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125 147 157 Introdugao Sobre notas e datas Narrando Flaubert e a narrativa moderna Flaubert e o surgimento do flaneur Detalhe Personagem Breve histéria da consciéncia Empatia e complexidade Linguagem Dialogo Verdade, convengio, realismo Bibliografia indice onomédstico INTRODUGAO Em 1857, John Ruskin escreveu um livrinho chamado The Ele ments of Drawing [Elementos do desenho]. A obra é um manual em que © autor se propée, lancando um olhar critico sobre o tema da criagao, a ajudar o pintor, o observador curioso, o simples apre- ciador das artes, Ruskin comeca por incitaro leitor a observar a na- tureza - observar, digamos, uma folha, e entao copii-laa lapis, Ele apresenta seu proprio desenho de uma folha. Depois passa aum quadro de Tintoretto: note as pinceladas, diz Ruskin, veja como ele desenha as mios, observe como presta atengdo no sombrea- mento. Passo a passo, Ruskin conduz o leitor pelo processo de ctiagio. O profundo conhecimento do autor provém nao da téc- nica de desenhista~ Ruskin era um artista habilidoso, mas nao de talento excepcional -, e sim de seu olhar, o que via e como via, e de sua capacidade de transmitir essa visio por escrito, Surpreendentemente, sio poucos os livros desse tipo sobre li- teratura. Aspectos do romance, de E. M, Forster, publicado em 1927, € can6nico por boas razées, mas hoje parece incompleto, Admiro os trés livros de Milan Kundera sobre aarte literdria, mas Kundera € mais romancista e ensaista do que critico; de vez em quando, gostariamos que ele colocasse mais as maos no texto, Meus dois criticas literirios favoritos do século XX sio o for- malista russo Victor Chklovski e o formalista-estruturalista fran- «és Roland Barthes. Ambos foram grandes criticos porque, sendo lormulistas, pensavam como escritores: atentavam ao estilo, as palavras, a forma, a metafora e as imagens. Mas Barthes e Chkl6- vski pensavam como escritores rompidos com a instinto criative, vr ecrim constantemente levados, como banquciros ladroes. « empreender ataques contra a propria fonte de sustento - 0 estilo litorario. Talvez devido a esse rompimento, 2 essa paixdo agressiva, chegaram a conclusées acerca do romance que me parecem interes- santes, embora equivocadas, ¢ este livro discute com eles, Ambos sio especialistas escrevendo, no fundo, para outros especialistas; Barthes, principalmente, escreve como se nao es- perasse ser lido e entendido pelo leitor comum (nem mesmo por aquele que esta aprendendo o incomum. ..}, ‘Tento responder aqui a algumas das perguntas fundamentais sobre a arte da ficcio, © realismo ¢ real? Como definimos uma metifora convincente? O que é um personagem? Como reconhe~ cer o bom uso do detalhe na literatura? O que é 0 ponto de vista e como ele funciona? O que 6a empatia imaginativa? Por que a literatura nos comove? Sao perguntas antigas, algumas ressuscita- das por trabalhos recentes no campo da teoria liteyaria e da critica académica; mas nio estou convencido de que essas disciplinas te- nham respondido muito bem a elas. Assim, espero que este seja um livro que faga perguntas tedricas e dé respostas praticas — ou, em outras palavras, que faga as perguntas do critico e dé as respos- tas do escritor. Se ha, nesta obra, um argumento mais amplo, ¢ 0 que afirma que 2 literatura é, a0 mesmo tempo, artificio e verossimilhanga, ¢ que nao hi nenhuma dificuldade em unir esses dois aspectos. Foi por isso que tentei fazer uma exposigao minuciosa da téc- nica desse artificio - como funciona a ficgao — para reconecté-la ao mundo, tal como Ruskin queria conectar a obra de Tintoretto A maneira como observamos uma folha. Desse modo, os capitu- los se encaixam uns nos outros, porque todos sio movidos pela lo indireto livre, na ver- mesma estética: quando falo sobre o es dade estou falando sobre o ponto de vista, e quando estou falando sobre o ponto de vista, na verdade falo da percepcio do detalhe, e quando falo do detalhe, na verdade estou falando sobre 0 pris nagem, e quando falo sobre o personagem, na verdade estou {1 lando sobre o real, que esta na base das minhas indagacées. SOBRE NOTAS E DATAS Pensando no leitor comum, tentei reduzir o que Joyce chama de “verdadeiro fedor da escolastica” a niveis suportaveis. As notas se referem apenas a fontes obscuras ou dificeis de encontrar; nelas, dou a data da primeira edig3o, mas nao 0 local nema editora (dados muito faceis de obter hoje em dia). No texto em si, eliminei a maior parte das datas de publicacao dos contos e dos romances tratados; na bibliografia, apresenta todos esses contos e romances em ordem cronolégica, dando a data da primeira edicio.” Quando eu era adolescente, fiquei fascinado com a nota um tanto extravagante de The English Novel [O romance inglés], de Ford Madox For ste livro foi escrito em Nova York, a bordo do S. S. Patria, ¢ no porto e na regiao de Marselha em julho ¢ agosto de 1927”. Nao posso pretender nada tio glamoroso, nem tal proeza de meméria que dispensa bibliotecas, mas, no espirito de Ford, posso dizer que usei apenas os livros que realmente te- nho ~ os livros 4 mao em meu escritério — para escrever este li- vrinho. Posso também acrescentar que, exceto por um ou outro parigrafo, ele é inteiramente inédito. * Nowasi doe livres traduzides no Brasil, optot-se por indicar, nas notas.¢ na bi- Mow ala evlighe Iwasileira. [Nb] ! A casa da ficgao tem muitas janelas, mas s6 duas ou trés po! Posso contar uma histéria na primeira ou na terceira pessoa, ¢ tal vez na segunda pessoa do singular ena primeira do plural, mesmo sendo rarissimos os exemplos de casos que deram certo. E € 86. Qualquer outra coisa nao vai parecer muito uma narragio, e pode estar mais perto da poesia ou do poema em prosa. ® Na verdade, estamos presos 8 narragao em primeira € terceira pes- soa. A ideia comum é de que existe um contraste entre a narragao confidvel (a onisciéncia da terceira pessoa) e a narragio nao con- fidvel (o narrador nio confiavel na primeira pessoa, que sabe me- nos de si do que 0 leitor acaba sabendo). De um lado, Tolstéi, por exemplo, ¢ de outro, os narradores Humbert Humbert ou Zeno Cosini, de Italo Svevo, ou Bertie Wooster. As pessoas supdem que aonisciéncia do autor no existe mais, como nao existe maisaquele “imenso brocado musical roido de tracas chamado religiao”.” Uma yez W. G. Sebald me disse: “Para mim, a literatura que nao admite a incerteza do nartador ¢ uma forma de impostura muito, muito dificil de tolerar. Acho meio inaceitavel qualquer forma de es- crita em que o narrador se estabelece como operirio, diretor, juiz e testamenteiro. Nao aguento ler esse tipo de livro”. E mais: “Se vocé fala em Jane Austen, vocé esti falando de um mundo que ti- nha cédigos de conduta aceitos por todo mundo, Como vocé tem af um mundo de regras claras, onde a pessoa sabe onde comega a * No original: “The vest moth-eaten musical brocade called religion”, do poema “aubade”, de Philip Larkin, [v8] # transgressio, entio eu acho legitimo, nesse contexto, ser um nar- rador que conhece as regras e que sabe as respostas para certas per- guntas. Mas acho que o curso da historia nos fez perder essas cer- tezas, e precisamos reconhecer nossa ignorancia e limitagao nesses assuntos para entao tentar escrever de acordo com isso”.” ® Para Sebald e para muitos outros escritores como ele, a narragao onisciente padrao, em terceira pessoa, € uma espécie de trapaca que nio se usa mais, Porém, os dois lados da questao estio sendo caricaturados, Na verdade,.a narracao em primeira pessoa costuma ser mais con- fiavel que nio confidvel, ea narracao “onisciente” na terceira pes- 80a costuma ser mais parcial que onisciente. O narrador na primeira pessoa em geral é muito confiavel; por exemplo, Jane Eyre, narradora em primeira pessoa altamente confiavel, conta sua historia numa posigio de quem compreende © qute ja passou (depois de anos, casada com Rochester, ela agora pode enxergar a historia de sua vida, assim como a visio de Ro- chester volta aos poucos no final do romance). Até o narrador que nao parece confiavel costuma ser confiavelmente nao confiavel. Pensem no mordomo de Kazuo Ishiguro em Os residuos do dia, ou em Bertie Wooster, ou mesmo em Humbert Humbert. Sabemos Essa entrevista se encantra na revista Brick, vol. 10, © sotaque alemio de Sebald aumentava seu prazer, ja bastante cémico, malicioso, bernhardiano, em acen- tuar palavras como very [muito] ¢ unacceptable finaceitvel} que o narrador nao esta sendo confidvel porque o autor, numa ma- nobra confiivel, nos avisa dessa inconfiabilidade do narrador. Ha ai um processo de sinalizacao do autor; 9 romance nos ensinaa ler * onarrador. — A narracao inconfiavelmente nao confiavel é muito rara — quase tao rara quanto um personagem de fato misterioso, ge- nuinamente insondivel. O narrador anénimo de Fome, de Knut Hamsun, é por demais nao confiavel e, no fim, incognoscivel (0 fato de ser louco ajuda); o modelo de Hamsun é 0 narrador sub- terrineo de Dostoiévski em Memérias do subsolo.|Zeno Cosini, de Italo Svevo, talvez sejao melhor exemplo de narracio real- mente nao confiivel)Ele imagina que, contando sua historia de vida, esta fazendo uma autoanilise (prometera ao analista que faria isso). Mas seu autoconhecimento, brandido com toda con- fianca diante de nossos olhos, é tao ridiculamente cheio de furos quanto uma bandeira alvejada por tiros, @ Poroutro lado, a narragio onisciente poucas vezes é tao onisciente quanto parece. Para comecar, o estilo do autor em geral tende a fazer x onisciéncia da terceira pessoa parecer parcial e tenden- ciosa., ‘o estilo costuma atrair nossa atencao para o escritor, para)» o anificio da da construgao autoral e, portanto, para a marca pessoal do autor} Dai o paradoxo quase cémico entre o famoso desejo de Flaubert de que o autor fosse “impessoal”, como Deus, distante,e ‘extrema pessoalidade de seu proprio estilo, aquelas frases e mi-" Mlicias requintadas, que nada mais sio do que vistosas assinatu- * “> de Deus em cada pagina: um excesso para um autor impessoal. © tO} é quem mais se aproxima de uma ideia canénica da onis- 4 cia do autor, e ele usa com grande naturalidade e autqgidade um modo de escrever que Roland Barthes chamou de “codigo de refer@ncia” (ou algumas vezes de “cédigo cultural”), em que um escritor recorre, com seguranca, a uma verdade universal ou con- sensual, ou.aum corpo de saberes cientificos ou culturais comuns atodaa sociedade.” AA chamada onisciéncia é quase impossivel|Na mesma hora em que alguém conta uma histéria sobre um personagem, a narra- tiva parece querer se concentrar em volta daquele personagem, parece querer se fundir com ele, assumir seu modo de pensar e de falar\A onisciéncia deum romancista logo se torna algo como compartilhar segredos; isso se chama estilo indireto livre, expre! sao que Post diversos apelidos entre os romancistas ~“terceira pessoa intima” ou “entrar no personagem” @ 4) “Ele olhou a esposa, “Ela parece tao infeliz’, pensou ele, ‘quase doente,’ Imaginou o que dizer.” ~ £ um discurso direto ou citado * Barthes usa expressio no livro 5/2 [1970; trad. Léa Novaes, Sio Paulo: Nova Fron- ters, 1992). Designs a maneira como ox escritores ojtocentistas se referem a contiect- montos cientifices ou eulturais de aceitagio geral, por exemplo, generalidadies ideo- Jogicas sobre as “mulheres”. Amplio a expresso para abranger qualquer espécie de generalizacio autora. Eis um exemplo em Tolstdi; no comego de A morte de far hitch, erés amigos delvan estio lendo seu necrologio,¢ Tolstol escreve que “o proprio fato da morte de um conhecide tio proxime despertou como de costume, em cada um que teve dela conhecimento, im sentimento de alegria pelo fato de que morresa ‘outro enio cle". Como de costurne: 0 autor ¥e sefere com facilidade e sabedoriaa uma vyerdade humana central, serenamente olhando 0 coragio de trés homens diferentes. ** Gosto da expressio de D. A, Miller para o estilo indireto livre,em seu livro Jane Austen, or the Secret of Style [2003}:"escrita intima” (“Ela parece tio infeliz’, pensou consigo”), aliado a um discursa | indireto ou informado (“Imaginou o que dizer"). £ a velha ideia do pensamento de um personagem como uma conversa consigo mesmo, uma espécie de discurso interior. b) “Ele olhou aesposa. Ela parecia tao infeliz, pensouele, quase doente. Imaginou o que dizer.” - £ um discurso indireto ou in- formado, o discurso interno do marido informado pelo autor, ¢ sinalizado como tal (“pensou ele”), Esse 6 0 cédigo mais facil de reconhecer, 0 mais corrente na narrativa realista convencional. c) “Ele olhou a esposa. &, ela estava tediosamente infeliz de novo, quase doente. Que raio diria ele?” - E 0 discurso ou estilo indireto livre: 0 pensamento ou discurso interior do marido nao tem mais a sinalizagao auroral; nao ha “ele disse a si mesmo” nem “imaginou” ou “pensou”. - Vejam o ganho de flexibilidade. A narrativa parece se afastar do romancista ¢ assumir as qualidades do personagem, que agora parece “possuir” as palavras. O escritor esta livre para direcionar 0 pensamento informado, para dobra-lo as palayras do personagem ("Que raio diria ele?”). Estamos perto do fluxo de consciéncia, ¢ é essa direcio que toma o estilo indireto livre no século XIX e no co- meco do século Xx: “Ele olhou para ela, Infeliz, sim. Doentiamente, Claro, um grande erro ter contado aela. A estipida consciéncia dele de novo. Por que deixou escapar? Tudo culpa dele, eagora?”