You are on page 1of 16
Capitulo 6 A Hora de Jogo Diagnostica Individual. Enfoque Atual e Exemplos Clinicos Os psicélogos clinicos que trabalham com criangas sabem que a primeira hora de contato com a crianca ou o puibere equivale a primeira entrevista que faze- mos com 0 adulto. Essa primeira entrevista com a crianga é livre, assim como a do aduito, mas existem diferencas entre elas. O adulto fala, geralmente sobre os seus problemas, & quando fica em silencio consegite tolera-lo melhor que a crianca. Esta, na melhor das hipéteses, consegue dizer umas poucas palavras sobre 0 que esta acontecendo com ela. Na entrevista prévia que tivemos com seus pais, combinamos que estes lhe ditiam 0 motivo pelo qual a levariam ao consultorio, sem faltar 4 verdade, mas sem detalhes profundos. E nesse ponto que se inicia 0 nosso didlogo com eles: “Vocé sabé por que seus pais o trouxeram?”. Se responder sim, nos dara uma pauta a partir da qual pode- mos iniciar 0 dialogo. Se sua resposta for negativa, deveremos resumir o que foi falado com seus pais e 0 que combinamos que seria dito a ele. As vezes as criangas respondem com uma negacao para provar se 0 que os pais lhe disseram equivale efetivamente ao que‘nés estamos dizendo. Eu, pessoalmente prefiro dizer: “Bem, se eles nao disseram nada, diga vocé, se quer a minha ajuda, e em que eu posso ajuda-lo’. Alguns insistem no seu: “Nao sci’. Outros, no entanto, usam essa porta aberta para iniciar um didlogo que pode ser inesperadamente rico. Talvez nos cause surpresa que a crianca inclua causas de preocupacao que nem foram mencionadas por seus pais, Por exemplo, os pais estao preocupados porque seu rendimento escolar esta caindo e ele conta que esta preo- cupado porque seus pais discutem muito e falam em separar-se. Este dialogo assim iniciado da oportunidade para continuar a conversa até um ponto em que as pala- vras acabam, e, quando isso ocorre, ¢ hora de apelar para outros recursos, outras formas de linguagem muito apropriadas ao nivel da crianga e do pubere: a lingua- gem ltdica e grafica. Seguindo o titulo deste capitulo, farei referéncia especial 4 linguagem lidica Na historia da psicanalise um ponto muito controvertido foi o da legitimida- de de equiparar ou nao o brincar da crianca com a livre associagao e os sonhos dos adultos. Anna Freud considerou que isso nao poderia ser feito, enquanto que outras psicanalistas de criancas, lideradas por Melanie Klein, sustentavam que sim e cada posicao expunha as suas razoes. 47 48 Garcia Arzeno Para a primeira, 0 jogo ¢ uma forma de acting que em nada pode ser compa- rado ao sonho ou as livres associacées dos adultos. Para Klein, pioneira da sua utilizagéo como técnica psicanalitica e em escrever os argumentos tedricos que sus- tentavam tal posicdo, ¢ a via regia ao inconsciente, como 0 sao os sonhos nos adul- tos. Para Anna Freud, a analise de criancas diferenciava-se enormemente da dos adultos por uma série de razées. A crianca nao possui consciéncia de doenca, esta ainda presa aos seus objetos originais, néo sente prazer nenhum em ser analisada, as resistencias sao _intengas.¢ explicdveis, ete.' Para Klein, pelo contrario, o brincar é a Tinguagem tipica da crianga. Quando falta a palavra, o brincar expressa tudo, e mesmo quando a palavra ja tiver sido incorporada a linguagem Itidica € mais ex- pressiva que a verbal ou, entao, no minimo, um complemento imprescindivel?. Afir- ma que as diferengas existentes entre a analise de adultos e a de criangas restringe-se a algumas questdes técnicas como esta de brincar ¢ interpretar a brincadeira ou o jogo da crianca mais do que as suas palavras. Arminda Aberastury desenvolveu amplamente em nosso meio a posicao kleiniana® ¢ afirma que durante a primeira hora de jogo, que ela chamou pela pri- meira vez de hora de jogo diagnéstico, a crianca expressa as suas fantasias de doen- ¢a e cura, Nem sempre isso ficara claro em uma hora; as vezes descobrir tais fantasias pode levar duas ou trés horas; mas nao ha diivida de que estarao presentes, Mais adiante darei alguns exemplos. Baranger, outra autora argentina, publicou um artigo* no qual acrescenta outro concelto: 0 da