito diferente culturalmente de todas as fases anteriores. uma associagéo entre as comunidades administra- tivas provinciais do Egito faraénico — os nomos — e sistemas locais de irrigagao, desde o IV milénio. Em outras palavras, a agricultura baseada no controle e uso da inundacao anual do Nilo parece ter estado vinculada a passagem da dispersdo tribal a formacao de confederagées firmemente enraizadas em territ6- rios definidos. Os emblemas dos nomos, que conhe- ‘cemos na fase historica, tinham clara conotagao toté- mica ou clinica, A explicagao do que ocorreu a seguir baseia-se em dados arqueol6gicos — em especial o fato de que a cultura de Nagada II se estendeu tanto sobre o Delta quanto sobre o Vale — e na interpretagiio de mitos que conhecemos em versdes posteriores & época de que agora tratamos. Afirma-se, entdo, que por lum processo que nao podemos conhecer em seus de- talhes, mas que deve ter incluido sucessivas guerras, 0s nomos foram reunidos, senao eri dois reinos, pelo menos em duas grandes confederagdes, tendo a do Vale Seth como deus dinastico, ¢ a do Delta, Horus. Uma primeira unificagao efémera, efetuada em favor do Delta, explicaria a unidade cultural de Nagada II © também 0 fato de que, imediatamente antes da unificagao definitiva, Horus fosse o deus dindstico de ‘ambas as confederacdes ou reinos, cujas capitais Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Exito Antigo iras dinastias eram antigamente chamadas “tinitas”, porque a descoberta de timulos reais em Abydos por Petrie parecia confirmar a afir- macao de Manethon, de que a capital se situava entio na cidade vizinha de This ou Tinis. Posterior- ‘mente, porém, nova série de sepulcros imponentes da mesma época foi descoberta em Sakkara, o que levou supor que as tumbas de Abydos eram simples ceno- , ou monumentos funeririos nao destinados a receber enterros efetivos; segundo os que defendiam tal opiniao, desde a I dinastia a capital faraénica seria jé a cidade de Ménfis, bem situada perto do limite entre 0 Delta eo Vale, ¢ cuja fundagao foi atribuida por tradicZo persistente a Men. As duas posigdes continuam em discussio. Hai indicios de que a unificagio do Egito —o qual, jé o dissemos, conservou o carter de monar- quia dual — era ainda precdria. Aha parece ter-se casado com uma princesa do Delta, talvez para apa- ziguar a regido vencida, e possivelmente sucessores seus fizeram 0 mesmo. O primeiro rei da II dinastia adotou o nome de Hetepsekhemui, que signifi dois poderes estio apaziguados"’, 0 que talvez signi- fique ter sido necessario superar uma tentativa de separagio do reino do norte. Uma passageira reva- lorizagio, na titulatura faraGnica, do deus Seth (do Vale), sob o rei Peribsen, da mesma dinastia, foi interpretada como refletindo uma tensao entre os dois reinos, j4 que Hérus, o deus tradicional da mo- narquia, era originari 10 € verdade, © problema deve ter sido superado, pois o tiltimo rei da II dinastia chamava-se Khasekhemuy (‘‘os dois poderes apareceram”: isto 6, Hérus e Seth), e acres- centou a sua nomenclatura a frase: “‘os dois Senhores esttio contentes nele” (ou seja, Horus e Seth esto harmoniosamente integrados na pessoa do rei). Por outro lado, nestas primeiras dinastias estio jé ates- tadas cerim6nias de entronizag&o que se baseiam na de uma renovacdo da unificacao do pafs sob cada novo rei, e também a festa zed, jubileu monér- ico celebrado a principio para comemorar trint anos de reinado, com a aparente intengao de con mar a reuniao do Delta ao Vale sob 0 poder farad- nico. Nos sepulcros das primeiras dinastias foram encontrados sinais do assassinato ritual (possivel- mente por enyenenamento) de servidores e concu- nas, que assim seguiam ultratumba o rei morto; tal costume desapareceu totalmente em fases poste- riores. As figuras histéricas mais bem conhecidas do inastico Primitivo sio Djeser (III dinastia) e seu inistro, arquiteto e médico, 0 sabio Imhotep, mais ‘de adorado como uma divindade. O conjunto ide em degraus de ipcia, mostrando grande refina- mento arquiteténico e quanto a decoragao, quando comparado as tumbas das dinastias precedentes. O Reino Antigo compreende as dinastias IV a entre 2575 e 2134, com apogeu na primeira de tais dinastias, época da construgdo de enormes sepul- ros, as trés grandes piramides de Guiza, perto de 32 Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo Ménfis, pelos faraés Khufu (0 Quéops dos gregos), Khafra (Quéfren) e Menkaura (Miquerinos); os dois primeiros, em especial, levantaram monumentos de tal magnitude que supdem um sistema tanto p quanto econdmico muito bem organizado. 1 mente, tal periodo nao é bem conhecido quanto aos acontecimentos historicos: as lendas posteriores que conhecemos a respeito so pouco confidveis ¢ as vezes absurdas. Nao ha diivida, porém, de que o rei-deus, encarnagio de Horus, tenha conhecido sob a IV di- nastia 0 apogeu do seu poder absoluto. J4 com a V di a concepeao monarquica decaiu, com a ascensio do culto do deu solar Ra, da cidade de Helidpolis, proxima a Ménfis. Uma tradicao poste- rior parece indicar que a passagem & nova dinastia foi obra dos sacerdotes de Helidpolis. O fara6 era sempre o “Horus vivo”, mas apenas 0 filho do deus do Sol, que agora imperava sobre as demais Grandes doagdes aos templos de terras isentas de impostos foram feitas sob a V e VI dinastias. Para- Ielamente, enquanto sob a IV dinastia os grandes nobres faziam-se enterrar em tumbas (mastabas) que cercavam a pirimide real, agora vemos 0 apareci- mento de grandes tiimulos nas provincias ou nomos: ‘0s nomarcas tornavam-se hereditarios, & medida que declinava 0 poder real; a nobreza escapava, em cada provincia, ao controle efetivo do governo central. ‘A decadéncia da autoridade faradnica acen- tuou-se no final do longo reinado de Pepi II (2246- 2152), da VI dinastia. A VII dinastia de Manethon nao parece ter existido de fato, a VIII foi bastante como pequenos reis. A economia declinou, negligen- ciando-se os trabalhos agricolas e de irri terrivel revolucdo social marcou 0 época, Nomades para invadir parte do Delta. Pesquisas recentes suge- rem que 0 colapso politico esteve ligado nao sé a decadéncia da autoridade monarquica — grave num pais muito mais longo do que largo e cujas regides se comunicavam exclusivamente pela navegacdo fluvial, que facilitava a divisio e o particularismo nas fases bém, e talvez principalmente, a uma série de inun- dagdes insuficientes, trazendo a fome e a desorgani- zago da economia. Aos poucos, reestruturou-se 0 poder em dois reinos, através da luta entre nomarcas mais e menos poderosos: um deles com capital em Herakle6polis, tendo como centro a regio do Fayum; 0 outro com capital em Tebas. Os reis de Herakle6polis conse- guiram expulsar os asidticos do Delta, mas foram vencidos pela XI dinastia tebana, que de novo impds 40 Egito uma monarquia unificada por volta de 2040. Diversos textos atestam a importéncia dada, na fase de reunificagao, as obras de irrigacdo, imprescindi- veis para a recuperacdo econdmica do pais. __ Em matéria de politica externa, no III milénio 0 Egito permaneceu quase fechado sobre si mesmo a Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo maior parte do tempo. O contato com povos estran- ‘geiros fazia-se sobretudo através de expedicdes pas- sageiras de tipo comercial, punitivo ou para explorar minas e pedreiras. Assim, por exemplo, os reis Djet ¢ Den, da I dinastia, langaram expedigdes militares, contra os beduinos do Sinai — regido onde desde 0 pré-dindstico os egipcios buscavam turquesase talvez cobre —, e comerciais, na diregio de portos do Mar Vermelho. Djeser, da III dinastia, parece ter con- quistado uma parte da Nibia, ao sul da primeira catarata do Nilo (‘‘pafs de Kush” para os egipcios antigos), onde reis anteriores ja haviam incurs nado. Snefru (IV dinastia) declarou haver apri nado sete mil néibios em uma campanha, e onze mi zagio do norte da Niibia — que geografi passa da continuagio do Egito meri tica externa se resumia a lutas repetidas mas espo- radicas contra ndmades libios — situados a oeste do Delta e ameagando o Egito com incursdes de pilha- gem —, némades do da Palestina a nordeste, nomades do deserto oriental a leste. Sendo o vale do Nilo e 0 Delta desprovidos de riquezas pedra para construgio, os egipcios iam buscé-las através de expedigdes armadas intermitentes, na Né- no deserto oriental, no Sinai. A madeira de boa qualidade (cedro) era conseguida através do comér~ ‘cio com Biblos, porto da Fenicia. O deserto Ardbico ou oriental conduzia ao Mar Vermelho, sulcado por barcos egipcios que demandavam o pais de Punt es costeiras da Somalia e da Eritréia, talvez) para la obterem pelo comércio madeira, incenso, ago. Finalmente, ha Reino Antigo 0 faraé era o mais absoluto dos mo- , adorado como u autoridade religiosa, complexidade crescente da administraca0 forgou-o, porém, a delegar parte de suas atribuigdes a sacer- dotes e funcionarios. Destes inte era o tjati, espécie de primeiro-mi delegagao real chefe da justica (presidia os seis gran- devidos ao Estado. No apogeu do poder monarquico, titi s grandes funcionarios provinham da propria familia real. As diversas secgdes da adminis- ragdo eram povoadas pelos escribas, muito nume- rosos. O governo provincial fundamentava-se nas fisicas formadas na pré-historia em fungao Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Exit Antigo 36 r | ‘em caso de necessidade, os nomarcas faziam o recru- tamento militar entre os camponeses. Durante a VI dinastia j4 aparecem recrutas estrangeiros suplemen- tando as forgas armadas limitadas e ocasionais do