. Notem que esse mon6logo interior, sem aspas nem sinaliza- Ges, se parece muito com um genuino soliloquio dos romances setecentistas e oitocentistas (exemplo de um aperfeigoamento técnico que apenas renova, de maneira ciclica, uma técnica origi- nal basica ¢ vitil demais ~ real demais ~ para ser posta de lado). O estilo indireto livre atinge seu maximo quando é quase invisi- vel ou inaudivel: “Ted olhava a orquestra por entre ligrimas idio- tas”. Em meu exemplo,apalavra “idiotas” mostra quea frase esta no estilo indireto livre. Tirem o adjetivo, ¢ teremos um relato- padrio: “Ted olhavaa orquestra por entre lagrimas”. Oacréscimo da palavra “idiotas” levanta a questio: que palavra é essa? Nao 6 provavel que eu queira chamar meu personagem de idiota sO | porque est ouvindo miisica numa sala de concertos. Ndo, numa | maravilhosa transferénc gora a palavra pertence, a alquimica, em parte, a Ted \Ele esti ouvindo a misica ¢ chorando, e se sente constrangido - podemos imagind-lo enxugando raivosamente os olhos ~ por ter permitido que aquelas lagrimas “idiotas” corres- “Que pega boba de Brahms’, pensou ele” sem, Convertaa frase para a primeira pessoa, ¢ teremos idiota, chorar por causa de Mas esse exemplo possui muitas palavras a mais, ¢ perdemos a O que ha de tio til no estilo indireto livre é que, no nosso exem- presenga complexa do autor. plo, uma palavra como “idiota” de certa forma pertence ao autor ¢ ” a palavra a0 personagem;|pio sabemos muito bem quem “possui Seri que “idiota” reflete uma leve aspereza ou distancia por parte | do autor? Ou a palavra pertence totalmente ao personagem, e 0 autor, num acesso de empatia, “entregou-a", por assim dizer, ao sujeito em lagrimas? | ba \ @ tl Gragas ao estilo indireto livre, [vemos coisas através dos olhos eda linguagem do personagem||mas também através dos olhos ¢ ) da linguagem do autor] Habitamos, simmultaneamente, a oniscié: cia ea parcialidadel Abre-se uma lacuna entre autor personagem, ,f | © a ponte entre eles — que é o proprio estilo indireto livre - fecha / wel essa lacuna, a9 mesmo tempo que chama atengio paraa distancia, ; Esta € apenas outra definigao da ironia dramatica: ver através iH ‘ dos olhos de um personagem enquanto somos incentivados a ver n mais do que ele mesmo consegue ver (uma nao confiabilidade idéntica 3 do narrador nao confiivel em primeira pessoa), ® ' Alguns dos exemplos mais claras dessa ironia dramiatica es- tio na literatura infantil, que muitas vezes precisa permitir que a crianga — ou o representante da crianga, um animal — veja 0. mundo com olhos limitados, ao mesmo tempo alertando 0 leitor mais velho dessa limitagdo, Em Make We Ducktings |Abram caminho para os patinhos|, de Robert loskey, o st, e asta, Mallard estao avaliando se adotam os Jardins Pablicos de Boston como noyo lar quando um barquinho Cisne (um pedalinho em forma de cisne, conduzido por um homem) passa ao lado de- les. O sr, Mallard nunca tinha visto nada parecido. Naturalmente, j McCloskey recorre ao estilo indireto livre: “Bem na hora que es- tavam se preparando para ir embora, apareceu uma ave enorme e esquisita. Empurrava um barco cheio de gente, e haviaum homem sentado na parte de tris. ‘Bom dia’, grasnou o sr. Mallard, sendo | educado. A grande ave era orgulhosa demais para tesponder".Em vez de nos dizer que o sr. Mallard nao entendiaaquele Dareorciai { ra McCloskey nos coloca dentro da confusao do sr. Mallard; mas a confusio ¢ ébvia o suficiente para abrir uma grande distancia iré- nica entre o sr. Mallard ¢ 0 leitor (ou o autor) Nés nao ficamos confusos como o sr. Mallard, embora sejamos levados a partilhar @ O que acontece, porém, quando um escritor mais sério quer que aconfusio dele.) a distancia entre o personagem e o autor seja bem pequenaq O que acontece quando um romancista quer que partilhemos a confusio de um personagem, mas nao “corrige” essa confusio ¢nio mostra como seria um estado de nao confusioa Podemos avangar direto de McCloskey para Henry James. Existe uma liga~ gio técnica, por exemplo, entre Make Way for Ducklings e Pelos othos de Maisie, de Henry James. O estilo indireto livre nos ajuda acompartilhara confusao infantil, neste caso a confusao de uma garotinha, e nioa de um pato. James conta a historia, em terceita pessoa, da menina Maisie Farange, cujos pais passaram por um divércio dificil, Ela é jogada de um lado para 0 outro, conforme se sucedem as governantas que lhe sao impostas ora pela mie, ora pelo pai. James quer que o leitor compartilhe a confusdo da menina, e quer também descrever a corrupgao dos adultos vista pelos olhos da inocéncia infantil. Maisie gosta de uma das go- yernantas, asta, Wix, mulher simples de classe média baixa, que usa um penteado bastante grotesco e que teve uma filhinha cha- mada Clara Matilda, a qual, quando tinha mais ou menos aidade de Maisie, fora atropelada na Harrow Road e estava enterrada no cemitério de Kensal Green. Maisie sabe que sua mie elegante e inexpressiva ndo tem a sra. Wix em alta conta, mas Maisie gosta dela mesmo assim; tio pouco, quase de graga: foi o que Maisie ouviu, um dia em que sra, Wix a acompanhou até a sala de visitas e deixou-a la, uma das se~ nhoras que ld estava - uma mulher de sobrancelhas arqueadas como cordas de pulare pespontos negros e espessos como a pauta de um ca- derno de miisica nas belas luvas braneas - dizer para a outra. Maisie sa- bia que as governantas eram pobres; a pobreza da srta. Overmore nio se comentava, e adasra, Wix era comentada por todos. Porém nem esse fato, nem o velho vestido marrom, nem o diadema, nem o botio, nada disso diminuia para Maisie 0 encanto que apesar de tudo se ma- nifestava, o encanto que residia no fato de que junto asta, Wix, com toda sua feiura ¢ sua pobreza, ela experimentava uma sensagao tinica etranquilizadora de seguranga que nenhura outra pessoa no mundo The proporcionava ~ nem o papai, nem a mame, nem a mulher das sobrancelhas arqueadas, nem mesmo, por mais linda que fosse, a srta. Overmore, em cuja beleza a menina tinha a vaga consciéncia de que nao era possivel refestelar-se com igual sensacao de aconchego e ternura, Era a mesma sensagdo de seguranga que Ihe inspirava Clara Matilda, a qual estava no céu e, no entanto ~ constrangedoramente ~, também estava em Kensal Green, onde elas duas foram ver sua pe- quenae mal-amanhadasepultura, Que exemplo de escrita! Tao stole capaz de ocupar diferen- tes niveis de compreensao e de ironia, tio. repleta de uma identifi- cagao pungente com a pequena Maisie, apesar de o tempo todo se aproximar dela e depois se afastar, de volta para o autor. ® estilo indireto livre de James nos permite partilhar pelo menos trés perspectivas diferentes 20 mesmo tempo: o juizo materno e adulto oficial sobre a sra. Wix; a versio de Maisie sobre a vi- sio oficial; ea visto de Maisie sobre a sra. Wix. A visio oficial, entreouvida por Maisie, é filtrada por sua propria voz, de quem entende mais ou menos do que se trata; “Foi por causa dessas coisas que sua mae conseguira contraté-la por tio pouce, quase de graca”, A mulher de sobrancelhas arqueadas que enunciou essa crueldade est sendo parafraseada por Maisie, e parafra- seada nio de maneira especialmente cética ou revoltada, mas com © respeito perplexo de uma crianga pela autoridade. Ja- mes precisa nos fazer sentir que Maisie sabe muito, mas ndo 0 suficiente. Maisie pode nao gostar da mulher de sobrancelhas arqueadas que falou assim da sra. Wix, mas ela ainda receia seu julgamento, e podemos ouvir uma espécie de admirado respeito na narragao; o estilo indireto livre é tao benfeito que aparece como pura voz ~ ele quer se reconverter na fala da qual é parafrase; podemos ouvir, como uma espécie de sombra, Mai- sie dizendo para a amiguinha que na verdade ela tristemente nao tem: “Sabe, mamie a contratou por um salirio baixissimo porque ela é muito pobre e tem uma filha que morreu. Visitei a sepultura dela, sabia?”, ‘ ssim, hi a opiniao adulea oficial sobre a sra. Wix; hi 0 en- tendimento de Maisie sobre essa desaprovacio oficial; ¢ entio, para compensar, ha a opinido pessoal, muito mais calorosa, de Maisie sobre a sra. Wix, que pode nio ser tao elegante quanto 4 governanta anterior, a srta. Overmore, mas que parece muito mais segura: a provedora daquela sensacdo Gnica “de aconchego e ternura” [tucked-in and kissed-for-good-night feeling]. (Notem gancia estilistica numa frase como essa.) ® O génio de James resume tudo numa palavra: “constrangedora- mente” [embarrassingly). Eai que recai toda a énfase. “Eraamesma sensagao de seguranga que lhe inspirava Clara Matilda,a qual estava. no céu e, no entanto — constrangedoramente —, também estava em Kensal Green, onde elas duas foram ver sua pequena e mal-ama- nhada sepultura.” De quem é a palavra “constrangedoramente”? Sio de Maisie: para uma crianga, é constrangedor presenciar a dor de um adulto, esabemos quea sra. Wix comecou a se referira Clara Matilda como a “irmizinha morta” de Maisie, Podemos imaginar f Maisie ao lado da sra. Wix no cemitério de Kensal Green ~é tipico da narragio de James que ele nio mencione o nome do lugar até esse momento, deixando-nos o trabalho de descobri-lo -; pode- mos imagina-la ao lado da sra. Wix, sentindo-se constrangida e embaragada, ao mesmo tempo impressionada ¢ um pouco teme- rosa diante da dor da governanta. E eis a grandeza do trecho: Mai- sie, apesar de seu enorme afeto pela sra, Wix, mantém com elaa mesma relagéo que mantém com a mulher de sobrancelhas arquea- das; as duas mulheres lhe causam certo embarago. Ela nao entende plenamente nenhuma das duas, ainda que, sem saber por qué, pre- fira a primeira. “Constrangedoramente”: a palayra codifica 0 em- barago natural de Maisie e também o embaraco interior da opiniao adulta oficial (“Minha querida, é tao constrangedor, aquela mulher esti sempre levando Maisie a Kensal Greent”). que, para deixar Maisie “falar”, James se dispde a octal | Retire da frase a palavra “constrangedoramente”, e mal teriamos um estilo indireto livre: “Era a mesma sensagio de seguranga que The inspirava Clara Matilda, a qual estava no céu e, no entanto, também estava em Kensal Green, onde elas duas foram ver sua pequena emal-amanhada sepultura”. O simples acréscimo dessa palavra nos aprofunda na confusio de Maisie, ¢ nesse momento © leitor se transforma nela — as palavras passam de James para Maisie, sio dadas.a Maisie, Nés nos fundimos com ela. No entanto, “Sua na mesma frase, ap6s essa breve fusio, somos arrancados dela ‘Constrangedoramente™ é pequena e mal-amanhada sepultura”. uma palayra que Maisie podia usar, mas “mal-amanhada” [huddled nao. Esta palavra é de Henry James. A frase pulsa, avanca e recua, aproxima-se ¢ afasta-se do personagem — quando topames com “mal-amanhada”, somos lembrados de que foi o autor que nos per- mitiu a Fusao com o personagem, que seu estilo grandiloquente é 0 envelope que carrega esse generoso pacto, critico Hugh Kenner escreve sobre uma passagem de Um re- trato do artista quando jovem em que tio Charles “se enderega” ao alpendre. “Enderegar-se” [repairs] é um verbo pomposo que faz parte da ultrapassada convengio poética. £ “ma” escrita. Joyce, com seu olhar agudo para os clichés, s6 usaria uma palavra dessas de propésito. Kenner diz que, portanto, deve ser uma palavra do tio Charles, a palavra com que ele se referiria a si mesmo na tola fantasia acerca da propria importincia (“E ent3o eu me enderego aoalpendre”). Kenner da a isso o nome de Principio do tio Charles, E exagera dizendo que é “algo novo na literatura”. Mas sabemos que nao é. O Principio do tio Charles é apenas uma versio do estilo indireto livre, Joyce é mestre nisso. O conto “Os mortos” comega assim: “Lily, a filha do zelador, estava literalmente com 0 coragio na boca”, Mas ninguém fica literalmente com 0 coragio na boca. O que ouvimos é Lily dizendo a si mesma ou a algum amigo (com grande énfase justamente na expresséo mais impropria, e com so- taque bem carregado); “Eu ‘tava lite-ra-menti co'o coragao na boca”. @ O exemplo de Kenner é um pouco diferente, mas nao é novo, A poesia setecentista, em tom heroico-cémico, arranca risadas porque aplicaa linguagem épica ou biblica a pessoas simples. Em. ‘The Rape of the Lack [O roubo da madeixa], de Pope, os artigos de toucador e de mesa de Belinda sio apresentados como “tesouros incontaveis”, “gemas refulgentes da {ndia”, “aragens de toda a Arabia emanando de longinqua caixa”, e assim por diante. Uma parte da brincadeira é que se trata do tipo de linguagem que a grande figura ~e uma “grande figura” é justamente um elemento heroico-cémico - poderia usar para se referir a si mesma; a ou- tra parte consiste na efetiva pequenez daquela figura, Pois bem, © que isso, se nao um precoce exemplo de estilo indireto livre? No comeco do capitulo 5 de Orgulho e preconceito, Jane Aus- ten nos apresenta Sir William Lucas, ex-prefeito de Longbourn, 0 qual, consagrado como cavaleiro pelo rei, chegou 4 conclusio de que é importante demais para a cidadezinha e precisa mudar para outto lugar: ‘Sir William Lucas fora outrora comerciante em Meryton, onde acu- mulara uma fortuna tolerivel e onde, também, fora agraciado pelo rei com um titulo de cavaleiro, enquanto exercia as fungoes de prefeito, | A honra fora talvez demasiadamente apreciada, Inspirara-Ihe uma re- pulsa pelo seu negdcio e pela pequena cidade comercial em que habi- tava, Abandonando as duas coisas, mudou-se coma familia para uma | casa situada a mais ou menos uma milha de Meryton, denominada a partir daquela data Lucas Lodge, onde podia pensar com prazer na sua propria importancia, Aironia de Austen danca como 0 pernilongo do poema de Yeats: “Onde acumulara uma fortuna tolerivel”. O que é, ou. o que se- ria, uma fortuna “tolerivel”? Intoleravel para quem, tolerada por quem? Mas 0 grande exemplo de heroico-cémico estd no trecho “denominada a partir daquela data Lucas Lodge”, Lucas Lodge jaé bastante engracado: ¢ como Toad de Toad Hall ou Shandy Hall,” e podemos ter certeza de que a casa nao chega a altura da gran- deza aliterativa, Mas a pomposidade de “denominada a partir daquela data” 6 engragada porque imaginamos Sir William di- zendo a si mesmo: “Agora vou denominar a casa, a partir desta O heroico-cdmico data, Lucas Lodge. Sim, isso soa estupendo” é quase igual, nesse ponto, ao estilo indireto livre. Austen repas- sb sou as palavras a Sir William, mas ainda mantém um controle mordaz sobre elas. Um mestre moderno do heroico-cémico é V, S. Naipaul, em Quando ele chegou em casa, pre- Uma casa para o sr. Biswas parou uma dose de P6 Estomacgl MacLean, bebeu-a, despiu-se, deitou-se e comegou a ler Epicteto”. As maitisculas cémico- ido e a presenga de Epicteto - nem patéticas da marca do anti, | Pope teria feito melhor. E qual é o modelo da cama em que o * Referéncia ao sapo Mr. Toad, personagem do livro infantil The Wind in the Willows {O vento nos salgueiros}, de Kenneth Grahame, ¢ & casa de Laurence Sterne, que recebeu o nome de seu personage Tristram Shandy, [N.5.] pobre sr. Biswas se deita? £, como volta e meia Naipaul now dae deliberadamente, uma “cama Rei do Descanso”: nome certo para um homem que pode ser um rei ou um pequeno deus na prépria cabeca, mas que nunca sera nada além de “sr.”