fantasia da analise. De forma que, na hora ou nas horas de jogo diagndsticas esperamos encontrar as fantasias que a crianga nos transmite: (1] sobre aquilo que esta the fazendo mal; (2) sobre o que the faria bem para melhorar; (3) sobre 0 que nds vamos fazer a ela ou o que ela quer ou teme que nés facamos. Ela também vai nos transmitir toda a sua vivéncia da relacdo com seus irmaos, com colegas de escoli, com sensagdes diante do seu desenvolvimento fisico, etc. Ou seja, nem todo o material colhido em uma hora de jogo sera considerado exclusivamente como expressao de fantasias inconscientes, assim como, atualmen- te, nem todo o material de um paciente adulto é interpretado desde e na transferén- cia, mesmo que guarde alguma relagao com ela. Se cu comparar minha prépria atitude atual com aquela que eu mantinha durante uma hora de jogo ha vinte ou vinte cinco anos, noto uma grande diferen- ¢a: nao estou mais esperando que aparecam os sinais ou reagdes citadas por Klein, Aberastury ou Baranger. Estou observando aquilo que eu vejo. Nao sou mais uma Principiante ¢ nao estamos mais na época da idealizacdo quase dogmiatica da teoria ¢ técnicas kleinianas. A escola francesa fez também as suas contribuigdes. Francoise Dolto nao usa 0 jogo, mas somente a modelagem ¢ 0 desenho’. Maud Mannoni incorpora ma- terial do brincar entrevista diagnéstica com os pais quando a crianca esta presen- te € fica atenta ao brincar da crianga paralelamente ao dialogo com os pais®. Outro tanto faz Winnicott desde um esquema referencial muito diferente, também diferen- te do kleiniano’. 1, Freud, Anna. Normalicadee y patolofia en la nifiez. Buenos Aires: Paidés, 1976. 2. Klein, Melanie. “La técnica psicoanalitica del juego: su historia y su significado", em Contribuciones al psicoandilisis. Buenos Aires: Paidlés, 1964. 3, Aberastury, Arminda. Teoria y técnica en psicoandilisis de nitios. Buenos Aires: Paidés, 1977. 4, Baranger. M. ob. ct 5. Dolto, Francoise, Ei caso Dominique, Siglo XI, 8.ed., 1986. 6 Mannoni, Maud. La primera entrevista con el psicoanalista. Buenos Aires: Graniea, 1973 7. Winnicott, David W. Realidad y juego. Barcelona: Gedisa, 1979. Psicodiagnostico Clinico 49 Assim, 0 desenvolvimento da psicanalise de criangas € 0 surgimento de di- versas escolas provocaram no profissional um efeito positivo: pode observar com uma atengao mais flutuante, tal como recomendava Freud, para registrar a mensa- gem da crianga, seja esta qual for, sem ficar enclausurado no que aparecera na sua fantasia de doenga, por exemplo. Outro conceito de Klein® é o de que toda hora de jogo expressa uma fantasia masturbatoria. Refere-se a que o brincar transmite algo que esta no fundo do in- conscienie da crianga, que tem relacao com a cena priméria, e a natureza desta vai depender do nivel de desenvolvimento das relagées objetais no qual ela se fixou. Fantasia masturbatoria significa fantasia de que entre uma coisa e outra algo acontece. Se 0 nivel for muito primitivo sera entre dois objetos parciais que sadicamente tentam chupar-se, morder-se, aplastar-se, aniquilar-se. Se o nivel for mais evoluido, tipico da posicdo depressiva (e nao da esquizéide-parandica como no exemplo anterior] so dois objetos completos e diferentes: mamae e papai, entre os quais algo acontece, um da ou faz alguma coisa com o outro e vice-versa, mas predominantemente com amor ¢ nao mais com o sadismo maximo da primeira eta- pa. Suponhamos que um menino de trés anos chega, anda em volta da caixa, a esvazia, senta-se dentro dela e nos olha dali com olhar de satisfacao. Poderemos inferir que esta dizendo como ficaria feliz se pudesse voltar a barriga da mamde e viver desde esse lugar toda a sua vida, evitando, também, que aparecessem irmaozinhos. Meu primeiro impulso seria perguntar 4 mae se esta gravida. A fanta- sia de doenca dessa crianga seria: “Adoeci porque me tiraram de dentro’, a fantasia de cura e analise seria “Quero voltar para deiitro, vocé me ajuda?”, e a cena prima- ria ou masturbatoria seria a dos pais em copula constante, de modo que a unica forma de evitar 0 aparecimento de irmaos seria estar dentro controlando tudo 0 que acontece ¢ tentando