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“Meatioo iauareté’,o texto de Guimaries Rosa, marca,como vimos, um umbral hist6rico de certa imaginagdio do selvagem: © animal traca ali um espaco liminar, interior-exterior a ex- ansao territorial do capital edo Estado-nacio, ea consequen- tesujeigdo de terras ecorposa uma norma disciplinar. Alianga ‘humano animal eingua menor sio os dois focos de resistencia: sair da humanidade normalizada para o capital e a nacio, ¢ trabalhara lingua maior ecolonial para imaginar outras ordens de corpos esses sao 0s gestos de que € feito este avatar do sel- vagem - talvez.o iltimo ~ na literatura sul-americana. Mas, a0 mesmo tempo que esta configuracdose encerra, 0 ‘animal salta de registro e comega a aparecer sobre um novo ixo:o de uma interiorizago, um dentro que demarcano- vos horizontes do corporal, do proprio, do bios. O animal, em. lugar de funcionar como limite exterior da ordem social edo Universo do humano, transforma se no indice de uma interio- (O animal em comum: Clarice Lispector ridade: ele se tornara intimo, doméstico, emergiré dos confins do proprio e da propriedade,e tragard dali novas coordenadas de alteridade e novos horizontes de interrogacdo, O animal se toma vértice de um dentro insondavel, uma linha desombra que emerge nao de fora do selvagem, da natureza, do confim do Outro, mas das pulsoes, das forgas, da materialidade mes- ‘ma que compée isso que chamamios “meu corpo” equese exi- be, de modios cada vez mais insistentes, sob a luz de uma vida alheia, éxtima, opaca para nossas linguagense nossos universos de significagao, Nessa borda do sentido, ou talvez melhor, nes- sa insisténcia do nonsense, comega a aparecer um novo relevo do animal; deste novo lugar 0 animal se reinscreve como matéria estética e politica. A escrita de Lispector,especialmen- tea partir de A paixdo segundo GH, de 1964,' dé testemunho desta reconfiguracao. Uma barata irrompe, como serecordare, no apartamento da narradora, no Rio de Janeiro: uma invasao cotidiana, trivial, no mundo doméstico, que € 0 espago da intimidade e também da propriedade. Trata-se, enfim, da casa de uma mulher burguesa, uma casa quea projeta ea reafirma: ‘ouniverso do proprio. Este 60 novo cenirio para a vida animal: ‘um novo espagamento do qual a literatura tem de dar conta? Esse espaco proprio se vé assediado nao s6 pela presenga de qualquer modo cotidiana, em principio insignificante -de ‘uma barata, mas por outra presenga que a antecede © que 100 FoRMAS coMUNS também aparece sob o signo da invasio ~a de Janair, aempre- gada doméstica que trabalha para GH, a protagonista, Janair 6 “a estrangeira, a inimiga indiferente” que esta “dentro da ‘minha casa", “a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomara consciéncia’: sua presenga na casa sempre teve lugar, para a narradora, sob o signo de uma hostilidade sufo- cada; uma personagem sem individualidade, feita de uma distancia racial (é mulata) e de classe insuperavel que a separa da dona; mais que um individuo ou uma subjetividade, Janair ‘demarca os limites do mundo da narradora, limites feitos de aca ede classe. Nao hé simpatia, comunidade, lagocom Janair: ‘la preserva sua distancia e o antagonismo sufocado que a sustenta. Aqui, a casa, a propriedade e 0 proprio estdo assedia- dos, entdo, por esses antagonismos politicos que passam pela hhierarquia de classe e racial. Esse circuito-o limite, oumelhor, as fronteiras e a cartografia que posicionam 0s corpos num campo social atravessado por tensdes, desigualdades e linhas de dominagao -€ o que aqui se interioriza: quer dizer, leem- se, fazem-se legiveis no interior da casa propria. E sobre 0, fundo ou o antecedente desses antagonismos que o animal se {ard visivel na casa da narradora. A historia € conhecida: Janair decide um dia, sem maior aviso, partir; no entanto, antes de ir embora, desenha uma gra- vvura na parede, onde traca 0s contornos de trés corpos, um fe- (© animal em comum: Clarice Lispector 102 minino, outro masculino, ¢ 0 terceiro um co. Esta inscrigdo ~ “uma escrita” -transtorna a ordem do apartamento; torna inreconhecivel ¢ radicalmente alheio o quarto da doméstica: tum ponto de deslocamento; nesse quarto aparecerd a barata, Aqui j nao estamos no sertdo, na selva, nessa fronteira que assediava 0 progresso civilizatorio das nagbes estamos no lar, na casa propria, na cidade eno quarto de servigo de onde se ge- re se administraa Vida didria: no oikos Ali irrompea emprega- dda - uma figura, como diziamos antes, sem relevo individual, cujo contorno slo os antagonismos de classe e raga, e depois, em sucessdo, o animal, Janair e a barata se Jem assim em se- quéncia e em contiguidade; Janair 6, poderiamos dizer, a mu- Iher-barata (como a mulher-aranha de Puig) que irrompe na ordem domesticada de uma narradora explicitamenteestereo- tipica que diz chamar-se “G.H, género humano. Entre a nar- radora e a dupla Janair-barata se poe em jogo a diferenciagio entre essa narradora e seu corpo transparente para o “genero humano” (quer dizer, para a espécie), uma figura que realiza ‘uma humanidade reconhecivel, em contraste com esses outros compos que inscrevem as fronteiras de menos que humano e do inumano: a raca, a classe, o animal, O texto poe em jogo, assim, uma retérica das mareasbiopoliticas dos corposa mulher humana antea proletéria, a mulata, esses corpos que se faze visiveis em sua contiguidade com o animal. £ essa contiguida-" de,evidentemente, o que o texto de Lispector poe em cena co- ‘mo campo de batalhas formais e politicas em torno do viven- te e suas inscrig6es biopoliticas: em torno dessa contiguidade ‘entre corpos marcados pelo género, pela raca, pela classe e pelo corpo animal, o texto trabalharé modos de corporizagao epistemologias alternativas. A narradora, como se recordar, entra no quarto da em- pregada para “arrumar’: para por a ordem no mundo domés- tico, Sem saber de onde vem -se do interior abismal da casa ‘ow de um fora que mudou de dimensao,o animal aparece nes- seuniverso do doméstico e da economia da vida cotidiana:esse seu horizonte de visibilidade. ‘O que estd em jogo aqui? Essa contiguidade entre Janair e barata, entre raca e espécie, poderia fazer-nos pensar que esta- ‘mos no que Ernest Haeckel chamou “maquina antropogenica” ‘e que Agamben comenta em L/aperto(2002).0 mecanismo bio- politico pelo qual o humano é separado, desagregado de seus outros, pelo qual a figura intermédia, entre humanoe animal, que é Janair - 0 corpo marcado pela raga, pela classe, pelo gé- nero, pela soma de alteridades - expe sua contiguidade com a vida animal. A casa, o mundo doméstico, pareceria encenar aqui essa operagao. No entanto, em A paixda...sucede 0 con- trario - ou melhor, este terreno se vira do avesso? Ele enlaga ‘esses corpos marcados por hierarquias biopoliticas ~classe, raga, animal em comum: larice Lispector 103 104 espécie -€ 05 revira sob 0 signo de um continuum que altera o ordenamento hierdrquico de corpos. Humano e animal nao se lem em termos antropogénicos, mas, ao contrario, como antievolugao, nao regressiva ou inversa, mas acumulativa, que justapoe temporalidades ¢ trabalha um presente nao teleol6- ¢gico, antiprogressivo, p6s-humano ou inumano, A continui- dade que emerge ali nao é a da humanitas que se estende para os outros raciais ou sociais, mas, ao contrario,o do vivente que excede, como um ponto de opacidade a uma s6 vez interior e exterior, os limites do humano. f contra esse fundo, esse hori- zonte de saber e de percepedo do vivente, que as distingoes entreo humanoe seus outros biopoliticos se tornam uma linha de interrogagao, um campo de experimento ¢ de experiéncia; 0 texto politiza 0 ordenamento de corpos que leva a efeito. esse continuum de corpos tracado em tomno de antago- rnismos ¢ hierarquias de classe, raga e espécie que se faz visivel nesse universo interior da casa, do oikos. Esse interior privado, da propriedade privada, que éa ordem do doméstico,encena um ordenamento biopolitico de corpos: na casa de GH. se iluminam esses antagonismos e essas distingdes que na cidade, na politica do piiblico, na politica cléssica, sfo invisiveis ou irrepresentaveis; dito de outro modo: a casa éaqui um lugarde saber biopotitico- das politicas do “bios” que enlagam ea uma FORMAS COMUNS 36 vez distanciam os corpos da narradora, da empregada e do animal; 0s corpos da proprietaria - 0 corpo “proprio” - eo das, invasoras, as estrangelras, as éxtimas. Entre a narradora ea ba- rata, entre a narradora ¢ Janair,a empregada, ndosedisputam, s6 hierarqui: modos de entender um bias em torno do qual se conjugam sentidos politicos e éticos. A sequéncia das trés figuras - GH, Janair,a barata- tensiona ao maximo os significados desse bios cuja inteligibilidade e cuja natureza o texto transformaré em aposta de escrita. Género, raca, espécie: A paixdo...dramatiza sob esses antagonismos e esses ordenamentos de corpos um, problema novo: o de um bios tornado zona de