. E é claro que a decisao de Naipaul em tratar Biswas como “sr, Biswas” durante o romance inteiro tem certa ironia propria do heroico- cémico. Isso porque o “sr.” € a0 mesmo tempo o tratamento mais comum e, numa sociedade pobre, uma conquista nada facil, “Sr. Biswas”, digamos, a simula do estilo indireto livre: Biswas gosta de pensar que é “sr.”, mas és6 isso o que ele vai ser na vida, junto com o resto do mundo. @ Existe mais um refinamento do estilo indireto livre — que pode- mos chamar de ironia do autor - quando qualquer distancia en- tre a voz do autor e a voz do personagem parece sumir) quando 4 voz do personagem parece se amotinar e se apoderar de toda a narragio, "A cidade era pequena, pior que aldeia, e habitada quase 86 por velhos, que morriam tao raro que isso até causava des- gosto.” Que comego admiravel! £ a primeira frase do conto “O violino de Rothschild”, de Tchekhoy. Seguem as frases: “Poucas eram também as encomendas de caixio do hospital e da cadeia, Em suma, os negocios iam pessimamente”. O restante do para- grafo nos apresenta um fazedor de caixoes muito mesquinho, e percebemos que o conto comegou em pleno estilo indireto livre: “Habitada quase sé por velhos, que morriam tio raro que isso até causava desgosto”. Estamos na cabega do fazedor de caixdes, para © qual a longevidade é um aborrecimento financeiro. Tchekhov -subverte a neutralidade que se espera no comeco de um conto ou de um romance, que poderia abrir com uma panoramica antes de estreitar 0 foco (“A cidadezinha de N. era menor que um vilarejo, etinha duas ruas pequenas ¢imundas” etc.). Masse Joyce, em “Os mortos”, joga seu estilo indireto livre para Lily, Tchekhov comeca a usa-lo antes mesmo de identificar 0 personagem. E Joyce aban- dona a perspectiva de Lily, passando primeiro para a onisciéncia autoral e depois para o ponto de vista de Gabriel Conroy, ao passo que o conto de Tchekhov continua a narfar os acontecimentos pe- los olhos do fazedor de caixdes. Ou talvez seja mais exato dizer que 0 conto é escrito de um onto de vista mais proximo do coro de uma aldeiado que de m individuo, Esse coro local enxerga a vida com a mesma bru- talidade do fazedor de caixdes — "Encontrou pouca gente na fila ¢ assim nio teve de esperar muito, s6 umas trés horas” ~, mas continua a enxergar esse mesmo mundo depois que ele morre. escritor siciliano Giovanni Verga (quase da mesma época de ‘Tehelhov) usa esse tipo denarragio em corode modo muito mais sistematico do que seu colega russo, Os contos de Verga sio escri- tos tecnicamente na terceira pessoa, mas parecem emanar de uma comunidade de camponeses sicilianos; sao repletos de provérbios, truismos e analogias rasticas. Podemos dizer que é um “estilo indireto livre nao identificado””. Como desenvolvimento légico do estilo indireto livre, nio ad- mira que Dickens, Hardy, Verga, Tchekhov, Faulkner, Pavese, Henry Green ¢ outros tenham criado analogias e metiforas que, inesmo bem resolvidas ¢ literérias em si, sejam o tipo de analogias e metaforas que os proprios personagens poderiam criar, Quando Robert Browning descreve o som de um pissaro cantando duas veres seguidas a mesma melodia, para “Recapture/The first fine careless rapture”, ele esta sendo um pocta, tentando encontrar: a melhor imagem poética; mas quando Tchekhov, no conto “Os mujiques”, diz que o grito de um passaro parecia o de uma vaca que ficou trancada a noite inteira num barracio, ele esta sendo es- critor de ficgao: esta pensando como um de seus mujiques, Sob tal luz, nao hi quase nenhuma area da narragio que nao seja alcangada pelo longo dedo do estilo indireto livre - ou seja, pela | \Cironia} Vejam o peniiltimo capitulo de Prin, de Nabokov: 0 comico ||. professor russo acabou de dar uma festa e recebeu a noticia de que o colégio onde da aula nao quer mais seus servicos. Triste, ele esta lavando a louga e um quebra-nozes lhe escapa da mao ensaboada e cai dentro da pia, aparentemente quase quebrando uma lindatigela que esta debaixo d’agua. Nabokov escreve que o quebra-nozes cai das maos de Pnin como um homem caindo de um telhado; Pnin tenta agarri-lo, mas “a coisa pernuda” escorrega dentro da agua. “Coisa pernuda” é uma imagem metaforica fantastica: enxergamos imediatamente as pernas compridas do quebra-nozes genioso, como se caisse do telhado e fosse embora. Mas “coisa” é ainda me- Ihor, justamente porque é indefinida: Pnin esta esgriminde com © instrumento, ¢ que palavra transmite melhor uma arremetida, ‘uma estocada no sentido verbal, do que “coisa”? Agora, se o bri- Ihante adjetivo “pernuda” éde Nabokov, a “coisa” infeliz é de Pnin, @ Nabokov utiliza aqui uma espécie de estilo indireto livre, prova~ velmente sem sequer pensar nisso. Coma sempre, se transformar- mos esse trecho numa fala em primeira pessoa, poderemos ouvir BE yadiigto literal; “Recaprurar/O primeiro belo arroubo espontineo”, in “Home “‘Thoughrs from Atwood* [1845], [Net de que modo a palavra “coisa” pertencea Pnin e como quer ser dita: “Venha aqui, vocé, vocé, .. oh... sua coisa chata!” Chua.” @ f instrutivo ver bons escritores cometendo erros, Muitos au- tores excelentes tropegam no estilo indireto livre.\O estilo indireto livre resolve muita coisa, mas acentua um problema presente em toda narragio literéria: as palavras usadas pelos personagens parecem as palavras que eles usariam, ou soam mais como palavras do autor? | Quando escrevo: “Ted olhava a orquestra por entre lagrimas idiotas”, o leitor nao tem dificuldade em atribuir “idiotas” ao per- sonagem. Mas, se escrevesse “Ted olhava a orquestra por entre lagrimas avolumadas e pegajosas”, 08 adjetivos logo iam parecer * Nabokov é0 grande crador de um tipo de metSforas exteavagintes que, segundo 05 formatistas russos, serviaim para of’estranhamento” ou para desfamilisrizagio. (umm quebra-nozes tem pernas, um guarda-chuva proto semienrolado parece um pato de luto, ¢ assim por diante), Os formatistas gostavam do modo como Tolstbi, digamos, insistia em ver coisas adultas ~ como a gueta oua épera—do ponta de vista infantil, para Ihes dar um ar estranho. Mas, para os formalistas russes, exse hibito metaforico mostra emblematicamente que a ficgio nio se refere A reali- dade, 6 um dispositive fechado em si (tais metiforas, entio, sioas joins da arte ex- cGnutrica e solipsista do autor); a0 passo que eu considero essas metiforas, comua coisa pernuda” de Prin, profundamente relacionadas com 2 realidade: elas bro- tam dos praprios persanagens ¢ so frutos do estilo indireto livre, |Chilovski se indaga, em O reorii prozy [Sobre a woria da prosal, se Tolst6i tomou sua técnica do estranhamento de autores franceses como Chateaubriand, mas parece muito mali provavel que foi de Cervantes ~ como quando Sancho chega pela primeira vez a Barcelona e vé os navios a remo na Sgua, € metaforicamente confunde os remos com pés;"Nio podia Sancho imaginar como podiam ter tantos pés aqueles vultos que no mar se moviam", £ uma metifora de estranhamento derivada do estilo indireto tive; com ela, o mundo parece peculiar, mas Sancho parece muito familiar. Volearei a isso no intertitulo to9, tediosamente autorais, como se eu estivesse tentando encontrar ey uma maneira muito especial de descrever aquelas lagrimas. Vejam John Updike no romance Terrorista. Na terceira pagina do livro, ele apresenta 0 protagonista, Ahmad, um fervoroso mu- sulmano americano de dezoito anos, indo paraa escola pelas ruas de uma cidade fictfcia de Nova Jersey, Como 0 romance mal co- megou, Updike ainda precisa estabelecera identidade de Ahmad: Abad tem dezoito anos, Estamos no inicio de abril; mais uma vez 0 verde penetra sorrateiro, semente por semente, nas fendas de terra da cidade cinzenta. Ele olha do patamar de sua altura recém-conquistada pens que, para os insetos invisiveis na grama, ele seria, se eles ti- vessem uma consciéncia como a sua, Deus. No ano passado Ahmad cresceu sete centimetros, chegando a 1,82 metro ~ mais forgas mate- rialistas invisiveis a exercer sua vontade sobre ele. Ele nao vai crescer mais do que isso, pensa Ahmad, nesta vida nem na outra. Se houver uma outra, um demGnio interior murmura. Que provas, além das palavras ardentes e divinamente inspiradas do Profeta, garentem que existe outra vida? Onde cla estaria escondida? Quem estaria eterna- mente abastecendo as fornalhas do Inferno? Que fonte infinita de energia haveria de manter o Eden opulento, alimentando as huris de olhos negros, fazendo crescer os frutos pesados nas arvores, reno- vando os riachos e chafarizes em que Deus, conforme a nona sura do Alcorio, eternamente se regozija? Ea segunda lei da termodinamica? Ahmad esta andando pela rua, olhando em torno e pensando ~ a clissica atividade dos romances pés-flaubertianos. As primei- ras linhas sao bastante corriqueiras. E entao Updike quer tornar @ pensamento teoldgico, e faz uma transicao canhestra: “Ele nao ‘vai crescer mais do que isso, pensa Ahmad, nesta vida nem na ou- tna, Se howwer uma outra, um deménio interior murmura”, Parece muito improvavel que um estudante refletindo sobre o quanto cresceu no tiltimo ano pense: “Nao you crescer mais, nesta vida nem na outra”. As palavras “nem na outra” estao ali s6 para dara Updike a oportunidade de discorrer sobre a ideia islamica do pa- raiso. Estamos apenas na quarta pagina, mas qualquer tentativa de acompanhar a voz de Ahmad jé ficou de lado: o fraseio, a sintaxe ¢ 0 lirismo sio de Updike, nao de Ahmad (“Quem estaria eter- namente abastecendo as fornalhas do Inferno?”). A pentiltima linha é expressiva: “Em que Deus, conforme a nona sura do Al- corao, eternamente se regozija” (grifo meu). Ao contririo, como Henry James queria nos fazer entrar na mente de Maisie, quantas coisas ele comprimiu naquela tinica palavra: “constrangedora- mente”! Porém Updike nao tem certeza de querer entrar na mente de Ahmad ¢, sobretudo, de nos fazer entrar na mente de Ahmad, por isso finca suas grandes bandeiras de autor em toda a drea men- tal do personagem. E por isso precisa identificar a sura exata que menciona Deus, pois, se fosse Ahmad, ele saberia onde esta a pas- sagem e nao precisaria se lembrar dela.” @ De um lado, o auror quer ter sua palavra, quer ser dono de um es- tilo pessoal; de outro, a narrativa se volta para os personagens para a maneira deles de falar..O dilema aumenta na narragao em primeira pessoa, que em geral ¢ urna trapaga ¢ tanto: o narrador finge falar para n6s enquanto de fato é 0 autor quem nos escreve, ¢ * Basta imaginar uma versio eristi dessa nartagio para avaliar a inibil distancia que Updike guarda em relagio ao personagem. Imagine um rapaz cristio prati- ante andando na rua, ¢ 0 texto dizendo algo assim: “E Sua vontade nio se faria para sempre, como esti descrito na quarta linha do pai-nosso?". © estilo indi- reto livre existe justamente para contornar a falta de jeito. aceitamosa farsaalegremente. Mesmoosnarradores de Faulknerem As! Lay Dying [Enquanto agonizo} quase nunca parecem criangas ouiletrados, Mas a mesma tensao também existe na narragio em terceira pessoa: quem realmente acha que é Leopold Bloom, em pleno fluxo de consciéncia, que nota “o jato fraco de cerveja” sendo des- pejado na sarjeta, ou que aprecia “os pinos murmurantes” de um_ garfo num restaurante — e em palavras tao bonitas? Essas percep- g0es refinadas e expressdes magnificamente precisas 840 de Joyce, eo leitor tem de fazer um acordo, aceitando que Bloom as vezes vai soar como Bloom e as vezes vai soar mais como Joyce. Ealgorio velho quantoa literatura: os personagens de Shakespeare soam como eles mesmos e também sempre como Shakespeare. Nao € Cornwall quem usa uma maravilhosa “geleia abjeta” para se referir ao olho de Gloucester antes de arranci-lo— embora seja ele a dizeras palavras -,e sim Shakespeare, que forneceu a expressio. ® Um escritor contemporaneo como David Foster Wallace quer levar essa tensio ao limite. Ele escreve sobre e de dentro dos personagens, ¢ assim procede para explorar questdes de linguagem mais gerais e abstratas. Neste trecho do conto “The Suffering Channel” [O canal sofredor], ele evoca o jargio empobrecido da midia de Manhattan: A outta parte de Style mencionada pelo editor associado se referia a ‘The Suffering Channel, uma grade de programagio de tevé a cabo que Atwater tinha conseguido que Laurel Manderley desse um jeito € pas- sasse direto para. editoria de internacional em What in the Warld|O que _ é¢ passa no mundo}. Atwater era um dos trés jornalistas em tempo Integral a cargo dos noticiérios da wrrw, que recebia 0,75 pagina de editorial porsemana, e eraa coisa mais proxima que qualquer semandrio da BsGconseguia em tabloides ou matérias sensacionalistas, ¢ era objeto de discussio nos mais altos escaldes de Style, Os especiais com equipe e chamada em destaque significavam que Skip Atwater estava oficial- mente contratado para uma matéria de quatrocentas palavras a cada trés semanas, 86 que o mais novato do wiTw tinha ficado em meio periodo desde que Eckleschafft-Bod obrigou a sra. Anger a cortar o orgamento editotial para qualquer coisa que nio fosse noticia de celebridades, de modo que na verdade eram trés matérias completas 2 cada oito semanas. Eis mais um exemplo do que chamei “estilo indireto livre nao identificado”. Como no conto de Tchekhov, a linguagem paira \\ em torno do personagem (0 jornalista Atwater), mas na verdade j}emana de uma espécie de “coro local” ~ é um amalgama daquele tipo de linguagem que se fosse ela a contar a historia, erariamos dessa comunidade especifica, @ A linguagem da narragao nao identificada de Wallace é pavorosa- mente feia e déi por paginas a fio. Tchekhov e Verga nao tinham esse problema porque nao enfrentavam a saturacao imposta 4 lin- guagem pelos meias de comunicagio de massa, Mas, nos Estados Unidos, as coisas sao diferentes: Dreiser em Sister Carrie (publi- cado em 1900) e Sinclair Lewis em Babbitt (1g22) tém o cuidado de reproduzir na integra os anuncios, as cartas comerciais e os fo- lhetos de divulgacao que querem tratar literariamente. \ Assim se inicia a perigosa tautologia inerente aa projeto lite- rario contemporineo: para evocar uma linguagem degradada (a linguagem degradada que o personagem usaria), teriamos de nos dispor a apresentar essa linguagem mutilada no texto, e talvez degradar inteiramente nossa propria linguagem, Pynchon, DeLillo, David Foster Wallace sio, em certa medida, herdeiros de Lewis (provavelmente apenas nesse aspecto),” e Wallace leva seu método de imersio total aos extremos da parédia: ele nao hesita em narrar vinte ou trinta paginas no estilo reproduzido anteriormente. Sua ficgdo dé seguimento a um caloroso debate sobre a decompasicio da linguagem nos Estados Unidos, ¢ ele nio teme decompor ~ e descompor ~ 0 proprio estilo para nos permitir percorrer com ele esses Estados Unidos linguisticos. “Isso sio os Estados Unidos, éai que vocé vive; vocé deixa rolar”, como esereve Pynchon em O lei- I@o do lote 49. Whitman diz que os Estados Unidos sio “o maior de todos os poemas”, mas, se esse for o caso, ele pode representar um perigo mimético para o escritor, que vé seu poema acumulando-se com esse poema rival, os Estados Unidos. Auden apresenta bem 0 problema geral no poema “The Novelist” (O romancista]: 0 poeta pode arremeter como um hussardo, mas o romancista precisa ir mais devagar, precisa aprender a ser “comum e desajeitado” e tem de “se tornara plenitude do tédio”s Em outras palavras, a tarefa do romancista é encarnar, tornar-se aquilo que ele descreve, mesmo quando 0 assunto em si é baixo, vulgar, tedioso. David Foster > Wallace é muito bom em encarnara plenitude do tédio, ® Assim, existe uma tensio fundamental nos contos ¢ romances: podemos reconciliar as percepgées ea linguagem do autor com 4s percepgdes e a linguagem do personagem?