impedir a fecundacdo. Se numa segunda hora de jogo essa crianga bate com dois carrinhos repeti- damente, logo apés olha com atencao a parte inferior ou o interior de cada um deles, os enche de massa de modelar para depois tird-la com uma faca ou uma espatula finalmente corre para o banheiro para lavar as maos, eu ficaria completamente segura quanto as minhas hipéteses da primeira hora. Agora acrescentam-se defe- sas obsessivas (lavar-se) como complemento do que ja havia sido observado antes, 0 que significa que nao é tao facil ocupar a posigdo da primeira hora, pois tem que carregar culpas que {enta evitar com rituais obsessivos {se 0 ato de lavar-se ¢ repe- tido a toda hora) o que pode ser 0 motivo da consulta. Pensemos em outro exemplo. E uma menina de cinco anos que entra, olha para a caixa de jogos, nao a toca, fica o mais longe possivel e vai para baixo do diva cobrindo o rosto com as almofadas, mas deixando uma fresta através da qual me espia. Posso pensar que a caixa seja a barriga da mae, cheia de coisas que a assus- tam e da qual ela precisa se afastar bastante para nao receber os efeitos do que ali ocorre, mas nao tanto (se nao, poderia ter ido embora) a ponto de nao poder ver o que ali ocorre. A cena priméria € sdica porque seu rosto é de susto e porque nao pode brincar: a fantasia ¢ de que esta ocorrendo algo perigoso ¢ sanguinario, por isso ela deve se afastar. E a fantasia de analise é a de que cu também posso ser sanguinaria assim ¢ deve afastar-se, proteger-se e me espiar. E légico que ela proje- tou na caixa e em mim tudo o que ela tém em seu interior, e essa mae sadica também é 0 resultado de seus ataques sadicos 4 mae que teve outro bebé tao cedo (0 irmao esta agora com trés anos e meio). Esconder-se é também uma medida de protecdo porque ela é culpada. e o fato de me espiar mostra que teme que eu a Klein, Melanie. ob. cit. 50 Garcia Arzeno castigue, no porque eu seja sddica, mas porque ela cometeu um crime € merece ser castigada por alguem. Suponhamos que ela tenha escutado que a mae quer engravidar novamente ¢ nao consegue. Esse fato, entdo, explicaria tudo. Estes exemplos foram eloqientes ¢ de leitura facil. Mas nem sempre é assim. Algumas vezes a crianga chega muito na defensiva ¢ isso é tudo o que conseguimos observar, Talvez escolha trazer um brinquedo a pilha e brincar sozinha sem dar atencao a nossa presenca. Nesse caso teremos que dizer-lhe isso ¢ esperar a sua reagao. Se continuar com a mesma atitude, poderemos lembré-la do motivo pelo qual, segundo seus pais, teve que vir até aqui e pedir a sua opinido. Possivelmente assim comece a ligar para nés Mas se continuar com a sua brincadeira solitaria e © nosso registro contra-transfe- rencial e de que “nos mata com a sua indiferenca”, ja poderiamos interpretar que nao sente que tenha problema algum, que nao precisa de nés para nada e que pode se virar sozinho. Mas se nos olha furtivamente enquanto brinca e olha para a caixa de brinquedos fugazmente enquanto continua com o seu brinquedo poderiamos dizer-lhe que preferiu trazer um brinquedo conhecido de casa, para que the servisse de companhia, pois nao sabia o que nem com quem iria se encontrar, mas que aos poucos ira se acostumando e poderemos conversar. Na primeira situacdo estamos verbalizando a sua resisténcia; na segunda, a sua desconfianga. Sei que se perguntarao se cabe fazer essas interpretacées ja na primeira hora de jogo diagnéstica. Essa era outra premissa sagrada alguns anos atras. Era quase proibido interpretar em uma primeira hora diagnéstica. Atualmente, temos um papel mais flexivel, principalmente para reparar 0 vinculo desde 0 inicio, © que ocorreria se ficéssemos observando passivamente até o final da con- sulta aquela crianga que nos “mata” com a sua indiferenca? Poderia ser assim, mas Ihe diriamos entao que na préxima vez vamos pedir que ela faca uns desenhos e que invente umas histérias, deixando entao mais aberta a comunicagao para o proximo encontro. Se colocarmos a nossa opiniao, como falei antes, na realidade estaremos descrevendo aquilo que estamos vendo e o que achamos que esta acontecendo com ela. E quase um assinalamento, mais do