interrogacdo de onde pensa outros enlaces, outros modos de percepgdo, ‘outro recorte dos limites e da natureza de “um corpo”. sociais e culturais:disputam-se, como veremos, Domésticas © quarto da empregada, que é, como diziamos, um palco do doméstico e também da domesticacdo - da docilizagao de corpos subalternos, dos corpos que devem obediéncia ao pro- prietério:a empregada, os animais-, torna-se, ento,a insténcia de uma deslocamento, de uma topologia alternativa:a casa se torna um vazio, um deserto desprovido de todo trago proprio: © animal em comum: Clarice Lispector 105 Da porta eu via agora um quarto que tinha uma ordem ‘calma e vazia. Na minha casa fresca, aconchegada etimi- da, criada sem me avisar abrira um vazio seco. Tratava- seagora de um aposento todo limpoe vibrantecomonum hospital de loucos onde se retiram os objetos perigosos (1996, p.26). A casa propria, 0 lar que se abre, como numa trajet6ria vertiginosa, ao vazio, a loucura, dalteridade de corposatraves- sados por inscrigOes politicas ~a classe, a raga e finalmente o animal: 0 corpo outro, irreconhecivel, no interior do préprio. ‘Seas retéricas do selvagem permitiam desdobrar estes antago- nismos na topografia extensa e mensuravel do espaco nacional (e entdo 0 selvagem, 0 barbaro, a diferenca cultural, 0 outro racial se situam numa distncia medivel com respeito ao “in- terior” da nagio, tornando-se sempre 0s signos méveis de um, fora demarcével, reconhecivel, cartografavel), aqui entramos efetivamente em outro umbral: 0 da intensidade do vivo, da cespessura do bios, como aarena sobrea qual tém lugar os antago- rnismos e as diferenciacdes, mudam a topologia e as matérias a partir dos quais se pensa 0 politico. ‘Uma vez mais, entdo, © animal chega a cultura para im- pugnar uma ordem politica, E chega pela mao do “povo” - neste caso, das mulheres do “povo”. O animal chega “junto” 106 FoRNAS CoMUNS: 40 trabalhador, ao empregado, ao explorado, ao escravizado, em seus corpos, como corpo - 0 corpo das Janaires, das Maca- bb€as, que sio o umbral-limite entre um saber sobre o vivente ‘eum silencio de linguagem, que é de onde Lispector quer ¢s- ccrever, €esse umbral que quer situar(e situarse:¢ tal, quem sa- be sta utopia) a partir da escrita. Esse limite vem com oanimal €05 corpos racializados, antissociais ou pré-sociais, dos anéni- ‘mos, os ninguéns, os supérfluos. Essa intersecdo entre oanimal © 0 povo, o povo-animal nao refere somente os esterestipos da imaginagao civilizatorla, racista eclassista que “animaliza” ‘05 outros sociais: € também a ferramenta de um saber que de- safia uma biopolitica que produz os corpos e os ordena para do- ‘mind-los para tragar a partir dali as distingOes entre as vidas vivivels e as vidas insignificantes (a Macabéa de A hora da es- trela seré a instncia nitida desse novo desafio). 0 “povo” nunca foi - nunca seré -“humano’:foi,e continuaré sendo, 0 testemunho desse limite, que comparte com oanimal, a partir ‘do qual se tracam hierarquias de classe, raciais, de género, se- xuais etc, masa partir do qual também se lteram, se deslocam, «se impugnam. Precisamente porque o “povo" é a instancia, como diz. Agamben (1995), de uma divisio constitutiva entre bios e zoé, entre vida digna e vida irreconhecivel, é que convi- ‘Ye junto com o animal nessas zonas fronteirigas do social e da pertenga a lingua e a cultura: essa convivéncia é um n6 de animal em comum: Clarice Lispector 107 108 intensidades politicas que a literatura desdobraré como res- posta e desafio, A membrana ¢ a dobra A paixdo., entao, funciona com base numa interiorizagao ‘multiplicada: nao somente o relato transcorre no interior do apartamento; transcorre no interior do quarto da empregada, que por sua vez demarca o interior do guarda-roupa onde aparece a barata, ¢ por sua vez ilumina o interior do corpo da barata...£, pois, a topologia de um interior do interior, um dentro sem fundo, abismal, o que 0 texto interroga a partir do espaco doméstico. Hé que pensar isto em termos de um deslo- camento ou de uma quebra formal pelo qual se passa de uma imaginacao espacial dentro/fora)a uma imaginacdo do vivente, corporal, organica, onde o que esta em jogo é menos uma dis- tribuigdo entre interior ¢ exterior do que uma visibilidade or- ganizada ao redor das figuras da membrana da dobra~ quer dizer, uma concepgao do vivente como pura fronteirae zona de passagem, como entre corpose como processo de individua- 40, em lugar de uma nogao do corpo enquanto jé indivi ‘dluado, com contornos que se fecham sobre uma interioridade unificadas FORMAS COMUNS Em A paixdo... produz-se este deslocamento para o vivente 4 partir da reducdo do espago proprio ao corpo, da topografia 40 vivo: o quarto se transformard num deserto“primariamen- te vivo” a que se chega através do corpo ferido, quebrado, da barata: ‘Acentrada para este quarto s6 tinha uma passagem, e es- treita: pela barata. A barata que enchia o quarto de vibra- {$80 enfim aberta, as vibragdes de seus guizos de cascavel no deserto, Através de dificultoso caminho, eu chegara profunda incisdo na parede que era aquele quarto -e a fenda formava como numa cave um amplo salio natural (1996, pp. 39-40), Entdo, ndo se trata somente de um salto ou de um destoca- ‘mento no ambito do espaco, isto é de que haja uma interiori- dade sem fundo, uma dobra dos espagosali onde nao ha “fora’, ‘mas sim de que essa dobra interior abra uma dimensio que no € espacial, que ndo ¢ redutivel a uma topografia, e que éa dimensio do “bios’, do vivente que emerge desse dentro mul- tiplicado e proliferante’ Esse deslocamento se Ié em relagdo a0 corpo da barata, que, em lugar deser um corpo “organizado’, se exibe como uma superposigdo de “cascas’, planos, sedimen- tos: um corpo feito de membranas aderidas e superpostas: © animal em comum: Clatice Lispector 1 sonedsyy oye] swnue> wo peusrue O Teiquin up euno}suEN as seOUEISIp ap a saQSIsod ap orSiNg -WsIp Epo} 9puOso1g op ‘aItDAtA Op orstIDLUI ExINO aIG0Ds9p anbiod seyJo op ous0} tra epezyueRi0 oRSInq UNI essa e1e1eq -sap- orSeanalanssap eu ‘teossadurt ou eisode anbiod ayuaur -2ysn{~ 10}>9dsr] ap 0Fx9} 0 oaUMOWI opuNgs WNL ‘OWED ON -Teutue/oueumy opSejas eazqos opxayarap soxTasop un 2 anb ‘seyjo op ouso) wip o-opurzneWay ByeIeq ep 9 J94yINUE ep ovuaurejuaytua o eoreU 0}X—} 0 ‘oNBUILIg So]UaLHOU Stop ura oss} OvAP e prea] ~opxEd Y TeumTUK/oURUINY eSUALayID & -tuo9 ap v:eas1bap ePuENbastio> eUM wa ors] oNdosdaaT o> (onpratpurop a ,na, op oruruzop 0‘odi09 0 ‘ese v ‘apepauidosd Pa) ondosd o anua ‘souayxa 2 rovaqut anua ssosinquistp > satu] sop orSdaouos & epnut a ‘sexqop ua ‘steaquin ura ‘seu -eiquiour wa eordnynu asanb onuap umu adatom eure o ‘ournyus ‘oonspurop mbe euoy as apepinqrsirarut ap ord;sund ‘um jeurtue oe ezap anb wa8eatas e105 0 ‘sodz0> ap sazefiny no sagStsod ap 9 sodio9 ap oyuaureuspuods umn ap ‘owUsUTeIO {SIP umn ap se8n] 0 -ojuaureUapIo Orou Win v no eFBo}odor eAou ‘euin # Oss1 w10D a ‘eprumtidar no eperoUs ‘epHayUoDsap eI1>y oy ens ¢aiqe as anb apeparidord ea oudoid ov ‘ezuouarxa asanbapepronayur eum e ‘razip ran ‘oumxa ov apuodsaxz0> saque anb apepHoHaiut vou euin ap erquin o eSex ‘soup no ~ ,onuap, ap WAA ‘opeZtoHarU ‘oUNTUT ‘soHaIUT BUIOL 9s PUNTUE © -TeUNTUP 0 WoD oFSepPL eOYjPUL NO ‘no ‘feu afioura anb opSezuouotut eudoud ens wa ‘as-z9z1p euapod ‘oatsuedxa -sazouaiut seaqop sens ura opeoqdiy nur a ousoUt JS a1g0s operon ‘oonspwop opunuE assau aruaLTENSn| 3 ~opeind y wo se8n] wr} anb 03898 09 2889 - opSeziitjod ap ayuoztoY o wreUI0} as apuO He .epra eum, 9 ,odso9 umn, soureureyD anb ossip emuIey e ‘a1qosa.oa1A op opSisoduos eaugos ovseBeput eumn ‘eon tfodo1q. opdeBo1zayur euun esouressed ‘oSedsa0 arqossodio9 ap ovsinq -knsip ep a‘odedsa op vonisiod euin acr'sodio9 sop eanewrare erSojouraysida eum e5en as jenb ep anzed e euesquiaus essop [PApjesBOUseD ou ‘PavmsuauT OL eIFoIOd) e OOSPUIOP op ‘o1renb op ‘ese> ep apepuonaut ep siod ‘souresseg jasugt _»p 0 opu ‘opsopw vp 0 9 ordiowud nas zeueaqurou eumn 9 od109 “warape seueiqutout se ‘sojad se ‘souvyd so ,seoseo, se fenb op snaed eorzoa win py :o>rupi0 oajanu um py opU‘epeU ey OLE opuny ou qeuisiqe apepuotayur eusn asqe anb odioo wp, “Ue 19661) ‘pum sqeur ‘ease eum syeuu ssdauede aiduras oyUEyHD OUD equn ejad eperueaay zas.ssapnd euin epe> as ou109 "e10q 99 Buin ap se oUtOD seury ‘sepred se>se 9 se>se> ap wpeL 30} 9 B>"eDeduTOD ap zesade ‘onb eEqo>s9p na anb sta.q ou de contato, de fricedo e de contégio, e onde os contornos ¢as fronteiras entre os corpos se tornam instncia de tato, de fric- ‘so, Mudanca, pois, de nivel:o “frente a frente” entre animal e humano, esse frente a frente que conjuga o tema do olhar e © reconhecimento a partir de certa posicionalidade e certa Aistribuigdo de lugares, aqui € deslocado para uma I6gica da interiorizacdo, onde os corpos e seus lugares ou posigoes so reinscritos € reenquadrados por um continuum que reclama ‘outra topologia. Mais que frentea frente, 0 caraa cara, aqui,co- ‘mo veremos depois, aparece outra dimensfo que atravessa os corpos € 05 lana ou 0s expoe a outro umbral onde os limites ‘mesmos do corpo individuado-animal ou humano -se poem. ‘em questdo: uma nova luz, outra epistemologia do que se “dé aver” edo quese torna enunciavel.