pais. A primeira metade do II milénio: Reino Médio e Segundo Periodo Intermediario No Reino Médio (2040-1640) temos os dltimos reis da XI dinastia, e as dinastias XII a XIV. Embora seja As vezes chamado “primeiro periodo tebano”, na XII dinastia a capital j4 ndo era Tebas, e sim a (Tebas, margem ocidental) um imponente e inovador conjunto funerdrio. ‘A mudanga da XI para a XII dinastia ocorreu quando o ati ou ministro Amenemhat tomou o po- der como Amenemhat I (1991-1783). E possivel que, para chegar ao trono, tenha-se apoiado nas grandes familias provinciais, descontentes com a anterior fa- milia real, ja que Mentuhotep III restringira os pode- res dos nomarcas e suprimira sua sucessao heredi- ia. O fato é que, sob 0 novo rei, os governadores perdidos. Foi costume dos fara6s da XI ao trono o principe herdeiro, f sucesso. Tal periodo foi um dos mais brilhantes da historia egipcia. Os soberanos. mais iluminados pelas fontes sdo Senuosret III (1878-1841) e Ame- nemhat III (1844-1797). O primeiro teve de lutar contra a ameaga do poder renovado dos nomarcas: j seu antecessor Amenemhat II (1929-1892) havia tra- dical da administracdo. Os nomarcas foram tempo- rariamente suprimidos e 0 Egito foi tro regites administrativas. Quanto a Amenemhat II, atribui-se-Ihe a construco de um imenso palécio € obras de drenagem e colonizagio agricola no Fayum. Os faraés da XII dinastia construiram suas pirémides em localidades préximas sua capital, no Fayum. O tei do Reino Médio era ainda um deus, um governante divino. Mas agora se apresentava como figura menos remota e inacessivel, como o “deus bom”, o administrador e benfeitor universal enc: regado de fazer respeitar a Justica-Verdade, ‘cada como Maat, filha de Ra. O registro arqueol6gico nao revela qualquer cor- te entre a XII e a XIII dinastia. Um lento declinio monirquico parece no entanto ter-se iniciado. Em \s da XII dinastia, 0 Delta oriental estava densa- 0s, de origem asidtica, tomaram o poder no Egito. Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Exgito Antigo Manethon chamou-os “‘hicsos” (hyksos, do egipeio hekau-khasut: “principes de terras estrangeir Comegou entio 0 Segundo Periodo Intermediério (1640-1550). Os reis hicsos formam a XV dinastia de Manethon, enquanto a XVI parece consistirem outra dinastia de hicsos, paralela a anterior. O poder dos hicsos nao se estendeu — pelo menos nao em forma permanente — a totalidade do pafs. Egipcianizados, 6s soberanos estrangeiros escolheram Seth como deus dinastico, concentraram-se no Baixo Egito e forti caram-se na sua capital situada nos confins orient: do Delta, Avaris. Na regido de Tebas surgiu a XVII dinastia, que governou primeiramente como ria dos hiesos, contra os qui entrando em choque, ao tr: Egito. A reunificagdo total, porém, com a expulsto dos hiesos, s6 foi conseguida sob o primeiro rei do Reino Novo, Ahmés I. E interesante notar que, embora sendo perfodo Foram provavelmente os carros puxados por cavalos que deram aos hiesos superioridade militar sobre os exipcios, na época em que uma verdadeira invastio sucedeu a lenta infiltragdo asiitica que a precedera. Tal invasio liga ‘movimentos de povos que se deram na Asia Ocidental a partir do III milénio em sua fase final, em funcdo da chegada de grupos de migrantes que falavam linguas indo-européias. Em matéria de politica externa, o Egito da pri- meira metade do II mi 0s beduinos. Amenemhat fortificagdes jiu uma série de lo Delta, conhe- alias mal conhe- mas acabaram por © as pedreiras do deserto oriental foram exploradas, esporadicamente como sob o Reino Antigo. Também continuaram as relacdes comerciais com Biblos e com o pais de Punt: j& Mentuhotep III, da XI dinastia, tratara de asse- gurar a rota para o Mar Vermelho, que passava pelo vale rochoso que hoje é chamado Uadi Hammamat. Objetos egipcios foram achados na Siria e na Pales- tina. Quanto aos contatos comerciais com a ilha de Creta, nesta época se faziam talvez indiretamente, por intermédio de Chipre e da Sfria. A XII dinastia realizou a conquista gunda catarata do Nilo, com penetracao eventual inclusive mais ao sul. As campanhas principais de tal conquista foram as de Senuosret III, que construiu ia uma campanha jos foram guerrea bastante distinto do primeiro, racdo asiatica e Assim, o trabalho de bronze, que ja progre- bo Reino Médio, deu um grande passo & frente; 0s egipcios adotaram um torno para fabri- cago de ceramica mais rapido e eficiente, um tear vertical mais eficaz, 0 gado zebu, novas frutas e le- gumes e, por fim, 0 carro de guerra e 0 cavalo, Ciro Flamarion S. Cardoso uma série de fortins para garantir 0 dominio egipcio ¢ 0 importante comércio nibio. O Egito recebia da Niibia ouro, marfim, plumas, granito para constru- Ho e também tropas auxiliares. Na fase do dominio hicso, porém, a Niibia se separou, formando um reino independente. A segunda metade do II milénio: © Reino Novo O Reino Novo representa o auge da riqueza e do refinamento da civilizagio faradnica; integram-no as dinastias XVIII a XX (1550-1070). ; Os periodos anteriores da Histéria politica egip- cia foram por nés apresentados em bloco, cada um deles através de répidas pinceladas. No caso da fase que agora nos ocupara, é preciso mudar o plano expositivo, por duas razées. A primeira ¢ que nosso conhecimento se torna bem mais detalhado, em vir- tude da maior abundancia de textos e de restos arqueolégicos. A segunda consiste em que, a partir do episédio hicso, terminou pars relativo tamente ligadas. Antes de abordar as diversas etapas do Reino Novo, talvez seja util assinalar algumas constantes e caracteristicas estruturais do conjunto do periodo, Reino Novo esteve m: arcado pelas peripécias O Egito Antigo de constituico, apogeu e progressiva império egipcio que compreendia a Siria-Palestina mais extenso ge dade politica ¢ administrativa do que no passado), Muitos aspectos da politica interna decorreram desta politica externa agressiva, em particular a importan- cia crescente do militarismo e dos militares na histé- ria do pais, nao s6 politicamente como também no plano da propriedade da terra. Outra constante foi, apesar de tentativas finalmente frustradas de reaclo monarquica, a ascensao progressiva, igualmente poli- tica e econdmica, do sacerdécio, ¢ em especial do clero de Tebas, cujo deus — Amon, identificado com © sol como Amon-Ra — comegara a ter certa impor- tancia j4 sob o Reino Médio, ¢ que agora chegou a dominar o pantedo oficial e a hierarquia sacerdotal de todo Egito, Do ponto de vista tecnolégico, as inovagées do Segundo Periodo Intermediario e alguns aperfeigoa- mentos posteriores colocaram, a pri © Egito do Reino Novo grosso modo em pé resto do Oriente Proximo, na fase Bronze. Em poucos séci mudou desfavoravelmente para os egipcios. de 1200/1100, a metalurgia do ferro havia-se j4 difundido por todo o Mediterraneo Oriental, popu- larizando as armas e implementos metélicos que, a0 se tornarem baratos e acessfveis, superaram de vez formas mais primitivas de tecnol de pedra e madeira, que haviam persistido em boa Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo medida na fase do bronze). O Egito, porém, nao controlava recursos naturais adequados para uma i tecnologia do ferro: embora conhecesse tal metal, seu uso intenso nAo se difundiu realmente no seu terri- trio até o século VII, 0 que significa que, outra vez, ferioridade tecnolégica durante O Reino Novo, com seu militarismo ¢ seu auge de conquistas, riquezas e poder, trouxe necessaria~ mente mudangas A estrutura politico-administrativa do Egito. Também houve transformagées de peso ligadas aperipécias dinasticas. Para os egipcios, 0 carater divino dos reis trans- era preciso que o herdeiro fos: mas também de uma prin- cesa de sangue real; dai os freqiientes casamentos de faraés com suas irmas e meias-irmas, e ocasional- mente com suas préprias filhas. Quando o novo rei era filho de uma esposa secundaria, ou de fato um’ } estranho a linhagem real, devia casar-se com uma ngue. Ao falharem os expedientes nor- | Pp ‘ocorrer a legitimagao por ficgao rel }i giosa: um oraculo do deus Amon; on entio, a afir- magio de que 0 deus teria pessoalmente gerado 0 soberano em sua mie terrestre (teogamia). O se- ‘gundo artificio foi usado pela rainha Hatshepsut para legitimar sua usurpacdo, apoiada pelo sumo-sacer- tes fizeram queza dos sacerdotes aumentavam, pois seu apoio era comprado com doagdes e favores. O rei do Reino Novo conserva sua ti tradicional, mas é sobretudo o filho de Am« Muitos dos soberanos foram capazes de ad prestigio pessoal baseado em feitos militares. Pel complicagiio da administragdo, o fara6 descarregava, cada vez mais poder sobre um grupo de grandes fun- ciondrios: sua funcdo consistia em escolhé-los, super- jar a sua acdore servir de Arbitro ao ocorrerem conflitos. O sjati, que como ja dissemos se parecia a0, que chamamos de primeiro-ministro, continuava sendo o principal entre tais dignitarios. Mas 0 cargo se duplicou, havendo um ati do sul que residia em Tebas e outro do norte com sede em Heliépolis; 0 primeiro tinha maior importéncia. Ambos tinham supremas atribuigdes judicidrias e financeiras, ve- lando sobre as obras publicas, a agricultura, o exér- ‘a administragao e os arquivos. Quanto a admi- jornou-se centralizada: os go- vernadores dos nomos cessaram de ter papel politico, importante e dependiam diretamente do poder cen- (Os tjati enviavam aos nomos ‘‘mensageiros"” que tral e as provincias, tréz vezes ‘ao ano — em cada uma das trés estacdes. A Nubia era administrada por reiros, escribas, asidticas conquistadas, a terra do Egito continuava a Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Egito Antigo ser taxada, bem como permanecia vigente o sistema de corvéias. ‘Vimos que nos reinos Antigo e Médio nao havia tropas regulares, a nao ser algumas companhias de niibios. Foi no movimento de expulsdo dos hicsos, ¢ depois nas guerras de conquista, que se gerou pel primeira vez. um exército permanente. Sua or zagao nos é melhor conhecida sob a XIX dinast ‘quando existiam trés exércitos, que levavam o nome respectivamente de Amon, Ra e Ptah, além de uma frota para transporte: a marinha de guerra apareceu s6.a partir de Ramsés Il, da XX dinastia. Além da infantaria, havia carros de combate puxados por dois ‘ou mais cavalos. O chefe supremo das forcas milita- res era orei e existia uma hierarquia de oficiais; estes 05 soldados recebiam uma parte da presa de guerra € freqientemente também doagdes de ouro ou de terras. Com o passar dos séculos, as tropas de merce- narios (mibios, libios) vieram a predominar numeri- camente. ‘A mais conhecida ¢ famosa dinastia egipcia é a XVIII, em virtude principalmente da descoberta, em 1922 a.D., do timulo do faraé Tutankhamon com seus abundantes tesouros e do forte carisma do casal Akhenaton/Nefertiti. A Historia politica de tal di- nastia, que durou um quarto de milénio, pode ser dividida em trés etapas: a longa fase ascendente, de constituigdio do império egipcio (1550-1401); 0 apo- geu da riqueza e do poder, nos reinadgs relativa- icos de Djehutimés IV © Amenhotep III (1401-1353); por fim, 2 decadéncia externa e uma crise réligiosa (com conotac@es potiticas) interna, se- guidas de recuperac&o apenas telativa (1353-1307). A expulsdo definitiva dos hicsos ocorreu_por volta de 1532, Além de protagonizar tal fato capital, © primeiro rei da XVIII dinastia, Ahmés I, tomou a localidade de Sharuen, na Palestina, e restabeleceu 0 dominio egipcio na Nibia até a segunda catarata do Nilo. Sua politica nibia foi seguida por seu filho Amenhotep I, em cuja época surgiu na Mesopotamia ¢ Siria setentrionais 0 reino do Mitani, o qual se tornou o principal adversario do Egito na Asia du- rante mais de um século. ijehutimés I (chamado com freqiiéncia “Thut- ” em virtude da forma grega do seu nome) foi o primeiro faraé a ser enterrado no Vale dos Reis, situado a margem esquerda do Nilo diante da cidade de Tebas, a capital. A partir de entao, até fins do Reino Novo, numerosos templos funerdrios e tumbas reais — agora subterraneas, escavadas na rocha (hi- pogeus) — surgiram no ocidente tebano. Com 0 novo rei (que nao pertencia a familia real, mas se legiti- mou casando-se com uma princesa), o dominio egip- cio na Nibia se estendeu até além da terceira cata- . Por outro lado, parece ter sido o verdadeiro iniciador do dominio egipcio na Asia, levando suas tropas até o rio Eufrates. E possivel, porém, que nio se tenha tratado ainda de verdadeira conquista e sim de vasta expedigao de pilhagem. Djehutimés II, filho provavelmente ilegitimo do anterior, casou-se com sua irma por parte de pai, a princesa legitima Hatshepsut. Ao morrer, deixou Ciro Flamarion S. Cardoso um fitho tido com uma concubina, Djehutimés III, (© qual foi confirmado por um oraculo de Amon, casando-se mais tarde com a filha de seu pai com Hatshepsut. Sendo 0 novo rei muito jovem, a rainha viva assumiu a regéncia, Hatshepsut, porém, nao se conformou em ocupar apenas a posi¢aio de regente: ‘com o assentimento dos sacerdotes de Amon, usur- pou o poder real como “rei”, com uma titulatura faraénica e fazendo-se representar nos monumentos com vestes masculinas. Esta situacdo durou uns vinte anos. A rainha nao realizou grandes campanhas tares, mas enviou uma importante expedi¢aio comer- cial ao pais de Punt. Notabilizou-se também pela construgiio do belo e inovador templo funerario, de Deir el-Bahat irigida por seu favorito Senmut. A sua morte, Djehutimés III comegou seu governo pessoal. terceiro Djehutimés, como Senuosret III no ém de grande construtor, foi o mais campanhas mi tando coligagdes de principes e cidades da Palestina e da Siria encorajadas pelos mitanianos, e por fim yencendo o proprio Mitani, consoli ‘gundo outros autores, criou — 0 império egipcio na Asia, Estendeu, outrossim, os s do dominio faradnico na Nubia até além da quarta catarata, fundando a cidade de Napata. No fim do seu rei- voltou-se contra a meméria de Hatsheps eliminando o seu nome de varias inscrigdes ¢ dai ficands muitee 42 representagdes da rainha em rel 0 Egito Antigo vos e esculturas, As razdes de haver-se consti egipcio na Asia sio discutidas. Tr: fato era atribuido a necessidade de um controle estr sgico do corredor sfrio-palestino, rota de qv invasdo terrestre do Egito por povos asidticos, com a iquer finalidade de evitar se desse outra vez um epis6di como o do dominio hicso. Outros autores, porém, preferem atril a expansio ao desejo de controlar rotas de comércio para garantir 0 abastecimento de produtos de luxo e de matérias-primas (como o es- zagio, 0 mundo cultural e polit hegemonia faraGnica. Mesmo iar a cobranca de tributos. ins pontos estratégicos. O sistema era bastante Agil, j4 que, ao contrario do que aconteceu com a Nibia, que sofreu profundo processo de egipci tico reteve seu particularismo . $6 repetidas campanhas atingido o mAximo do seu esplendor e poder. Depois da derrota do Mitani, os rei hititas — e da Mesopotami além da ilha de Creta, enviaram a Djehutimés Le seus sucessores presentes que, do Hati — 0 reino dos entre outros potenta- nas suas inscri- Bes, os faraés consideravam arrogantemente como eee eee Ciro Flamarion S. Cardoso “tributos’ ‘A sucessio do rei guerreiro foi tranquila, antes de morter associara ao trono como co-regente 0 seu filho Amenhotep II. O novo farad manteve 0 dominio egipcio na Asia até as fronteiras estabele- cidas pelo seu pai: o rio Orontes ao norte, o Eufrates anordeste e 0 deserto sirio a leste. Com ele termina longa fase inicial — e ascendente — da dinastia. Djehutimés IV e seu filho Amenhotep IIl,sem manifestarem a energia de seus antecessores, colhe- ram os frutos dos esforgos destes, desfrutando de um dominio proveitoso e ainda pouco ameacado sobre os territérios ocupados na Asia e na Nubia. Um dos fatores que 0 explicam € 0 fortalecimento do reino hitita da Asia Menor, ameagando diretamente o Mi- que ent&o se aliou ao seu velho adversario, 0 Egito, para onde enviou suas princesas como esposas secundarias dos faraés. Amenhotep III foi um grande construtor. Além de obras grandiosas nos templos de ‘Amon e em seu proprio templo funerdrio, na Nabia e ‘em outros lugares, ergueu um magnifico paldcio em Malkata, diante de Tebas, Casou-se com uma mu- Iher no pertencente a linhagem real, Tii, talvez inclusive de origem estrangeira. Além de receber em seu harém princesas mitanianas, teve também como esposa secundaria uma irma do rei de Babildnia, A correspondéncia diplomatica de seu reinado ¢ do de seu sucessor é-nos parcialmente conhecida através de tijolos de argila cobertos de escrita cuneiforme (a lingua babildnica era a usada na época pela diplo- macia no Oriente Proximo), encontrados em Tell Exito Antigo |-Amarna, contendo cartas de monarcas e principes asidticos e c6pias das respostas enviadas pelas auto- ridades do Egito. Os egi am abundante provisao de ouro na Nil is a citavam-no com insisténcia em suas cart Com o reinado de Amenhotep anterior (sua pos -o-regéncia com o pai é assut de controvérsi ia-se 0 processo de decadéncia do poderio egipcio. O aumento constante da riqueza ¢ da ingeréncia politica dos sacerdotes de Amon ter- minou sendo visto como uma ameaca pelos monar- cas. Desde o reinado de Djehutimés IV, uma nova modalidade de culto solar — cujas raizes podem ser procuradas tanto na velha teologia de Helidpolis quanto em influéncias asiéticas — comecou a ser favorecida na corte, sem que cessassem por aliés, os favores dos reis a Amon-Ra e seus sa dotes. Tratava-se do culto ao proprio disco vistvel do Sol: Aton. Esta tentativa ainda timida de reforma iosa com conotacdes Politicas se transformou em radical sob Amenhotep IV. Este mudou 0 seu 1e, que recordava Amon, para Akhenaton, em homenagem ao novo culto; tendo j& consagrado a Aton um grande templo em Tebas, decidiu depois fundar uma nova capital no Médio Egito, Akhetaton, ‘ou “o horizonte do disco solar", para a qual se mudou com toda a sua corte. Sua esposa principal, a bela Nefertiti, deu-lhe diversas filhas, mas ndo um herdeiro; o rei casou-se também com algumas de suas proprias filhas, ten- tando em vao garantir a sucesso. O culto de Amon foi proscrito, seus bens confiscados; mais moderada- mente, também o resto da religido tradicional sofreu Perseguigéo, pois o rei tentava impor um quase monoteismo. Sem prejuizo de uma possfvel inclina- fo mistion sincera de Akhenaton, a nova religido representado adorando a si mesmo! Seja como for, a reforma religiosa, carente de bases soci das, foi efémera. Talvez o proprio Akhenaton e seu co- regente e genro Smenkhara tenham tentado uma ‘Ao com o clero de Amon, o que poderia Fa ruptura entre o rei e sua esposa Nefertiti. Existe uma.teoria que vé em Smenkhara — que recebeu 0 nome oficial antes concedido a rainha, Neferneferuaton — a prépria Nefertiti, que como ‘Smenkhara teria reinado pessoalmente durante um breve lapso de tempo apés a morte de Akhenaton. As bases de tal opiniao parecem frigeis, pois aparente- mente existiu um Smenkhara genro de Akhenaton e seu co-regente. Os dois monarcas morreram ao que tudo indica quase simultaneamente. O sucessor, Tutankhaton — outro genro e talvez também irmao de Akhenaton —, depois de algum tempo mudou o