|Quando o autore Into 4, em certa medida sio realistas norte-americanos 4 moda antiga, apesar de ‘tag eredenciaiy pé9-modemas: alinguagem deles esta mimeticamente mpleta dalinguagem norce-americana, © personagem esto integralmente fundidos, como na passagem. de Wallace, temos, por assim dizer, “a plenitude do tédio” —a lin- guagem corrompida do autor apenas mimetiza uma linguagem corrompida que existe na realidade, que todos nés conhecemos até demais ¢ da qual queremos desesperadamente fugir. Mas, se 0 autor e o personagem ficam muito distantes, de Updike, sentimos o hilito frio de um afastamento atravessar 0 como na passagem texto, e comecamos a nos incomodar com os esforgos “super lite- rarios” do estilista. Updike é um exemplo de esteticismo (o autor se intromete); Wallace é um exemplo de aparente antiesteticismo (o personagem é tudo): mas ambos, na verdade, sio espécimes do mesmo esteticismo, que no fundo éa exibicio forgada de estilo, @ O romancista, portanto, esta sempre trabalhando pelo menos com trés linguagens! Ha a linguagem, o estilo, os instrumentos de percepgao ete. do autor; hé a suposta linguagem, o suposto es- tilo, os supostos instrumentos de percepgio etc. do personagem; eh’ o que chamariamos de linguagem do mundo —a linguagem que a ficgao herda antes de converté-la em estilo literirio, a lin- guagem da fala cotidiana, dos jornais, dos escrit6rios, da publici dade, dos blogs ¢ dos e-mails. Nesse sentido, o romancista éum triplo escritor, eo romancista contempordneo sente ainda mais a pressio dessa triplicidade, devido a presenga onivora do terceiro cavalo dessa troica, a linguagem do mundo, que invadiu nossa subjetividade, nossa intimidade. Intimidade que, para James, de- veria sera propria mina do romance e que ele chamava (numa troica toda sua) “o fntimo-presente palpavel * Carta a Sarah Orne fowett, 5 de outubro de igor ” : a @ Outro exemple de romancista que se sobrepde ao personagem surge (brevemente) em Agarre a vida, de Saul Bellow. Tommy Wilhelm, um vendedor desempregado que se encontra numa maré de azar, e que nao é nem um esteta nem um intelectual, ob- Serva ansioso o quadro numa bolsa de mercadorias de Manhattan. Perto dele, um escriturario idoso, chamado sr. Rappaport, fuma um charuto, “Uma cinza longa ¢ perfeita formou-se na ponta do charuto, 0 fantasma branco de uma folha, com todas as suas ner- vuras ¢ seu cheiro, mais leve, O velho nao The deu atencao, apesar de sua beleza, Pois era bela, Tampouco deu atengio a Wilhelm.” £ uma frase linda, musical, caracteristica de Bellow e da nar- rativa literdria moderna. A ficgao afrouxa o passo a fim de chamar nossa atengio para uma superficie ou textura que poderia passar desapercebida - um exemplo de “pausa descritiva’,” que nos 6 familiar quando a ag3o de um romance é suspensa, ¢ 0 autor diz: “Agora vou lhes contar sobre a cidade de N., que ficava aninhada no sopé dos Carpatos”, ou “Jerome vivia num castelo grande e sombrio, situado em so mil acres de férteis pastagens”. Mas, 20 mesmo tempoe3ses sio detalhes vistas, aparentemente, nao pelo autor — ou nio sé pelo autor -, e sim pelo personagem:E é a esse vespeito que Bellow hesita; ele reconhece uma ansiedade inerente Anarrativa moderna, que a propria narrativa moderna tendea apa- gar, A cinza € notada, ¢ Bellow comenta: “O velho nio Ihe deu atengao apesar de sua beleza. Pois era bela. Tampouco deu aten- Gio a Wilhelm.” Agarre a vida 6 narrado numa terceira pessoa Muito proxima, num estilo indireto livre que enxerga a maior parte da agio pelos olhos de Tommy. Bellow, aqui, parece sugerir Expreaiio de Gérard Genetteom Narrative Discourse {1980}. que Tommy nota a cinza porque era bela, e que Tommy, igno- rado pelo velho, também ¢ belo de alguma maneira. Mas 0 fato de Bellow nos contar isso é certamente uma concessao 4 nossa objegio implicita: como e por que Tommy haveria de notar essa cinza, e notar tio bem, com estas belas palavras? Ao que Bellow, de fato, responde ansioso: “Bem, vocé podia achar que Tommy era incapaz dessa delicadeza, mas ele realmente notou esse belo fato, ¢ € por isso que ele também é belo de alguma forma”. A tensio entre o estilo do autor e 0 estilo dos personagens au- menta quando trés elementos coincidem: quando um estilista notavel esti em acio, como Bellow ou Joyce; quando esse esti- lista também tem\o compromisso de acompanhar as percepgdes © os pensamentos de seus personagens \(compromisso geral- mente determinado pelo estilo indireto livre ou por seu deri- vado, o fluxo de consciéncia); e quando 0 estilista tem interesse especial na apresentagio do detalhe. Estil ; discurso indireto livre; detalhe: eis Flaubert, cuja obra inaugura¢ tenta resolver essa tensao, e quem é de fato seu fundador. Flaubert e a narrativa aoe e @ Os romancistas deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem A primavera: tudo comega com ele. Realmente existe um antes ¢ um depois de Flaubert. Foi ele que estabeleceu o que a maioria dos leitores ¢ escritores entende como narrativa realista moderna, e sua influéncia é tio grande que se faz quase invisivel. Quando falamos de uma boa prosa, raramente comentamos que ela realga o detalhe expressivo e brilhante; que privilegia um alto grau de percepcao visual; que mantém uma compostura nao sentimental e que se abstém, qual bom criado, de comentarios |, supérfluos; que é neutra ao julgar o bem ¢ o mal; que procuraa— verdade, mesmo que seja s6rdida; e que traz em si as marcas do autor, que, embora perceptiveis, paradoxalmente nao se deixam ver. Encontramos algumas dessas caracteristicas em Defoe, Austen ou Balzac, mas todas juntas s6 em Flaubert. Vejam a passagem a seguir, em que Frédéric Moreau, o heréi de A educacdo sentimental, vagueia pelo Quartier Latin, atento a0 cenario ¢ aos sons de Paris: Percorria, ao acaso, 6 Quartier Latin, habitualmente cheio de tu- multo, mas deserto naquela época, com os estudantes em férias, As altas paredes dos colégios, que o siléncio parecia tornar mais extensas, tinham um aspecto ainda mais triste; ouvia-se um sem-ntimero de ruidos pacificos, bater de asas nas gaiolas, o vibragio de um torno, 0 martelo de um sapateiro; e os vendedores de roupas, no meio da rua, interrogavam inutilmente com os olhos todas as janelas. No fundo dos cafés solitérios, a dama do baleio bocejava entre as garrafas cheias; os jornais permaneciam em ordem na mesa dos gabinetes de Jeivura; na casa das engomadeiras, a roupa branea estremecia ao sopro do vento morno. De vez em quando, detinha-se diante do tabuleiro de um alfarrabista; um Gnibus que descia, rente ao pass¢io, fazia-o voltar-se; ¢, chegando em frente ao Luxemburgo, nio ia mais longe. Isso foi publicado em 1869, mas podia ter aparecido em 1969; muitos romancistas ainda soam praticamente idénticos, Flaubert parece observar as ruas com indiferenga, como uma cimera. Da mesma forma que ao assistirmos um filme nao notamos 0 que foi excluido, o que esta fora dos limites do quadro, também nao no- tamos 0 que Flaubert decide do notar. £ ja nem percebemos que o que ele escolhew nao é observado ao acaso, mas severamente es~ colhido, que cada detalhe esté quase congelado em seu amalgama de escolhas, Como sao soberbos ¢ magnificamente isolados esses detalhes — a mulher bocejando, os jornais sem abrir, a roupa estre- mecendo no ar morno! De inicio, nao notamos o cuidado com que Flaubert escolhe os detalhes, porque ele se esforga em nos ocultar esse trabalho, ¢ ézeloso em esconder a questao sobre quem esta notando todas essas coisas; Flaubert ou Frédéric? Flaubert foi muito claro a res- peito. Ele queria que 0 leitor ficasse diante do que chamava de parede lisa de prosa aparentemente impessoal, os detalhes ape- nas se acumulando, como na vida. “Um autor em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte ¢ visivel em parte alguma”, disse numa frase famosa numa carta de 1852. “Como a arte é uma Segunda natureza),o criador dessa natureza deve operar com procedimentos semelhantes: que se sinta em cada atomo, em cada aspecto, uma impassibilidade oculta, infi- nita. O efeito no espectador deve ser uma espécie de assombro. Como surgiu tudo isso!” Para tanto, Flaubert aperfeigoou uma técnica que é essencial Paraa narracio realista; misturar o detalhe habitual e o detalhe di- nimico. £ claro que naquela rua de Paris o tempo que a balconista \/ passa bocejando nao pode ser igual ao tempo que a roupa tremula Ou que os jornais ficam nas mesas. Os detalhes de Flaubert sao de marcagdes temporais diferentes, alguns instantaneos e outros Tecorrentes, mas todos se combinam no mesmo plano como se acontecessem simultaneamente. | Parece a vida real - de um modo belamente artificial. Flaubert Sugere que esses detalhes, de certa forma, sio ao mesmo tempo importantes ¢ insignificantes: importantes porque foram notados eescritos por ele, einsignificantes porque estio todos misturados, como que vistos de relance; parecem chegar a nés como “a vida real”. Dai deriva grande parte do relato moderno, como a reporta- gem de guerra, O escritor de livros policiais ¢ o reporter de guerra apenas intensificam o contraste entre o detalhe importante e o in- significante, transformando-o numa tensio entre 0 pavoroso eo comum: um soldado morre ¢ ao lado um menino vai paraa escola, @ O uso de marcagdes temporais diferentes nao foi invengio de Flaubert, claro. Sempre houve personagens fazendo alguma coisa enquanto outra estava acontecendo. No livro 22 da Iliada, a mu- ther de Heitor esta em casa preparando-lhe a agua do hanho, s6 que Heitor morreu momentos antes; em “Musée des Beaux Arts”, Auden elogia Breughel por notar que, enquanto [caro cafa, um na- vio singrava calmamente as ondas, sem perceber. Em Reparagdo, de Ian McEwan, na passagem sobre Dunquerque, o protagonista, um soldado inglés batendo em retirada em meio ao caos ei morte, rumo a Dunquerque, vé passar uma barca. “Atras dele, a quinze quilémetros dali, Dunquerque ardia. Na proa do barco, dois garo- tos se debrucavam sobre uma bicicleta de cabeca para baixo, talvez consertando um pneu furado.” Flaubert difere um pouco desses exemplos na maneira como insiste em juntar acontecimentos de curta e de longa duracio. Breughel e McEwan descreyem dois fatos muito diferentes que se passam ao mesmo tempo; Flaubert afirma uma impossibilidade temporal: que o olho - seu otho, o olho de Frédéric ~ 6 capaz de presenciar de um sé trago visual, por assim dizer, sensagGes e ocor- réncias que acontecem em tempos e velocidades diferentes. Em A educagdo sentimental, quando a revolugio de 1848 chega a Paris, ‘os saldados disparam contra todos, ¢ esta a maior balbirdia: “Foi correndo até o cais Voltaire. Numa janela aberta um velho em man- gas de camisa chorava, olhos fitos no céu. O Sena corria tranquila- mente. O céu estava todo azul; passaros cantavam nas arvores das Tulherias”, A ocorréncia isolada do velho a janela se soma as ocor- réncias de duragao mais longa, como se estivessem todas juntas. © Daqui é um pequeno salto até a insisténcia, frequente na repor- tagem de guerra moderna, em que 0 pavoroso co comum sejam notados ao mesmo tempo — pelo heréi ficcional e/ ou pelo escri- tor - e em que, de certa forma, ndo haja nenhuma diferenca im- portante entre as duas experiéncias: todos os detalhes geram certo torpor e afetam o espectador traumatizado da mesma maneira. De novo A educagao sentimental: Disparava-se de todas as janelas da praga; as balas assobiavam;a dgua da fonte rebentada misturava-se ao sangue, fazia pogas no chio; escorregava-se, na lama, sobre pegas de vestuirio, capacetes, armas; Frédéric sentiu debaixo do pé uma coisa mole; era a mao de um sar- gento, de capote cinza, eaido no enxurro, com © rosto para baixo. Novos bandos de populares continuayam chegando, empurrando os combatentes para a delegacia, © tiroteio tornaya-se mais cer- rado. Os armazéns de vinho estavam abertos; ia-se 1i, de quando em quando, fumar uma cachimbada, beber um chope, para depois voltar a0 combate. Um cio perdido uivava. Dava ventade de rir. O momento que nos parece decisivamente moderno nesse trecho & “Frédéric sentiu debaixe do pé uma coisa mole; era a mao de um sargento, de capote cinza”. Primeiro a antecipacio calma e ter- rivel (“uma coisa mole”), ¢ depois a calma ¢ terrivel confirmagéo (“era a mao de um sargento”), a escrita se recusando a envolver- se na emogio de seu objeto. lan McEwan usa sistematicamente a mesma técnica em sua passagem sobre Dunquerque, ¢ Stephen Crane - que leu A educagao sentimental— também, em O emblema vermetho da coragem: Olhava para ele um homem morto, sentado de costas contra uma ir- vore que parecia uma coluns. O cadaver estava metido num uniforme que um dia fora azul, mas agora estava desborado numa triste tona- lidade esverdeada. Seus olhos fixos tinham o brilho opaco que se vé nos de um peixe morto. A boca estava aberta, com o vermelho trans- formado num amarelo aterrador. Sobre a pele cinzenta do rosto pas- seavam formigas. Uma delas arrastava algum tipo de carga ao longo do libio superior. Isso € ainda mais “cinematografico” do que Flaubert (¢ 0 filme, na- turalmente, empresta essa técnica do romance). Ha o horrorcalmo: (“o brilho opaco que se vé nos de um peixe morto”). Hi como que 9 400m da lente, conforme se aproxima do cadaver. Mas 0 leitor se aproxima mais e mais do horror, enquanto a prosa, a0 mesmo. tempo, recua mais ¢ mais, insistindo no antissentimentalismo E 0 compromisso moderno com o detalhe: o protagonista parece notar tantas coisas, parece registrar tudo! (“Uma delas arrastava algum tipo de carga a0 longo do libio superior.” Algum de nés realmente veria tudo isso?) E hi as diferentes marcagdes tem- porais: o cadaver est4 morto para sempre, mas em seu rosto a vida continua: as formigas estao ocupadas, indiferentes 4 mor- talidade humana.” * As formigas andando pelo resto sia quase um cliché da gramitica cinemato- grifica, Lembrem as formigas na mo em Um cdo andaluz [Un chien andalow, 1929], de Bufuel, ou na orelha no comego de Veludo azul [Bite Velvet, 1986), de Dayid Lynch. 26 ee SR Flaubert e 0 surgimento do flaneur ) ® Flaubert consegue juntar as marcagdes de tempo porque as for- mas verbais do francés lhe permitem usar 0 pretérito imperfeito para ocorréncias isoladas (“ele yarria a rua”) ¢ ocorréncias repeti- das (“toda semana ele varria. a rua”). O inglés é menos jeitoso, e é preciso recorrer a “he was doing something” {ele estava fazendo tal coisa}, ou a “he would de something” [ele faria tal coisa], oua “he used to do something” {ele coscumava fazer tal coisa| ~ “every week he would sweep the road” [ele varreria a rua toda semanal - para tra~ duzir bem os verbos de repeticao. Mas, na hora em que se faz isso, acaba a brincadeira, e admite-se que existe temporalidades dife- rentes. Em Contre Sainte-Beuve, Proust diz com toda a razio que esse uso do imperfeito era a grande inovagao de Flaubert. E Flaubert baseia esse novo estilo realista no uso do alhar ~ o olhar do autor e ) 6" o olhar do personagem, Eu disse que o Ahmad de Updike, ao andar » pela rua notando coisas e pensando, seguiaa atividade classica do romance pés-flaubertiano, O Frédéric de Flaubert é 0 pioneiro do Sfléneur, como diriam mais tarde ~ 0 ocioso, geralmente um rapaz, que vagueia pelas ruas sem pressa, olhando, vendo, refletindo. Co- nhecemos 0 tipo com base em Baudelaire, no narrador onividente do romance autobiogrifico de Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Brigge, e nos escritos de Walter Benjamin sobre Baudelaire. ® Essa figura é, em esséncia, um substituto do autor, é seu explora~ dor permedvel, irremediavelmente transbordando de impressdes.. Fle sai para o mundo como a pomba de Noé, a fim de trazer um ‘felatério na volta, O surgimento do explorador permeavel esta intimamente ligado ao surgimento do urbanismo, ao fato de que imensas aglomeragées de seres humanos langam ao escritor — ou ao substituto designado para isso — quantidades imensas e ator- doantes de detalhes variados, Jane Austen é, basicamente, uma to- mancista rural, e Londres, tal como aparece em Emma, na verdade € apenas 0 povoado de Highgate. As heroinas nunca vagueiam ociosas, apenas olhando ¢ pensando: todas as suas ideias estio intensamente concentradas no problema moral em questio. Mas quando Wordsworth, mais ou menos na época em que ajovem Austen escrevia, visita Londres em The Prelude, comega imedia- tamente a parecer um fld@neur - como um romancista moderno: Here files of ballads dangle from dead walls, Advertisements of giant-size, from high Press forward in all colour on the sight tal A travelling Cripple, by the trunk cut short. And stumping with his arms bel ‘The Bachelor that loves to sun himself, The military Idler, and the Dame a The italian, with his Frame of Images tJ Upon his head; with basket at his waist The Jew; the stately and stow-mouing Terk With freight of stippers piled beneath his arm.” * Tradugto literal; "Aqui filas de baladas pendem de muros mortos,/anineios, em tamanho gigante, impdem-se/ 4 vista em todas as cores/[,..J/Um Aleijado rolante, cortado logo abaixo do troaco./ Ese locomovendo com os bragos /[...]