(A paixdo..6 nestesentido, um estudo microlégico das forgas que atravessam 0s corpos = mais que uma interrogacdo sobre um sujeito diante de seu corpo ou diante do corporal, antes uma fisica das intensidades, imperceptivel mas real, em relacdo a qual um corpo incessan- temente se faz.) ‘© que é pois, um corpo, como se faz visivel, como se ins- crevea singularidade de seu ter lugar esobretudo o horizonte de percepcao e de exposi¢ao diante de outro corpo? Por que esse horizonte de visibilidade e de sensibilidade do corpo ¢in- separdvel de um ordenamento politico? Comose faz, comose 112 FoRMAS COMUNS produz, pois, um “individuo”, um corpo individuado, a que rego, e sobre que gramética de dominagao? Essas $40 as per- guntas que estdio em jogo na escrita de Lispectore nos animais ‘ouna vida animal que se pensa ali. Trata-se de uma topografia dos corpos, mas também de uma nova caracterizagao das for- ‘as, das matérias e das intensidades que os compoem: nao é somente um reordenamento, mas também (e inevitavelmen- te) uma interrogacio acerca da composicio dos corpos, seus, modos de sua consisténcia e suas forcas. E.é em relagdio a essa interrogagao sobre o que 6, 0 que faz, 0 que forma e deforma “um corpo” que se reinscreve o animal jé ndo como figuragdo de uma exterioridade ingovernavel, mas como indice de uma interioridade tomnada espaamento, umbral A vida neutra Em um momento-chave de A paixdo.,.a “matéria da barata” emerge do corpo partido da barata: “o seu de dentro, a matéria grossa” (11), Essa matéria se torna umbral de transi¢do:a partir dessa perda de forma e dessa rearticulagao de limites que men- cionavamos antes, a narradora abre um novo terreno de cor- relagdo; entramosnum planoem que ndose trata do “corpo”, ‘mas de uma materialidade organica sem forma. A partir dali emerge um novo dominio de experiéncia ética e, como vere- animal em comum: Clarice Lispector 113 ‘mos depois, um terreno de contestacao biopolitica: algo que “ocorpo” oua forma-corpo (como modo da individuagaio, da dobra sobresi mesma, 0 corpo como corporizacao do self) no permite. Para que haja outra experiéncia - isso que Lispector ‘chamaré “desisténcia” - tem de rearticularse primeiro ocam- odo visivel e do sensivel: modifica se 0 regime de percepsao. Essa modificacao passa pelo aparecimento e pela visibilidade dessa matéria interior que surge do corpo da barata. O corpo “quebrado” da barata, e 0 salto de escala e de organizagio que ‘tem lugar em torno da matéria que surge desse corpo, é 0 in- dicador de uma transformacdo radical dos modos de percepcao ‘ede visibilidade do corporal em geral O texto chamard “plasma” (“plasma neutro”)a essa subs- tancia que surge do corpo da barata; 0 corpo animal perde forma, e portanto poder figurativo; quebra-se, se se quiser, co- mo forma acabada e como figura terminada - e portanto, ‘como tropo, como metafora* -eabre-se ou abre uma materia- lidade desfigurada, uma materialidade sem limite em relaga0 a qual o texto trabalharé os sentidos de uma nova poténcia descoberta, que denominaré “vida crua” ou “vida neutra”. Do animal ou do inseto como corpo reconhecivel, formado, ao “plasma” interior esté em jogo um desafio a forma como meca- nismo da significacao -a forma, pois, comosignificante, como, condigao para toda representagao, para toda figura de lingua- 114 FoRMas comuns ‘gem, para todo tropo; o que emerge do corpo da barata é pre- cisamente, 0 que resiste a essa operacdo: 0 infiguravel, nao for- mavel, o que escava ou desafia todo fechamento formal. Essa matéria que emerge em A paixdo.. ressoa em textos osteriores de Lispector, ese torna, em grande medida, projeto de escrita: desconfiar da forma, fraturar os contornos dos cor Pos, trabalhar uma visibilidade do informe, Nesse projeto, que se vai radicalizando e acentuando, 0 “plasma”, ou a nocio mesma de bios, comega a adquirir uma centralidade e uma relevancia maior. No comego de Agua viva, por exemplo, diz @ narradora: “Continuo com capacidade de raciocinio - ja es- tude matemética, que & loucura do raciocinio - mas agora quero o plasma - quero me alimentar diretamente da placen- ta” (200s, p.9) Plasma, placenta: Lispector -0 gesto se revelara enganoso - parece querer levar-nos a esse umbral herdado da tradicao romantica, e depois potenciado pelo vitalismo, em (que se trata de capturar, de conectarse com um principio vital de fundo, primério, que gera, dé forma e que liberaria a sensi- bilidade de sua alienagao na razao ou na funcionalidade prag. ‘matica, Dar com a vida como tal, a vida em si, a vida em sua realidade tiltima... Uma longa tradig2o a secunda: todo um ppercurso em torno do “principio vital” que define episédios- chave do pensamentomoderno na América Latina conjugado ao redlor do vitalismo,’ Mas a declaragao ¢ enganosa: esse plas- (© animal em comum: Clarice Lispector ma que a escrita diz buscar, essa origem ou “coisa mais primei- 1a" (LISPECTOR, 2005, p. 17)" que parece aparentar a escrita de Lispector com as aventuras conceituais do vitalismo, e que parece confiar na capacidade estética de discernir ou revelar essa esséncia ou fundo iiltimo da vida - esse plasma, esse nticleo se revelara evasivo, obliquo, inassimilével nao pela incapaci- dade do conhecimentoou da sensibilidade para representé-lo, ‘mas por sua natureza mesma: 0 bios serdirredutivel a todo ser, a ‘toda identidade, a toda esséncia, a toda ontologia e a toda positi- vidade; essa descoberta € 0 que ilumina a escrita de Lispector ¢ ‘© que a torna radicalmente contemporanea. Nao hé vida em Ultima instancia prépria a vida nao 6apropriavel, nio édeter- mindvel por um “eu’, ndo € um dominio sobre o qual temos “direitos” (de propriedade, de autonomia etc). Mas tampouco €0 objetivavel, o que esté disponivel para outras formas de Poder ou de soberania. O desafio da escrita de Lispector é jus- tamente situar essa vida em sua irredutibilidade, em sua ina- Propriabilidade por parte dos poderes que a reclamam como seu fundamento - e © que faz é basicamente assinalar que a Vida nao é fundamento, ndo funda nada, nao é origem nem esséncia, mas, a0 contrério, ¢ vazio, deslocamento, espagamen- to, experimento e errancia, Ali se situa a politica da vida da escrita de Lispector™ 116 FoRMas comuns Essa € a descoberta que se poe em jogo em Lispector a partir do encontro entre humano e animal. Tratase, natural- mente, de uma impugnagdo das hierarquias culturais ¢ politi- cas especificas da tradigdio humanista - sem dtivida, este é um. impulso decisivo em sua escrita, comoo demonstraram Evan- do Nascimento (2012) e Julieta Yelin (2008b) -, mas também. ‘uma interrogacao persistente, imperiosa sobre a natureza in- determinada desse bios cujos nomes préprios - por exemplo: ‘Iuumanitas- se viram postos em suspenso, se nao diretamente erodidos, pela experiéncia histérica do século XX,eem relagdo 20 qual se disputam novas possibilidades de subjetivacdo, de Telagdo ética e de politizagdo, ali onde esse bios estava satu- ado de sentidos politicos. O itinerario dessa interrogagio esta demarcado por esse “plasma” que faz seu aparecimento em A paixdo...no interior das casas e dos corpos, ¢a partir do limi- te entre o humano eo animal. Plasma e biopolitica Acescrita de Lispector trabalha, entao, essa desfiguragdo do cor- poral, essa perda de limites e de contornos,a partir da ambiva- Iéncia entre o humano eo animal que esta em jogoa partir do encontro entre a narradora ea barata em A paixdo...Noentan- © animal em comum: Clarice Lispector to, ndo se trata s6 de uma ambivaléncia retérica ou concei- tual; a partir dessa ambivaléncia ou desse espacamento entre “humano”e “animal’,0 texto de Lispector narraa emergéncia ‘de uma matéria irredutivel a essa polaridade - um continuum ‘que o texto se encarregard de pensar como uma nova substan- ia ética que desafia certos modos normativos de subjetivacao, ‘€uma linha de indagagao estética, que interroga regras de per- Cepsdo e de sensibilidade sobre os corpos e seu ter lugar. En- ‘reo humanoe oanimal, entreas espécies, emerge algo que ‘no € humano nem animal, uma matéria que elude sua redu- ‘920 formas eorganismos reconhecivels-essa matéria 60 que © texto de Lispector designa de muitas maneiras, mas prin almente como “plasma” - um “plasma neutro”, diz a narra- dora, que emerge do corpo da barata:o interior do corpo do Inseto deixa sai essa matéria, A paixdo segundo G.H.