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10) ray Pd Ca pean cg AERA DO TRAUMA ee Ana COMPREENSAO DO IN >in uel> sine) WRN e a Pelee Teeter ie taoneer) NAO CONSTITUEM UM POVO, ee LIGAO DE FREUD” DN ae eA BOURCIER “E IMPOSSIVEL FAZER POLITICA QUEER av Rooy take) NEOLIBERALISMO" { "TEMOS QUE PENSAR O LUGAR DE CORPOS MOVENDO-SE LIVREMENTE DENTRO DE UMA DEMOCRACIA” Pee el en Er pecoeste teen} Pea emer ua ecut@ecktorabrogantin preterit rte Tc) : Panee Serve rer ters br | 61 321-9100, See uy caer aa Ye ere Nt) Cig re Prec Cert eget Pee eer ee en MUITO ALEM DA DIVERSIDADE DE GENEROS m novembro de 2013, a CULT publicou um dossié editado pela fildsofa Marcia Tiburi a respeito do pensamento de Judith Butler, flésofa norte-americana cuja obra tem provocado e que é reconhe ida como uma das mais influentes intelectuais deste século. Em agosto de nero em discussio”, e assim a CULT apresentou em uma publicagio rio académica, pela primeira ver no pais, a teoria queer, que da sus do afors pesquisas e promovido debates m 1014, Carla Rodrigues, professora da UFR], editou o dossié “O gé tentacio a estudos ainda pouco difundidos, mas cuja importancia nas esferas cultural, sociopolitica e comportamental ¢ inegavel Tornar-se um sujeito feminino ou masculino nao & uma coisa que acontega num s6 golpe: antes, implica uma construcio que, efetiva mente, nunca se completa, afirma Butler, chamando a atengio para o fato de que “a ideta do género &a estilizago de um corpo, um conjunto de atos repetidos, no interior de um quadto regulatério rigido, que se cristaliza para produzit a aparéncia de uma maneira natural de ser Diante de tal perspectiva, é preciso reagir positivamente, como propde a professora Guacira Lopes Louro ao lembrar que “o desprezo ‘€ escitrnio usados para nomear quem se desvia das normas de género podem ser revertidos. Ainda que os vestigios de um discurso de édio rio sejam completamente apagados, eles podem ser reconfigurados Inspirada por reflexdes vigorosas, essenciais &s ideias de justica social e de direitos humanos, a CULT se sente muito orgulhosa de ter dora da cultura queer no > natural nos pareceu, entdo, que uma instituig20 como se transformado em uma grande divul} Brasil. Mui Sesc Sio Paulo ~ que tem entee seus compromissos chamar 3 para a diversidade, reconhecer os direitos fundamentais das minorias c estimular processos de diferenciagao que nos fagam mais humanos participasse da criagao do I Seminario Queer, que acontece em Sio Paulo neste més de setembro, cujos ingressos esgotaram-se uma hora pds terem sido colocados a venda. A cultura queer sai da academia ¢ anha o centro das atengdes na vida social em carter mais amplo, rativa que vem sendo construida coletivamente deva ser assumido por cada um de nés, embora o verdadeiro protagonismo dessa n: gradeso, especialmente, s mulheres Marcia Tibur, Carla Rodrigues, Colabone, Mariangela Abbatepaulo, Gi Berenice Bento e Karla Bessa Completa esta edicao 0 dossé A cultura como trauma, organizado pelo nann-Silva, no qual se debate a importancia do ira Lopes Louro, Marta Raqu professor M: ig conceito psicanalitico de “trauma” paraa cultura, do inicio do século 20 atéos dias atuais, Boa leitura a todos. Days! BREGANTINI sat sd 10 especiat Queer 11 ENTREVISTA jarie-Hélene/San int Ja teoria queern Pedro Paulo Gomes Peroira 16 ENSAIO| Richard Miskolei discute as die nt ‘lerar a diversidade e a acolher, deixar influenci ransformar por ela 20 ENTREVISTA Judith Butler fala da performativida » Carla Rodrigues 28 RESENHAS 2 Judith Butler inédito Pedro Paulo Gomes Pereira 2, Butler discute 0 2 jente do par Carla Rodrigues COLABORADORES CULT 205 CARLA RODRIGUES pofessor8 lutora de Filosofia da UFR sordenadora do Iaboratéric Kn de Filosofia