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| a Momento, como vimos, que j& vinha de longe. Jé & tempo «le se colocar um ponto final nesta pequena homenagem que presto 20 meu amigo, colega ¢ confrade, Miguel Reale, chamando a aten- 0 do leitor para a justeza dos trés textos colocados como epigra- fes no cabegalho. deste escrito: todos se aplicam ao Prof. Miguel Reale por inteiro, sem deixar resto, ee Permitao Ietor que fale de mim: fui preso, mantido incomunicavel, ¢ aposentado, ‘em 1969, sem acusagao formal nem direito de defesa. Por iso, ndo aceite & ani tia ¢ jamais volte & Universidade, E, na época, encontre, em Reele, concreto © ‘ostensivo apoio moral. 388. JUIZO DE VALOR E CIENTIFICIDADE DA HERMENEUTICA JURIDICA NO PENSAMENTO DE MIGUEL REALE Tercio Sampaio Ferraz hinior/ Faculdade de Direito - USP 1. 0 problema do juizo de vator no conhecimento Nao € nova a polémica em'tomo da objetividade do conhe- cimento, quando sujeito a juizos dé valor. A questo repercute mais, intensamente no dominio das ciéricias humanas, afetando a legi midade de seu estatuto cientifico. No plano’ da ciéncia jurfdica, 0 problema é ainda mais contundente, posto que & propria teoria juri- dica chega a discutir se ¢ em que limités a doutrina constitui ou nio uma fonte do proprio direito, seu objeto. No que concerne ao conhecimento social ~ ciéncias sociais, ~ tome-se, a titulo de introdugao ao tema, 0 qué diz Mannheim (deologia e Utopia, p. 207), a piopésito do conheeimento histér co-politico que, a seu ver, produz tim tipo de pensamento muito peculiar, que nao € teoria puramente objetiva, mas que, no obs- tante, encerra uinia real percep¢ao das coisas. Trata-se, assim, de conhecimento sempre parcial, que vé as coisas a partir de certas perspectives, isto é, umi conhecimento que surge em associ: ‘com interesses coletivos de um grupo, desenvolvendo-se em ex: tteito contato com cles, mas que, apesar disso, oferece uma visio de realidade, tal como pode ser observada de um fnguto especttivo, Assim, neésas dreag de conhecimento, é inevitével que as percepgées dos objetos como realidades exibidas pelo trabalho ci- eentifico contenham os tragos da posigZo do conhecedor. Em assian sendo, uma solugao para 0 problema que surge estaria, conforme Mannheim, nao em esconder aquelas perspectivas, que silo de natu: 389 valorativa, mas em formular a questo de como, apesar delas ou até mesmo com 0 auxilio deltas, ainda € possivel um conheci- mento objetivo e, nesse sentido, cientifico (p. 316). Para Mannheim, esse conhecimento exigitia um método préprio, consistente do que ele chama de imputagdo significativa. Um tal método pede, primeiramente, que 0 cientista social fixe e tome patentes as suas préprias estruturas perspectivistas, relac nando-as com correntes de pensamento e ligando estas &s condicio- nantes sociais que the deram origem. Em seguida, que proceda a ‘uma interpretagio dos fendmenos, isto é, & reconstrugdo de unida- des tipicas, por meio do relacionamento dos fenémenos com uni- dades de cosmovisdes que eles manifestam. Por fim, que faga a ve- rificagdo de como e em que medida as unidades tipicas assim re- construidas podem valer como um tipico ideal para 0 estudo do fe- nOmeno em uma determinada época, 0 que deve permitir, entio, a construgdo de um retrato concreto do curso € da direcio do desen- volvimento fenoménico efetivamente ocorrid De certo modo, uma proposta metédica como esta atrib tum papel importante e incontorndvel para o juizo de valor na me- todologia das ciéncias humanas, no sentido da necessidade, por parte do conhecedor, de assumir as proprias perspectivas, mas su perando, o quanto possfvel, os limites da sua subjetividade. problema gerado pela presenca de juizos de valor, no ato cognitivo, tem uma razio especttica. Faz mister que se distingam, pois, em beneficio da clareza, trés questdes."A primeita refere-se & base valorativa, isto é, & questo sobre até que