éem gran- de medida um texto que organiza a possibilidade dese salto ‘na ordem do visivel, que, como mencionvamos mais acima, define todo um vetor na escrita posterior de Lispectoraté. Agua viva. Diza narradora de A paixdo.: ‘Como chamar de outro modo aquilo horrivel ecru, ma- ‘érlacprima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu ecuava para dentro de mim em néusea seca, eu caindo 118. FoRMAs comuns séculos e séculos dentro de uma lama - era lama, e nem Sequer lama jé seca mas lama ainda imida e ainda viva. (2996, p.38). Trata-se de tomar visivel isso “ainda vivo” como puro ‘umbral entre o vivo e o morto: esa linha de passagem que jé nose contém sob osigno eo contomo docorpo, desua forma ede seu tempo ou seu ciclo; 0 “plasma” é a matéria em torno da qual se poem em jogo essa nova visibilidade e uma nova evidéncia. “E eu - eu via’, diz a narradora. “Nao havia como ndo véla. Nao havia como negar.”(ibidem, p50). ‘Anogio de plasmaé, evidentemente, uma nogao que tem. vasto percurso em vocabularios cientificos e filos6ficos, e a0 redor da qual se disputaram modos de visibilizar e de dar con- ta da forma dos corpos, de suas poténcias e de sua natureza; conjuga uma ordem do que se pode saber sobre 0s corpos € sobrea vida que os atravessa ¢ 0s constr6i. Como se sabe, a no- Sao de “plasma germinal”, proposta por August Weismann, objetivava reforcar a distingao entre um nicleo biolégico - ‘ou, em termos mais contemporineos, genético -e o corpo que © transporta, isolando dessa maneira o dominio da heranga bbiolégica de toda determinacdo ambiental, ou,em outros.casos, como na tradicao neolamarckiana que tanta influéncia teve na América Latina, indicando o terreno de sua plasticidade © animal em comum: Clarice Lispector (LEMKE, 2011).A nogao de plasma define assim uma concepeao do viventea partir de uma diferenca interna irredutivel entre a manifestacao “exterior” que associamos ao corpo e esse nti- ‘leo essencial, interno, que constitul a heranga biol6gica, que 0 que passa de uma geragdo a outra e que se constitui, de certas perspectivas biopoliticas, em patriménio biolégico em tomo do qual se definem construgdes da pureza racial, heran- saetc.Por isso o “plasma germinal” se transformara, a medida que avangam as primeiras décadas do século XX, numa cate- goria-chave parao pensamento eugenésico,justamente porque permite isolar um nticleo biolégico que funcionara como fundamento das determinagdes biopoliticas e como um pa- triménio da nacao ow da raga por defender e por cultivar? O plasma germinal condensa.a heranga biolégica quea biopo- litica, em suas versoes diversas, querer proteger de contagios emisturas:o nticleo de uma pureza por politizar e medicalizar. De um ponto de vista epistemol6gico mais geral, a nod. de “plasma germinal” - como sua consecugao posterior, a no- io de “gene” que demarcaré a emergéncia da biologia moder- na e seu ramo estelar, a genética - reflete uma constante dos saberes biopoliticos.a de tragar uma dlistingao entre um nticleo ‘ouesséncia biologica, que funcionaré como o substrato da raga, ‘danagio.ou do individuo-o patrimonio por preservar, por cul tivar, por defender ~ a particularidade de cada corpo, a sin- 120. FoRMAS comuNS gularidade de seu aparecer, os lacos que pode estabelecer, as qualidades que o definem, os agenciamentos em que habita; ‘enfim, as formas de vida que desdobra. Separa, podemos dizer, cada corpo desi mesmo, isolando isso que constitul sua essén- cia biolégica de toda deter minagao social, cultural, coletiva, de todo agenciamento e de todo laco: tal operagao € talvez ‘© ponto de partida do saber € da imaginacao biopolitica. Ro- berto Esposito situa, neste sentido, o germe do pensamento biopolitico na distingdo que Xavier Bichat, o pai da anatomia ‘moderna, tragava entre o Hanimatexistant audedans e Vanimal existant au-dehors (0 animal “de dentro" e o “animal que exis- te em relacdo ao exterior”): para a biopolitica s6 conta politi ‘camente esse “animal interior” que condensaré uma esséncia biolégica convertida em patriménio por politizar;esse “animal de dentro” se transformard no objeto de saber ede poder, quer dizer, em instancia de propertizacdo e de management (ESPO- SITO, 2007). A nogao de “nuda vita” em Agamben - ainda que ‘em outro sentido -reflete esta mesma logica, pela qual se traga (ingao entre “formas de vida” e essa vida despojada de toda qualidade e de todo lago, reduzida, se se quiser, a seu nii- cleo biol6gico, que se constitui no objeto de poder soberano. Entao,0 “animal dedentro”,a “nuda vita’, o“plasma germinal” io nogdes que refletem essa matriz do pensamento biopoli- tico pelo qual a inscrigao de todo corpo se define a partir de © animal em comum: Clarice Lispector ‘uma separacdo com respeito a si mesmo, eda possibilidade de isolar nele isso que constitui o patrimdnio coletivo da popu- lacdo - ou o que a ameaga. a partir dessa distingo que se fez Possivel a biologizacdo de racas, classes e grupos sociais, sua hierarquizagao e gestdo, justamente porque isola e objetiva ‘uma dimensio que se torna a instancia de controle, de gestto ede investidura politica. Anocao de plasma germinal 6, entao, central a forma co- ‘mo vida e politica se uniram no século Xx:¢ 0 terreno sobre ‘qual os corpos esua vida parecem prometer um objeto que o poder biopolitico poderia gerir, manejar, potenciar, cuidar otimizar. £ uma nogao que trabalha uma nova visibilidade politica dos corpos:ndo se trata jé do corpo como realidade ti: tima das tecnologias do poder, mas como portador de uma carga biol6gica que é 0 que vale politicamente, e queatraves- sa 0 individuo, a pessoa humana, com uma dimensio que a enlaga a uma realidade coletiva a populagio, a raca, a nao para além de toda agéncia e de todo traco individual; o plas- ‘ma germinal é o que conta politicamente, na medida em que é esse universo o que o enlaga a historia (que é a historia da raga ou da nagéo) ¢ a0 coletivo, ali onde o social é pensado e ima- sginado como “populaga6o.” Entdo, o plasma indica uma reali- dade biopolitica-chave na imaginagao moderna: faz da vida ‘uma arena de intervengo politica dividindo-a de si mesma, 122, FoRMAS COMUNS tragando essas cesurasa partir das quais se ordenam corpos, se ‘tragam hierarquias ese distribuem as vidas por proteger e por rojetar no futuro das vidas por explorar e por dispor. A escrita de Lispector contestard essa I6gica fazendo do bios decisivamente a instancia de um fracasso e de um saber. Por um lado, jé em A paixdo.. aposta é a de dar conta desse “plasma” como positividade:é, de resto, uma substincia ou matéria 0 que surge do corpo da barata, esse “plasma seco", como se a escrita pudesse produzir as condigées para fazer vel epara significar uma relagdo com esse umbral primirio, bésico e originério da propria vida -esse fundoem quese anun- la © bios cujos sentidos a escrita quereria decifrar. Hé, neste sentido, uma referencialidade enganosa em certos momentos de A paixdo...ou de Agua viva,em que 0 despojo dos signos do humano -no encontro coma barata, na prosa dessubjetivan- te parece dar lugar a um umbral, dimensio ou dominio dessa vida origindria despojada de todo atributo - algo assim como a “nuda vita” de que fala Agamben, a vida despojada de toda forma, a vida que ndo corresponde a nenhuma “forma de vida". Como sea escrita brincasse de produzir as condigoes (0u procedimentos pelos quais essa “vida neutra” pudesse sair luz, atravessando as fantasias do humanoeemergindonaluz de sua positividade como realidade finalmente desvelada, ‘como viagem a origem ou a esséncia. © animal em comum: Clarice Lispector 124 Creio, no entanto, que seria um erroller aescrita de Lispec- tor como revelacdo ou desvelamento desse umbral primério ‘como positividade e como origem - como sea “vida” se conver- fesse num referente ou num objeto de conhecimento definido. No ‘mesmo tempo que emerge como matéria, a escrita desdobra isso vivente como uma instancia de indeterminagao ~ justa- mente, 0 que ndo se constitui como um objeto, identidade, corpo: © ndo ontologizavel. Escrever o “plasma’, escrever essa “vida” neeutra e despojada torna-se a arte de um rodeio incessante, de ‘um clidir sistemtico. sso ndo obedece & natureza inefavel do objeto, mas a sua instabilidade inerente, espagamento, distén: cia, membrana sem ser “proprio”; o bios como entre corpos quea escrita quer interrogar. Esse “plasma” que emerge como ‘matéria da escrita se transformara - como o quarto em que aparece-num vazio, ou melhor: num espacamenta: menos um, ‘corpo em sua positividade ou um dominio biol6gico demar- cavel do que 0 que passa entre corpos, o que traca relagdes entre eles, o que emerge a partir de uma relacionalidade no predeterminada. Nao jd a vida despojada de toda forma - tal coisa ndo existe -, mas a vida aberta d forma como multiplici- dade. © bios € uma dobra sem origem nem identidade, que se separa desi mesmo ese agencia; 0 que sai desi nisso encontra sua possibilidade e sua condiigao; o que nunca coincide consi- go mesmo, FORMAS COMUNS Um momento de Agua viva(2005) pode nos ajudara tragar este percurso. Diz 0 texto: “S6 um espelho vazio & que é 0 es- pelho vivo", tragando essa continuidade entre o vivo ea au- sencia de “eu”, de pessoa identificdvel, que ¢ uma das marcas desta escrita ~s6 se tem acesso ao bias uma vez que dissipamos