que uma verdadeira interpretacdo. Com as nossas intervengdes poderemos aliviar a sua angistia diante de um primeiro encon- tro e possivelmente acabe deixando o seu brinquedo para aproximar-se da caixa para iniciar um outro jogo. on Creio que estas intervengées contribuem para manter 0 “rapport”, principal- mente levando em consideracao que a crianga devera voltar para continuar com os testes. Nao quer dizer que “deve” brincar. Essa concepeao é uma interpretacdo gros- seira da teoria psicanalitica do jogo como técnica de estudo da personalidade e de terapia. Ha siléncios elogiientes como os dos adultos, ha momentos de inatividade que nao significam passividade, assim como ha muitas conversas que nao podem ser consideradas como comunicagao e atividades que tampouco podem ser conside- radas como tais. Um paciente pode chegar e contar tudo o que fez na escola como se estivesse simplesmente relatando um noticiario, carente de qualquer emocao. A nossa contratransferéncia sera de falta de aborrecimento. Esse € 0 sinal de que esse “bl- bla-bla” serve somente para encobrir o siléncio ¢ deixar-nos confusas. O mais opor- tuno seria interrompé-lo e dizer-lhe: “Bem, agora vamos falar do motivo que traz voce aqui, 0 que acha?” Alguém comentou comigo em certa ocasido que teria entendide que a primei- ra entrevista com 0 paciente devia ser livre e projetiva e 0 profissional ndo deveria Jalar durante 45 minutos, apés os quais poderia comecar uma entrevista mais estruturada. Considero que se o paciente falar todo esse tempo podemos escutar sem interrupeao nenhuma, mas se ele permanecer calado, essa postura sera insus- tentavel tanto para ele quanto para o psicdlogo. Essa indicagdo € uma ma interpre- Psicodiagnéstico Clinico 51 tagdio do que seria uma atitude nao intervencionista, nao interferente, para recolher a producdo espontanea do paciente. Se essa é uma situacao violenta com um adulto, muito mais o é com uma crianga. A sua angiistia pode chegar a limites intoleraveis, chorar insistindo para ir embora... e nao voltar. O papel do psicélogo na hora de jogo diagnéstica é 0 de um observador ndo participante, Mas essa nao participacdo tem um limite. Existem criancas que ao chegar ja solicitam que facamos alguma coisa com elas. Essa pode ser a forma que elas encontram para manter-nos entretidos porque temem que possamos fazer- Ihes algum mal, uma seducao por motivos mais ou menos semelhantes, ou entao, uma verdadeira forma de buscar contato. Como negar-thes esse contato? No ma: mo tentaremos que a crianga marque na folha de respostas para nao misturar as nossas projegées com as suas, da mesma forma que fariamos em uma hora tera péutica. Isabel Luzuriaga® dizia que havia decidido nao mais brincar com seus paci- entes, somente falar, Mas referia-se a casos nos quais a interpretagao verbal do analista ficava anulada pela outra mensagem nao verbal do jogo. Isso pode aconte- cer, mas nao concordo com as suas conclusées taxativas. O que considero, no en- tanto, certissimo em seu trabalho é 0 cuidado que devemos ter para nao cair em contradigdes tais como dizer 4 crianca que esta tentando nos distrair e, ao mesmo tempo, ficar presos pela curiosidade de olhar durante varios minutos o caderno de aula que ele nos ofereceu ao chegar. Responder ao pedido de brincar é funcionar como Ego auxiliar da crianga; é responder com a mesma freqiéncia de onda que nés mesmos propusemos para a nossa comunicagdo. Se ndo, para que entdo colocarmos brinquedos sobre a mesa, que serao vistos pela crianga? Quero agora chamar a atencdo brevemente para algo que geralmente ocorre e interfere muito na comunicacao com o paciente. Refiro-me ao fato de fazer anotagées durante 0 transcurso da sessao, seja ela diagnéstica ou terapéutica. O ideal é nao fazé-lo. Podemos, em todo caso, anotar algum item, algum detalhe, algum croqui que nos permita depois reconstruir a seqiéncia completa. 