/ O Solteiro que gosta de se mostrar,/ O Desocupado militar, ea Dama/|...|/O Italiano, com seu Quadro de Imagens /|,..]/Sobte a cabeca; com um cesto a> Wordsworth prossegue dizendo que, se cansarmos de “random sights” [visdesaleatorias], podemos encontrar na multidio “all spe- cimens of man” |todos os espécimes humanos|: Through all the colours which the sun bestows, And every character of form and face, The Swede, the Russian: from the genial South, The Frenchman and the Spaniard; from remote America, the Hunter-Indian: Moors, Malays, Lascars, the Tartar and Chinese, And Negro Ladies in white muslin gowns.” Notem como Wordsworth, a exemplo de Flaubert, ajusta a lente do olho a seu bel-prazer: temos varios versos de arrolamento ge- nérico (0 sueco, o russo, o americano ete.), mas terminarnos com uma sitbita escolha de um tnico contraste de cor: “And Negro Ladies in white muslim gowns”, O escritor abre ¢ fecha 0 zoom A vontade, mas é como se um rodo de crupié nos empurrasse numa pilha s6 todos esses detathes, diferentes no foco e na intensidade. © Wordsworth esté olhando pessoalmente esses aspectos de Londres. Esti sendo poeta, escrevendo sobre si mesmo. O romancista tam- bém quer registrar detalhes assim, mas é mais dificil se comportar © cintura,/O Judeu; 0 tento eimponente Tareo/Com um fardo de chinelas sob 0 borage," fcr] * Tradugio literal: “Por entre todas as cores que o sol concede,/E toda qualidade de forma ¢ roste,/o suecd, 0 russo; do aneno Sul,/O francés ¢ 0 espanhol; da Tumota/ América, 0 Indio eagador; mouros,/malaios, indianos, @ tdrtaro e 0 hinds, /Edamas nogras em brancas tanicas muasulmatias.” [6.1.] como poeta lirico no romance porque é preciso escrever através de outras pessoas, e entao voltamos a tensao bisica do romance: quem esti notando essas coisas; o romancista ou o personagem? Naquela primeira passagem de A educagée sentimental, sera Flaubert quem monta um pequeno ¢ simpatico cenirio parisiense, ¢ 0 leitor supde que Frédéric talvez enxergue alguns detalhes do parigrafo, mas € Flaubert quem os vé todos com 0 olho do espirito; ou sera que a pas- sagem inteira foi escrita basicamente num vago estilo indireto livre, esupomos que Frédéric nota tudo o que Flaubert traz.i nossa atencio fechados, a balconista bocejando, @ assim por diante? A . foi fundira ~osjorna inovacao de Flaubert foi tornara pergunta desnecessar tal ponto o autor e o fldneur que, inconscientemente, 0 leitor eleva Frédéric ao nivel estilistico de Flaubert: conchiimos que ambos de- vem ser 6timos em notaras coisas, ¢ deixamos por isso mesmo. Flaubert precisa fazer assim porque ele é, a0 mesmo tempo, um realista e um estilista, um repérter e um poeta manqué, O realista quer registrar infinidades de coisas, quer escrever uma matéria bal- zaquiana sobre Paris. Mas 0 estilista nao se contenta com a verve & as miriades balzaquianas; ele quer disciplinar essa enxurrada de detalhes, converté-los em frases e imagens impecaveis: as cartas de Flaubert mostram o esforco de tentar transformar prosa em poesia.” ‘Tao forte é 0 vies pos-flaubertiano de nossa época que mais ou me- * | Hi t1és diferengas entre o realismo de Balzac ¢ 0 realismo de Flaubert: primeiro, | Balzac observa bastante em sua literatura, 6 claro, masa énfase sempre recai mais na abundancia do que numa selegio certada dos detalhes. Segundo, Bal- zac nio tem nenhum compromisse especial com @ estilo indireto livee nem com a impessoatidade do autor e se sente livre para se intrometer como autor/ narrador, com enstios, digressbes ¢ informacoes sobre dados sociais. (Nesse as- pecto, cle parece decididamente setecentista) Terceiro, e decorrendo das duas diferengas anteriores: ele nJo tem nenhum interesse tipicamente faubertiana | em apagar a questio de quern & que esti yendo tudo. Por tais razdes, considero " Flaubert, ¢ no Balzac, o verdadeira fundador da narrativa moderna de ficgio. ‘OS presurninos que um bom estilista de vez em quando escreva por sobre os personagens (como nos exemplos de Updike e de Saul Bellow), ou que indique um representante seu: Humbert Humbert anuncia que é dotado de um belo estilo em prosa, como maneira, sem davida, de explicara prosa ultradesenvolvida de seu criador; Bellow gosta de nos informar que seus personagens “no- tam tudo”, © Quando as inovagdes Alaubertianas chegaram a um romancista como Christopher Isherwood, nos anos 1930, ji vinham relu- zindo com alto grau de brilho técnico. Adeus a Berlim, publicado em 1939, traz uma declaragao que ficou famosa; “Sou uma camara como obturador aberto, bem passiva, que registra, nao pensa. Que registra o homem se barbeando na janela em frente e a mulher de quimono lavando o cabelo, Algum dia, tudo isso precisara ser re- velado, cuidadosamente copiado, fixado". Isherwood cumpre a promessa numa passagem descritiva como a seguinte, no comeco do capitulo intitulado “Os Nowak": A entrada para.a Wassertorstrasse era uma grande arcada de pedra, uum pouco da velha Berlim, borrada de foices ¢ martelos ¢ cruzes suisticas, cheia de cartazes rasgados que anunciavam leilées ou crimes, Era uma rua pavimentada de pedra e sordida, atulhada de chorosas criangas rolando no chio, jovens de puléveres de la zigueza- gueavam em bicicletas de corrida e gritavam com as garotas que pas- savam com seus potes de leite. O calgamento era riscado a giz paraa brincadeira de amarelinha, No fim da rua, comoum instrumentoalto, perigosamente agudo vermelho, ficava uma igreja. Isherwood apresenta, de modo ainda mais evidente do que Flau- bert, uma soma aleat6ria de detalhes, e tenta, de maneira ainda mais marcada do que Flaubert, disfarcar essa aleatoriedade: 6 exatamente a formalizacao que se espera de um estilo literario, radical setenta anos antes e agora um pouco degradado num jeito ji conhecido de organizar a realidade na pagina impressa ~ na verdade, um con- junto de regras priticas. Postando-se como camara de simples re- gistro, Isherwood parece apenas langar um olhar geral ¢ insipido 4 Wassertorstrasse, ¢ diz: aqui ha uma arcada, uma rua lotada de crian- gas, alguns rapazes de bicicleta e garotas com potes de leite. Um olhar rapido, e's6. Mas, como Flaubert, s6 que de maneira muito mais afirmativa, Isherwood insiste em desacelerar o dinamismo daaqioe em congelaras ocorréncias habituais. A rua bem que pode viver api- nhada de criancas, mas elas nao podem estar “chorando” o tempo todo. O mesmo em relagio aos rapazes que pedalam e as garotas do leite que passam, apresentados como se fizessem parte do lugar. Por outro lado, o autor arranca da quietude os cartazes rasgados e 0 chio riscado com a amarelinha das criangas, dando-lhes um ruido tem- ponirio: cles surgem de repente, mas fazer parte de uma marcagiio temporal diferente da que rege os jovens ¢ as criancas. @ Quanto mais olhamos para esse trecho, alids, bem bonito, menos ele parecera “um pedago da vida” ou um facil flagrante fotogrifico, e mais um balé cuidadosamente claborado. A passagem comega com uma entrada: a entrada do capitulo. A referéncia a foices, mar- telos ¢ suasticas introduz uma nota de ameaca, complementada pela referéncia irénica a cartazes comerciais queanunciam “leiloes ou crimes”; pode ser comércio, mas guarda uma proximidade in- cdmoda com os grafites politicos ~afinal, o que os politicos fazem, principalmente os envolvidos em atividades comunistas ou fas- cistas, no ¢ leilio ¢ crime? Eles nos vendem coisas e cometem crimes. As “cruzes” nazistas permitem um bom ponto de con- tato com aamarelinha infantil, que vai do céu ao inferno, e coma igreja, s6 que tudo esta ameacadoramente invertido: a igreja nio Parece mais uma igreja, e sim um instrumento vermelho (uma ca- neta, uma faca, um instrumento de tortura, o “vermelho” como a cor do sangue e da politica radical), enquanto a “cruz” foi apro- priada pelos nazistas. Dada essa inversio, entendemos por que Isherwood quer apresentar 0 comego e 0 fim do parigrafo com as suasticas numa ponta ea igreja na outra: elas trocam de posicio no decorrer de poucas linhas. narrador que prometia ser uma simples cimera fotografica, totalmente passiva, registrando, sem pensar, esta nos vendendo uma fraude? Apenas no sentido da fraude de Robinson Crusoe, quando diz que esta nos contando uma histéria veridica: 0 leitor fica muito satisfeito em apagar o trabalho do autor e acreditar em mais duas invengdes ~ ade que o narrador, de alguma maneira, es- tava “realmente la” (como de fato estava Isherwood, que morouem Berlim nosanos 1930) eade que ele, na verdade, nao éum escritor, Ou melhor, o que a tradicao do fidneur de Flaubert tenta estabe- lecer é que o narrador (ou o substituto designado pelo autor) é tma espécie de escritor, mas, ao mesmo tempo, ndo 6 um escritor de verdade. Um escritor por temperamento, nao por oficio, Um _#scritor porque nota to bem tantas coisas; mas nao um escritor de ide porque nao tem nenhum trabalho em registrar aquilo por wctito, eafinal porque ele realmente nota apenas aquilo que nés 08 veriamos, Essa solugao da tensio entre o estilo do autor e 0 estilo do per- sonagem apresenta um paradoxo. O que ela diz é0 seguinte: “To- dos nés, os modernos, viramos escritores, e todos temos olhos altamente sofisticados para o detalhe; mas a vida, na verdade, nao 6 tao ‘literaria’' quanto isso sugere, porque nio precisamos nos importar com a maneira de expor esses detalhes por escrito”. A tensio entre o estilo do autor e o estilo do personagem desaparece porque o proprio estilo literario tem de desaparecer: doestilo lite- ririo tem de desaparecer por meios literarios,. O realismo de Flaubert, assim como grande parte da literatura, ¢ artificial e ao mesmo tempo parece natural.” Parece natural por- que o detalhe realmente nos pega, sobretudo nas cidades grandes, num rufar do aleatério. E de fato existimos em diversas marcag6es temporais. Imaginem que estou andando numa rua. Noto muitos ruidos, muita atividade, uma sirene de policia, um prédio sendo demolido, o arranhar da porta de uma loja. Passa por mim todo um fluxo de rostos e corpos. E, quando cruzo um café, vejo os olhos de uma mulher sentada sozinha. Ela me olha, eu olho para ela. Um instante de ligagdo urbana sem sentido, vagamente eré- tica; mas o rosto me lembra alguém que conheci, uma moga com os mesmos cabelos escuros, ¢ dai se desencadeia uma série de pensamentos. Sigo em frente, mas aquele rosto no café lampeja na lembranga, esta ali, temporariamente preservado, enquanto os sons e as atividades a meu redor nao sao preservados da mesma maneira ~ entram e saem de minha consciéncia. O rosto, digamos, * — Voltarei a questo do artificial edo que parece natural no capitula"Verdade, con- vengio, realismo” ntertitulos 112-23. esta numa velocidade 4/4, a0 passo que o resto da cidade esta zu- nindo mais rapido, a 6/8. O artificio consiste na escolha do detalhe. Na vida, podemos desviar os olhos ea cabeca, mas na verdade somos como cdmeras impotentes. A lente é de grande abertura, e captamos tudo 0 que aparece. A meméria seleciona, mas no do jeito que a narrativa li- teraria seleciona, Nossas lembrangas nao possuem talento estético. Mas tem gue ser assim: sb podemios compreender 0 essen= ‘ela! partindo dos detathes, esta é a experiéncia que tiret 10 dos livros como da vida, & preciso conhecer todos os hes, porque nunca se pode saber qual sera importante se que palavras esclarecerao alguma coisa, Sindor Mérai, As brasas © Em 1985, o alpinista Joe Simpson, a7 mil metros de altitude nos Andes, escorregou de uma parede de gelo e quebrou a perna, De- pendurado nas cordas sem poder fazer nada, ele foi abandonado Por seu parceiro de escalada, que o deu por morto. A cabeca de Joe veio, de repente, a misica de Boney M, “Brown Girl in the Ring”. Ele nunca gostara da miisica e ficou furioso com a ideia de morrer justo com essa trilha sonora. Na literatura, assim como na vida, muitas vezes a morte vem acompanhada de coisas irrelevantes, desde Falstaff balbuciando sobre verdes prados até Lucien de Rubempré, de Balzac, notando detalhes arquiteténicos logo antes de se matar (em Esplendores misérias das cortesds); do principe Andrei, em Guerra e paz, $O- nhando no leito de morte com uma conversa trivial, a Joachim, em A montanha magica, movendo 0 brago pelo lencol “como se esti- vesse pegando ou juntando alguma coisa”. Proust supde que essa ir- relevancia sempre acompanha nossa morte, porque nunca estamos preparados para ela; nunca pensamos que nossa morte vai ocorrer “nesta tarde mesmo”. Pelo contrério: Empenha-se a gente em passear para conseguir num més 0 total de bom ar necessirio, hesitou-se na escolha da capa que se hd de levar, do cocheiro que se chamars, estamos de carro, temos o dia inteiro pela frente, curto, porque queremos voltar a tempo de receber urna amiga; desejariamos que também fizesse bom tempo no dia Seguinte, enio Se suspeita de que a morte, que marchava conosco em outro plano, uma treva impenetravel, escolheu precisamente este dia para entrar em cena, dentro de alguns minutos, mais ou menos no instante em ‘que o carro atingir os Champs-Elysées, Marcel Proust, O camino de Guermantes, parte 2, capitulo t. Um exemplo que se aproxima da experiéncia de Joe Simpson apa- rece no final do conto “Enfermaria n° 6”, de Tchekhov. O médico Ragin esta agonizando: Passou por ele um bando de veados, extraordinariamente belos ¢ gra- ciosos, a respeito dos quais lera um dia antes; depois, uma mulher estendeu para ele a mio com uma carta registrada.., Mikhail Averia- nitch disse algo. Depois, tudo sumiu, e Andréi lefimitch desfaleceu para sempre. A camponesa com a carta registrada é um pouco “literaria” de- mais (a intimagao do inflexivel ceifeiro etc.); mas aquele bando de veados! Com que simplicidade encantadora Tchekhov, profunda- .o do personagem, nio diz “ele pensou mente imbuido no espi: nos veados sobre os quais andara lendo” nem sequer “ele viu mentalmente os veados sobre os quais andara lendo”, mas apenas diz calmamente que o bando de veados “passou por ele” @ Em 28 de margo de 1941, Virginia Woolf encheu os bolsos de pe- dras e entrou no rio Ouse. O marido, Leonard Woolf, era obsessi- vamente meticuloso, e manteve na vida adulta um didrio no qual registrava todos os dias as refeigdes ea quilometragem do carro. Aparentemente, nao houve nenhuma diferenga no diaem que sua mulher se suicidou: ele registrou a quilometragem do carro. Mas, diz sua bidgrafa Victoria Glendinning, a pigina dessa data esti borrada, com “uma mancha amarela pardacenta que foi esfregada ou enxugada. Podia ser ch, café ou lagrimas. £0 nico borrio em todos os anos de um diirio impecavel”. O detalhe literario de espirito mais préximo ao diario man- chado de Leonard Woolf descreve as horas finais de Thomas Buddenbrook. Sua irma, Frau Permaneder, mantém vigilia junto ao leito de morte. Apaixonada, mas estoica, apenas num mo- mento ela dé vazao a dor e entoa uma prece: “O Deus, terminai © seu softimento”. Mas ela esqueceu que nao conhece os versos inteiros, hesita, “e substitui o final com redobrada dignidade de atitudes”. Todos ficam constrangidos. Entio Thomas morre, Frau Permaneder se lanca ao chao e chora amargamente, Um instante depois, recupera 0 controle: “Com 0 rosto molhado por com- pleto, mas revigorada, serenada e voltada a0 equilibrio psiquico, reergueu-se, sendo logo capaz de lembrar-se das participacdes de dbito que se deviam imprimir sem demora e com a maxima Pressa — imensa quantidade de cartdes de feitio elegante...”