ailusdo ou 0 engano do eu’ (do “autos’).Ao contrério da ima- ginagio egoica, que faz do espelho o lugar de constituiga0 ou de verificagdo da existéncia do eu, aqui o espelho adquire existencia quando 0 sujeito se ausenta: é justamente o vazio deixado pelo sujeito 0 que permite a “vida” autonoma do es- pelho. Econtinua:“S6 uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto vazio onde ha um espelho vazio, e com tal leveza, com tal auséncia de si mesma, que a imagem nao marca.” ‘Trata-se, pois, de um jogo entre vazios: quarto, espelho e pes- soa sio esvaziados, dessubstancializados, ausentados de todo “si mesmo”, para que a partir dessa mesma auséncia, a partir dessa auséncia deem lugar a isso vivo, com essa vida, ou isso vivente que 56 parece emergir ali onde 0 despojo de formas, de atributos e de propriedades nao se encontra com uma esséncia ou um néicleo primério, mas com um vazio que, no entanto, ndo éa marca de uma negatividade, mas de um espa- samento, de um entre, um umbral de intensidade pura. O es- pelho se torna pura auséncia, “a sucesso de escuridoes”, “€ preciso entender violenta auséncia de cor de um espelho para © animal em comum: Clarice Lispector poder recrié-1o” (2005, pp. 83-84), ¢ € essa auséncia o que aqui se torna a condigZo para “ver” o vivo, para perceber esse umbral de vida. Nao um niicleo, uma esséncia oculta, mas uma ausén- cia, um vazio: essa linha de intensidade pura, esse espaco que € pura vibragio, é 0 que aqui se emerge sob o signo do bios. Outra formulagao: a “vida obliqua":® ‘Bem sei que hé um desencontro leve entre as coisas, elas, ‘quase se chocam, hd desencontro entre os seres que se perdem unsaos outros entre palavras que quase noize ‘mais nada, Mas quase nos entendemos nesse leve desen- ‘contro, nesse quase que 6a tinica forma desuportara vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela 1nos assustaria, espaventaria 0s seus delicados ios de teia de aranha (2008, p.70). Aqui esté em jogo uma dupla resposta: por um lado, a im- possibilidade “humana’ de suportar a vida “de cheio", mas ao mesmo tempo essa vida é pura delicadeza, e é pura rede, tela de aranha; nao ha, de novo, esséncia, niicleo, germe; ha ob! ‘quidade, relacionalidade, lago entre corpos, alto ao vazio que se torna sua propria condicdo, sua propria linha de desdobra- mento. Aeescrita de Lispector, pois, faz do “plasma’’a ocasidio para ‘um deslocamento radical: ali onde diz buscar uma substancia, 126 FoRMAS CoMUNS um principio positivo, a instancia de uma afirmagao ontol6- ¢gica, encontra, sistematicamente, um vazioe um espagamen- to, um diferencial ou uma linha de devir que a uma s6 ver € inseparavel dos corpos, mas que traga sua linha de exteriori- dade, seu empuxo ¢ sua alteridade, Nisso se joga talvez sua aposta politica mais eficaz.a de disputar os sentidos e 0s modos ‘desaber que querem fazer dessa “vida neutra” o objeto de uma _gestio, de uma apropriagao e de uma propriedade individual ou coletiva, quer dizer, 0 objeto de uma biopolitica. 0 biosque abiopolitica quer como objeto aqui se revela como insubstan- cial, erratico, intangivek: é um vazio, a uma s6 vez irrealidade principio de indeterminagao e de poténcia. Nisso consiste a politica desta escrita: a de contestar e disputar os sentidos desse bios tornando-oa instancia de uma instabilidade irredu- tivel, ali onde o século Xx havia feito dele uma positividade controlavel e demarcivel. Tal € a modemidade radical dos textos de Lispector. Diz que a vida nao € objeto nem sujeito, 1nd ¢ origem ou fundamento do eu nem propriedade sobre a qual se tragam formas e sentidos; a vida ali é espagamento, adesio e desvio; variagao e impropriedade. Aescrita de Lispector é, neste sentido, insepardvel de uma transformago mais geral que afeta a ordem do visivel edo per- ceptivel, a luz que organiza a visibilidade dos corpos e o que nessa visibilidade se constitul em instdncia de saber, de expe- © animal em comum: Clarice Lispector 127 rigncia e de “verdade”. Essa mutacao, evidentemente, 6a uma 86 ver epistemolégica e politica: passa por regimes de saber, ‘mas também por usos, célculos, racionalidades e apropriagdes so échave que ‘0 “plasma” jogue um papel to central em A paixdo.: € um terreno de disputa acerca do que se faz visivel nos corpos, ‘oque atravessando a forma-corpo se torna disponivel para 0 poder - nos sonhos de uma populagdo nacional, racial, ca- pitalizada etc. -, mas também para uma interrogagao sobre alternativas em que esta em jogo a possibilidade mesma da resisténcia e de epistemologias e politicas alternativas do vi vente. Ali onde a vida se torna puro dominio de apropriagao, de saber e de gestio, esvaziar esse dominio de positividade é ‘um gesto decisivo; tomné-lo um puro espagamento, uma relacdo sem relago, uma multiplicidade néo predefinida abre,a uma $6 vez, possibilidade de epistemologias e de priticas alterna- tivas sobre o corpo e sobre o vivente. disso que em ea partir dos corpos sai a luz. Po Corpos quebrados: aborto e escrita Em A paixdo...tem lugar uma sequéncia-chave em torno do aborto, Ante o corpo quebrado da barata, a narradora recorda seu proprio aborto, que emerge no texto sobretudo como uma experiéncia de saber: a gravidez e o aborto abrem o espago de 128 FoRMas comuns relagdio com essa “vida neutra” no proprio corpo e que agora se desdobra como visao e interpelagao a partir do corpo que- brado da barata: quebra-se a forma corpo, 0 corpo como ima- ‘gem que se abre e inaugura uma visibilidade nova sobre isso que se abriga ali, isso que passa por ali, mas que ndo se reduz nem se expressa no corpo. “Gravidez:eu fora langada noalegre horror da vida neutra que vive e se move.” A sequéncia em tomo do aborto se amplifica numa reflexdo sobre odar morte ~reflexdo aqui radicalmente paradoxal, dado que matar inau- gura uma relagdo coma vida neutra:matar abre, como veremos depois, uma “brecha que me mostrou, pior que a morte, que me mostrou a via grossa € neutra..” (1996, pp. 60-61). Matar, ento, passa por quebraro corpo: corpos que se abrem, que so “tomados pela cintura” comoa barata ea mulher gravida, que se quebram para abrir uma distncia - uma relagao, uma posi- ‘gdo eum tomar posigdo, um ter lugar - desse “dentro” cuja luz. inédita é projetada e desenhada na escrita. O que se mata aqui? ‘Se se mata para dar vida, ou para que a vida se mostre, para que a vida aparega, o que é que morre como objeto da violéncia? que se mata, quero sugerir, éa forma-corpo, 0 corpo como forma definitiva e definida, como contorno separado dos outros corpos e do mundo: 0 que se mata é 0 corpo como medi- dade representagdo formal, como ordenamento da sensibilida- de eda percepgio. “Um corpo” - ou methor, ocorpo como uno, (© animal em comum: Clarice Lispector 129 como unidade, como organismo autocentrado e conjugado em tomo de seu préprio eixo, de seu proprio micleo ou prin- cipio aglutinador: 0 corpo, enfim, como principio de indivi dluagao, como forma predefinida ou predeterminada de toda individuagdo, e como sede do individuo enquanto presenga para si mesmo - 0 que depois se denomina 0 “invélucro”, 0 envolt6ria: isso € 0 que se quebra" A narradora de Lispector leva adiante, antes de tudo, uma violéncia formal, uma vio- Jéncia sobre a forma: “Me: matei uma vida (.).Interrompi uma coisa organiza da, mie, eisso€ pior que matar, isso me fez entrar por uma brecha quememostrou, piorquea morte, queme mostrou via grossa e neutra amarelecendo...ibidem, p61. ‘Mata:se para ver: para saber. E.0 que se mata niio é a vida, mas 0 individuo, a forma-individuo e certo principio de indi- viduagao." Esse € 0 trabalho incessante, e em muitos sentidos incomparavel, que leva aefeito a escrita de Lispector em geral, ‘ede onde traca os vetores que a trazem até o presente: produ- zir um campo de escrita em que se suspenda esse principio de individuacao que chamamos “o corpo” e que funciona social € politicamente como sede do eu e como ontologia do indivi- dluoza sede do proprio, do proprio do eue da propriedadecomo 130 FoRMAs comuns principio humanizador, como norma do humano (NASCI- MENTO, op cit). A poténcia da escrita de Lispector reside em queleva aefeitoeste trabalho estritamenteno plano da forma: €a forma-corpo o que se mata e 0 que se aborta, e que emerge aqui como uma sorte de envolt6rio, de casca, que jf parece nao ter espessura nem relevaincia propria, mas enquanto sede de outra dimensdo que é 0 que o texto persegue, mapeia, registra ‘eimanta em sua prosa: Mie, eu 6 fiz querer matar, mas olha s6 0 que eu quebrei: quebrei um inv6lucro! Matar também é proibido porque se quebra o invélucro duro, e fica-se com a vida pastosa. De dentro do invélucro esta saindo um coragao grosso «branco e vivo com pus, mae, bendita sois entre as bara- tas agora ena hora desta tua minha morte, barata ¢joia (0996, p.60. “Nao mataras” é aqui uma interdicdo formal: ndo que- brards 0 “invélucto”, nao romperds, nao ferirés 0 corpo da re- presentacdo, a ordem do visivel enquanto