0 psicdlogo anotando minuciosamente tudo 0 que a crianga faz torna-se persecutério, distrai tanto a crianga como a si mesmo e provoca outras reagdes na crianca {ou adolescente ¢, inclusive, nos adultos), como, por exemplo, rivalidade se eles nao sabem escrever ou nao o fazem tao rapidamente quanto nos, intriga se nao entendem a nossa letra, tentacao de transformar a sess4o em uma aula escolar, favorecendo assim as resisténcias, ou entao em um escritério no qual somos a sua secretaria e ele nos dita 0 que devemos escrever. Mesmo no momento da administracdo dos testes deve-se cuidar desse deta- The, escrevendo sem deixar de observar o paciente e sem cair no exagero de parecer uma taquigrafa. Atualmente, com tantos avangos técnicos, 0 uso de um gravador para facili- tar esta tarefa ja nao perturba tanto como ha alguns anos. Mas na hora ou nas horas de jogo diagnésticas individuais prefiro no usa-lo para nao introduzir varia- veis que interfiram no campo a ser observado. Nos casos de criangas muito pequenas, digamos, menores de trés anos, é aconselhavel nao somente nao distrai-los com 0 nosso papel e 0 nosso lapis, mas devemos também estar dispostos a brincar perto delas, talvez no chao ou em uma cadeirinha pequena para ficar ao seu alcance. 9. Luzurriaga, Isabel. La lucha contra fa interpretacién en el andlis Psicoandlisis, XXX, n? 3/4, 1973. Revista Argentina de 52 Garcia Arzeno Quando ainda nao sabem falar devemos comunicar-nos com elas através da brincadeira ou jogo e de algumas palavras simples que possam captar claramente. Nestes casos é bom lembrar o que escreveu Rodrigué! sobre a interpretacéo kidica: Poderiamos dizer que a crianca é mais poliglota que o adulto... A comunicacao verbal é linear... A comunicacao infantil nao ¢ linear... acontece freqiientemente que a crianga esta falan: doe brincando, além do mais nos deu uma tarefa e um papel complementar que de alguma forma se integram com a sua propria atividade. Fala de uma atengo hidica mais que flutuante no trabalho com criangas, no sentido de um estado mais ativo do analista. 0 que ele chama de “interpretagao lidica” € uma maneira original de comunicar A crianga 0 que pensamos e pode ser de muita utilidade com os pequenos (ou grandes) nao falantes. Diz: Ainterpretagao liidica comeca com o contato direto e sensorial como material... esta orientada do meio de expressao nao verbal e plastico para a comunicagao verbal... Consta de dois tempos: no primeiro analista imita 0 jogo da crianca e no segundo transmite verbalmente aquilo que compreendeu, mas fazendo uso complementar dos meios nao verbais que a erianca empregou. Suponhamos que a crianca monte uma torre, a destrua e nos olhe assusta- da. Nés podemos, entdo, montar a torre, destrui-la e ao mesmo tempo dizer-lhe: “Menino se assusta quando destrdi: acha que é mau". “Menino bom nao destréi”. “Menino mau destrdi”. Mas se repetirmos 0 seu jogo e nds também o destruirmos, e nao fizermos cara de bravos quando ele o destréi, vai entender que estamos inter- pretando que a sua atividade motora nao é ruim, pois se fosse, nos nao o fariamos, Nosso olhar afetuoso reafirma a idéia de que nao nos zangamos. Se ele sentir alivio comecar a rir, seré um sinal de que com uma boa orientagao a seus pais, certa- mente muito caprichosos e obsessivos, estara resolvido 0 problema. Mas, se obser- varmos que ele se anguistia mais ainda, chora e se agarra a mae, indicaremos a necessidade de tratamento pois existe um conflito intrapsiquico. Geneviéve Rodrigué escreveu um artigo muito interessante no qual faz a equivaléncia da caixa de brinquedos da crianga com a “caixa” de fantasias do adul- to!!. Ela foi outra das pioneiras da psicanalise de criancas na Argentina, junto a Teresa V, de Grinberg, Dora Faigén, Raquel Soifer e tantos outros. Citarei um artigo de R. Grinberg'* que pode ser de utilidade para incluir uma atividade lidica no psicodiagnéstico. Refiro-me ao jogo de construir casas, também usado por Arminda Aberastury."" O tipo de construgéo, como também os comenta- ios da crianca, possuem um grande valor diagnéstico. O material consiste em um tabuleiro com orificios nos quais sdo colocadas varetas de alturas diferentes com ranhuras para colocar portas, janelas e teto. Este material pode estar integrando a caixa de brinquedos ou ser introduzido pelo psicélogo quando considerar oportuno. Cabe assinalar aqui que é conveniente colocar material variado ao aleance da crianga, sobre uma mesa, e deixar a caixa proxima a ela, aberta, com o restante do material. Esse material deve incluir alguns brinquedos: xicaras, pires, carrinhos, indios ¢ soldados, animais domésticos ¢ selvagens, etc., come também material nao 10. Rodrigue, Emilio, “La interpretacidn lidrica: anatitico, Buenos Aires: Paidos, 1966. 