seu nome para Tutankhamon e voltou a Tebas, onde Amon foi restaurado na totalidade de seu poder riqueza anteriores. O reinado do novo faraé foi breve, como também o do seguinte, Ay, um idoso funciondrio de Akhenaton, que se legitimou ca- sando-se com a vitiva de Tutankhamon. Por fim, chegou ao trono o general Horemheb, eminén O Exito Antigo parda dos dois reinados precedentes, 0 qual, igno- rando os monarcas anteriores, fez contar seu acesso ao poder da morte de Amenhotep III. Casou-se pro- vavelmente com uma princesa real para legitimar-se. Horemheb realizara algumas campanhas na Siria antes de tornar-se fara6. Ampliou o templo de Amon, usurpou as construcdes de Tutankhamon e empreen- deu uma reforma administrativa, gabando-se de ter acabado com os abusos dos funcionarios. No calor de sua reforma religi tia, ignorando os repetidos pedi monareas do Mitani e de principes figis da Sfria- Palestina, ameacados pelos sirio, Aziru, centro tradicional do comércio e Palestina teve suas cidades inva , a0 terminar a XVIII dinastia o dominio dos egipcios na Asia ocidental estava praticamente redu- zido a zero. _ A XIX dinastia (1307-1196) destacou-si recuperagao da preeminé: 1a. As necessidades da pol idticos levaram a que se fixasse a resi- déncia real no Delta (Pi-Ramsés), de onde aliés era origindria a nova familia reinante. Tebas se manteve, porém, como capital religiosa e administrativa. Ram- sés I, escothido como sucessor por Horemheb, era como este um soldado. Chegou ao trono ja idoso, associando ao poder como co-regente 0 seu filho n Ciro Flamarion S. Cardoso OEgito Antigo |, que logo reinou s6. Este, que jé havia real zado uma campanha militar na Nubia ainda em vida de Ramsés I, dedicou-se a recuperar parcialmente império asidtico do Egito, retomando a Palestina u reinado 0 culto de Aton foi totalmente proscrito, sédio da reforma a0 trono o seu fi mais célebres da #¢ passageira de declinio dos hi- titas; mas estes se recuperaram e voltaram a ameagar os dominios egipcios na Asia. Ramsés II enfrentou-os na batalha de Kadesh, que provavelmente teve um desfecho indeciso — mesmo se o fara6 a fez repre- sentar nos seus monumentos como uma grande vito- ria gracas exclusivamente a seu valor pessoal... Logo mudou, porém, a situacdo. Hititas e egi se ameagados pela r4j entre os respectivos domi nios; cada parte ajudaria a o ou sublevagao; os asilados politicos ou fugitives do Egito que buscassem asilo no reino i devolvidos aos egipcios e vice-versa. A os reis Ramsés IIe Hatusil III foi selada em 1266 pelo casamento do pri gundo. De fato, o reino hi seria destruido dentro de poucas décadas pela nova onda de migracdes indo-européias. Ramsés II também combateu na Ni- bia e teve de enfrentar o ataque dos piratas que uma la achada em Tar estrangeiros integravam cada vez mais as tropas do Egito, como prisioneiros de guerra e mais tarde tam- bém como mercenarios; com freqiéncia recebiam doacdes de terras. Os trés primeiros reis da XIX dinastia foram grandes construtores; entre outros monumentos, le- vantaram a impressionante sala hipéstila do templo de Amon em Karnak (Tebas), com colunas de 13 e de Ramsés II cobriu de templos e © Egito, além de usurpar monu- mentos de reis anteriores; sio especialmente famosos ‘95 seus templos rupestres (escavados na rocha) da localidade hoje chamada Abu Simbel (Nabi Ramsés II, ao morrer ja idoso, foi sucedido por seu décimo terceiro filho, Merneptah. O reinado deste foi marcado pela tentativa de invas&o do Delta ocidental pelos libios associados aos chamados “‘po- vos do mar”, misceliinea de tribos, algumas das quai de lingua indo-européia. A invasao foi rej foram feitos muitos prisioneiros. A parte final da XIX dinastia € mal conhecida. Parece ter sido um perfodo confuso e anarquico, du- rante cujas lutas sucess6rias os nomarcas se torna- ram quase independentes. Um dignitério sirio — Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Exito Antigo Jarsu ou Bay — chegou a ter um enorme poder no Egito. foia diltima do Reino Novo e conhecen um iinico reinado de peso, o de seu segundo faraé, Ramsés II. Este rei, construtor do templo funerario de Medinet Habu (Tebas), teve de enfrentar e repelir trés ataques dos “povos do mar” contra 0 Delta, dois provenientes da Libia e um do leste (este ‘iltimo em forma de invastio ao mesmo tempo terrestre ¢ maritima). O Egi nado, ainda controlava 0 ativa que conhecemos mal; alguns autores interpretam-na como constituindo a consagragio da tendéncia jé antiga a hereditariedade das fungdes e & formago de castas. Em seu reinado deu-se uma greve — que j4 mencionamos — dos houve uma tentativa de assassinato do rei, tramada por uma mulher do seu harém para levar ao trono um dos principes. Depois de Ramsés III, outros oito reis — todos chamados Ramsés — ocuparam o trono durante uns noventa anos. Foi uma fase francamente decadente, durante a qual o Egito perdeu o controle da Palestina e mais tarde da Nubia. Os sacerdotes de Amon con- centravam enormes extensdes de terras e se tornaram praticamente independentes em Tebas. Os mercen4- rios estrangeiros — Iibios em particular — também chegaram a ter muito poder e riqueza. O pais conhe- ceu mas colheitas e anos de fome e miséria. As tum- bas reais foram pilhadas. Sob Ramsés XI, derradeiro da Nobia tentou um golpe de Estado para apossar-se da regiao de Tebas, 0 qual fracassou; a Niibia, porém, desde entdo escapou gradualmente ao controle egipcio, até se tornar com- famente independente. O poder real, num Egito idido, passou a estar, em Tebas, nas maos do sumo-sacerdote de Amon, Hrihor, que era de origem militar e conseguiu assegurar suas fungdes para seu Iho Piankh; e, no Delta, pertencia a Nesubanebdjed, fundador da XXI dinastia, cuja capital foi Tanis. Era © fim inglorio do Reino Novo. OI milénio (até 332): Terceiro Periodo Intermediario e Epoca Tardia O Terceiro Periodo Intermediério (1070—712), com as dinastias XXI a XXIV, e compreendendo também a primeira parte da XXV dinastia, foi uma sacerdotes de Amon, surgindo depois outra figura religiosa de grande poder: a “divina adoradora de Amon”, normalmente uma princesa de sangue real. Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Bgito Antigo ‘A XXII dinastia foi de libios (estabelecidos de longa data no pafs como mercenarios), a XXV de niibios de Napata, que conquistaram a regio de Tebas. ‘0 tei Iibio do Egito Sheshonk I saqueou Jeru- salém por volta de 930 e reatou relagdes comerciais com Biblos; mas j4 no foi possivel aos egipcios a restauracéo de qualquer dominio durivel na Asia ocidental. Sem 0 ouro da Nibia, o Egito tinha difi- culdades para pagar suas importagdes — cedro do Libano, estanho, artigos de luxo diversos ete. —; sabemos, por um documento de prineipios do Ter- ceiro Periodo Intermediario, que as exportacdes egip- cias para a Asia consistiam entao em rolos de papiro, tecidos finos de linho, couros de boi, lentilhas, peixe secoete. Em 712, 0 rei nabio Shabaka conseguiu reuni- ficar 0 Egito e a Nubia, estabelecendo em Ménfis a sua capital. Comecou entio a Epoca Tardia (712- 332), com as dinastias XXV (parte final) a XXX. ’A recuperacao do pais em 712 foi apenas par- cial: se j& nfo houve dinastias paralelas, os poten- tados locais conservaram muito poder e foram cha- mados “reis” pelos invasores assirios quatro décadas depois. Seja como for, as grandes construgdes da di- nastia nubia, contrastando com a mediocridade an- terior, atestam uma relativa prosperidade, talvez explicével em parte por inundagdes excepcional- mente boas do Nilo, permitindo excelentes colheitas durante varios anos. © auxilio dado pelos egipcios ao reino de Juda (na Palestina), o qual estava sob ataque assirio, foi o pretexto para a invastio do Egito pelos assirios, cujo império era agora a grande poténcia do Oriente Pro- ximo. Depois de uma tentativa frustrada em 674, 0s invasores conseguiram tomar Ménfis em 671; mas o rei mibio Taharka a recuperou dois anos depois. As maiores campanhas de invasio deram-se sob 0 rei assirio Assurbanipal, a primeira em 667 ¢ a segunda entre 663 € 657. Os assfrios conseguiram a ajuda de egipcic tendentes ao trono faraénico e inimigos dos reis ntibios: estes iltimos perderam 0 Egito mas continuaram a reinar na Nibia, na qual se desenvol- ‘yeu a chamada civilizacao meroitica. (O dominio assfrio foi passageiro. O rei Psamatik I, da XXVI dinastia, cuja capital foi Sais, no Delta ocidental, depois de eliminar os potentados egipcios rivais do seu poder, conseguiu expulsar os invasores estrangeiros por volta de 653. O periodo do “renas- ‘cimento saita”, como € conhecida a fase da XXVI dinastia, é-nos conhecido principalmente através de fontes gregas — como alias toda a Histéria subse- qiiente do Egito, Marcou-o uma forte tendéncia arcaizante na arte e na administrac&o, com a imits do deliberada e saudosista dos padrdes do Reino Antigo (a dois mil anos de distancia no tempol). Os ‘mercendrios gregos eram agora 0 ponto de apoio do poder dos faraés. Uma colénia comercial grega, Néu- cratis, instalou-se no Delta. O faraé Nekau II come- ou a construgao de um canal que ligava o Delta a0 Mar Vermelho. Diz-se que, por sua ordem, uma frota fenicia fez a volta completa do continente afri cano. Ele tentou também ressuscitar'a antiga politica Ciro Flamarion S. Cardoso O Egito Antigo expansionista na Siria, onde guerreou entre 610 ¢ 605, mas o rei de Babilénia — poténcia que sucedera a Assiria — forcou-o a retirar-se. Psamatik II, seu ‘Sucessor, também tentou a sorte na Asia e sobretudo na Nubia (591), com pouco sucesso, No século VI, @ ascensdo do poderio persa levou o