corpo definido, delineado; nao indagaris sobre isso informe que se anuncia na iminéncia dos corpos, isso invisivel que no entanto sufoca eaturde oreino da representacdo...O debate é estético na me- dida em que ¢ epistemoldgico: debate-se sobre o saber, sobre © animal em comum: Clarice Lispector BI © visivel (Sobre 0 que se pode ver, o que é dado a ver) e sobre as formas da verdade. E debate-se ndo somente com um cam- pode representagdesestéticas, uma tradigao literria e cultural, ‘mas também ¢ inevitavelmente com um campo de discursos miiltiplos em que ressoa, no caso, o “plasma” como universo de apostas biopoliticas. O que se joga aqui, enfim, é uma dis- puta - formal, estética e epistemol6gica - sobre a inteligibi dade dos corpos: sobre 0 que 0 corpo deixa ver, faz perceber num campo de saberes multiplicado a partir dos quais se in- terrogam as “molduras” que fazem inteligivel elegivel “um cor- po", ao mesmo tempo que emergem outras distribuigoes sobre ‘as quais se jogam definicOes, apropriagdes e intervengoes so- brea vida (BUTLER, 2004; ROSE, op. cit). O texto de Lispector € © que traga um vértice a partir do qual esta redistribuigao de modos de representagao, de visibilidade e de aber se faz expli- ita, justamente porque o texto mata o corpo como principio basico de inteligibilidade e de representagao. Notavelmente, essa operagio passa por dois eixos que pouco tém a ver, aparentemente, entre si: 0 aborto de uma mulher eo animal. Os corpos quese quebram s4o os da mulher grdvida e do inseto; e nessa quebra emerge este novo univer- so de sensibilidade. Que acontece entre os dois? A mulher 0 animal: dos menos que humanos, jé ndéo humanos ~ recorde- mos Janair e Macabéa -, dos corpos inumanos justamente FORMAS COMUNS Porque nenhum cabe jd em “um corpo”, na forma de um corpo. Entre 0 corpo feminino (definido por coordenadas de classe ¢ raga, evidentemente) e corpo animal, nessa alianga que é também uma guerra ou um lago agonico, desfaz:se essa forma-corpo individual, essa individualidade presente a si ‘mesma, isolada e fechada, em sua eséncia, de todo exterior. Se “vida humana” se mediu em relagdo a norma dessa indivi- ualidade,o bios que Lispector interroga quer tornar impossi- vel todo retorno dessa medida e dessa norma biopolitica. Sobre o comum £ muito conhecida a sentenga de Lispector em Agua viva “Escrevo ao correr da maquina, Muita coisa nao posso contar. ‘Nao vou ser autobiogréfica, Quero ser “bio” (2005, p.9). Que significa “querer ser ‘bio” contra a autobiografia? Como entra em jogo aqui esse “bio” que parece funcionarcon- tra 0 mecanismo mesmo do auto, e de toda ipseidade, do que sepode reapropriar, do que volta a si mesmo? O bios contra 0 si mesmo~o bioscomo isso que torna improvavel toda reapro- riagdo sem resto, sem opacidade. Autobiografia versus bioes- rita: a questao € a uma s6 vez filos6fica e formal, a da scrita de uma vida sem forma, uma vida que nao termina nunca de formar se, de concluir-se ou de determinar-se numa subjetivi- (O animal em comum: Clarice Lispector 133 © visivel (Sobre 0 que se pode ver, o que é dado a ver) e sobre as formas da verdade. E debate-se ndo somente com um cam- pode representagdes estéticas, uma tradigao literaria e cultural, ‘mas também ¢ inevitavelmente com um campo de discursos miiltiplos em que ressoa, no caso, o “plasma” como universo de apostas biopoliticas. O que se joga aqui, enfim, é uma dis- puta - formal, estética e epistemol6gica - sobre a inteligibil dade dos corpos: sobre 0 que 0 corpo deixa ver, faz perceber num campo de saberes multiplicado a partir dos quais se in- terrogam as “molduras” que fazem inteligivel elegivel “um cor- po”, ao mesmo tempo que emergem outras distribuigoes sobre ‘as quais se jogam definicOes, apropriagdes e intervengbes so- brea vida (BUTLER, 2004; ROSE, op. cit). O texto de Lispector € ‘© que traga um vértice a partir do qual esta redistribuigdo de ‘modos de representagao, de visibilidade ede saber se faz expli- ita, justamente porque o texto mata o corpo como principio basico de inteligibilidade e de representagao. Notavelmente, essa operagio passa por dois eixos que pouco tém a ver, aparentemente, entre si: 0 aborto de uma mulher eo animal. Os corpos quese quebram si 0s da mulher grdvida e do inseto; e nessa quebra emerge este novo univer- so de sensibilidade, Que acontece entre 0s dois? A mulher ¢0 animal: dos menos que humanos, jé ndéo humanos ~ recorde- mos Janair e Macabéa -, dos corpos inumanos justamente 132. FORMAS COMUNS Porque nenhum cabe jd em “um corpo”, na forma de um corpo. Entre o corpo feminino (definido por coordenadas de classe ¢ raga, evidentemente) e 0 corpo animal, nessa alianga que é também uma guerra ou um lago agénico, desfaz-se essa forma-corpo individual, essa individualidade presente a si ‘mesma, isolada e fechada, em sua eséncia, de todo exterior. Se “vida humana” se mediu em relagdo a norma dessa indivi- ualidade,o bios que Lispector interroga quer tornar impossi- vel todo retorno dessa medida e dessa norma biopolitica Sobre o comum £ muito conhecida a sentenga de Lispector em Agua viva “Escrevo ao correr da maquina, Muita coisa nao posso contar. ‘Nao vou ser autobiogréfica. Quero ser ‘bio” (2005, p.9). ‘Que significa “querer ser ‘bio” contra a autobiografia? Como entra em jogo aqui esse “bio” que parece funcionarcon- tra 0 mecanismo mesmo do auto, e de toda ipseidade, do que se pode reapropriar, do que volta a si mesmo? O bios contra 0 si mesmo~o bioscomo isso que torna improvavel toda reapro- riagdo sem resto, sem opacidade. Autobiografia versus bioes- rita: a questao é a uma s6 vez filos6fica e formal, a da scrita de uma vida sem forma, uma vida que nao termina nunca de formar se, de concluir-se ou de determinar-se numa subjetivi- © animal em comum: Clarice Lispector 133 134 dade, num eu como forma privilegiada da vida. Nada, aqui, como acabamos de ver, de restituicdo a uma origem primigé- nia, a uma dimensio primaria ou anterior que fecharia um uni verso de sentido: a vida, esse “bios”, ndo é nunca a Vida, nao nunca a metéfora de uma plenitude fundada em certa ordem totalizadora ou numa ontologia do individuo (como vida propria, apropriada, formada por um eu), mas, ao contrario, dobra opaca do sentido, linha neutra e dobra de uma diferen: a.que nao se pode atribuira nenhuma ordem - nem “natu: reza",nem ao “sujeito”, nem a transcendéncia religiosa nem a um substrato biol6gico objetivavel. Esse bios é puro horizonte de diferenca: um diferencial, uma linha, umbral, movimento onde toda forma, todo ordenamento se enfrenta a sua linha de deformidade, ou melhor, de informidade, sua caréncia de contornoe de identidade. Essa vida, esse bio é0 inapropridvel, ‘© impréprio, o que ndo pode ser reduzido ou codificado sob o signo da propriedade, do sujeito, do social ou do humano (mas tampouco do natural ou do divino) esse campo de imanéncia € 0 que Lispector opde ao autos, autobiografia como escrita ~ que é também uma matriz - pela qual a vida “propria”, indi- vidualizada, encontra sua forma, sua narracao, a forma de seu tempo e o sentido de seu itinerario. Aqui estdo em jogo, evidentemente, dois sentidos contré- ios em torno do bios - noo que, como jase tornard evidente, longe de oferecer alguma estabilidade semantica, esté atraves. sada por uma espécie de fissura ou tensdo interna que impede qualquer fechamento de sentido, Dentro e fora do autobiogré- fico, a escrita de Lispector oscila entre um bios entendido a maneira cléssica, como “forma de vida” ou vida qualificada, isto 6 vida reconhecida como humana na medida em que adquire uma forma e uma significagdo que transcendea “mera” continuidade organica (LEMKE, op.cit);0u, a0 contrario, o bias ‘como isso vivente que excede toda forma e que se torna refle- Xo opaco de toda subjetividade ou ao menos de toda retéri ca do “eu”. Interessantemente, o primeiro sentido € 0 que fica sob 0 signo do autobiogrifico: 0 exercicio formal pelo qual ‘auto e bios se enlagam na promessa de uma transparéncia re- ciproca, onde o vivo se tornard traduzivel para um eu e sua vida humana, propria; autobiografia, pois, como promessa de apropriacdo da vida por parte de um eu, e como exercicio de escrita pelo qual a vida adquire um sentido, uma forma, ‘uma narracdo -a autobiografia, poderiamos dizer, como aban: dono definitive do animal que nos habita: como o exercicio de um eu sobre esse tempo de vida organica para arrancé-lo, na maior medida possivel, da contingencia natural, de sua biologia como umbral insignificante, para traduzi-lo ou para formaté-lo sob o itinerdrio de um eu, de um destino, de uma vida narrvel. Ali “forma de vida" é a vida de um eu, de um. © animal em comum: Clarice Lispector individuo: a autobiografia fol (talvez siga sendo-o) 0 protoco- lo pelo qual 0 itinerério multiplicado, heterogéneo, sempre mével de “uma vida” se reconverte sob o signo de um eu que, com maior ou menor solidez e estabilidade, quer dar-the uma forma, Lispector escolhe a outra opgao: a de produzir um modo de escrever que salta a instancia desse “eu’, desse auto, para ppassar diretamente a esse umbral ndo formatével do vivente. Que ganha com esse salto? Nao se trata somente de eludir a armadilha do eu como matéria narrativa, nem de se refugiar numa terceira pessoa que, em Lispector, é, sabe-se, de uma precariedade implacével. Trata-se de outra coisa: de que esse ioscom o qual identifica a escrita ¢ irredutivel i forma indivi- dual, oo individuo como principio de inteligibilidade.