ponto, no funda- mento de toda e qualquer ciéncia humana, h4 valores. %A segunda_ refere-se ao papel das valoragdes no quadro objetivo das cigncias humanas, isto 6, até que ponto eisas ciéncias precisam fazer das valoragées um objeto do prdprio estudo. Por timo, temos 0 pro=— blema dos juizos de valor propriamente dito, qual seja, até que pontoas ciéncias hunianas tem, entre os seus enunciados, enuncia- dos valorativos. Diante desis trés questies, podemos considerar o seguin- te, Quanto & base valorativa, ndo se pode negar que, nao apenas as, cigneias humanas, mas qualquer ciéncia ¢, até mais, qualquer co- 390 tae i mhecimento parte de dados valorativos. A presenca de valores de que valor implique seletividade, est& no fato de que todo cognitivo envolve sempre alguma seletividade..Conb¢ uma ordenagio de aspectos fenoménicos conforme seja, 0-210 cognitivo é também escolha e determina Sscolhia de problemas, de aspectos do problema, dé tée ie hipdteses conforme a.utilidade para os objeti alcarigar, entié observagdes relevantes e despreziveis, etc. Por exemploy wnt rida, iG plano Wo Conhecimento geogrifico, aponta para uma ordenago cognitiva desse tipo. Obviamente a seletivida- de do ato cognitivo nao chega ainda a ser um problema de papel do juizo de valor no conhecimento, Quanto a segunda questo, ja mais no caso das ciéncias humanas, nfo hd necessidade de se por em divida, justamente por ser seu objeto 0 comportamento humano, que este envolva intrin- secamente valoragdes e valores. Nesses termos é inegavel que as valoragdes ¢ 0s valores compiem 0 objeto do conhecimento. A grande disputa, na verdade, estd na terceira questio, con- sistente em saber se as ciéncias humanas, para ¢studar objetos va- lorativos, emitem ¢ tém de emitir, elas préprias,juizos valorat 2. A questo da objetividade cientifica da hermenéutica Juridica A determinago do sentido normativo do direito, para 0 efeito de sua aplicagdo ao caso concreto, é uma das tarefas centrais, da cigncia juridica. Trata-se de uma atividade pritica, ¢ nisso ela se distingue de objetives semelhantes encontrados no ato de compre- nso, pr6prio das demais ciéncias humanas. Nesses termos, 0 pro- pésito basico do jurista nao € simplesmente compreender o texto de tum dispositive normative dado, como faria, por exemplo, um his- toriador; ao estabelecer-Ihe 0 sentido € 0 movimento no seu con- texto, mas também determinar-Ihe a forga e 0 alcance, pondo o texto normativo em presenga dos dados atuais de um problema, Ow seja, a tarefa do jurista nao é simplesmente conhecer, mas fi a1 tendo em vista as condigdes de aplicabilidade do dispositivo a in- texpretar. Isso cria, para a hermenéutica juridica, dificuldades ainda maiores, quando se intenta fundar sua objetividade cientifica. E isso, porque, por pressuposto, no ato hermen€utico do jurista é ine- vitivel a prescnga do juizo de valor como seu elemento integrante € mesmo essencial. Afinal, num certo sentido, no direito, nio ha interpretagdo sem valoracdo, Ora, os representantes de varias correntes metodolégicas costumam conceber a tarefa de um conhecimento cientffico como a descri¢ao do comportamento de um objeto em determinado setor. Para isso, a ciéncia constréi modelos cognitivos, constituidos dos seguintes fatores bésicos: a) o interesse seletivo do sujeito cognos- cente, como ponto de partida (fator valorativo); b) constatagdes de propriedades intersubjetivamente verificdveis de uma situagao dada ator axiologicamente neutro); c) operagies seletivas que permi- tem aquelas constatagées (combinagao de fator valorativo e de fa- tor axiologicamente neutro); d) construgio de esquemas simbdlicos que permitam. ao sujeito cognoscente operar com os fatores (a) & (O), tendo em vista o objetivo (b) (ator que também combina o valorativo ¢ 0 axiologicamente neutro). Com base nessa concepedo, dever-se-ia reconhecer uma enorme dificuldade para fundar a cientificidade dos atos her menéuticos