faraé Ahmés II a aliar-se ao rei Creso da Lidia, a Babil6nia, ao tirano de Samos (cidade grega situada numa ilha costeira da Asia Menor), a Esparta (cidade do Peloponeso, na Grécia); talvez tenha conquistado a ilha de Chipre, estrategicamente situada em relacao 4 Asia ociden. ‘al. Tudo em vao: a Lidia e a Babil6nia logo cairam Sob os ataques de Ciro, rei da Pérsia, a cujo sucessor se submeteu Policrates, 0 tirano de Samos. Este su- cessor de Ciro, Cambises, conseguiu finalmente to- mar 0 Egito, vencendo 0 iiltimo faraé da XXVI di nastia, Psamatik III, em Pelusa, no Delta Oriental (525). Depois de um dominio persa aparentemente as- Pero sob Cambises, na época do rei persa Dario I 0 Egito conheceu um periodo calmo e prospero. Os reis ersas formam a XVII dinastia de Manethon, Mer. ‘cenérios estrangeiros viviam em terras egipcias, como no passado, mas agora a servigo dos persas. Dispo- mos de interessante documentagao proveniente de uma colénia militar judaica estacionada em Elefan- tina, na fronteira com a Nubia (ver Documents ara- méens d‘Egypte, traducdo e apresentagao de Pierre Grelot, Paris, Les Editions du Cerf, 1972). Dario acabou de construir o canal estrate vineulacao direta entre 0 Golfo Pérsico ¢ o Nilo atra- vés da navegacao; tal canal teve também grande importancia comercial. Uma rebeliio comecada em 404 conseguiu recu- perar a independéncia egipcia entre 400 e 343, sob as breves dinastias XXVIII a XXX. Em 343, porém, com a vitéria de Artaxerxes III sobre Nectanebo II (de fato o seu nome egipcio, Nekhtharebhe, nada tem a ver etimologicamente com o de seu predecessor chamado Nectanebo I, que era Nekhtnebef), come- ou a curta porém dura segunda ocupacio persa, que terminou com a conquista do Egito por Alexandre da Macedonia, em 332. A partir do periodo assirio, o Egito havia pene- trado plenamente na Idade do Ferro. Como o terri- torio egipcio nao continha minério de ferro, tal metal era importado, do Oriente Préximo segundo parece; a metalurgia do ferro difundiu-se muito, também, a partir do Egito, na regido ndbia de Méroe, da qual Passou ao resto da Africa Negra (embora possive mente tenha existido também um foco independente de difusto do ferro no Sudao Ocidental). Os persas introduziram no Egito o camelo, desenvolvimento dos grandes ofsis que se acham a este do vale do Nilo — antes bastante marginais —, nos quais se ergueram templos e outros monumentos. Ciro Flamarion 5. Cardoso 0 Egito Antigo Conclusio Entre aproximadamente 3000 e 332, 0 Egito conheceu varias épocas de unidade di e cen- tralizagao (aproximadamente 70% daquele periodo de quase dois mil e setecentos anos), em alternancia com fases de descentralizacao, dinastias paralelas ou dominio estrangeiro. Alguns autores, como J. Pi- rene, presenta: ‘a Hist6ria faradnica como tendo um cardter A identidade politica e étnica do pais como reino — ou, mais exatamente, como dois reinos unificados na e pela pessoa do monarca —, em outras palavras e usando um termo algo anacrénico, a nacdo egipcia antiga nasceu — e depois renasceu diversas vezes — da conquista © se conservou por mecanismos rel giosos (em especial, mas também houve outros fato- res de tipo ideol6gico), fiscais e unio era 0 fato de que a maioria da populagao vivia em aldeias pouco vinculadas entre si, & mereé de uma burocracia central poderosa, e também a maior pros- peridade que inegavelmente acompanhava os perio- dos de centralizacéo monarquica, quando as estru- turas econdmico-sociais do Vale e do Delta eram coe- rentemente administradas. Os fatores de diversidade regional e desuniio mantiveram-se sempre, porém, fortes; embora nem sempre vis tude de a massa das fontes disponi aparelho de Estado ¢ setores a 105 que a topografia do pais dificultava as comu- nicagdes internas. Todos os egipcios falavam a mes- ma lingua, mas as diferengas dialetais eram suficien- temente marcadas para que. um natural d incipal de todo o pais ofici sistema de irrigacdo vigente podia eventualmente ser operado em escala local. Bastava um enfraquecimento do poder central para que o Egito corresse o risco de cindir-se nos tas ou een! Outro fato chama a atencao na lon; exipeia. Mesmo se, a pa do exterior — mesmo introduzindo, como vimos que © fizeram, importantes elementos de tecnologia — Ciro Flamarion S. Cardoso modificaram pouco os padrdes fundamentais da vida do Egito, marcados indelevelmente pelas determina- milagao ¢ aculturagdo dos recém-chegados através dos tempos. Nao se deve confur caracteristicas basicas com i ): © resumo que fizemos da Historia faradnica deve ter bastado para demonstrar que o pais mudou muito a0 Jongo dos milénios de tal Hist6ria. ASPECTOS DA VIDA INTELECTUAL O pensamento egipcio antigo Em linhas gerais, 0 pensamento dos antigos egipcios aparece marcado, em primeiro lugar, por seu cardter pré-filoséfico © mitico. Note-se que isto ndo significa que tenha sido um pensamento pré- légico; quer dizer, simplesmente, que a abstracdo, a generalizacao e os j tuiam suas caracter raciocinio egip- cio se baseava na acumulagdo de exemplos concretos, nio em teorias gerais. Estava, outrossim, engajado no esforgo de preservar a estrutura politico- ix través de uma ética e de s rituais adequadas; ou em fornecer, pragmaticamente, reg fas funcionais as diversas atividades. a o mundo des- crevendo, em cada caso, como algum fato suposta- mente se dera pela primeira vez num longinquo pas- Ciro Flamarion $. Cardoso do passado das coisas permi entender 0 seu desenrolar atual e futuro. Dissemos que o pensamento egipcio estava inte- ressado na preservacdo do estado de coisas: era, assim, conservador ¢ conformista em forma predo- inante (quando nao abertamente oportunista, a0 legitimar a Ansia de agradar aos poderosos). Isto se lugar, A estabilidade estrutural bé- sica — através de mii jd 0 vimos, a civilizacdo faradnica através uma ordem necessaria, legitima ¢ deseja doe nna sociedade. Em segundo lugar, é evidente que a minoria de letrados, que nos deixou as Gnicas e idéias do antigo Egito, estava direta ou indi mente comprometida com o Estado faradnico. Mo- nareas, sacerdotes, escribas, funciondrios e militares acreditavam que, no storia, os deuses haviam reinado pessoalmer mundo, sendo 0 rei-deus o seu legitimo herdeiro e sucessor: a ordem ‘césmica e politico-social, encarnada na deusa Maat Gustiga-verdade ou norma justa do mundo), tinha pois uma base sagrada, tal como 0 respeito pelas opinides dos antepassados. Continuando com as caracteristicas centrais do pensamento egipcio, mencionemos agora um prin: pio que o caracteriza, discernivel em todas as mat 0 Egito Antigo festacdes religiosas, cosmogénicas e de outros tipos, e que se convencionou chamar de diversidade de aproximacoes. A um homem de hoje pode parecer incoerente e contraditério que o céu pudesse ser des- crito como uma vaca, como uma mulher, e ainda como um rio no qual navega o barco do Sol. Ou que Osfris — deus ligado a idéia do renascer, daquilo que morte ¢ volta a despertar — fosse associado ao mes- ‘mo tempo a coisas tio diferentes quanto a cheia do Nilo, que decorreria dos humores que fluem de seu cadaver (em outra versio, alias, ela seria provocada por outro deus, Khnum, residente na primeira cata- rata), 0 grao que é enterrado e germina, a Lua com suas fases, ¢ finalmente 0 Sol noturno que atravess mundo subterraneo; sem que, por outro lado, Osfris pudesse esgotar qualquer destes fendmenos, que em outros de seus aspectos eram associados a deuses ¢ mitos diferentes. Um egipcio antigo, porém, tratava de esgotar tantos aspectos quantos pudesse de cada fato do mundo visivel ou divino, através da justapo- sigao de imagens variadas mas, para ele, com ‘imentares — outras tantas aproximagdes possfveis a uma realidade complexa e talvez inefavel ou inesgo- tivel — e nio contraditérias ou excludentes. No que teolégico, por exemp! tratou de conciliar diferentes tradigdes paralelas, divergentes entre si, mas todas consideradas igual- mente sagradas, através de assimilagdes, sineretis- mos e outros recursos. O universo era visto como 0 dominio de forgas que se podem manifestar em for- iro Flamarion $. Cardoso mas diversas, todas igualmente validas. Por que, entdo, se espantaria um egipcio de que a deusa Ha- thor se manifestasse sucessivamente como uma vaca, uma mulher, uma serpente, uma leoa, uma chama ou através de uma Aryore? Ou de afirmagdes como a de ser Raa face de Amon e Ptah 0 corpo deste, sem que por isto Ra e Ptah deixassem de ser também deuses distintos? Por fim, os egipcios professavam uma crenca no poder criador da palavra e, por extensio, das ima- gens, dos gestos e dos simbolos em geral, que se articulava com a possibilidade de coagir os deuses e 0 cosmos; ou seja, com a magia. Ptah, deus de Méntfis, numa das versdes do mito da criagao do mundo, nava através de trocadilhos, pois ao ter a pal poder criador, as coisas designadas por termos homé- fonos ou de proniincia semelhante se equivalem — ja que o nome é a c¢ chorando (rem), criou os homens (romé) e os peixes (ramu). A extensio de tal principio a outros sistemas de signos abria o caminho a formas variadas de aces mégicas. Se a palavra, o gesto, a escrita, a imagem idade, podia-se agir sobre esta atra- , gesticulacao ritual, textos, desenhos... A representacao do rei, nos relevos dos templos, dominando 0s inimigos do Egito, garantiria a seguranca do pafs através da constante vitoria sobre Plicada —, quebrar uma estatueta de hipopétamo magicamente consagrada surtiria 0 mesmo efeito. Se ‘0s encarregados do culto funerario se descuidassem do oferecimento de vitualhas ao morto, a represen- tagio