© bios que esta escrita interroga o tempo todo é a uma s6 vez vazio ¢ relagdo, auséncia e enlace, passagem a um plano virtual em que se jogama fragilidade ea poténcia dos corpos em relagao. ‘Nao ha vivente como dobra interior, e como fundo de um corpo individual, mas como contorno de relagio, como acle- xéncia, como zona de enlace entre corpos e entre materialida- des. A vida, uma vex mais, é 0 espacamento, cada vez singular, entre corpos: esse diferencial que relanga o campo de possibilidades. Por isso é irredutivel a0 “eu” da autobiografia: porque é exata- mente seu avesso, ou talver melhor, seu pontodeexcesso, ndo 136 FORMAS COMUNS ‘como pura alteridade, puro Real, umbral de desvanecimento ede aboligdo da subjetividade, mas, a0 contrario, como entre, ‘como a possibilidade mesma de que haja entre corpos: como ‘esse umbral que nao se ajusta a uma ordem de individuagoes dada e oferece, cada vez, o entredois a linha opaca mas poten- cializadora que relanga 0 campo de relagbes, de desejos, de lutas, de conexdes e reptidios, entre corpos. Contra © bias do ‘eu autobiogratfico, Lispector Ihe opde o principio do comum, © bios como condicao da comunidade, precisamente porque subtrai toda esséncia, toda substancia, toda identidade aos ‘corpose os ilumina na pura heterogeneidade e nessa pura mul- tiplicidade de uma comunidade de corpos.O biosé comum na medida em que resiste a toda propriedade, a toda apropriagdo ea toda privatizagao, mas ao mesmo tempo é comum porque relanga, cada vez, sua forga diferenciak: seu vazio, ¢ se tora instancia ou invengaio de comunidade. (Por isso mesmo, 0 vi- vente de Lispector tampouco coincide com a “nuda vita” de Agamben, que € a abolicdo de toda poténcia ea aniquilacdo de toda relacao. O bios “em comum” aqui diz que essa “nuda vita’ nao existe, ou que s6 existe como sonho do poder, como fantasia soberana,) Essa comunidade ¢ irredutivel ao humano:é a comunida- de dos corpos, a comunidade dos viventes.f feita de lingua- gens, evidentemente, mas também ¢ feita do n6 opaco, do (O animal em comu \: Clarice Lispector 137 avesso incerto, indeterminado das linguagens: das vibragdes, dos sons, dos gritos e dos siléncios mesmos que saem dos corpos, € que aderem as palavras que pronunciamos ¢ aos tragos que escrevemos, ¢ que pontuam o sentido em direc6es alheias as da consciéncia e da intencionalidade do eu. O bios comum é, ois, 0 vivente ali onde a linguagem o inscreve, dentro e fora da significagaio: na palavra ena voz, no sentido e nos sentidos, Esse 60 bios que Lispector persegue, ou oquea assedia:esse bios cchega a sua escrita com a promessa de outra vida que éa da vida comum, a vida em comum, a vida que nao seja sempre ja propria, apropridvel, privatizével - e portanto capitaliz4vel, objetivavel. Essa vida impropria 6, se se quiser, a utopia desta esctita -e desta leitura -,e deve entender-se contra o fundo da colonizagao sem precedentes que as décadas recentes impuse- ram a essa vida que aqui se quer o tecido do comum, sua ossibilidade mesma, Uma politica do comum: por isso a es- crita de Lispector se torna urgente numa inflexao histérica em quea questo da comunidade e a questo da biopolitica cons- tituem 05 eixos a partir dos qu Uma comunidade nao humana, uma comunidade entre se reimagina 0 politico, a linguagem ea voz, entre os sentidos ¢ 0 sentido, a partir de ‘um bios que € relacao e nao esséncia: no centro dessa reflexdo ~em seu ponto de partida, que ¢ também o de sua potencia e sua realidade- esta o animal, sua proximidade incomensuravel, 138 FORMAS CoMUNS sua promessa de justica que ésua linha de fuga incessante. All onde o animal emerge numa proximidade sem lugar predeti- nido, onde deixa de ser “o outro” do homem (mas tampouco, evidentemente, se identifica com ele), é que se torna a instan: cia a partir da qual se repensa a possibilidade do comum: a partir desse vivente sem nome proprio. Dessa tarefa ¢ feita aescrita incessante de Lispector. NNOTAS 1. Clarice Lispector, paid segundo G.H Paris: ALLCA XX/Fondo de Cultura Econémica, 1996 Todas as citagdes remetem a esta edigSo. 2. *E que ali dentro da minha cas se alojera a estrangcra, a inimiga indie rente”(ISPECTOR, 1996p. 29, “Ali dentro de mi casa, se habia alojado la extranjera a enemiga indiferente” idem, 2010.52) 3 Sllviano Santiago interroga estes movimentosem seu estudo sobrea ques: ‘0 animal em Lispector. Ver Silviano Santiago, “Bestar (2004, pp 192: 20, 4. ‘Definiro viventeescreve Anne Sauvaugatnesa propésito do pensamen: to deleuzlano, “é descrever, como diz Michaux, a vida nas dobras, «ss ar ranj da matéria que procede da caractristica funcional da membrana de ‘deixar pasar certassubstinclas endo outras, ede organizar o espagoa pa Ur desi mesa, segundo a assimetra caracterstica do vivente .)a mem: brana constituiliterelmentea interioridade, cra" Définirle vivant c'est ‘écrit, comme le dit Michaux, la vie dans les pis cet arrangement dela ‘matire qul procede de cette caractristique fonctionnelledela membrane de asser passer certainessubstanceset non d'autres et organiser space animal em comum: Clarice Lispector 139 4 partir delle meme, selon Fasymétrie caractérstique du vivant (.) la ‘membrane consttuelttéralmente 'intériorté elle acxée"LO corpo -ea lstrbuicto entre interior exterior ue o define -s6 tem lugar a partir da ‘membrana e obedece 3 esa logica pela qual ndo ésendo uma aticulacao. ‘de membranas:“o vivente secaracteriza pelo fato de que el fz proliferar _meiosinternos eexternes no onganismo,¢absolutamente ndo se contenta ‘com opor de maneiraestatica o interior corpora ao mundo exterior” Ile vivant se caratérse parle falt qu'il fait prolifer des milieux intéricuset extéreurs dans Yorganisme, et ne se contente pas du tout opposer de ‘mane statique 'interieurcomporel au monde extéreu'L E, pos, mul tiplicagaoe prolifersao desse espaco intermédio, dese entre que a mem. brana.a umas6 vez consttuie desdobra,o que tubstituiaqui a demarcagio formal disso que chamamos “um corpo” GAUVAUGARNES, 2010, p28 Em Clarice Lspector,Figurasdaecrta, Carlos Mendes de Sousa argumenta ‘que a escrita de Lispectoréa primeira mais radical airmagdo de um ndo ‘ugar na literatura brasileira” 201, p14 Em uma literatura marcada por ‘Seuinteresseem defini pertenga a partir do teritrio a obra de Lispector {rabalh, a0 redor desse“ndo lugar um impulso de desteritorializagdo.¢ de interrogagao critica acerca da pertenga e da identidade. 0 critico, ‘rabalha em tomo de diversas “figuras” ese nfo lugar,eo animal seré uma ‘dels. animal em Lispectorapontara para ese umbral de irracionalida. dee corporalidade que desarranj toda nocio centrada de suit, tornan. {dose ui dos signos mais Gbvios pelos quais se caracteria a escrita de LUspector, Animale esrita se tomam em um sentido intercambidvels 0 rimeiro figura” da segunda. Trata-e ce wena letura detalhada e exaus {iva em chaveautorreflexivaeauténoma de Lispector, pela qual os mate- rials da excita terminam por conduzie a uma instincia onde o que se Pensa €a escrita mesma, e onde odo lugar claramente, oque se institu «partir doato de escrever. Aqui interessam outros movimentos:o bias ‘como informe, mais que a figura co animal, ea politzacdo dos materais \dacescrita ali onde o gestoautorreflexivo¢ implacavelmentetransbordado or uma tensio que a escrita ji ndo pode conter. 140 Formas comuns 6 Reconhecer-se-4o aqul alguns dos principios em tomo da individuaso Segundo George Simondon (2010) 7, Por exemplo, Derrida comega seu animal queddoncjesuisa parte do olhar ‘dogato em sua casaem outro registro, Bill Viola trabatha oolhar das aves ous talver mals precisamente, os olhos- como instincia de um reflexo lnreconhecivel,em [do not know that itis that Lam like, de 2004. A ques {io do othar animal eda reciprocidade que se joga ante o olhar humano um dos materiais centrais da dlscussSo em torno da questio animal, ¢ Aispdeo expaco para pensar subjetividade animal em termos de concep s8esnio antropocéntricasdesueito que se jogam, precisamente,ema tomo da densidad profundidade do olhar animal ale ié uma recprocidade Intraduzivel 8 linguagem, mas articulével em termos de afetoe sensibi dade. 8, Em seu jf citado Figuras a esrta, Carlos Mendes de Sousa Ié 3 questo Animal nesa dire, 9, Ver Maria Pia Lopez, Hacka la vida intensa (200. 