das Aridades vce MARCIO SELIGMANN:SILVA 2 Unicamp DARYAN DORNELLES &fotsgafo professor titular de Teoria Litera 34 Dossié A CULTURA COMO TRAUMA 39 A “desautorizagio" em Feren: por Daniel Kupermann, 46 Aera do trauma, por Mareio Seligmann-Silva 52 Rastios, restos bor Paulo Endo 59 MARCIA TIBURI 60 Livros Novo lv o Vladimir Safate ito dos afetos, pode ser lido como. por Christian Ingo Lenz Dunker 64 OFICINA LITERARIA 65 CARTAS 66 RETRATO Daryan Dornelles PEDRO KOBERLE # aditore editor da evista Cama PEDRO PAULO GOMES PEREIRA 4 protettorlive-docente de Antopologia da Unifesp ‘CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER 6 paicanastae professor le-docente do institute de Pricologe de USP DANIEL KUPERMANN & pacanaita e professor doutor do Iestituto aia da USP MARIO SAGAYAMA & meron Teoria Literéra na USP e trad PAULO ENDO é pricanalst professor outor do institute de Psicologia e do Programa de Pée-graduacio em Humandades, cits ° Ouse Legtimidader, ambos 6a US RICHARD MISKOLE! 6 prose e Sociologia da UESCar «coo ‘do Quereres ~Niceo de Pescusa em Diferengas, Gbner Senvoldade SOFIA NESTROVSKI- tradutora idealizadora da revista Cisma eV QUEER NO MES EM QUE REALIZA O Pa) ekolt) 1 wood A CULT APRESENTA O ESPECIAL A SEGUIR, CUJOS TEXTOS CONVIDAM A riage ¢XoW Mi ue ney IMPORTANCIA DA SUBVERSAO DYN olay CN E DE GENERO aN MARIE-HELENE/SAM BOURCIER PRN RR aaa ry ne een ere eS cicnen ees ear Sam Bourcier concluiu doutorado retool aces Re eased cea een em ree eke ey CO erie een ues Elen teed See eee ee) ieee ee tert tr eer teen ere ete Cert ed Queer zones 2, sex politiques; Blotenee ee ne eee ete ary Pen eee eee cd Cesare) 8 Voce poderia contar um pouco de sua trajetoria intelectual? amie. nELENe/sam sourcier Sou cria do pos estruturalismo francés, alimentado daquilo ‘que os Estados Unidos chamam de French Theory (Deleuze, Lacan, Foucault, Derrida), em uma escola elitista: L’Ecole Normale lades uma busca por performances e interven Supéricure, A teoria queer da primeira onda, ¢desartisticas. Voce poderia falar sobre esse aspecto? com Butler e De Lauretis, queerizou esses sourciek A importincia da performance no meu tfabalho se origina, autores, neles injetando uma boa dose de fe- sem diivida, do sucesso na teorizagao de Butler na esteira de Esther minisino (que nio era seu forte) e desviando Newton, nos anos 1990, e dos performance studies. Mas se deve tam: alguns de seus conceitos para pensar os gé-_bém ao papel por ela desempenhado desde o inicio no feminismo dos neros ~ a performatividade de Derrida na anos 1970, como técnica de desobediéncia civil, de ocupagio do espago obra de Butler, a tecnologia para Foucault na piblico, que toma o corpo como suporte. Era também esse 0 caso de obra de De Lauretis ~ a partir de um ponto Act Up e dos primeiros grupos queer. E, entio, compreender que a de vista minoritirio e politico. Os géneros _ realidade é nao somente construida, mas que passa pela performance foram desvencilhados do sexo dito bioldgico; _e pela performatividade com o corpo e também com a linguagem ¢ sita proliferacio se tornou visivel e gozante; um modo bastante ativo e acessivel de desnaturalizar as coisas e de a drag qucen foi clevada ao topo para que se fazer politica; de poder responder: “queer” & uma ofensa que foi en fizesse compreender que a feminilidade € — globada por quem a recebia em um momento em que puderam se ‘uma performance, uma imitagio sem origi-_ empoderar. Finalmente a performance é um instrumento pedagégico nal. Em linhas gerais, entre uma mulher € formidavel. Bu a utilizo sistematicamente em minhas aulas sobre @ uma drag queen,a diferenca €0 comprimento performance de género, pedindo as/aos alunas/os que filmem uma do salto. As sexualidades