pictérica de pies e outros alimentos nas pa- redes da tumba teria efeito equivalente. E assim por diante. A religitio No antigo Egito, a religido historicamente co- nhecida resultou, em primeiro lugar, da superposi¢ao e organizacao das divindades dos nomos. O dogma nunea foi, de fato, unificado: em cada santudrio 0 deus local era visto como a divindade suprema e criadora. Os deuses dos nomos tinham aparente- mente uma origem totémica, estando ligados a ani- mais, personagens ou fetiches que se vinculavam ao culto dos antepassados tribais e que sofreram nos tempos histéricos um processo parcial ou total de antropomorfizacao. Hérus, por exemplo, podia ser representado por um faledo, por um homem com cabeca de falco ou ainda — mais raramente — por um homem. A medida que se foi processando e final- a unificagao do pais, sentiu-se ser hie- irgiram construcdes diversas: triades iho (Osiris, Isis e Horus; Amon, Mut e Khonsu; Ptah, Sekhmet e Nefertum etc.), e tam- bém vastas sinteses teoldgicas que tratavam de expli- Ciro Flamarion S. Cardoso, 0 Egito Antigo car a origem do mundo e dos deuses. Tais sinteses contradiziam-se mutuamente: na de Ménfis e 0 deus criador, na de Heli6y mépolis, Djeh tais incoerénci 0s egipcios antigos. As sinteses das cidades mais importantes influenciavam as das cidades menores, A especulacao teolégica, ao surgirem as grandes sinteses, criou deuses césmicos e abstragdes divini- zadas ndo provenientes dos cultos dos nomos: 0 ocea- no primordial e a justica-verdade Maat sto exem- plos. Quanto aos deuses locais, alguns permane- ceram puramente regionais, enquanto outros se im- puseram a todo 0 p: Djehuti de Hermépolis, Ptah de Ménfis, posteriormente Amon de Tebas, além dos deuses da triade osiriana e da religido funerdria (Osiris, Isis, Hérus, Anubis ete.). Houve também a adocao eventual de deuses estran- geiros e a divinizagao de certos personagens hist6- ricos (como Imhotep). Aliés, no comego deste século E. Amélineau pretendeu mesmo que todos os deuses nao passavam de mortos divinizados, 0 que nao pa- rece aceitivel, Existiam, por outro lado, divindades menores, espécies de génios protetores: Bes, um ano (Tuéris), um hipopétamo-fémea que protegia as mulheres gravidas etc. Uma forte diferenca separava 0 culto ofici culado monarquia e aos templos (aos quais, acesso era extremamente restrito), muito intelectua- lizado, da piedade popular. Para o homem do povo, desde 0 Reino Antigo era Osiris 0 deus mais yene- rado: tal fato, porém, tardou muitos séculos a refle- tir-se em mudangas radicais na religio de Estado. As massas populares veneravam Amon, Ptah e ou- tros grandes deuses, mas ndo entendiam as com cadas cosmologias e sinteses teoldgicas arquitetadas pelos sacerdotes. O culto de animais sagrados, como 9s touros Apis e Mnevis ¢ muitos outros, era igual- ‘se uma parcela das forcas espirituais e da personalidade de um ou mais deuses. Os templos, construidos de pedra a partir de meados do III milénio, tinham 0 duplo carter de io ou residéncia de um deus ou deusa e de cen- tro de operagdes magicas. A erecdo de templos era atribuigao exclusiva dos faraés. O culto diario con- sistia no servico pessoal prestado ao deus pelos seus sacerdotes — como delegados do rei, em teoria 0 nico habilitado a estabelecer o vinculo entre homens e deuses: pela manhd a estdtua divina era abragada nela se era lavada e vestida, recebendo depois ofe- renda de alimentos e bebidas. Procissdes, festivais em que a imagem saia do templo pelas ruas da ci- dade, pelos campos ou navegando no Nilo em sua barca luxuosa, visitas dos deuses entre si, eram ou- tros aspectos do calendario religioso. Os egipcios viam a criacdo como uma espécie de Ciro Flamarion S. Cardoso / iha de ordem cercada pelas forgas do caos, que a ameagavam constantemente de aniquilagao, da mes- ma forma como 0 Delta eo Vale férteis e organizados estavam cercados pelos desertos hostis e anarquicos. Por isto os templos eram, em sua arquitetura e deco- ragdo, representacdes simbélicas do universo e a sede de operacdes magicas destinadas a evitar a destrui- Ho césmica, As imagens mais usuais desta concep- 40 eram as do caminho diurno e noturno do Sol, ameacado por deménios inimigos (como a serpente Apepi) entre os quais terminou sendo incluido 0 deus Seth, 0 adversario de Osiris e Horus. ‘A religiao egipcia tem sido territério freaiien- rias abstrusas, que amitide refletem antes de mais nada as preocupacdes religiosas pessoais dos seus autores, quando nao a apticagio de metodo- logias artificiosas cujos resultados sao assaz duvidosos (como nos parece ser 0 caso das tentativas de al cagio do método baseado em oposigdes binérias complementares, derivado da Antropologia Estru- tural de Claude Lévi-Strauss). Desde 0 século XIX, rsos autores vém afirmando que, apesar de um Tal afirmacdo é pelo menos muito exagerada e, no pensamento egipcio a unidade indiferenciada divino se confundia com 0 caos que precedeu a cria- iio. Nao ha diivida, porém, de que certos mecanis- 0 Egito Antigo des buscaram a assimilacdo a Ra: Amon-Ra, Sobek- Ra, Montu-Ra ete. No Reino Novo, por outi fortaleceram-se as tentativas de sincretismo e ident cacdo entre as personagens e mitos divin ra unificadora radical, tendente a simp! ‘a, que Amon representava) ¢ do faraé seu filho, foi a fracassada reforma de Akhenaton. Mesmo derrotada, sobrevivéncia depois da morte foi objeto sbes divergentes que se foram superpondo sem. de" na qual recebia oferendas de comidaebebida(eda qual eyentualmente poderia escapar por algum tempo em forma de passaro), como navegando na barca so- Jar, ou ainda sendo julgado no tribunal de Osiris depois, se no fosse condenado (e isto pod evitado tanto por uma confissao ética e do seu coraglo, quanto por diversos meios maicos), viver para sempre num “outro mundo” governado por aquele deus, o qual de fato recordava muito 0 proprio Egito. A religido funerdria era profunda- Ciro Flamarion S. Cardoso mente penetrada de magia em todos 0s seus aspectos. A principio patrimdnio do rei em cardter exclusi foi progressivamente aberta a camadas cada vez mai extensas da populagdo — aquelas, pelo menos, que pudessem cobrir as despesas cago (j4 que se julgava essenc anutengao do culto funerdrio. As crengas sobre a vida depois da morte fizeram dos tmulos egipcios ‘0s mais ricos de toda a Histéria humana em oferen- das enterradas com os defuntos e em representagbes sas da vida quotidiana ¢ das ati extraordindria importancia como Como é natural, foram as tumbas reais as mais rica: embora por isto mesmo tenham sido quase todas sa- queadas na prépria Antigiidade. As sepulturas dos istoricamente a evolugio que as con- construgao de tijolos em forma spipedo, encimando a fossa funeraria onde se achava a mamia em seu sarcofago, a piramide de pedra de tamanho varidvel, ¢ desta aos hipogeus ‘into capelas para 0 culto funerdrio do faraé mot foram construidos para este fim templos inteiros, as vezes extensos, igados ou nao aos sepuleros. ‘A religido penetrava intimamente todos os as- pectos da vida piblica e privada do antigo Egito, 0 Egito Antigo Ceriménias eram realizadas pelos sacerdotes cada ano para garantir a chegada da inundagio, e o rei agradecia a colheita solenemente as divindades ade- quadas. Oraculos dos deuses — em especial os de Amon no Reino Novo e em épocas posteriores — desempenhavam um papel importante na solugao de problemas politicos e burocraticos e eram também consultados pelos homens do povo antes de tomarem decisdes de algum peso. As mulheres sem filhos se desnudavam diante de touros ou carneiros sagrados, esperando mudar a situagao por sua exposigdo a tais simbolos de fertilidade. A medicina era penetrada de magia e religiao. O aspecto supersticioso das crengas ‘ava 0 uso de amuletos e’ outras protegdes mégicas, tanto pelos vivos quanto pelos mortos. Lingua, escrita e literatura A lingua egipcia ¢ considerada africana, com alguma influéncia semi Greenberg, pertence & a historica do antigo egipcio foi o copta, morto, mas ainda usado como lingua tirgica dos cristaos do Es No periodo faraGni , trés fases transparecem através dos textos escritos conservados: egipcio ar- caico, egipcio classico ou médio (da X dinastia a época de Amenhotep III) e neo-egipcio. A escrita hieroglifica, inventada em fins do pré- Ciro Flamarion S. Cardoso O Exgito Antigo din&stico e aperfeigoada sob as primeiras dinastias, comportava signos numerosos, utilizados de trés modos: como pictogramas; como fonogramas repre- sentando uma, duas ou mais silabas (certos fono- gramas eram complementos fonéticos que duplica- vam alguns sons da palavra para fi 6 as consoantes eram gr: s permitiam distinguir entre si palavras diferentes mas que continham a mesma estrutura consonantal. Os hieréglifos — cuja leitura perdeu-se em fins da Antigdidade e foi reencontrada em 1822 por F. Champollion — continuaram, ao Jongo de toda a Historia antiga do pais (inclusive sob os monarcas helenisticos e romanos), sendo utili- zados nas inscrigées epigraficas dos templos, timu- los, estelas etc., e eventualmente em manuscritos tico por sua vez se si dando a forma chamada demético. As inscrigdes ou manuscritos egipcios nao tém pontuagdo nem sepa- ram as palavras entre si, mas a disposi¢ao e | dos signos seguem certas regras bastante simples. Antes da tradugao, 0 es} normas fixadas intern fonética do texto em alguns outros signos e sinais convencionai guindo as palayras ou grupos de palavras. A Figura 6 apresenta um fragmento do papiro hierdtico Westcar, conservado em Berlim, a trans- crigdo do texto oF devem ser lidos d: sua transcri¢ao foné ficamos a tradugio iia’ ao lago do paliicio (Vida! Saiide! Forcal). Equipa para ti um barco linha 3: com todas as belas jovens que esto nos aposentos interiores de teu paldcio. O coracao de tua Majestade se divertiré i ao vé-las remando, a remar de um lado para ’: Tu poderds ver os belos ninhos de passaros 120, € verds teus campos em suas belas margens. Teu coragao se. textos egipcios que se conservaram sao pre- intemente religiosos e funerdrios — textos das Pirdimides, textos dos sarcdfagos, Livro dos Mortos (coletiinea de formulas magicas para orientago do morto quando renascesse e' devesse orientar-se no além), hinos a diversas divindades, inscrigdes que se referem aos mitos ¢ rituais divinos... —, relativos aos i ¢ biografias oficiais de funcionérios. 