10, “acoisa mals primordia” (dem, idem, 19) 1 Ressoa uma ver mais com a nogo deleuziana de vida, que implica pensar {que “o vivente formadb esté em excesso em sua propria organizago, em ‘que a evolugiooatravessa co desborda" Me vivant forméest en exces sur ‘S.propre organization, en quoi'évolution le traverse et le déborde"le que, pPortanto, nfo se reconhece numa forma ou num corpo determinado, ¢ sim nessa abertura enesse desbordamento (ZOURABICHVILI, 2003, p88). 12, Ver Nancy Stepan, The Hour of Eugenics {91} Adriana Miranda & Gusta {vo Vallejo, (comps), Darwinismo socal yeugenesaen ef mundo latino 2005, ‘specialmente Susana Garcia, “Herenciabioldgica en el dscurso de nats rasta argentines de principios del siglo XX", pp. $3562. 13, Ver Gina Saracen, “La intimiad salvaje El grado animal de la lengua" (2012, pp. 163179, 14, Para nogdo de individuagso, ver SIMONDON, op it. animal em comum: Clarice Lispector 12 1S. Referindo-e a A hona da estrela, Marta Peixoto assinala uma operasio se _melhante: Sangue e vimito, obsesivamentefrequentes neste texto as ‘alam abertura do corpo ea rupturado seusistema autocercad Blond ‘and vomit, obsessively frequent inthis text, signal the opening up of the body and the rupture ofits self enclosed system" (1994, p. 94, FORMAS COMUNS Excurso. O animal comunista ‘Nofinal dosanos 1930, quando, podemos imaginar, Lispector ‘comecava a escrever 0 que seria seu primeiro romance, Perto do conagio selvagem (publicado em 1943), em que sua protago- nista, Joana, “sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de Inconsequéncias de egoismo e vitalidade”, fazendo doanimal ‘osigno dessa vida que ja ndo se podia confinar nem se cana- lizar nos limites de um corpo feminino disciplinadoe norma- lizado, nesses mesmos anos tinha lugar, numa prisio do Rio deJaneiro, uma cena que unia de modos muito diferentes, ain- da que talvez nao de todo alheios, animalidade, politica e re- sisténcia, Nessa cena que tem lugar em 1937, Heraclito Sobral Pinto - um advogado opositor do regime de Getilio Vargas - éensaia um recurso legal inédito: invoca os direitos animais para defender a vida de um preso politico, O preso é Harry Berger, ‘um dos lideres, junto com Luiz Carlos Prestes, da Revolta Ver- ‘melha de 35 (ou Intentona Comunista), a primeira revolta Excurso. O animal comunisea 144 ‘comunista na América do Sul. Desce sua prisfo em 1935, Berger vinha sofrendo torturas ¢ vivendo em condig6es infra-huma- nas de vida que punham em risco sua sobrevivéncia, Harry Berger (cujo nome real era Arthur Ernest Ewert) era um judeu alemao, quadro do Partido Comunista, que havia viajado de Moscou para organizar, junto a grupos locais, a possibilidade comunista no Brasil ativando setores progressistas do exército brasileiro, Pronto encontrard seu destino sul-americano: a re- Volta sera esmagada pelas forcas de Getiilio Vargas, e seus li- deres presos, quando nao diretamente deportados (como 0 caso das esposas de Prestes e de Berger, que foram enviadas ‘Alemanha, onde as internaram em campos de concentraglo nazista). Vargas aproveita a revolta para declarar o estado de excegao e instituir um Tribunal de Seguranca Nacional que determinara os destinos destes presos politicos. Harry Berger levara a pior: torturado, mal alimentado, isolado (ndo fala Portugués), serdarrojado a uma espéciede pordo da sede da “po- licia especial” do Rio de Janeiro, onde permaneceré por mais de dois anos. A pristio como zona de excegao soberana: Harry Berger ~estrangeiro, judeu, comunista - se somaré dali ao des- file incessante dos homo sacerlatino-americanos, Depois de repetidos e intiteis habeas corpusque Ihe demons- tram que o estado de excegao mudou definitivamenteas regras de jogo juridicas, o advogado Sobral Pinto recorrea uma tatica FORMAS CoMUNS ‘sem diivida teatral, mas ao mesmo tempo reveladora: invoca © Decreto de Protecdo dos Animais que o mesmo governo de ‘Vargas havia instituido em 1934, e que dispunha, entre outras, coisas, que “Todos os animais existentes no pais sao tutelados do Estado” e que “Aquele que, em lugar ptiblico ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus-tratos aos animais incorreré em ‘multa (..) ena pena de prisio celular..”. O decreto continuava linha de uma legislagao bastante avangada que, desde a dé- ‘cada de 1920, havia perseguido no Brasil diversas formas de rueldade animal, como as rinhas de galos ¢ as touradas. No entanto, dava um passo além: definia os animais como sujeitos de direito que podiam ser representados pelo Estado; e traga- va de modo especifico as condigdes de bem-estar de que devia Sozar todo animal que ficava, agora, sob a protecao do Estado nacional. Diz, por exemplo, que “mau trato” inclui “manter animais em lugares anti-higiénicos ou que Ihes impecam a espiracdo, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ‘0u luz” tal, diz 0 advogado, é a situagao de Harry Berger em sua prisdo ilegal (PINTO, 1979, p.75).O gesto € notavel: ji que o €orpo do preso ndo parecia reconhecivel nem sequer pelo re- ‘curso extremodo habeas corpus, o advogado 0 torna contiguo 0 animal; se esse corpo nao pode ser tratado sob os direitos dda pessoa, que seja tratado sob os direitos dos animais: sua existéncia no deve ser uma excegao a lei dos corpos; a priso Excurso, O animal comunista comunista na América do Sul. Desce sua prisio em 1935, Berger vinha sofrendo torturas e vivendo em condig6es infra-huma- nas de vida que punham em risco sua sobrevivéncia. Harry Berger (cujo nome real era Arthur Ernest Ewert) era um judeu alemao, quadro do Partido Comunista, que havia viajado de Moscou para organizar, junto a grupos locais, a possibilidade comunista no Brasil ativando setores progressistas do exército brasileiro, Pronto encontrard seu destino sul-americano: a re- Volta sera esmagada pelas forcas de Getiilio Vargas, e seus li- deres presos, quando nao diretamente deportados (como 0 ‘caso das esposas de Prestes e de Berger, que foram enviadas ‘Alemanha, onde as internaram em campos de concentraglo nazista). Vargas aproveita a revolta para declarar o estado de excegdo e instituir um Tribunal de Seguranca Nacional que determinara os destinos destes presos politicos. Harry Berger levara a pior: torturado, mal alimentado, isolado (ndo fala Portugués), serd arrojado a uma espéciede pordo da sede da “po- licia especial” do Rio de Janeiro, onde permaneceré por mais de dois anos. A pristio como zona de excegao soberana: Harry Berger - estrangeiro, judeu, comunista - se somaré dali ao des- file incessante dos homo sacerlatino-americanos, Depois de repetidos e intiteis habeas corpusque Ihe demons- tram que o estacio de excecao mudou definitivamenteas regras de jogo juridicas, o advogado Sobral Pinto recorrea uma tatica 144 FoRMAs comuns ‘sem ditvida teatral, mas ao mesmo tempo reveladora: invoca © Decreto de Protecdo dos Animais que o mesmo governo de ‘Vargas havia instituido em 1934, e que dispunha, entre outras, coisas, que “Todos os animais existentes no pais sao tutelados do Estado” e que “Aquele que, em lugar ptiblico ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus-tratos aos animais incorreré em ‘multa (..) ena pena de prisio celular..”. 0 decreto continuava linha de uma legislagao bastante avangada que, desde a dé- ‘cada de 1920, havia perseguido no Brasil diversas formas de rueldade animal, como as rinhas de galos ¢ as touradas. No entanto, dava um passo além: definia os animais como sujeitos de direito que podiam ser representados pelo Estado; e traga- va de modo especifico as condigdes de bem-estar de que devia gozar todo animal que ficava, agora, sob a protecao do Estado nacional. Diz, por exemplo, que “mau trato” inclui “manter animais em lugares anti-higiénicos ou que Ihes impecam a Fespiracdo, o movimento ou 0 descanso, ou os privem de ar ‘ou luz” tal, diz 0 advogado, é a situagao de Harry Berger em sua prisdo ilegal (PINTO, 1979, p.75).O gesto € notavel: ji que o €orpo do preso nao parecia reconhecivel nem sequer pelo re- ‘curso extremodo habeas corpus,o advogado 0 torna contiguo 0 animal; se esse corpo nao pode ser tratado sob os direitos da pessoa, que seja tratado sob os direitos dos animais: sua existéncia nfo deve ser uma excegao a lei dos corpos; a prisio Excurso. O animal comunista Ido pode ser diferente das granjas, dos criadouros ou dos pré- Prios matadouros, cujas crueldades estavam, ao menos em {eoria, sendo controladas e mitigadas pelo mesmo Estado, Para acentuar a vigencia dos direitos animais, Sobral Pinto junta 4 peti¢ao uma noticia jornalistica na qual a justica havia con- denado a prisao um individuo que havia castigado violenta- mente seu cavalo até maté-lo; 0 mesmo Estado, parece dizer © advogado, € 0 que castiga a violéncia contra o animal, mas a perpetra contra os presos, Provavelmente sem suspeité-lo, Sobral Pinto poe em cena 4s contradigées de um Estado nitidamente biopolitico, isto &, tum Estado que se autodefine como protetor da vida, mas que or isso mesmo € capaz de reduzir a despojo a existéncia de ertos corpos; que faz dos animais “em geral” corpos reconhe-

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