desmoronaram gra- performance de género ou de raca ou de etnicidade no espaco publico; G28 a insisténcia de Gayle Rubin e de em minhas aulas sobre o feminismo, nas quais devem “berrar” um Kosofsky Sedgwick. Mas nada teria aconte- manifesto feminista na sala, cido na teoria sem as subculturas queer nas ‘quais ja eram vividas e revindicadas as iden- 5 Vocé poderia falar sobre as oficinas drag king? tidades de género eas sexualidades diferen- sourcier As oficinas drag king sio 0 complemento indispensivel da tes, desviantes, onde 0 gender fucking era drag queen de Butler... E um exercicio excelente de desnaturalizagio usual. O que se tentou fazer na Franca, espe- da masculinidade para todos, tanto héteros quanto homos e queers cialmente com 0s Seminarios do Zoo, foi tra- _Deveriamos fazer oficinas drag king jéna escola primiria, Quando voce re ENSAIO DIVERSIDADE OU OIF sua promessa de igualdade comegou criando modalidades de cidadania ao relegar as mu. Iheres a uma posicio inferior, pois nio tinham acesso 8 educagio, direito ao voto, 20 patri ‘ménio ou qualquer forma de autonomia indi- vidual, mesmo porque eram tuteladas do nas cimento até a morte (Os paises em que a democracia universalis- ta comegava a ser construida também tinham ‘outras contradig6es para lidar, como 0 colonia- lismo e a escravidio em suas coldnias. Na pri- rmeira repailica moderna, os Estados Unidos dda América, em 1848, um grupo de feministas ‘e abolicionistas criou um manifesto conjunto intitulado “Declaragéo de Sentimentos". Suas demandas de direitos iguais sublinhavam o ‘carter servil que a nova ordem politica reser vava as mulheres eaos negros evidenciando que ‘ademocracia na América ainda tinba um longo ‘caminho a construir. Mundo afora, movimentos anticolonialis- tas, feministas e abolicionistas problematiza- ram os ideais universalistas assentados no im- perialismo, na dominagao das mulheres € na ‘eseravidio, Infelizmente, tal hist6ria ndo entrou para os livros, tampouco teve a atengio devida antes da década de 1960, quando tais movimen- tose reconfiguraram e ganharam adesao mas siva, Foi nessa época que emergiu o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a cha. mada “segunda onda” do feminismo e 0 movi mento homossexual. Tais movimentos tinham em comum a demanda de reconhecimento sociale legal de suas diferengas, uma nova for- ‘ma de clamar por igualdade. (© movimento feminista, por exemplo, em sua primeira onda era predominantemente igualitarista, Do século 19 4 primeira metade do século 20, seus principas slagans eram 0 di reito 4 educacio e a0 voto, os mesmos que jt eram garantidos aos homens. Alcangadas essas ddemandas na maior parte do mundo, a partir dda década de 1960, a agenda ferinista é reno: vada e volta-se para direitos que exigem reco: ihecer diferengas. Um deles é 0 da autonomia corporal, o direito de escolha sobre a contracep: ‘io, Em outras palavras, o movimento ~ desde entio ~ tornou-se um feminismo da diferenga, A luta pelo diteito a0 aborto assim como ado movimento homossexual pela despatolo- gizagao e descriminalizagao do desejo por pessoas do mesmo sexo contribuiram para fissurar 0 mito da nagao como uma comuni- dade reprodutiva. A sociedade que, desde a invengao da pilula, comegara a separar 0 sexo da reproducio e cujas demandas politicas de negros envolviam o direito ao casamento in ter-racial, se deparava com um cenirio novo na esfera das relagdes de género, sexualidade «inclusive, étnico-raciais. Desde entio, o mi to da homogeneidade cultural e politica nio cessou de ser cada vez mais problematizado, eno apenas nos paises centrais AS DIFERENCAS NO BRASIL Na época em que emergem as discussdes te6ricas, conceituais ele recentes para lidar com 0s limites do universalismo, o