no campo juridico. Afinal, a interpretagio juridica, quando visa & compreenszo do direito em sua altissima complexi- dade estrutural (fendmeno 20 mesmo tempo normativo, tanto no sentido de vinculante, como no apelo técnico A racionalidade dos fins, fético, quer nas imbrincagées entre individuo e sociedade, como na multiplicidade dos fatores ~ econdmicos, sociais, religio- 808, etc, ~ ¢ axioldgico, a servigo de muiltiplos valores, apreendidos ideologicamente de forma peculiar), revela uma espécie de desor- ganizagio e desintegragao, manifesta na multiplicidade e variedade dos chamados métodos interpretativos. ‘Tais métodos configuram, na verdade, técnicas de inter- pretacdo, atravessadas por fatores vaiorativos em toda a sua exten- so, até mesmo quando parecem apelar para dados estcitamente I6- 392 ia a gicos e sisteméticos. Mais ainda, falta a eles uma clara percepgiin da complexidade integral da estrutura objetiva que pretendem cap- tar, © que confere & sua seletividade (fator a) evidentes distorgdes, torna impossivel uma segura verificagdo intersubjetiva (fator b) que se transforma em um mero jogo de persuasio, leva, por conse- ‘guinte, ndo a operagoes seletivas comuns, mas a0 ocultamento es- tratégico das operagées (fator ), de tudo resultando esquemas sim- bélicos de alta subjetividade (fator d). Nessas condig&es compre- ende-se 0 ceticismo Kelseniano, que nega capacidade de generali- zagio objetiva & hermenGutica doutrinéria sustenta que apenas @ interpretago da autoridade tem validade.geral. Bem face desse tipo de dificuldade que se insere a concep- do de Miguel Reale a propésito do ato interpretativo no diseito. O Incite G6 sua anise conpreensva-eSt josie saber en- firentar a questio dos juizos de valor na construgio de modelos jermenéuticos, tendo em vista a especificidadé da éstrutura alta- ‘mente complexa do obj 3. A construgiio de modelos hermenéuticos Principia Miguel Reale por esclarecer, com acuidade e pre- cisdo, a complexidade esirutural do objeto do ato interpretativo no ireito. diteito a ser interpretado.€ percebido; inicialmente, na relagZo entre o normativo e o fato. Nessa relagao, 0 faro nao &, po- rém, tomado como um “pretenso fato puro origindrio”, como um dado bruto recebido ab extra, mas significa “aquilo que ja existe ‘um dado contexto histérico”; 0 fato, assim, "“é uma porgdo do real 2 qual se refere um conjunto de qualificagées”, ou, expresso numa linguagem fenomenolégica, “a base de um complexo convergente de significagées, que pressupdem um eidos, isto €, uma ‘esséncia’, inconfundfvel com o ‘ato’ como tal”. Nesses termos, sob 0 prisim da norma (em elaborago), “fato” quer dizer “tanto dado de nature: 2a ou um acontecimento independente da vontade humana, come 08 eventos e realizagdes resultantes dela (0s objetos hisérieo- culturais), inclusive os modelos juridicos enquanto ja positivaulos, 308, cote Pasa nhenenennnninuiistaibreinnrtieitet «le Gpicidade” embrionéria e de natureza axiol6gica, niio send portant, algo que, em dado momento, passa a fazer parte do mun Wo juridico, mas sim algo “4 dotado de sentido”. Esta concepeio de fato permite, assim, a Miguel Reale, wma re-interpretagao da estrutura da norma na sua referéncia & realidade”. A norma deixa de ser ai um a priori, dado antes do ‘caso concreto, um “esquema” ou “medida” de validez da “realida- de", para ser urn “modelo funcional” que contém em si mesmo 0 “fato"; em outras palavras, que envolve em si, como componente integrante, intrfnseco e necessério, 0 momento situacional. Desse modo, enquanto num normativismo abstrato a norma se contrapSe 20 caso conereto, em termos de ajuste ou desajuste, isto é, a norma, confundida com 0 seu texto, € um tipo geral oposto & individuali- cade conereta, & qual ela tem de ser adapiiida, tio HorTmaTVistIO gonattn, de Reals, « noma se conexionsiimamente com a sia ie”, Por conseguinte, se € poss(vel afirmar-se que a ca, enquanto texto, é