11, Rodrigué, Geneviéve. “El cajén de juego del nifo y el “cajén’ de fantasias del adulto” em El contexto del processo analitico. 12. Grinberg, Rebeca. “Evolucién de la fantasia de enfermedade a través de la construceién de casas”, Revista Argentina de Psicoandlisis,t. XV,n? 1-2, 1958, 13. Aberastury, Arminda, El juego de construir casas, Paidés, una actitud hacia el juego", Bt contexto del proceso Psicodiagn6stico Clinico 53 estruturado tal como papelao, papel, barbante, isopor, madeirinhas, cubos, ganchinhos, etc. Sendo a mesma caixa que usaremos durante a entrevista familiar diagnésti- ca, todos os membros encontrarao algo de seu interesse. A presenca exclusiva de brinqucdos limita a expressao infantil e a dos pais se estes considerarem que so- mente as criancas brincam. Isso, por si 6, ja se constitui em um elemento diagnés tico, mas se 0 pai vé que ha elementos préprios para construir alguma coisa e nao 0 faz, teremos mais certeza das nossas conclusées, do que se os pais s6 tiverem sido expostos ao contato com carrinhos ¢ bonecas. Nem todos os adultos aceitam a re- gressdo implicita na atividade ldica e tudo vai depender de como foi a passagem, durante a sua infancia, pelo que Winnicott chama de “fendmenos transicionais™’. Para facilitar 0 surgimento de reagdes de todo tipo ¢ nivel 6 conveniente trabalhar em uma sala que ndo seja 0 consultério dos adultos. E preferivel um lugar com piso e paredes lavaveis, com uma mesa comum e outra mais baixinha, cadeiras comuns ¢ uma ou duas pequenas ¢ um diva ou um conjunto de almofadas espalha- das. Alguns profissionais incluem um quadro e giz que possibilita a expressao de fantasias, desejos ¢ temores, especialmente daquelas criancas que entraram no pe- riodo de laténcia ou aquelas que trazem como motivo manifesto da consulta as dificuldades de aprendizagem. Agua, paninhos, um copo, uma toalha, fosforos ¢ um banheiro préximo po- dem ser imprescindiveis, por isso é conveniente ter todos esses elementos 4 mao ¢ 0 banheiro disponivel e sem objetos pessoais ou frageis que a crianga possa estragar. Quando a crianca propoe brincar com fogo ou quando quer sujar ou molhar, prefiro sugerir que trabalhemos na cozinha (preparada para isso) ou no banheiro, pois nesse lugares ser4 mais facil limpar a sujeira ou apagar 0 fogo que, além do mais, far menos dano se Ihe indicarmos que 0 faga sobre um piso de lajota que sobre um de madeira, ou dentro da banheira e nao sobre a mesa, mesmo que esta seja de formica. Dentro de um armario permanecerao guardadas as caixas dos outros paci- entes e nao sera permitido que a crianga nem a sua familia as examinem livremente. Esse também ¢ um elemento importante do enquadre ¢ significa que prometemos guardar segredo profissional, nao permitindo a interferéncia de estranhos na sua individualidade, assim como nesse momento nao permitimos que eles toquem 0 que nao Ihes pertence. No primeiro contato com os pais, ou seja, durante a primeira entrevista, faremos perguntas sobre as diferentes areas da vida da crianca. Uma dessas areas a serem exploradas é 0 seu tempo livre, 0 que faz, de que brinca ¢ com quem. Se existir um material que seja de sua especial preferéncia, podemos inclui-lo no mate- rial da caixa ou, dependendo do que for, pedir 4 mae que o traga quando vier com 0 filho para a hora de jogo. Suponhamos que seja um ursinho de peldcia ou uma boneca que sempre a acompanha. Sem dividas, esse nao é um verdadeiro “brinque- do’. Como diria Winnicott, ¢ um “objeto transicional”, que é 0 que vai ajuda-lo a separar-se da mae em seu processo de individuacao. Em alguns casos a fixacdo patolégica a essa etapa do desenvolvimento trans- forma esse brinquedo em um objeto contrafébico, ou em um fetiche. O diagnéstico diferencial é feito tendo como base 0 uso do brinquedo e do papel