Brasil vivenciava a ruptura com seu passado autoritirio ea expectativa de construir uma © Em Quadros de guerra: quando a vida é ppassivel de luto?, voce politiza a importincia do luto piblico por vidas perdidas. De 2005 2014, 5132 pessoas foram mortas por policiais na cidade do Rio de Janeiro, a maioria jovens, negros e moradores de favelas. Como suas ideias sobre guerra podem ser estendidas a ‘outras situages de violéncia? auirt Acho que também devemos atentar a0 modo com que vulnerabilidade ‘esto diferencialmente distribuidas cendo populagoes inteit tiveis", O movimento Black Lives Matter, nos EVA, torna clara a maneira com q negras sio facilmente “dispensadas”, seja por falta de amparo social ou pela violencia poli cial irestrita, Eu entendo que haja gravissimas ce consequentes hierarquias raciais no Brasil {que nos mostram que uma das formas letais precariedade estabele ‘omo “nao amen que o racismo assume é 0 poder de estabelecer critérios que determinam quais vidas sao me- recedoras de amparo, equais sio disp “nao lamentaveis”. Faz sentido para mim que haja raiva, politicamente justificada, diante dessa forma de poder. [0 Em Relatar a si mesmo: critica da vio- lencia ética, voce defende uma mudanga na concepsio de que estamos vivendo num ni lismo moral. Fale um pouco sobre i supirit Bem, nao tenho certeza do que os con servadores estio colocando, mas aqui esto alguns pontos. Algumas pessoas acreditam que ‘uma mudanga nas normas sociaisiré produzir uma forma de niilismo moral. Se existe 0 ca samento gay, ou se ¢ assegurado as pes trans o direito de mover-se¢ viver como quei ram, isso levard 20 “nillismo moral”. A Igreja Catélica em algum momento colocou que, se a homossexualidade for “aprovada’, o que nos deixaria de “aprovar” 0 sexo com animais, ér- vores etc? Sio todos argumentos histéricos que se recusam a aceitar as mudangas profundas ‘que ocorrem nas normas que ditam sexualida- dee género, Existem outros, na regido da filo sofia, que dizem que devemos agir como se as nnossas agdes fossem universalizaves. Es ‘5 kantianos. Ainda assim, minha tréplica & 26 HBL N-205 {que agimos dentro de nossa situagio historica. Até nossa capacidade de agir est historicamente condicionada e estruturada (ndo determinada) Sinto que ainda nao alcangamos um conceito do universal que realmente inclua todas as populagies que, com direito, desejam ser representadas dentro de seus termos, A conquista talvez seja impossivel, mas é um ideal em direcio ao qual lutamos. E essa luta & historica, = Muitos filésofos, especialmente Hegel, mas também Foucault e Derrida, tém influenciado seu trabalho. Vocé pode fazer uma pe: 4quena selesao de mulheres pensadoras que ainfluenciaram? Jorn Simone de Beauvoir foi muito importante para mim, Foi ela ‘quem me dea, quem deu pra tantos de nbs, a formulagio "Nio se nasce mulher, torna-se uma”, E Monique Wittig, que deu a Beauvoir uma letura original, perguntou se, de fato, qualquer um de nds precisa se tormar mulher, e quais os riscos de habitar essa categoria. Eu também fui profundamente influenciada pela historiadora Joan Scott, ildsofa politica Chantal Mouffe as escrtoras Susan Sontag e Anne ‘mais recentemente pelos trabalhos de Simone Weil e Hannah Arendt. Arendt me deu uma maneira de revisar minha antiga teria de género performativo (mesmo que ela provavelmente detestasse a nogio de sgénero) Ela oferece um caminho para pensar a politica como necessi tando de agdes plurais econsubstanciais,e isso me parece um jeito importante de pensar a performatividade de género com a performa tividade do politico, Enquanto feminista ali muitas grandes autoras aque me influenciaram, incluindo Gayle Rubin, Angela Davis e Bernice Johnson Reagon, para mencionar sé algumas. Talvez