um “juizo légico” ou “posigio normativa” onde aquele € visto cortig siniples “suporte ideal”, gra- {¢25 20 qual — uma dada poredo da experiéncia humana é qualifica- Ga especificamente como “experiéncia juridica”, € preciso, por outro Iado, dizer-se que a norma alberga, na sua estrutura, um ‘campo que Ihe é proprio e um programa que constitui o seu sentido (prospectivo). Em outras palavras, a.concepcao de Reale coloca dentro da norma mesma a problematic da rlagao "ai fidade". Com isso se elimina a oposigdo que se observa enifé O“@I= r8it” como “norma” e o “direito” como “conduta”. O diteito é, para Reale, “a norma e mais a situaco normada”, isto é, a “situa- 40 normada” nfo é um terceiro, em relago a propria norma ea realidade concreta, mas constitui, com a norma, in concreto, uma totalidade significativa. Com essa compreensio de norma, o campo de seu repert6rio ~ 0 “complexo fético” ~ nfo pode ser analisado separadamente, por uma sociologia cega para um momento nor- mativo, nem o programa, que Ihe é imanente e que The confirma Ihe garante 0 sentido ~ 0 “complexo axiolégico” — pode ser objeto de uma consideragao desligada do proprio repert6rio, nem, final- ists ¢, jd feitos pelo homem", Hi no conceito de “fato” uma “nota | 394 i mente, a propria norma, enquanto texto, pode ser entendidla, se 1 duzida a um mero “suporte ideal”, sob pena de incorrermos nun formalismo abstrato, Ao contrério, quando isso ocotre, a presen de juizo de valor no ato hermenéutico fica sem controle intersubje- tivo, dando razio ao ceticismo quanto ao seu fundamento de obje tividade. Nio basta, entretanto, segundo Reale, mostrar, topologi- camente, que a norma constitui, por si, uma estrutura complexa, onde diferentes elementos se contrapdem e se implicam numa to- talidade. E preciso uma demonstrago de qualidade experimental dessa estrutura, para superar o problema que a prépria complexida- de estrutural do dircito coloca ¢ que redunda na desorganizacio do pluralismo met6dico da hermenéutica e na desintegragio do seu sistema interpretativo. Isso nos conduz, pois, & andlise que Reale denomina “fenomenolégica” do ato interpretativo. A interpretagdo, diz Reale, é sempre “um momento de in- tersubjetividade”: “o meu ato interpretativo, procurando captar © trazer para mim 0 ato de outrem, no para que eu mesmo signifi- ‘que, mas para que eu me apodere de um significado objetivamente valido”, O ato de interpretagio, portanto, implica uma duplicidade inicial, onde dois elementos polares ~ sujeito ¢ objeto ~ estéio pos- tos um diante do outro. Essa polaridade, entretanto, no significa ‘um abismo irredutfvel, donde a constatagio de uma unidade precé- ria, de natureza meramente légica, mas sim uma integracZo aberta, em que 0s elementos constituem uma sintese: para o intérprete, aquilo que se interpreta consiste em “algo objetivo”, porém ele no se limita a reproduzi-lo, mas contribui, de certa maneira, para “constituf-lo em seus valores expressivos”. Num segundo momen- to, contudo, essa duplicidade inicial se esclarece como “intersubje- tividade”, na medida em que 0 “algo objetivado” a que se dirige 0 ato interpretativo nao é uma coisa mas um outro ato: “as intencio- nalidades” “objetivadas” constituem 0 dominio proprio da inter- pretagdo, “Intersubjetividade” significa, pois, uma vineulacao entre dois elementos que se piem distintamente, mas ao mesmo tempo se interpenetram e se limitam. 395 A consoqiiéncia disso, para a hermenéutica, é a correlaciio, ‘ssinalada por Reale, entre 0 ato interpretativo © 0 ato normative, die S¢ Podendo, senio por abstragtio e como linha de orientayae ia pesquisa, separar a regra e a situago regrada’. 