. A vida retoma aatividade e a rotina apés o luto. Um jugar-comum. Masa escolha do adjetivo “elegante” é sutil; aordem burguesa retoma a vida com seus cartées “elegantes”, e Mann Sugere que essa classe mantém a fé na solidez e no decoro dos objetos, na tealidade, afer- rando-seacles. Em 1960, durante a eleicao presidencial, Richard Nixon e John F. Kennedy travaram o primeiro debate da historia da televisio. Cos- tuma-se dizer que Nixon, transpirando, “perdeu” porque estava om a barba por fazer e tinha uma aparéncia sinistra. As pessoas achavam que conheciam a aparéncia de Richard Nixon, até o momento em que ele ficou ao lado de Kennedy, mais bem-apessoado, e as luzes escaldantes do esttidio se acen- ‘deram. Entao a aparéncia mudou. Algo semelhante acontece om acasada Anna Kariénina, quando encontra Vronski no trem noturno de Moscou para Sio Petersburgo. De manha, alguma coisa importante mudou, mas ela ainda nao se deu conta total- mente. Para evocar o fato, Tolstéi faz com que Anna note o ma- rido Kariénin sob uma nova luz. Ele veio encontri-la na estacio, ea primeira coisa que Anna pensa é: “Ah, meu Deus! Por que suas orelhas sao assim!?”. O marido est com um ar frio e impo- nente, mas sao as orelhas em especial que de stibito lhe parecer. estranhas: “As cartilagens das orelhas pareciam escorar a aba do chapéu redondo”. Boney M, a anica mancha, a barba por fazer de Nixon: na vida ena literatura, navegamos por entre a estrela dos detalhes. Usa- mos o detalhe para enfocar, para gravar uma impressio, para lembrar. Nos prendemos a cle, No conto “Minha primeira paga”, de Isaac Babel, um adolescente conta vantagem para uma pros- tituta. Ela esta entediada e duvida dele, até que o rapaz diz que levou “notas promissérias castanhas” a uma mulher. Pronto, ela fica embeigada, ® A literatura é diferente da vida porque a vida é cheia de detalhes, mas de maneira amorfa, e raramente ela nos conduz a eles, en- quanto a literatura nos ensina a notar ~ a notar como minha mie, porexemplo, costuma enxugar a boca antes de me beijar; o som de britadeira que faz um tixi londrino quando 0 motor a diesel esta em ponto morto; os riscos esbranquigados numa jaqueta velha de couro que parecem estrias de gordura num pedaco de carne; como a neve fresca “range” sob os pés; como os bracinhos de um bebé sido tao rechonchudos que parecem amarrados com linha (ah, os Outros so meus, mas 0 tiltimo exemplo 6 de Tolstéi!).” © Essa ligdo é dialética. A literatura nos ensina a notar melhor a vida; praticamos isso na vida, o que nos faz, por sua vez, ler melhor 0 detalhe na literatura, 0 que, Por sua vez, nos faz ler melhor a vida. E assim por diante. Basta dar aulas de literatura para perceber que os leitores jovens, na maioria, nio sio bons observadore: Sei disso por meus préprios livros antigos, rabiscados de cima a baixo vinte anos atris, quando eu era aluno e sublinhava siste- maticamente detalhes, imagens e metiforas que me agradavam e que agora me parecem triviais, enquanto deixava passar na maior tranquilidade coisas que hoje me parecem maravilhosas, Nos crescemos como leitor, e quem tem vinte anos ainda é mais ou * Esti em Anna Kariénina, © 6 um bom exemplo de pligio de si mesmo. No ro mance, no um, mas dois bebés —o de Liévin eo de Anna — tm bragos gordinhos que parecem amarrados com linha, Da mesma forma, em David Copperfield, Dickens compara a boca aberta de Uriah Heep aos guich@s de um correio, ¢ em Great Expectations [Grandes esperangas| compara.a boca aberta de Wemmick a... 308 guichés de um correio. Stendhal, em O vermelho ¢0 negro, escreve que a politica arruina um romance tal como uin tira de pistola estragaria um concerto musical, erepete a imagem em A curtuxa de Parma, Henry James escreveu que Balzac, em sua devogio monacal 4 arte, era “um beneditino do real”, expres- sto que the agradou tanto que aplicou mais tarde Flaubert, Cormac McCarthy, om Meridiano de sangue, escteve: "As cordilheiras azuis se uniam pelos pés 4 sua imagem mais pslida na areia”, ¢ sete anos depois volta a essa encantadora imagem em Todos os belas cavalos: “Onde um par de garcas se unia pelos pés a suas sombras compridas”. E por que ndo? Essas coisas raramente sio exemplos de pressa, e em geral dio prova de que um estiloalcangou coerGncia interna, Ede que Juma espécie de ideal platdnico foi atingida ~sio.as melhores palavras, portanto insuperivels, para tais temas, menos virgem. Os jovens ainda nio leram literatura suficiente para aprender com ela de que modo lé-la. © Os escritores também podem parecer esses jovens de vinte anos — presos a diferentes niveis de talento visual. Como em todos os departamentos de estética, existem graus de sucesso na obser- vagio. Alguns escritores nao so muito bons em notar, outros sao assombrosamente observadores. E existem inimeros momentos na literatura em que um escritor parece se refrear, guardando um trunfo na reserva: uma observacio comum seguida por um de- talhe admiravel - um fantastico enriquecimento da observagio, como se 0 escritor, antes, estivesse s6 se aquecendo, ea prosa se abrisse de repente como um lirio-amarelo. @ Como saber quando um detalhe parece realmente verdadeiro? O que nos guia? O tedlogo medieval Duns Scotus deu o nome de “estidade” (haecceitas)’ ao processo de individuacio. A ideia foi adotada por Gerard Manley Hopkins, cujas prosa e poesia es- Jo repletas de estidade: 0 “adoravel movimento” [lovely beha- viour] das “nuvens-mantos-de-seda” [silk-sack clouds} (“Sau- dando a safra” [“Hurrahing in Harvest”]), ou a “pereira como de vidro” [glassy peartree] cujas folhas “rogam/o azul, céu abaixo; eo azul se expande num impeto/De pujanga” [brush/The + ‘Thisness, diz James Wood, preferindo-oa evceity ow ipseity. Ficamos, pois, com “estidade” em lugar de hecceidade ou ipseidade, preservande o radical “este” de- finidor do detalhe. [N-7] descending blue; that blue is all in a rush/With richness} (“Prima- vera” |"“Spring”)}.” Afestidade é um bom comeco. Por estidade entendo qualquer detalhe que atrai para sia abs- tragao e parece mati-la com um sopro de tangibilidade; qualquer detalhe que concentra nossa atengio por sua concretut em Coragao das trevas, relembra um homem agonizando a seus pés, com uma langa no estémago, e como “a sensagao de calor e umidade nos meus pés era tamanha que precisei olhar para baixo. [...] meus sapatos estavam enchareados; havia uma poga de san- gue muito parada, cintilando num tom escuro de vermelho bem debaixo do timio”.”* O homem esti deitado de costas, olhando an- sioso para Marlow, “aferrado” a lanca como se ela fosse “um objeto de valor, dando a impressao de temer que eu tentasse roubi-la”. Por estidade eu entendo aquele tipo de tangibilidade que Pachkin comprime nas estrofes de catorze versos de Eugénio Oneguin: a residéncia de Eugénio no campo, por exemplo, que ficou fechada por anos, e cujos guarda-loucas trancados contém licores de fru- tas, “um diario de contas”, um “calendario de 1808” antigo, ¢ cuja mesa de bilhar é equipada com um “velho taco”. Por estidade entendo o exato tipo de verde - “verde Ken que Falstaff jura, em Henrique 1v, parte I, usarem seus agressores: ‘Tradugio dos versos por Alla de Oliveira Gomes. Gerard Manley Hopkins, Poe- ‘mas, Sao Paulo: Companhia das Letras, 1989. [N.E.] ** A imagem foi adotada por Cormac McCarthy em Onde os vethos ni tém vez [2005], no qual as pessoas estio sempre encharcando as botas de sangue-maso sangue delas mesmas, em geral. *** Kendal green: tecido de’ ssperade cor verde quase acinzentada, devido x0 tipo de tingimento feito com 0 chamado pastel-dos-tintureiros, erva corante num tom de axul que, aplicado 4 14 erua, resultava no chamado tom de verde Kendal. O home deriva de Kendal, em Westmorland, localidade outrora famosa pela fabri- agho desse tipo de la. [yt] at tee “Trés safados malditos, de verde Kendal, vieram por tris e me ata- caram”. Hi algo de maravilhosamente absurdo em “verde Ken- dal”; é como se os “safados” emboscados nao s6 pulassem detras dos arbustos, mas estivessem de certa forma vestidos como ar- bustos! E Falstaff esta mentindo. Ele nao viu ninguém vestido de verde Kendal; estava escuro demais. O cémico da especificidade - talvez ja intrinseca no proprio nome — fica ainda redobrado porque é uma invengio posando de especificidade; e Hal, sabendo disso, pressiona Falstaff, reiterando a especificagao ridicula: “Ora, como. @ que pode ver que homens estavam de verde Kendal se estava tao escuro que nio dava para vera propria mio?”. Por estidade entendo o momento em que Emma Bovary acari- cia 0s sapatos de cetim com que dangou semanas antes, no grande baile em La Vaubyessard, “cuja sola amarela-se com a cera desli- zante do assoalho” | Por estidade entendo 0 esterco de vaca em que Ajax escorrega quando esta correndo nos grandes jogos fiinebres, no livro 23 da Iliada (a estidade é usada muitas vezes para rebater ceriménias solenes, como funerais ¢ banquetes destinados, preci- samente, a eufemizar a estidade: ¢ o que Tolstdi chama de exalar mau cheiro na sala de visitas),’ Por estidade entenda o tinico “viés cor de cereja" que 0 alfaiate de Gloucester, no conto de Beatrix Potter de mesmo nome, ainda precisa costurar. (Pouco tempo lendo 0 conto para minha filha, voltou-me de repente, pela primeira vez em 35 anos, pela agio talisminica daquele “viés cor de cereja”, a lembranga de minha mie lendo para mim. Beatrix Potter se refere ao viés [twist] de cetim vermelho costurado como acabamento em volta da casa do botio num casaco elegante, Mas talvez eu achasse a palavra tio magica porque parecia doce: como * Em A morte de Ivan Ilitch; Tolstéi compara falar sobre a morte a exalar mau cheiro numa sala de visitas. uma tranga {tevist] de frutas ou alcacuz ~ termo que os ros ainda usavam naquela época.) © Como estidade é tangibilidadé, ela tende para uma substncia — esterco de vaca, cetim vermelho, a cera do chao de um salao de baile, um calendirio de 1808, sangue numa bota, Mas pode ser um mero nome ou uma anedota; a tangibilidade pode ser apre- sentada em forma de anedotas ou fatos picarescos. Em Um retrato do artista quando jovem, Stephen Dedalus vé que o sr. Casey nio consegue esticar os dedos: “E o sr. Casey lhe tinha dito que ti- nha ficado com aqueles trés dedos duros fazendo um presente de aniversdrio para a rainha Vitéria”. Por que o detalhe de fazer um presente de aniversario para a rainha Vitoria é tao vivido? Co- megamos com a especificidade cémica, a referéncia concreta: se Joyce tivesse escrito apenas: “E o sr. Casey ficou com dedos du- tos fazendo um presente de aniversario", o detalhe seria relativa~ mente insipido, relativamente vago. Se tivesse escrito: “Ele ficou com aqueles trés dedos duros fazendo um presente de aniversario para a tia Mary”, os detalhes seriam mais vividos, mas por qué? A especificidade é, em si, satisfatéria? Penso que sim, e espera- mos essa satisfagio da literatura. Queremos nomes e ntimeros.” E aqui a fonte da comédia e da vivacidade reside num simpitico * Oconto “Odour of Chrysanthemus” [Perfume de crisintemos}, de Lawrence, comes: assim: “A pequena locomotiva, nimero 4, veio retinindo, sacolejando desde Selston - com sete vagies cheios". Ford Madox Ford, que publicouw 0 conta em English Review, em 191t, disse que a exatidio do “niimero 4” e dos “sete” vagbes anunciava a presenca de um verdadeiro esetitor. E comentou: "0. escritor displiceme diria ‘alguns pequenos vagées". Esse homem sabe 0 qué quer, Ele enxerga exatamente a cena de sua historia”, Ver John Worthen, D. H. Lawrence: The Early Years, 885-1912 {1991}. paradoxo entre a expectativa e sua negag3o: a frase traz detalhes insuficientes num lado e detalhes ultraespecificos noutro. E cla- ramente impréprio dizer que o st. Casey ficou com os dedos du- ros para sempre por ter feito “um presente de aniversirio”: que operagao titanica haveria de aleija-lo de tal maneira? Assim, essa vagueza cémica desperta nossa fome de especificidade; e entao Joyce nos alimenta deliberadamente com um detalhe bastante es- pecifico sobre o destinatirio. E satisfatério receber tal informacdo, mas a informacao sobre a rainha Vitoria, posando de especifica, é realmente muito misteriosa, e ¢ flagrante em nao responder a pergunta basica; que presente era aquele? (Estou supondo, e por- tanto nem entro em detalhesa esse respeito, que fazer um presente para a rainha Vitéria — e nao para a tia Mary — é algo intrinseca- mente engracado.) A frase de Joyce, portanto, é formada por dois detalhes misteriosos ~ 0 presente e o destinatario -, sendo que o segundo posa de resposta para o primeiro. O cémico da coisa reside em nosso desejo de estidade no detalhe e na determinagao de Joyce em simplesmente fingir satisfazé-lo. A rainha Vitéria, como 0 ficticio verde Kendal de Falstaff, é apresentada como 0 detalhe que promete iluminar a escuridao ao redor; ou, diriamos, ‘0 fato que promete escorar a ficcio. Ele realmente escora a fiegao, num sentido: sem divida nossa atengao é atraida para a concre- tude. Mas, em outro sentido, ele é engragado porque ou é (comoo verde Kendal) ou parece ser (a rainha Vitoria) mais ficticio do que a ficcdo que o envolye. Confesso certa ambivaléncia em relagao ao detalhe na literatura. Gosto, saboreio, reflito sobre ele. Dificilmente se passa um dia sem que lembre o charuto do sr. Rappaport descrito por Bellow: “O fantasma branco de uma folha, com todas as suas nervuras e seu cheiro, mais leve”. Mas 0 excesso de detalhes me sufoca, ¢ acho que certa tradi¢o claramente pés-flaubertiana os transformou em fetiches: a apreciacdo exageradamente estética do detalhe parece aumentar e modificar um pouco aquela tensao entre autor e per- sonagem que ja analisamos, \Se podemos narrar a historia do romance como o desenvolvi- mento do estilo indireto livre, também podemos narra-la como 0 surgimento do detalhe. £ até dificil dizer por quanto tempo a nar- tativa de ficcao foi escrava dos ideais neoclassicos, que preferiam a formula e a imitagao ao individual e a originalidade.” Natural- mente, nunca é possivel eliminar o detalhe original e individual: Pope, Defoe e até Fielding estao cheios de “mitidos pormenores” [minute particulars}, como dizia Blake. Mas é impossivel imagi- nar um romancista em 1770 dizendo 0 que Flaubert disse a Mau- passant em 1870; “Em tudo hi o inexplorado, porque estamos! acostumados a usar os olhos apenas com a lembranca daquilo que outros pensaram antes de nés sobre o que estamos contem. plando. A minima coisa contém uma ponta de desconhecido”. Eis o que diz J, M. Coetzee sobre Defoe, em seu romance Eliza- beth Costello: * Temos um bom indicador disso em Adam Smith, Lectures on Rhetoricand Belles Lettres [Aulas de revbrica e literatura] [1762-63], em que ele diz que a descrigio poética e retérica deve ser breve, direta, sem se delongar. Mas, continua, “mul- tas vezes & adequado Escolher algum (detalhe] bonito e Curioso. Um Pintor a0 Desenhar uma fruta deixa a figura muito marcante se nio apenas Ihe dé forma ¢ Cor mas também representa.a penuugem fina que 2 recobre”. A recomendacio de Smith é feita com tanto frescor ¢ habilidade ~ como se dissesse: “Nao seria uma boa ideia notara penugem fina de uma fruta?” — que