sejam meus alu nos que me afetem mais, desafiando as minhas ideias, provocando-me a comhecero presente. TeAoucAo X, PERGUNTA SOBRE SEXO RESENHAS JUDITH BUTLER, CONDICOES DE VIDA E O HORIZONTE DO REPRESENTAVEL |EDRO PAULO GOMES PEREIRA tudith Butler é uma das mais instigantes, intelectuais da atualidade e vem trilhando ‘uma trajetéria impar, com contribuigdes incontornaveis em diversas areas do co- snhecimento. Consta pacidade de ser afetada pelos encontros, enga- jamentos e debates, produzindo reflexdes em toro das indagagDes que surgem dos aconte- cimentos. No Brasil, poderemos acompanhar mais de perto esse percurso como langamento de dois de seus livros: Relatar a si mesmo: cri- tica da violencia ética (Auténtica Editora) ¢ Quadros de guerra: quando a vida é passivel de to (Civilizagao Brasileira) fe em sua obra és RELATAR A SI MESMO Desde Problemas dle género: feminismo e subversao da identidade, Butler enfrentou uma critica sobre certa pressuposicao da presen¢a, em seus trabalhos, de um sujeito auténomo e soberano de seus atos e desejos. Em direcio contriria a essa critica, diversos e reiterados textos de Butler revelam como o sujeito esti comprometido com o poder e que sua acdo &, simultaneamente, interna e externa ao poder. Sendo assim, 1 capacidade de a¢ao nao pode ser imaginada a partir da perspectiva cde um sujeito voluntarista livre para escolher irrestritamente. Butler volta a esse tema em Relatar a si mesmo - livro composto por textos {que surgiram em 2002, nas Conferéncias Spinoza realizadas na Universidade de Amsterda. O tema central ideia de que, para sermos inteligive os estar fora de nés mesmos, pois somos constituidos pelos outros ~ cercados por convengiies ¢ regras que nos afetam, de- pendemos dos outros para viver. Por todo o livro, rnhando uma inter-relacionalidade radical na qual vamos nos consti- tuindo. Ela tece, dessa maneira, uma critica ao sujeito liberal supostamente cOnscio de sie das fronteiras de sua subjetividade. As convenes ¢ regras atuam de tal forma que, quando somos in- tornam im des autora vai dese- terpelados a dar conta de nossos “eus’, as condigies soc possivel e extenuante essa tarefa, O corpo singular a que se refere um relato nao pode ser apreendide por uma narragao total porque o modo pelo qual as relagbes primirias nos constituem produz uma obscuridade za autocompreensio, Dar conta de si mesmo & sempre algo que ocorre tem relagdo a0 outro, uma vez que esse outro estabelece a cena de inter pelagao que possibilitao relatar asi, N5o io nossas invengbes os quadros {que usamos para estarmos inteligiveis para nds e para 0s outros. As ccondligies sociais ¢ as norniag estabelecem um campo de falta de liber: dade e de possibilidade no qual mossas historias sio narradas, A persistente tendéncia 3 naturalizagai de um sujeito auténomo nao se sustenta diante do carter relacionallda vidas a vida nio pode relatar ‘asi mesma nem discorrer sobre sua manifestagio no mundo sem consi derar as normas soc indaga sobre quem sou eu. £ isso 0 que definee conforma o sujeito, que seconstitui nesse contexto de interpelagio e de tndagagdo das possibil- ‘existentes. \ relagi com 0 outro interpela e dlades de uma relagio moral (© que une uma politica critica a uma ética e a unja moral que, por momentos, exige rlatara siem primeira pessoa? Butler respond essa indagasao afirmando que a moral nao € apenas um sintorva mem trans cende 0s quadros sociais, As questies morais surgem quand@ mOrmas. dle comportamento deixam de ser evidentes e ha divergéncias universal ¢ 0 particular, Nesse caso, o universal ndo inelui (nem estede acordo com) o individuo ~ a propria reivindicagio de universalidade nega direitos. Isso nao si (0 por definiglo, adverte Butler, mas s6 