0 instante de on. contro de ambos se dé propriamente na norma juridica, entendida, nko como atualizagio de um valor prévio ¢ absoluto, mas como momentos de uma experiéncia espectfica, em que o complexo fati. Passa a distinguir-se tanto do querer psicolégico do legislador quanto de uma validez. absoluta que se especifica, resultardo, a0 contrdrio, do “processo de objetivagio de valores”, que se realiza, Por sua vez, através de “manifestagées concretas da vontade" A norma no é assim, um “comando de ordem volitiva”, mas uma Prescrig¢a0 em caréter axiolégico, que no obriga, em virtude do aro querer de que emana a norma, mas sim em virtude de pressio Gbietiva que os valores exercem no meio social. Dessa eoncepeao go ato normativo segue-se a impossibilidade, para a interpretaeao jutidica, de fazer abstragio da “nota de prescritividade valorativa insita n@ estrutura da férmula objetivada”. Ou seja, o jurista, a0 in ferpretar a norma, refaz 0 caminho da “formula normativa” a0 “ato hormativo": tendo presentes os “fatos” e 05 “valores” “superve nientes, ele compreende, a fim de aplicar em sua plenitude 0 “si, Bnificado nela objetivado”. A captagio hermen6utica da estrutura da norma torna-se, pois, evidente, De um lado, a “realidade”, ou melhor, o “‘compleno {itico”, insepardvel da norma, nos quadros da sua normatividade, revela-se hermeneuticamente como componente constitutive da Prépria norma. De outro, 0 “complexo axiolégico” evidencia, ‘gualmente, a sua qualidade constituiiva no plano hermentutico, A ereepedo hermenéutica da norma é, na verdade, um aspecto part- cular da correlagéo sujeito-objeto, toda interpretagao implicando uma compreenséo da estrutura da norma e vice-versa, Isto &, ni so © ato interpretativo se correlaciona a uma tomada de posigéo pe- ante o “ser mesmo do direito”, mas também a anslise estrutural da 396 ‘porma exige a dimensio hermenéutica: “Toda norma, pot . bre representagio de um valor e objeto de voligio, jamais pode deixar de ser interpretada, no podendo haver norma que dispense interpretagio (essencialidade do. ato interpretativo)”, A norma se Clarifica, nesse sentido, como “modelo juridico” enquanto “estrutu. r2¢H0 volitiva do sentido normativo dos fatos sociais”, referido a “modelos dogméticos”, enquanto “estruturas teoréticas” que proce. ram captat ¢ atualizar 0 valor da norma na sua plenitude. Os “modelos juridicos” enquanto modelos-objetos nao sto buras abstragGes, ou seja, nfo so menores esquemas ideais, pois a normatividade que eles expressam abstratamente se articula neces. sarlamente com “fatos” e “valores”, configurando-thes.o cardter de “modelos operacionais”. Bles resultam de um “trabalho de aferiga0 de dadios da experiéncia”, tendo em viste a determinacio de um {ipo de comportamento possivel e também necessério & convivén. no so nem puras abstragdes nem meros esquemas de aplicagao, mas cavolvem “uma certa opgio ou preferéncia”, resultante da afe. {igo objetiva dos elementos analisados, correspondendo a uma “intencionalidade te6rico-compreensiva", cuja natureza é também operacional. Na concepgo de modelo de Reale, pois, existe uma articulagdo dos pressupostos teéricos com a atualizagao da experi- éncia, em termos operacionais. Com isso € possivel, e mesmo ne. cessério, correlacionar 0 “momento abstrativo” do estabelecimento Yolitivo da regra com o “momento dogmético” da sua compreen- Sio, © que implica, em iltima andlise,;a superago do entendimento da Hermenéutica Juridica, no sentido de mera aplicagto prética. Esse correlacionamento, ademais, néo se dé na forma de lum recorte isolado no fluxo da experiéncia juridica. Ble nao é est tico, © que o tornaria abstrato, em que pese 0 cacéter conereto ope- racional dos elementos postos em relagio. Ao contratio, 0 proprio movimento entre ambos, submetidos 20 que Reale denomina de “dialética de implicacdo-polaridade”, € dindmico, Essa dinamici- dade peculiar localiza-se na sua natureza essencialmente axioléai 2. Os valores, para ele, néo podem ser concebidos sem a sua py ‘manente referibilidade histérica, na medida em que transcendem 307 forma de objetivagdo normativa, no ato mesmo em que se tor- ‘tam possiveis, Assim, se, de um lado, a norma juridica