10 Antigo, porém, apareceu uma litera- tura profana, mais bem conhecida para épocas poste- ‘hots Hinks a Ra ahd paealaey Gin eee che : 22222320 aes Lael -2 sks a2 E13 Se neers 39 HE osopang “§ uounwunyy 041), CUP SAMLALSI KE A Shels AES SU e-Book Wala Ubs--bl- SSH gE TT} Matde Se Ah = at eee YAS? eae BN os A B01, m gment sy dain wf didi-m-'nb : hwy hud; hmv r by n pr-"s (‘nh wd! snd), “pr neh biw mm nfrt nt bw ‘ek . 4b n himh 7 bbb 1 ms hnn-in bt m hd m bnt dw: hr mi; ssw nfrw n Syrh, turk hy m3 SEF DfES nfrw tw tok r Fig. 6 — Passagem do conto “O Rei Khufu e 0s Magicos"’: texto hierdtico, 0 mesmo texto em hieréglifos e transcricéo fonética.(Adolf Erman, The Ancient Egyptians. A Sourcebook of their Writings, Gloucester (Massachusetts), Peter Smith, 1978, pp. LXVII-LXIX. O manuscrito hierético em questao data do comego do Reino Novo.) O Egito Antigo riores: romances curtos, poesias liricas, “instrugBes”” ‘moralizantes, sétiras, tratados técnicos etc. Pelos textos conhecidos, podemos dizer que a “cigneia” farabnica consistiu em coletineas de co- nhecimentos empiricos diversos — receitas de medi- camentos, férmulas geométricas e trigonométricas para a agrimensura ou para a construgao ete. — mais do que em um conhecimento generalizado ou teorizado; houve, no entanto, algum esforgo de clas- sificagdo e organizacdo. A numeragio era decimal, mas nao existia o zero; das operacoes usuais da arit- mética, existiam duas (soma e subtracdo). O calen- dario, 20 mesmo tempo solar e lunar, estabeleceu-se cedo, através da observacdo da coincidéncia eventual do aparecimento conjunto do Sol e da estrela Sirius com 0 inicio da inundacao. Porém, s6 na época dos Ptolomeus 0 ano solar foi aperfeigoado pela criagio de anos bissextos. Os médicos egipcios eram famosos na Antigiidade, e a pratica da mumificacdo levou a uma acumulagdo de conhecimentos anat6micos em- piricos. Nao obstante, medicina, astronomia e outros ramos de estudo ou ciéncia aplicada estavam profun- damente penetrados de magia e religido. A cultura do Egito antigo, nos aspectos que po- demos conhecer, era patrimGnio de reduzida elite de letrados: cortesdos, sacerdotes, funcionérios e escri- bas. Apesar da insisténcia com que os gregos se refe- iam as origens egipcias das ciéncias, na realidade a influéncia da Mesopotamia sobre 0s comegos da ciéncia grega parece ter sido muito maior. Artes plasticas Os antigos egipcios nao tinham, como nés, uma nogio da arte como atividade que se autojustifica: arquitetos, escultores ou pintores viam-se como fun- cionérios ou como artesfios que produziam objetos funcionais para uso religioso, funerario ou de outro tipo. ‘A arte em todos os seus aspectos — arquitetura, escultura, pintura, artes menores — girava em torno dos deuses, do rei-deus e da corte. Sendo 0 faraé 0 construtor principal e o maior consumidor de objetos de arte, por concentrar a riqueza e a mao-de-obra especializada e nao-especializada necesséria, as épo- cas de apogeu artistico coincidem com os auges do poderio faradnico. A nfo ser em arquitetura, pois templos e tumbas mudaram muito até sua fixaclo sob 0 Reino Novo, desde o Reino Antigo estavam fi- xados padrées ou cdnones artisticos que variavam sem perda de suas caracteristicas fundamentais, pelo que se constata, apesar de inevitaveis alteragbes do gosto, do grau de refinamento e de imimeros detalhes ao longo dos séculos, uma grande unidade de estilo, tornando reconhecivel a primeira vista como egipcia mente subseqiientes, época chamada “amarniana”, caracterizada por forte tendéncia ao naturalismo ou mesmo a caricatura e A decoragio profusa. Em arquitetura 0 que melhor conhecemos so os Ciro Flamarion $. Cardoso e tumbas, construidos com materiais impe- reciveis, ao passo que quase nao temos restos de pa- lcios reais e residéncias particulares. Os templos egipeios se caracterizam sobretudo pela sua monu- mentalidade. A partir do Reino Novo, fixou-se um padrdo em tal tipo de edificio: entradas monumen- tais (pilones), patios abertos, salas hipéstilas (isto é, com 0 teto suportado por colunas), um santuério obscuro, capelas para a barca do deus e outros fins, depésitos ete. A frente dos pilonos havia estétuas sigantescas dos reise mondlitos de pedra (os obelis- cos, simbolos solares), além de mastros com bandei- rolas encostados & fachada. O maior conjunto arqui- tetdnico é 0 constituido pelos templos de Amon em Luxor e Karnak, em Tebas, com miltiplos anexos. ‘A escultura real, as vezes associada aos edifi- era com freqiéncia também monumental e lealizada, representando o fara segundo certas convengdes bastante rigidas quanto as atitudes ¢ as vestimentas. Ja a escultura de particulares — que conhecemos através das tumbas — era mais realista. ‘A pintura, que no conhecia a persp refinou muito as suas técnicas no Reino Novo, quando com- parada aos periodos anteriores; também neste caso, porém, certos cnones e convengdes se mantiveram com pouca mudanca ao longo dos milénios. Particu- larmente notaveis — e Gteis como documentagdo — sfo as pinturas e relevos encontrados nos timulos. Certos manuscritos — em especial edigdes luxuosas do Livro dos Mortos — sao também decorados com CONCLUSAO: “MODO DE PRODUCAO ASIATICO”? Foram bastante freqientes, no passado, as terpretagdes dag estruturas econdmico-sociais tio E; to faradnico que apelavam para conceitos como os de , feudalismo ou mesmo capitalismo, todos anacrOnicos ou inadequados as realidades especificas torica consideravelmente distinta deram, como era natural, resultados muito ruins e pouco convincen- tes. Isto levou, sobretudo a partir da década de 1960, revalorizagio de certas idéias de Marx e Eny contidas (esporadicamente) em textos que se escalo- nam entre 1853 ¢ 1883, a respeito de uma m dade de organizacao econdmico-social ¢ politica que, em apenas uma ocasiao (1859), Marx denominou Ciro Flamarion S. Cardoso “modo de producio asiatico”. desenvolvidas em forma do marxismo — tinham sido proscritas depois de acalorada discussiio, entre os marxistas tanto ociden- tais quanto soviéticos, no perfodo que vai mais ou menos de 1930 a 1960; ou seja, nas décadas do sta- linismo. Para a sua nova yoga contribuiu a pul ‘g80, em 1957, do provocante Oriental Despotis escrito pelo sindlogo ex-marxista K. A. Wit Estas idéias — nunca Em que consistem as caracteristicas esse1 do “modo de produgao asiatico"? Trataremos de re- sumi-las, baseando-nos nao s6 em textos de Marx € Engels, mas também em alguns dos trabalhos mais recentes a respeito. 1) Um nivel das foreas produtivas mais gado do que o das sociedades tribais primi Grandes densidades populacionais garantem dante forca de trabalho, o metal jé € conhecido (este ponto falha no caso das sociedades mais adiantadas da América pré-colombiana que, embora conheces- sem o metal, 0 utilizaram muito pouco em fer mentas), existe uma agricultura desenvolvida, seada na irrigac%io. Quanto as obras de irrigaco, certas passagens Marx e Engels cedem a um verda- deiro determinismo geografico, postulando uma “ pétese causal hidraulica” do tipo que jé foi discutido por nés. 2) Aexisténcia da comunidade de aldeia, forma alterada da comunidade primitiva. Os produtores retos organizam-se em aldeias de estrutura comu- nitéria, em cujo quadro ainda nao existe a proprie- 0 Exito Antigo dade privada. Tais comunidades aldeas apresentam- se como entidades quase totalmente fechadas ¢ au- térquicas, cada uma delas sendo a menor célula em que se divide a sociedade, caracterizando-se pela associagao das atividades agricolas e artesanais em termos de uma insuficiente divisto social do tra- batho. 3) A existéncia de um Estado despético acima das comunidades de aldeia, como um resultado da separaco entre os produtores diretos ¢ os organi- zadores da produgio. O Estado'encarna-se num dés- ota cujo poder tem uma fundamentacao religiosa e que é visto como o dono de todas as terras cardter privado, mas em virtude déspota encabeca uma estrutur que concentra diversas fungdes: ‘gio e controle da economia, coo! 0 do trabalho requerida pela agricultura hidrdulica, construgdo e conservacio dos diques, canais, barra- gens e outras obras de grande envergadura, tudo isto através de hiperdesenvolvida burocracia; 29) de de- Jezas; 32) religiosas: controle estrito sobre a re- integrada a sua base de poder. 4) A relacao entre o Estado e as comunidades aldeds se expressa na chamada “escravidio genera- lizada”’ Isto é, existe uma exploracio direta ¢ cole- as comunidades (cada uma vista apropriagio, pelo Estado, do excedente pelas comunidades, sob a forma de tribu- Ciro Flamarion S. Cardoso tos; 22) a exigéncia do fornecimento de equipes de trabalho pelas comunidades, para a realizagio de obras piblicas ou mesmo de obras do interesse pes- Soal do rei ou do grupo dirigente. Os excedentes cole- tados em forma de imposto sao usados pelo Estado para sustentar uma aristocracia de funcao (isto &, tuja posigdo social n&o decorre da propriedade pri- Yada e sim do exercicio de fungées em principio revogaveis) que cerca o déspota — burocratas, sacer- dotes, guerreiros — e para armazenamento em pre- visto de épocas de caréncia. 