que a crianca Ihe confere segundo 0 seu préprio relato, segundo o que foi comentado pelos pais ¢ segundo 0 que nds observarmos quando 0 traz na hora de jogo. 14. Winnicott, David D., ob.cit 54 Garcia Arzeno Por exemplo, se na segunda entrevista, quando comegaremos a aplicar os testes, a crianga volta com 0 mesmo brinquedo e nao o solta em nenhum momento, poderemos pensar que a funcao atribuida ¢ mais a de um amuleto que magicamente a protege. Se, no entanto, nao o traz, ou o traz mas o deixa sobre uma mesa e se dirige ao lugar que Ihe indicarmos para trabalhar, 0 diagnéstico inclina-se mais para 0 de objeto transicional. O material da hora de jogo e dos testes projetivos vai dar-nos mais elementos para um diagnéstico mais claro sobre essa conduta ¢ a sua relagao com o motivo manifesto da consulta. Em certos casos, é conveniente incluir brinquedos ou materiais que estejam relacionados com 0 conflito da crianga para ver quais as associagdes que surgem. Assim, por exemplo, se 0 motivo de uma consulta for a intensa rivalidade de uma menina com a sua irma, incluiremos duas bonecas; ou se 0 motivo for 0 pavor de um menino por um animal, o incluiremos junto aos outros para ver 0 que faz com ele. Tudo 0 que vier a acontecer na hora de jogo é significativo. Inclusive 0 que acontecer com os pais, Suponhamos que se trate de um menino de quatro anos que nao quis que a mae fosse embora ¢ ela o esta aguardando em outra sala. De repente, cla entra na sala em que nés estamos para dizer ou oferecer algo ao filho ou a nés. Trata-se de uma interferéncia, de um acting, se previamente haviamos esclarecido devidamente que cla esperasse em outro lugar. Mas atualmente sabemos que tam- bem um acting expressa algo muito importante, ja que o impulso inconsciente deve ser muito forte para fazer fracassar 0 controle consciente de uma pessoa adulta e provocar a quebra de uma regra. Se ela entrar para oferecer-Ihe um lenco que nao € imprescindivel e entao a crianga romper em pranto pedindo-the que fique junto dele, podemos pensar que é a mae quem nao consegue separar-se do filho (em seu prolongamento narcisistico): a crianga percebe isso e responde agarrando-se a ela com maior intensidade. Se scu choro for muito angustiado podemos pensar que se deve ao medo de ser abandonada se ousar ficar separada dela: percebe inconscien- temente a hostilidade dela ¢ a sua propria, e a culpa e o temor da retaliacdo expli- cam 0 seu desespero. Em um caso extremo que recordo, aconteceu algo semelhante, mas a crianga pediu 4 mae que a pegasse no colo, deixou de brincar, negou-se a continuar comigo ¢ pediu para ir embora. Compreendi que a entrevista havia chega- do ao fim ¢ o meu diagndstico de uma simbiose profunda ja havia sido feito. Em outra ocasiao, com um menino de cinco anos, propus que uma vez fosse trazido pela mae ¢ esperasse em outra sala, e uma segunda vez o pai e fizesse a mesma coisa, O objetivo era observar se havia reacoes diferentes conforme quem estivesse na outra sala. Quando veio com a mae, 0 menino brincou tranqdiilo, mas ia a todo momento mostrar-lhe algo ou fazer algum comentario. Quando veio com o Pai, que ficou Iendo 0 jornal que havia trazido, 0 menino nao repetiu essas saidas do consultério, até que em certo momento ouvi barulho na porta de entrada do consul- torio ¢, bastante preocupada por nao estar entendendo o que estava acontecendo e por que o pai havia aberto a porta sem a minha autorizacao, fui verificar. Para minha surpresa vi que era a mae dizendo: “estava passando por aqui e resolvi vir". O menino nao suportou a idéia de que o pai e a mae estivessem juntos e ele sozinho em outro lugar, com uma estranha. Correu para seus pais, ¢ decidi dar por termina- da essa entrevista dado que 0 meu objetivo havia sido frustrado. A mae mostrava surpresa diante do meu enfoque e insistia na inocéncia da sua atitude. Como esse menino tinha dois irmaozinhos, convoquei a familia inteira para a entrevista se- guinte, Durante a mesma a mac sentou-se no chao 4 minha frente, mas de costas, de forma tal que eu nao conseguia observar grande parte da seqiiéncia do jogo que entabulou com as trés criancas, deixando também