o proprio conceito de detalhe soa como algo novoe moderne. William Blake, Jerusalern: The Emanation of the Giant Albion (1804). [N-E.] Guy de Maupassant, “Le Roman”, preficio a Pierre et Jean (1888) ———— tailleur azul, 0 cabelo oleoso sio detalhes, sinais de um realismo moderado. Fornece os pormenores, permite que os significados aflorem por si mesmos. Proceso inaugurado por Daniel Defoe. Robinson Crusoe, nauftagado na praia, procura em torno os compa- nheiros de navio. Mas nio hé nenhum, “Nunca mais os vi, nem sinal deles”, diz, “a nao ser trés chapéus, um boné e dois sapatos que nao eram parceiros.” Dois sapatos nao parceiros: nao sendo parceiros, os sapatos deixaram de ser calgados, passaram a ser prova da morte, arrancados dos pés dos afogados pelos mares espumosos, e atirados 3 praia. Nenhuma grande palavra, nenhum desespero, apenas cha- péus, boné, sapatos. A expressio “realismo moderado”, de Coetzee, designa uma ma- neira de escrever em que 0 tipo de detalhe a que somos conduzidos ainda nao tem aquela espécie de compromisso extravagante de notar o tempo todo, de apontar a novidade e a estranheza, tipica dos romancistas modernos - um regime setecentista em que 0 culto ao “detalhe” ainda nao estava realmente estabelecido. Podemos ler Dom Quixote, Torn Jones ou os romances de Austen e encontrar pouquissimos daqueles detalhes recomendados por Flaubert, Austen nao nos da nada dos aparatos visuais que encon- tramos em Balzac ou Joyce e quase nunca se detém em descrever sequer o rosto de um personagem. Roupa, clima, interior, tudo estA comprimido e afinado com elegancia. Os personagens se- cundarios em Cervantes, Fielding ¢ Austen sao teatrais, muitas vezes estereotipados, e passam quase desapercebidos no sentido visual. Fielding se d4 por muito satisfeito em descrever dois per- sonagens diferentes em Joseph Andrews com “narizes romanos”. Mas, para Flaubert, Dickens e centenas de romancistas que vieram depois deles, 0 personagem secundirio é uma espécie deliciosa de desafio estilistico: como mostri-lo, como lhe infun- dir vida, como Ihe dar brilho com um pequeno toque? (Como o primo de Dora em David Copperfield, que esta “na Guarda Real, com umas pernas tao compridas que dava a impressio de ser a sombra de uma outra pessoa”.) Eis o olhar de relance que Flau- bert langa a um personagem secundario num baile em Madame Bovary, que depois nao aparece mais: ‘Na outra extremidade da mesa, sozinho entre todas aquelas mulhe- tes, curvado sobre seu prato cheio ¢ com o guardanapo preso is costas como uma crianga, um anciio comia, deixando cair da boca gotas de molho. Tinha os alhos congestionados ¢ trazia os cabelos presos na nuca por uma fita preta. Era 0 sogro do marqués, o velho duque de Laverdiére, o antigo favorito do conde de Artoisao tempo das cagadas em Vaudreuil, na residéncia do marqués de Confians e que fora, dizia- se, amante de Maria Antonieta entre os srs. de Coigny e de Lauzun. Levara uma ruidosa vida de dissipagio, cheia de duelos, de apostas, de mulheres raptadas, devorara sua fortuna eassustara toda a familia, Como ocorre tantas vezes, a heranga flaubertiana é uma béngio ambigua, Surgem de novo aquele estranho peso da “seletividade” que sentimos nos detalhes de Flaubert e a consequéncia dessa se- letividade para os personagens do romancista ~ nossa sensaco de que a escolha do detalhe se tornou o tormento obsessive de um poeta, e nao a leve alegria de um romancista. (O fl@neur - 0 herdi que é e nao é escritor - resolve o problema, ou pelo menos tenta. Mas, no exemplo anterior, Flaubert nao dispde de nenhum substituto adequado, porque seu substituto é Emma: de modo que aqui é o romancista, puro e simples, olhando.) Eis Rilke, em Os cadernos de Malte Laurids Brigge, torturadamente exato sobre um_cego que ele vé na rua: Executava a tarefa de configuré-lo, transpirava com o esforgo |...] per- cebia jé entio que nada nele era secundirio [...] nem em especial ocha- péu, um velho e hirto chapéu de feltro de copa alta, que usava como todos os cegos usam seus chapéus: sem relagio com as partes do rosto, sem possibilidade de formar, com esse objeto suplementar ¢ consigo mesmo, uma nova unidade exterior: apenas um objeto estranho e convencional,” Impossivel imaginar um escritor antes de Flaubert entregando-se aesse teatro (“tranpirava com o esforco”)! O que Rilke diz sobre o cego é uma projegao pessoal de suas préprias e suadas ansiedades literarias a respeito dele: quando nenhum detalhe literario é se- cundirio, talvez de fato nenhum deles venha a conseguir “formar uma nova unidade exterior” e seja “apenas um objeto estranho e convencional”. Em Flaubert e seus sucessores, temos a sensacao de que o ideal literario é uma sequéncia de detalhes encadeados, um colar de in- formacées; ¢ isso, nio raro, em vez de ajudar, atrapalhaa visio. ® Assim, durante 0 século xrx, 0 romance se tornou mais pictorico. Em A pele de onagro, Balzac descreve uma toalha de mesa “alva como uma camada de neve recentemente caida e na qual se er- guiam simetricamente os talheres coroados de piezinhos louros’ Cézanne disse que durante toda sua juventude “quis pintar isso, * — Rainer Maria Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Brigge [1910], essa toalha de neve fresca”.” Nabokov e Updike as vezes o detalhe num culto a ele. Nesse caso, 0 grande perigo é 0 este- ticismo, e também a exacerbagao do olho empenhado em notar, (Existem muitos detalhes na vida que nio sio apenas visuais.) O Nabokov que escreve sobre “uma florista idosa, com sobrance- thas de carvao e sorriso pintado, [que] deslizou agilmente o tilamo arredondado de um cravo na casa de um botio de um passante in- terceptado, cujo maxilar esquerdo acentuou sua linha majestosa quando ele deitou um olhar obliquo 4 timida insergao da flor”, torna-se o Updike que desta maneira nota a chuva numa janela: “Suas vidracas estavam espargidas de gotas que, como numa deci- sao amebiana, com brusquidao se fundiam, se rompiam € escor- tiam espasmodicamente, ea tela da janela, como uma amostra de bordado com alguns pontos dades ou um jogo de palavras cruza- das resolvido por mio invisivel, estava irregularmente marche- tada com mosaicos mitidos e transhicidos de chuva”."" £ significa- tivo que Updike compare a tela molhada de chuva a um jogo de palavras cruzadas: os dois autores, nesse modo de operagao, pare- em nos apresentar um quebra-cabeca. Bellow € soberbo em observar; mas Nabokov quer nos dizer como observar é importante. A ficgdo de Nabokov sempre se con- verte em propaganda a favor do bem observar, portanto a favor de si mesma, Existem belezas que nada tém de visual, e Nabokov tem vista fraca para elas. De que outra maneira explicar seu desdém por Citado em Maurice Merleau-Ponty, “Le Doute de Cézanne”, in Senset non-sens [1948] [ed.bras.:“A diivida de Cézanne”, in O olho eo espirito, trad. Paulo Neves © Maria Ermantina Galvao. S30 Paulo: Cosac Naify, 2004]. Viadimir Nabokov, “First Love"|Primeiro Amor| [1948], ¢ John Updike, On the Farm Sobre a fazenda| [t96t]. E podemos notar como David Foster Wallace também deriva dessa tradigao, mesmo que apresente de maneira comica ou ird- nica .o grau de detalhamento obsessivo que Lipdike usa com mais seriedade. Mann, Camus, Faulkner, Stendhal, James? Ele os critica especial- mente por nio ter suficiente estilo e atengio visual. A linha de com- bate fica clara numa de suas cartas ao critico Edmund Wilson, que tentava convencé-lo a ler Henry James. Por fim Nabokov deu uma espiada em The Aspern Papers [Os papéis de Aspern], mas respon- deua Wilson que James era desleixado nos detalhes. Quando James descreve um charuto aceso, visto pelo lado de fora de uma janela, ele fala em “ponta vermelha”. Mas os charutos nao tém ponta, diz Nabokov, James nao estava olhando direito. Segue em frente e com- paraa escrita de James 4 “prosa loira aguada” de Turguéniev.’ De novo um charuto! Sao duas abordagens diferentes da cria~ a0 do detalhe. James, imagino, responderia que em primeiro lu- gar os charutos tém ponta, sim, senhor, e que em segundo nao ha necessidade, a cada vez que alguém descreve um charuto, de ter esse trabalho bellowiano ou nabokoviano sobre ele. £ facil refutar que James era incapaz ~ 0 implicito na reclamagao de Nabokov — de ter esse trabalho. Mas James certamente nao é um escritor na~ bokoviano; sua nogao do que vem a ser um detalhe é mais variada, mais impalpavel e por fim mais metafisica do que a de Nabokov. James provavelmente diria que devemos tentar ser o tipo de es~ critor que nio perde nada, mas que nao precisamos ser do tipo em que se encontra de tudo. Existe um gosto moderno convencional pelo detalhe discreto, mas “expressivo”: “O detetive notou que a faixa de cabelo de Carla estava surpreendentemente suja”. Se existe algo que possa ser um detalhe expressivo, entao deve existir algo que possa ser um * Simon Karlinsky [org], The Nabokou-Wilson Letters {1979)- detalhe inexpressivo, n3o 6 mesmo? Creio que seria melhor uma distingao entre o detalhe “na reserva” eo detalhe “na ativa”; o de- talhe na reserva faz parte do exército efetivo da vida, por assim di- zer— esta sempre pronto a atender a uma convocagao. A literatura esta cheia desses detalhes na reserva (um exemplo seria a ponta vermelha do charuto de James). Mas sera quea “reserva” ea “ativa” no sio apenas outras pala- vras para o mesmo problema? Sera que o detalhe na reserva nao 6, no fundo, um detalhe nao tao expressivo quanto seus camaradas na ativa? O realismo oitocentista, desde Balzac, cria tal abundan- cia de detalhes que o leitor moderno espera que a narrativa sem- pre tenha certa superfluidade, uma redundancia intrinseca, que ela traga mais detathes do que o necessério, Em outras palavras, a literatura embute em si uma quantidade excessiva de detalhes, tal como a vida esta repleta de detalhes excessivos. Suponham que eu descrevesse a cabeca de um homem assim: “Ele tinha uma pele muito vermelha, e os olhos eram injetados de sangue; 0 cenho parecia zangado. Tinha uma pequena verruga no labio superior”. A pele vermelha, os olhos injetados e o ar zangado nos dizem, tal- vez, algo sobre o temperamento do homem, masa verruga parece “irrelevance”. S6 esta “ali”; éreal, é exatamente“comoele parecia”. ® Mas essa camada de detalhes gratuitos parece mesmo verossimil ou ¢s6 um truque? Em seu ensaio “O efeito de real”,’ Roland Barthes argumenta basicamente que o detalhe “irrelevante” é um cédigo que nio notamos mais, e que tem pouco a ver com a vida tal como ela 6) Barthes examina uma passagem do historiador Jules Michelet * Orumorda lingua (1984: trad. Mario Laranjeita. Si0 Paulo: Martins Fontes, 2004]. que descreve as tiltimas horas de Charlotte Corday na prisio. Um artista vai visit4-la e pinta seu retrato, e entao, “depois deuma hora emeia, ouviu-se uma leve batida numa portinha atras dela”. Barthes passa para a descrigao do quarto da sra. Aubain, em “Um coragio simples”, de Flaubert: “Rente ao lambril, pintado de branco, alinha- vam-se oito cadeiras de mogno. Um velho piano sustentava, logo abaixo de um barémetzo, uma pilha piramidal de caixas ¢ cartes”. O piano, diz Barthes, esta ali para sugerir uma condigio social bur- guesa, as caixas e cartdes talvez para sugerir desordem. Mas por que h4 um barémetro? O barémetro nao denota nada; nao é um objeto “incongruente nem significativo” Sua fungio é denotar a realidade, ele esta ali para criar o efeito, a at- mosfera de realidade. Ele simplesmente diz: “Sou o real”. (Ou, se vocés preferirem: “Sou realismo”.) aparentemente “irrelevante”. (Um objeto como o barémetro, prossegue Barthes, supostamente denota o real, mas na verdade o que ele faz ¢ significi-lo/ Na passa- gem de Michelet, o pequeno “recheio” da batida a porta é 0 tipo de coisa “inclufda” no texto para criar 0 “efeito” realista da passagem do tempo.{{sso sugere que o realismo em geral nao passa de uma questao de falsa denotaga \O barémetro pode ser trocado por cen- tenas de outros objetos; o realismo é um tecido artificial de meros signos arbitrarios. O realismo oferece uma aparéncia de realidade, mas é de fato totalmente falso - 0 que Barthes chama de “a ilusao referencial”, Em Mitologias, Barthes apontou espirituosamente que aque- les cortes de cabelo com cachinhos na testa, usados pelos atores dos filmes “romanos” de Hollywood, significam a “romanidade” da mesma maneira que o barémetro de Flaubert significa a “reali- dade”, Nenhum dos casos denota nada efetivamente real, Sio me- ras convencoes estilisticas, tal como a boca de sino ou a minissaia tém significado apenas como parte de um sistema estabelecica pela o —. pr6pria industria da moda. Os cédigos da moda sio inteiramente arbitrarios.. Para ele, a literatura 6 semelhante i moda, porque os dois sistemas nos levam a ler o significante, ¢ nao o significado das coisas.) @ Mas Barthes é rapido demais em decidir qual detalhe é relevante equal detalhe é irrelevante, Por que o barémetro é irrelevante? Se o bardmetro aparece apenas para proclamar arbitrariamente oreal, Por que também nao o piano e as caixas? Como diz A. D. Nuttall em A New Mimesis [Uma nova mimese], 0 que o barémetro diz nao é tanto “sou o real”, ¢ sim “nao sou exatamente o tipo de coisa que vocé encontraria numa casa dessas?”, Ele nio é incongruente nem muito significativo, justamente por ser tipico e insipido. Existem intimeras casas que ainda possuem barémetros assim, ¢ de fato eles nos revelam algo sobre o tipo de casaem que estado: de classe média, ¢ nao alta; uma espécie de convencionalismo; uma devocao antiquada, talvez, a objetos de segunda categoria her- dados de algum parente tradicional; e o barémetro nunca fun- ciona direito, certo? O que isso nos diz? Na Inglaterra, claro, sio instrumentos especialmente cémicos, pois o tempo é sempre 0. mesmo: nublado e um pouco chuvoso. Jamais seria preciso um bar6metro. Na verdade, podemos dizer que os barémetros sio excelentes barémetros de certa condicio de classe média: os ba- rometros sao excelentes barémetros deles mesmos! (Entao é as- sim que eles funcionam.) Em todo caso, podemos aceitar a ressalva estilistica de Barthes sem aceitar sua adverténcia epistemoldgica: a realidade literaria é * Sistema da moda (1967: trad. Ivone C. Benedetti. S30 Paulo: Martins Fontes, 2009), formada mesmo por esses “efeitos”, mas 0 realismo pode ser um efeito ec, ainda assim, ser verdadeiro,B apenas a aversao ferozmente suscetivel de Barthes ao realismo que insiste nessa falsa divisio. No ensaio “Um enforcamento”, Orwell observa o condenado que se dirige ao cadafalso desviar-se de uma poca d’agua, Para Orwell, isso representa exatamente o que ele chama de “mistério” da vida que esta para ser eliminada: mesmo sem nenhuma boa tazao para isso, 0 condenado ainda se preocupa em nao sujar os sapatos. E um gesto “irrelevante” (e um exemplo maravilhoso do cuidado de Orwell em noti-lo)/ Agora, imaginem que esse texto nao seja um ensaio, ¢ sim uma obra literiria. Com efeito, especulou-se muito sobre a proporgio entre fato e ficgio nos ensaios de Orwell) Evi- tar a poca d’agua seria o tipo exato de detalhe soberbo que, diga~ mos, Tolstéi poderia criar; Guerra e paz traz uma cena de execugio num espirito muito préximo ao do ensaio de Orwell, e pode bem ser que Orwell tenha extraido o detalhe de Tolst6i. Em Guerra e paz, Pierre presencia a execucio de um homem pelos franceses e nota