's) Embora existam escravos no sentido comum do termo, néo constituem a base da produgao social, ‘Tal base so as comunidades aldeds, € os escravos sto domésticos, ou quando muito tém importancia econdmica apenas setorial. 6) A inexisténcia de comércio e artesanato como atividades suficientemente auténomas para alterar @ Grdem social, O excedente de que se apropria a no- tbreza de funcao faz dela um mercado consumidor € ta o desenvolvimento de atividades mercan- Uma parte de tal excedente é exportada em troca ide matérias-primas que servem as construgdes ¢ a um fartesanato j4 desenvolvido, voltado para a producao de artigos de luxo consumidos pela elite ou trocados ‘no mercado internacional. O Estado monopoliza ¢ regulamenta estritamente a inddstria e o comércio externo, na totalidade ou na sua parte mais signifi- tativa, ¢ nestas condigdes torna-se impossivel a for- ago de uma classe mercantil independente. Assim, artesanato e comércio constituem atividades margi- 0 Egito Antigo nais continuameiite absorvidas Be Sie a en cae ees € unilateral no sentido campo-cidade, wvés do fornecimes i Seate susie mance ii 7) A tendéncia @ estagnagao. A coeréncia in- e icidade deste tipo de sociedade, 0 ca- rater praticamente indestrutivel da comunidade de al ‘0 modo de produgao asiético ses, mudangas de dinastia, nada altera no essenci ‘© funcionamento das comunidades aldeas. A alta taxa dos impostos ¢ a auséncia quase total de rela- ‘g®es comerciais entre 0 mundo rural e as cidades contribuem para conservar imutaveis ou pouco va- ridveis as técnicas e habitos agricol ee Dereinotir se pace et da lista de carac- mos de expor, nem se pseniey odes nas anllsne qe procuram aplcat 8 nogao de “modo de produgio asiitico”. Tanto em Marx quanto hoje em dia, tal nogao de fato oscila entre duas modalidades: 1) a que sublinha mais as obras de irrigagio, o Estado despético e a auséncia de propriedade privada; 2) a que concede maior importincia a existéncia de comunidades autérqui- cas em sociedades que j& apresentam diferenciagdo eon eestruturas estatais. Ciro Flamarion S. Cardoso 0 Exito Antigo idade do conceito de “modo de produgao diferencas na prdpria época de Marx entre a Europa, por um lado, e paises como a India e a Chi outro lado. Mas, ao salientar preferencialment texto conhecido como Grundrisse em particular) a persisténcia das comu: tentes em Estados p1 tipos de sociedades, entre as quais 0 Em outros termos, 0 “iodo de pro- werte, assim, numa das formas gem de ma sociedade . Enquanto 0 primeiro enfoque mencionado acima é hoje impos- sivel de defender, o segundo tem rendido frutos nao despreziveis. Por esta razéo — e por outras que seria que Emest Mandel ou B. Hindess ¢ P. Hi cipalmente: Perry Anderson, “The ‘As Production”, in P. Anderson, Lineages of the Abso- lutist State, Londres, Verso, 1979, pp. 462-549 — apéndice B). Afinal, pouco importa que tal nogio tenha antecedentes um tanto espuirios na moderna ideologia ocidental ou que sua primeira razio de ser tenha fracassado, se em outra fase da sua elaboragao € uso tornou-se um instrumento de andlise itil, ao muig& de necessarias correcdes. Presegui'sO nos interessa, na verdade, avaliar a aplicabilidade do modelo exposto ao caso em estudo: © Egito faradnico. J4 vimos em outros lugares deste texto que o primeiro em parte e, na sua totalidade, 0 liltimo dos t6picos mencionados — isto é, as hipé- teses da “causalidade hidrdulica” e da “estagnacdo” — so inaceitaveis. No entanto, os outros elementos do modelo parecem constituir uma aproximacdo bas- rico que melhor reflete tal modelo, em virtude de um controle mais persistente exercido pelo Estado sobre as tentativas de formagao de uma pro- priedade privada (a qual existiu, mas nfo a ponto de alterar o esquema social bisico) e sobre as atividades artesanais € mercantis. Uma urbanizago menos de- senvolvida e forgas produtivas no conjunto menos ticas do que na Mesopotamia devem ter ajudado a que tais controles pudessem ser mantidos, pelo menos nas épocas de centralizagao estatal. Deve confessar- que tudo aquilo que for dito acerca das permanecera — tal- amente no Ambito de uma hipétese plausivel de trabalho, mercé de uma documentago das mais insuficientes a respeito da organizacdo das massas rurais do Egito antigo. Neste ponto, a Baixa Mesopotamia apresenta documentos bem mais abundantes (embora insuficientes de qual- quer maneira). Parece-nos, no entanto, que os indi- cios disponiveis apontam na directo de uma relac&o unilateral predominante entre campo e cidade (e, Portanto, na de uma necessdria unio de agricultura Ciro Flamarion S. Cardoso capitulos 1 aS. Outras introduces de valor s4o: os inentes de Los imperios del antiguo Jacquetta Hawkes, yan Torque, Alfred A. Knopf, 1973, partes te éternelle, Verviers, Ison, La cultura egipcia, Econémica, 1972 (4% reimpresso); Alan Gardiner, Egypt of the Pharaohs, Londres, Oxford University Press, 1974 (reimpres- so). Para as questdes do povoamento pré-histérico das fases anteriores a unificagao, ver duas obras atualizadas: Le peuplement de l'Egypte le déchiffrement de l'écriture méro tique. Actes du coloque tenu au Caire du 28 janvier au 3 février 1974, Paris, UNESCO, 1978; Michael A. Hoffman, Egypt Before the Pharaohs, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1980. Daremos agora uma selecdo de trabalhos rela- tivos a diferentes periodos da histéria do Egito farad- nico. Cyril Aldred, Egypt to the end of the Old enor Londres, Thames and Hudson, 1978 (re; ire des XI° et XII (eds.), Imperialism in the Ancient World, Cam- bridge, Cambridge University Press, 1978, pp. 7-57; Cyril Aldred, Akhenaten: Pharaoh of Egypt, Lon- dres, Abacus-Sphere Books, 1972; Christiane Des- roches-Noblecourt, Tutankhamen. Life and Death of larmondsworth, Penguin Books, 1972 K. A. Kitchen, The Third Interme- Egypt (1100-650 B.C.), Warminster, lips, 1973. ‘As técnicas de produgao recebem tratamento detalhado em: Henry Hodges, Technology in the An- cient World, Harmondsworth, Penguin Books, R. Engelbach, “Procedimientos mecnicos y in S. R. K. Glanville legado de Madri, Ediciones Pegaso, 1950, pp. 191-247. Uma visto de conjunto bastante ade- se encontra "Mode of Production, Londres, Routledge v. Butzer, Early Hydrau- Ciro Flamarion S. Cardoso cago Press, 1976; Ahmad Sadek Saad, L ‘Egypte phat raonique (Autour du mode de production asiatique “Cahiers du C.E.R.M.”, n® 122, Paris, Centre d’Etu- des et de Recherches Marxistes, 1975 (mimeografa- do). E sobre a propriedade da terra, ver: Bernadette Menu e Ibram Harari, “La notion de propriété privée dans 'ancien Empire Egyptien”, in Etudessurl'Egyp- teet le Soudan anciens, n° 2, 1974(Lille), pp. 125-154. O melhor manual de io a escrita hiero- glifica ainda é: Alan Gardiner, Egyptian Grammar, Londres, Oxford University Press, 1950 (2 ed.). tos — sto: Jean Capart, Je lis les hiéroglyphes, Bru- xelas, Presses Universitaires de Bruxelles, 1958; E. tledge and Kegan Pai i comodo é: Raymond . Faulkner, A Concise Dic- tionary of Middle Egyptian, Oxford, Griffith Insti- tute-University Press, 1976. Existem boas coletiineas de tradugdes de textos egipcios antigos. Eis algumas das mais acessiveis: Gustave Lefebvre, Romans et contes égyptiens de l'époque pharaonique, Patis, Adrien Maisonneuve, 1976; James B. Pritchard (ed.), The Ancient Near East, 2 vols., Princeton, Princeton University Press, 1973; Adolf Erman, The Ancient Egyptians. A Sourcebook Writings, Glouces- ter (Mass.), Peter Smith, 1978; William Kelly Simp- son (ed.), The Literature of Ancient Egypt, New Haven, Yale University Press, 1973. Ha também numerosas traduedes do Livro dos Mortos; por exem- plo: El libro de los muertos, tradugao e prologo de O'Egito Antigo Juan A. G. Larraya, Barcelona, José Janés, 1953. A religido egipcia tem enorme bibliografia. En- ‘tre os manuais antigos, um dos melhores é 0 de A. 192 (excelente sintese); Serge Sauneron, The Priests of Ancient Egypt, Nova lorque, Grove Press, 1980 religion ass Paris, Payo' Fare Garnot, La vida religiosa en el antiguo Egipto, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Ai- res, 1964. Acerea das caracteristicas gerais do pensamento Hermann Kees, Arte egipcio, Barcelona, Editorial Labor, 1933; Wilhelm Worringer, El arte egipcio, Buenos Aires, Ediciones Nueva fende idéias muito heterodoxas); d'archéologie égyptienne, tomolV, Bas tures. Scénes de la vie quotidienne, Paris, Editions A. et J. Picard, 1964; Jacques Vandier, La sculpture égyptienne, Paris, Fernand Hazan, 1951; G. Jé- quier, Manuel d'archéologie égyptienne, I. Les élé- ‘ments de V'architecture, Paris, Auguste Picard, 1924. & As opinides expressas neste livro so as do autor, podem ndoser as suas, Caso vocé ache que valea Pena escrever um outro livre sobre o mesmo tema, postos a estudar sua publicagao lo como “segunda visdo”, & Que pode haver de maior ou menor que um toque? W. Whitman VOCE CONHECE O PRIMEIRO TOQUE? PRIMEIRO TOQUE é uma publicagao com crénicas, resenhas, comentarios, charges, dicas, mil atracdes sobre as colegdes de bolso.da Editora Brasiliense. Sai de trés em trés meses. Por que nao recebé-lo em casa? Além do mais, ‘ndo custa nada. S6 0 trabalho de preencher os dados ai de baixo, e por no correio - CIDADE: editora brasiliense s.a. 01223 - r. general jardim, 160 - séo paulo

You might also like