assinala um “momento conclusive”, mas nao isolado e abstrato, visto achar-se inserida num processus sempre aberto a superveniéncia de novos {atos € novas valoragSes, isso exige, por outro, por parte do intér- prete, uma atitude “hist6rico-cultural” que vai, por assim dizer, para além de uma seméntica ingénua, no sentido de que as palavras da norma podem assumir um significado nao-previsto pelo legisl dor. A temporalidade prépria do direito, afirma Reale, nao é, poi necessariamente sucessiva e linear, “podendo comportar tanto 2 interpenetrago como a simultaneidade das formas ¢ fases. O pré- prio ato interpretative, por isso, significa, ao mesmo tempo, a so- brevivéncia de formas temporais passadas ¢ a projegio das signifi- cages passadas no futuro, no sentido da sua atualizagto prospecti~ va. A captago hermenéutica da estrutura da norma revela, desse modo, para a compreensao de sua qualificagio cientifica, a integrago do “momento de abstracdo conceitual” € 0 “momento ‘écnico ou operacional”, no havendo interpretago e aplicagao da norma que no implique o sentido da totalidade do ordenamento, “nem apreciagao de um fato que juridicamente nio se resolva em sua qualificaglio, em fungao da tipicidade normativa que the cor- responde”. A concepedo de Reale da estrutura da norma, acolhendo no seu interior as exigéncias axiolégicas e as condicionalidades existenciais, que nela se transformam nas razes imanentes da normatividade, ela propria hermenéutica, permite, pois, uma visio organizada das atividades de interpretacio e de aplicagao do direi- to. No ponto intermediério de convergéncia, a norma nio é vista como condig&o a priori de uma decisio, condicao cuja certeza ga- rante a certeza da decisto, mas é, ela prépria, o produto de um-pro- cesso decisério multidimensional. Isso abre caminho para um ree- xame do sentido das diferentes técnicas interpretativas como uma constelagio de fatores em comunicagao metédica, Essa concepedo permite, afinal, a Miguel Reale, conceber um relacionamento novo dos componentes do processo interpreta- livo do direito, na medida, por exemplo, em que se supera a visio 398 esaueie, abstrata da hermenéutica juridica como mero receptor passiver que simplesmente aplica a norma “emitida” pelo legislador fate sensu. Mas, sobretudo, a idéia de que a regra juridica € inerente a “exi- géncia de uma opgdo axiolégica, havida como essencial a uma conduta tipica”, nos remete necessariamente ao sentido operacional do ato interpretativo. Esse sentido operacional implica que as regras de inter- pretagiio € seus objetivos nao sto fixados a priori (isto é, a her- menéutica nao é um a priori racional da vida juridica), mas so re- sultado de um proceso. A palavra resultado nfo nos deve confun- dir. Ela deve ser entendida no sentido de “opgdo axiolégica”, pois, para Reale, todo valor, inerente interpretagio, é escolhido, nio. pertencendo a ela por natureza. Assim, valores, uma vez escolhidos nha interposigao jurfdica, podem mudar, ou porque os fatos que eles iluminavam so outros ou porque os objetivos que eles percebiam se transformaram. E isso explica a possibilidade de proliferagio de objetivos e © conseqiiente aparecimento de possibilidades inter- pretativas em larga escala, Ora, o sentido operacional do modelo hermen8utico estd justamente na inversao dessa possibilidade, na medica em que, na interpretagio juridica, o mimero de objetivos se reduz, tornando-se possivel o controle dos sentidos. Esse sentido ‘operacional nao se localiza, pois, nem nas proposigdes valorativas, nem nas proposigdes descritivas, mas € algo peculiar ao ato inter- Pretativo como reconstrugio operacional de sentido normative do modelo juridico. (Os textos entre aspas sao da obra de Reale: O Di- reito como Experiéncia, Sao Paulo, 1968. O texto de Mannheim & citado conforme a edigdo alema: Ideologie und Utopie. Frankfurt am Main, 1965). 9

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