que, logo antes de morrer, ele ajusta na nuca a venda que o machueava.” Evitar a poga, ajeitar a venda - so 0 que poderiamos considerar detalhes irrelevantes ou supérfluos. Nao tém explica~ ¢0; existem na literatura para denotar exatamente o inexplicivel.) Esse 6 um dos “efeitos” de real, de estilo “realista”. Mas 0 ensaio de Orwell, supondo que registre um fato veridico, mostra que es~ ses efeitos liter4rios nao sao apenas convencionalmente irrelevan~ tes ou formalmente arbitrarios, mas tém algo a nos dizer sobre a irrelevancia da prépria realidade, Em outras palavras, a categoria Liev Tolstbi, Guerra e paz, tomo quatro, primeira parte, capitulo 1 do irrelevante ou inexplicavel existe na vida, assim como 0 baré- metro, com toda a sua inutilidade, existe em casas reais. Nao havia razio légica para o condenado evitar a poca. Era um simples habito. A vida, entio, sempre encerra um excedente inevitavel, uma mar- gem de gratuidade, um campo em que sempre ha mais do que pre- cisamos: mais coisas, mais impressdes, mais lembrangas, mais ha- bitos, mais palavras, mais felicidade, mais infelicidade. ® O barémetro, a poga, a venda ajustada nao sio “irrelevantes”; sio significativamente insignificantes. Em “A dama do cachorrinho”, um casal vai para a cama. Depois do sexo, o homem come calma- mente um pedago de melancia: “No quarto, havia uma melancia sobre a mesa, Gurov cortou um pedaco e comegou a comé-lo, sem se apressar. Decorreu pelo menos meia hora em siléncio”. £ s6 0 que escreve Tehekhov. Ele podia ter feito assim: “Passou-se meia hora. La fora um cachorro comegou a latir, ¢ algumas criangas des- ceram arua correndo. O gerente do hotel gritou alguma coisa, Uma porta bateu”. Esses detalhes, naturalmente, podem ser trocados por outros detalhes parecidos; nao tm nenhuma importancia cru- cial, Estariam ali para nos dar impressio de que aquilo é igual 4 vida. © significado deles reside justamente em sua insignificineia. E, ¢omo no trecho de Michelet sobre o qual Barthes alimenta tantas desconfiangas, uma das razées bvias para o uso cada vez maior do alhe significativamente insignificant é que ele é necessirio para "ara passagem do tempo, ea ficgio tem um Pprojeto novo e ex- slunivo na literatura: 0 manejo da temporalidade, Nas narrativas an- iga8, por exemplo, como as Vidas de Plutarco ou as historias da Bi- ¢ muito dificil encontrar detalhes gratuitos. Em geral, o detalhe icional ou simbélico. Da mesma forma, os antigos narradores pau parecem nao sentir nenhuma pressio para evocar uma passagem verossimil do “tempo real” (os trinta minutos de Tchekhov). O tempo passa de maneira convulsiva, rapida: “Abraio se levantou cedo, selou seu jumento e tomou consigo dois de seus servos e seu filho Isaac, Ele rachou a lenha do holocausto e se pds a caminho para o lugar que Deus hayia indicado, No terceiro dia, Abraio, le- vantando os olhos, viu de longe o lugar”. O tempo transcorre entre 08 versos, invisivel, inaudivel, sem nunca aparecer na pagina. Cada “e” ou “entio” faz com que a agao avance como naqueles antigos relégios de estagao, em que o ponteiro grande pula de repente em cada minuto. Vimos que o método flaubertiano de diferentes temporalida- des exige uma combinagao de detalhes, alguns relevantes, outros estudadamente irrelevantes. “Estudadamente irrelevantes”: admi- timos que nao existe detalhe irrelevante na literatura, nem mesmo. no realismo, que costuma usar os detalhes como uma espécie de recheio, para que a verossimilhanga pareca simpatica e acolhe- dora. Deixamos as luzes de casa ou do quarto de hotel acesas 4 toa quando nio estamos, nao para provar que existimos, mas porque a propria margem de excedente parece vida; parece, de um jeito ® Em “Os mortos”, Joyce escreve que Gabriel era o sobrinho favorito curioso, com estar vivo. das tias idosas: “Ele era o sobrinho favorito delas, o filho da irma mais velha morta, Ellen, que tinha se casado com T. J, Conroy, do Porto e Docas”. O trecho, de inicio, nao parece grande coisa; talvex * — Aseitagdes biblicas foram extraidas de A Biblia de Jerusalém, Sio Paulo; Paulas, 2002_[N.E] 0 leitor precise conhecer certo tipo de esnobismo pequeno-bur- gués para poder aprecii-lo. Mas quanto isso nos diz, em meia dé- zia de palavras, sobre as duas iris! £ o tipo de detalhe que acelera nosso conhecimento de um personagem: um estado de espirito, um gesto, uma palavra avulsa; Faz parte da compreensio humana e moral ~(o detalhe no como estidade, mas como conhecimento?, Joyce mergulha no estilo indireto livre ji no comeco da frase, para entrar no espirito coletivo das velhas senhoras respeitaveis © esnobes, que so “flagradas” pensando na posigao social do cunhado. Imaginem se a frase fosse: “Ele era o sobrinho favorito delas, o agradavel filho de Ellen e Tom”. Nio nos. diria nada sobre as irmis. Mas 0 ponto de Joyce é que, no espirito delas, em sua voz interior, elas ainda pensam no cunhado nao como “Tom",e sim como “T. J. Conroy, do Porto e Docas”. Elas tm orgulho da po- sigao dele, da presenca dele no mundo, e se sentem até um pouco intimidadas com isso. E aquele aforismitico “do Porto e Docas” funciona como o presente de aniversirio Pparaa rainha Vitéria: nao sabemos 0 que T. J. Conroy fazia no Porto ¢ Docas, ¢ é tremenda- mente dificil imaginar quio magnifico um emprego no Porto e Docas poderia ser. (Esse é 0 comico da situagdo.) Mas Joyce - traba- lhando de modo exatamente contrario ao de Updike na passagem de Terrorista - sabe que, se nos dissesse alguma coisa a mais sobre © Porto e Docas, estragaria a veracidade psicolégica: este emprego significa algo importante para estas mulheres, Eo que basta saber. Essa subita apreensio de uma verdade humana central, esse _ momento em que um dnico detalhe nos permite ver de chofre o Pensamento (ou a falta de pensamento) de um personagem, pode um ramo do estilo indireto livre, como no exemplo anterior. nao necessariamente: pode ser a observagio “externa” do au- Sobre 0 personagem (embora acelere nossa penetragio interna, ). H4 um momente assim em Radetzkymarsch [A marcha de Radetzky], quando o velho capitio visita o criado moribundo, que esti na cama, eo criado tenta bater os calcanhares nus sob o lengol... Ou em Os deménios, quando o governador Von Lembke, fraco ¢ orgulhoso, perde o controle, Gritando com algumas pessoas em sua sala de visitas, ele sai marchando ¢ escorrega no tapete. Recom- pondo-se, olha para o tapete e brada de modo ridiculo: “Trocar!”, se retira,., Ou quando Charles Boyary volta com Emma do grande baile em La Vaubyessard, que tanto a encantara, esfrega as mios e diz: “Como é agradavel estar de novo em casa”... Qu quando Frédéric, em A educacdo sentimental, leva a amante humilde a Fontainebleau. Ela esta entediada, mas sabe que Frédéric se sente frustrado com sua ignorincia. Assim, numa das galerias, ela olha para os quadros ao redor e, tentando dizer algo inteligente e mar- cante, simplesmente exclama; “Como isso traz recordagées!”... Ou quando, depois do divércio, o marido de Anna Kariénina, o fun- cionario piblico rigido e apitico, sai se apresentando com a frase: “Vocé esti a par de minha dor?”. ® Esses detalhes nos ajudam a “conhecer” Kariénin, Bovary ou a amante de Frédéric, mas também apresentam um mistério. Anos atras, fui com minha mulher a um concerto da violinista Nadja Salerno-Sonnenberg. Numa passagem com um movimento de arco muito calmo e dificil, ela franziu o cenho, Longe de ser 0 es- gar usual de éxtase do virtuose, exprimia uma irritacao sabita. No mesmo instante, inventamos interpretagdes totalmente diversas. Depois Claire me disse: “Ela franziu o cenho porque nio estava tocando direito aquele trecho”. E eu respondi: “Nao, ela franziu o cenho porque o piblico estava fazendo muito barulho”. Um bom romancista teria deixado aquele franzir em paz e também teria ae adn olf? nai , feyonkes ° Jo? \ epg deixado nossos comentarios em paz: nio 6 preciso encher essa pe- : quena cena de explicages, Zz \Detalhes assim — que penetram num personagem, mas 3 se Tecusam a explici-lo ~ nos fazem tao escritores quanto leitores; somos uma espécie de coadjuvantes na criagio do personagem.. Temos uma ideia do que se passa no espirito de Von Lembke quando ele grita “Trocar!”, mas existem varias leituras possiveis; temos uma ideia da falta de traquejo de Rosanette, mas nao sabe- mos exatamente 0 que ela quer dizer quando declara “Como isso traz recordagées!”. Esses personagens, de certa forma, sio muito reservados, mesmo quando se expoem sem artificios. “A dama do cachorrinho” é quase todo composto de detalhes ? que nao se explicam, ¢ isso se ajusta 4 hist6ria, pois se trata de um caso de amor que traz uma felicidade enorme e um tanto inexpli- cavel aos amantes, Um homem casado ~ e sedutor consumado - encontra uma mulher casada em [alta; vao paraa cama. Por que se passam pelo menos trinta minutos em siléncio, enquanto Gurov come sua melancia? Varias razdes nos vérn a mente: e preenche- mos esse siléncio com nossas razdes. Mais tarde, o sedutor con- fiante se di conta, de uma maneira que nao consegue exprimir, de que aquela mulher comum de uma cidade pequena significa mais para ele do que qualquer outra pessoa que ja amou na vida. Ele vai de Moscou até a cidade dela, no interior, e os dois se encontram no teatro local. A orquestra, escreve Tehekhov, leva um longo tempo para afar. (De novo nao se oferece nenhum comentirio: estamos livres para supor que as orquestras provincianas n3o tém muita experiéncia,) Os amantes se agarram porum momento nas escadas, fora do auditério. Acima, dois estudantes os observam, fumando. Seri que os meninos sabem o drama que se passa logo tbaixo? Sio indiferentes? Os amantes se incomodam com o olhar ‘dos colegiais? Tehekhoy nio diz, —— A perfeicao do detalhe tem a ver com a simetria: dois clandes- tinos encontraram dois outros clandestinos, e ambos os pares nao tém nada a ver um como outro. Um escritor inglés tchekhoviano, o modernista Henry Green, gosta de interpolar comentarios divertidos e deleita-se em deso- rientar o leitor. Seu romance Caught [Capturado] (1943) se passa durante a Blitz de Londres, e trata do Servigo Auxiliar de Bom- beiros, a brigada composta por civis que, na época da guerra, por diversas razoes, nao haviam sido recrutados para o combate. A brigada é bastante incompetente; um dia, chamada para socorrer um incéndio doméstico, consegue entrar na casa errada—a vizinha da que esta se incendiando. No dia seguinte, 0 oficial do distrito “No numero 15, quando Trant saiu do alojamento, sua mulher prome: (um bombeiro profissional), chamado Trant, lembra 0 fiasco: tou que faria uma torta de carne de porco para o jantar. Isso 0 fez lembrar do suboficial que tinha sido alvo de risadas no dia ante- rior, correndo feito uma galinha degolada, com os auxiliares dele feito um bando de gansos tontos”. Bom, por que a torta de carne de porco “lembrou Trant” do epis6dio anterior? Green nao sente a menor necessidade de nos dizer. O maximo que podemos fazer ésupor que Trant pensa algo do género: “torta de carne de porco. , . porco morto... quintal do sitio... galinhas correm depois de mor- tas... aquela maldita confusao de ontem quando meu pessoal fi- cou correndo feito galinha degolada”. Mas 0 que é drduo quando escrito dessa maneira joyceana é brilhantemente vago quando condensado no trecho breve e lacdnico do estilo indireto livre de Green. Parece muito proximo da maneira como nossa cabega funciona. Mas talvez a cabeca de Trant nao funcionasse assim. Talvez tenha pensado: “torta de carne de porco... maldita confusio de ontem...como uma galinha degolada” — nessa ordem? Personagem { O engragado foi quando wn académico americano, falou de Beckett; "Ele nao esta nem ai para as pessoas. Eleé um artista’ Af Beckett levantou a voz no meio do. alvorocodo cha da tarde eeritou: "Mas eume importo cont as pessoas! Eu me importa!” James e Elizabeth Knawlson (args.), Beckett Remembering: Remembering Beckett, 2006, ® O mais dificil é a criagio do personagem de ficcao. Digo isso de- vido ao ntimero de romances de escritores novatos que comegam com descrigdes que parecem fotografias. Vocés conhecem 0 es- tilo: “Minha mie aperta os olhos sob a luz forte do sol e, por al- gum motivo, segura um faisdo morto. Esta com botas antigas de amarrar e lavas brancas. Tem um ar absolutamente infeliz. Meu pai, porém, esta 4 vontade, extrovertido como sempre, vestindo aquele chapéu de veludo cinza de Praga do qual lembro tio bem de minha infancia”.|O romancista inexperiente se prende ao es- tatico, porque é muito mais facil de descrever do que o mével: 0 dificil é tirar as pessoas desse amalgama estagnado e movimenti- las numa cena. Quando deparo uma écfrase extensa como a da pa- rédia acima, me preocupo, imaginando 0 romancista agarrado a um corrimao, com medo de se soltar. \ Mas como se soltar? Como dar vida ao retrato imével? Ford Ma- dox Ford, em seu livro Joseph Conrad: A Personal Remembrance [Joseph Conrad: Uma lembranga pessoal], aborda maravilhosa- mente bem a questao de colocar um personagem para funcionar — €0 que ele chama de “engatar um personagem”. Ford diz que Conrad “nunca acreditava que tinha realmente conseguido enga- tar seus personagens; nunca se convencia de que o leitor se con- venceria, e isso explica por que alguns livros seus sio tao longos”. Gosto desta ideia: de que alguns romances de Conrad sao longos porque ele nao parava de mexer e remexer, pagina apés pagina, na verossimilhanca de seus personagens — isso sugere o contorno de um romance infinito. Pelo menos 0 aflito escritor iniciante ficaem Erno . boa companhia. Ford ¢ Conrad adoravam uma frase do conto “La Reine Hortense”, de Maupassant: “Era um cavalheiro de suicas ruivas que passava pela porta sempre na frente dos outros”, Ford comenta: “Esse cavalheiro esti tao bem engatado que nao precisa- mos de mais nadaa respeito dele para entender como vai agir. Ele ‘engatow’ ¢ j4 pode entrar em acio”. Ford tem razio. Bastam pouquissimas pinceladas para, digamos, dar vida a um retrato; e - como corolario disso ~ 0 leitor pode cap- tar personagens mitidos, efémeros e mesmo planos tao bem quanto herdis ¢ heroinas grandiosos, redondos ¢ elevados, Para mim, Gu- rov, oadiiltero de “A dama do cachorrinho”, é tao vivido, rico e s6- lido quanto Gatsby, o Hurstwood de Dreiser ou mesmo Jane Eyre. Vamos pensar nisso por um momento, Um estranho entra numa sala, De que forma comecamos a avalia-lo? Olhamos 0 rosto, as roupas, claro. Ele é, digamos, de meia-idade, ainda bonito, mas esta ficando careca - tem um espago liso no alto da cabega, con- tornado por um cabelo aparado que parece um daqueles circulos ingleses, meio sem cor. Algo em seu porte sugere um homem que espera ser notado; por outro lado, nos primeiros minutos ele passa tantas vezesa mao na cabega que se pode desconfiar que nao se sente muito A vontade com a perda do cabelo. Esse homem, vamos supor, é engragado, porque a metade de cima é caprichada - uma camisa elegante e bem passada, um bom paleté - e a metade de baixo é desleixada: calgas manchadas eamassadas, sapatos velhos sem engraxar, Sera que ele espera, en- to, que as pessoas 56 notem a parte superior? Sera que isso in- dica certa confianga em sua habilidade de prender a atencao das pessoas? (Manté-las olhando para o seu rosto.) Ou serd quea vida

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