o pai de fora. Ficou dbvio que essa senhora nio deixava que nem o pai nem eu estabelecéssemos um bom vinculo com esse filho, do qual nao conseguia separar-se e ao qual superprotegia. O pai i i gE i ‘ t i | i i i } E Psicodiagnostico Clinico 55 também nao se esforcava muito para recuperar o filho pois haviam combinado que ela nao tocaria no porteiro eletrénico para anunciar a sua chegada, “para nao inco- modar”, e haviam acertado que a uma hora determinada ela subiria e ele abriria a porta do consultério. Em conclusao, eu sofri uma sabotagem na minha tentativa, por ambas as partes e nao sd pelo lado da mae. Como é de se supor, foi bem dificil transmitir tudo isso na entrevista de devolugao, j4 que ela insistia na inocéncia da sua conduta e taxava as minhas colocagées de rigidas demais. Partiram sem nenhu- ma conviccao no meu diagnéstico, pois na realidade esperavam que eu suprimisse 0 sintoma (fobias) sem mexer em nada dessa dindmica familiar. Em outras ocasides encaramos situacdes nas quais um irmao ou uma irma da crianca vem junto e chora desesperadamente porque quer entrar também. A nossa reacao vai depender de cada caso. Se soubermos pela historia previa que esse irmao nao tolera que a crianca tenha alguma coisa propria e sempre o quer para si, tentaremos fazé-lo compreender que essa hora ndo é para ele e que tera uma hora em que vird com toda a familia. Se isso nos pega de surpresa, Ihe perguntaremos por que deseja entrar, qual ¢ 0 seu problema, pois aqui vém as criancas que tém alguma dificuldade. Perguntaremos também 4 crianca que veio consultar 0 que pensa sobre essa vontade do seu irmao. Ela pode tanto opor-se totalmente quanto aceitar a entrada do irmao, No primeiro caso, respeitaremos a negativa da crianga; no segundo transformaremos a hora individual em vincular, mas deixando claro para o visitante inesperado que da préxima vez queremos uma entrevista com o irmao a sés. Isso permitira observar se é um caso de simbiose ou de rivalidade e citimes entre ambos. A insisténcia dessa préxima entrevista a sés deve-se & neces- sidade de observar a crianga sem 0 seu acompanhante contrafobico, sem uma me- tade de seu “self” ou sem um rival. Algumas vezes teremos a surpresa de ver que 0 visitante inesperado nos traz um material de grande importancia para entender a situacao. A imensa gama de possibilidades torna impossivel esgotar aqui os comenta- rios sobre todas as circunstancias possiveis. Em algumas ocasides nao colocamos a hora de jogo individual no inicio e sim mais adiante dentro do processo psicodiagnéstico. Por exemplo, quando a crianga se nega a brinear. Isto pade acontecer com criangas de qualquer idade com sérias inibigdes ou com piberes que se recusam a desempenhar uma atividade lidica por ser “coisa de criancas”. Nesses casos, podemos comegar com os testes ¢ s6 depois voltar 4 caixa para ver se haveria alguma coisa com a qual gostaria de fazer algo. Podemos decidir também que apés a entrevista com os pais faremos a entre- vista familiar diagnéstica, deixando a individual para depois, principalmente nos casos em que ficarmos com sérias diividas sobre quem realmente sofre 0 conflito e qual o papel desempenhado pelo resto da familia na suposta patologia do paciente identificado. Em algumas ocasides decidi fazer o estudo individual de duas das criangas da mesma familia, esclarecendo que isso era necessario para esclarecer dtividas. E impossivel suprimir 0 estudo do paciente identificado pois ele aceitou vir € foi assim designado por algum motivo. Mas pode ser necessario incluir 0 estudo de outro ou outros membros do grupo familiar para compreender melhor a situagao. Em outros casos, a hora de jogo individual transforma-se em uma hora exclusiva de desenho. Esses desenhos sao essenciais para o estudo, mas, se decidir- mos que é imprescindivel saber 0 que ele fara se nao desenhar, poderemos propor que na proxima vez Ihe daremos novamente a caixa de brinquedos eliminando o papel e os lapis, dizendo-lhe por exemplo: “Ja vi como vocé desenha e depois fare- mos mais desenhos; agora gostaria que vocé tentasse fazer algo diferente, 0 que tem vontade de fazer?”

You might also like