que existem condigBes para se exercer a violencia. Por conseguinte, a rellexio moral nio pode ser isolada do contexto sociopolitico no qual foi formulada, A questio da ética surge mas de inteligibilidade, exatamente no lugar nso significado de continuar um didlago sem campo nos limites de nossos esqu onde question: compartilhado, Seja ki como for, hi a necessidade de reciprocar reco: nnhecimento a outrem, cuja interpelagao ¢ incontornivel E por essa dimensio do outro e da interpelagdo que But siderar que a pergunta bisica do processo de conhecimento nio seria ‘em que posso converter-me2”, mas ‘quem és tu?” O “tu” seria. a origem «de todo perguntar. Esse movimento busca retirar 0 sujeito narcisista do centro da ética, pois se admite o outro como constitutivo de cada origem, Qualquer tentativa de relatar a si mesmo teri que assumir que hi uma ‘opacidade intransponivel no processo ¢ tera que aceitar a propria ficgao ddesse relatar. Entretanto, o reconhecimento da propria opacidade e da 50 da limvitagao essencial dos sujeitos nao deve ser percebido como f ética, mas como ponto de partida de uma ética que se afaste da violencia, ‘que se aparte do juizo ético condenaterio de um sujeto seguro de si que acusa o outro. Butler argumentaa favor de uma ética de responsabilidad ancorada nessa opacidade, nesse fracasso, aportada em nossa cegueira sobre nds sobre os outros De al forma que se possasuspender a pretensio de sujitos completamente coerentes, Como adiante, na formulagao de Butk jeito que ndo é autofundante, nem autotransparente, nem auténomo, nem inteiramente consciente de si, Eessa concepsio de sujeito possiilita sus- tentar condlutas eticamente responsiveis, porque reconhece os limites do sjeito a0 mesmo tempo em que constr6idisposicao para humildadee para sgenerosidade, Deixar aberta a pergunta pelo outro é estar mais perto da vida, Jf que a vida é aquilo que excede a explic _mitesintrinsecos do (re)conhecimento, a postura ética seria ade perguntar algo acahaudo coerente. O desejo de reconhecer Jo. Ao reconhecer 0s li: “quem és tu”, sem esper torna-se proximo do desejo de viver, e deixar viver, a base de toda teoria do reconhecimento, Se assim for, averia um afastamento da vio léncia Fundamentada na seguranga de um sujl to que acredita poder relatar a si mesmo, dar conta completamente de sie que circunscreve 0 outro a essa existencia, Seguindo esse raciocinio, sea violencia €0 ato no qual um sujeito procura reinstaurar seu dominio e sua unidade, violéncia pode ser decorréncia da constante in: acio sobre a anterioridade e proeminéncia de minha subjetividade. A questao é sempre deixar aberto 0 encontro com o outro e colocar 1 isco 0 eu”, compreendendo a precariedade ” ‘como condigdo compartilhada, BUTLER i RELATAR A SI MESMO: CRITICA DA VIOLENCIA ETICA JUOITH BUTLER ‘TRapUCAO Rogério Beton 1539.90 « 200 pg ‘QUADROS DE GUERRA Butler jéhavia refletido sobre as maneiras pelas quais certs representa. «es do humano originam seres nao considerados humanos, em Vidas ‘precirias. Ao percorrer esse processo de demarcagio das vidas viviveis «das descartaveis, analisando incusiveo papel da midia nas represen- tages restritivas do outro, ela indagou sobre o que nos vincula ao outro, :mostrando que esse vinculo surge quando reconhecemos a precariedade como condigao compartida. ‘Com uma introdugao e cinco artigos, publicados entre 2004 e 2008, Quadros de guerra reafirma ¢ amplia esses argumentos. Os textos abordam a guerra dos EUA contra o Irague, a tortura dos prisioneiros ‘em Guantanamo, refletindo sobre quais vidas sio reconhecidas e pas siveis de lt e quais as vidas descartaveis, ¢ como 0 aparato bélico norte-americano atua impondo uma distingao entre as vidas que me- recem pranto ¢ aquelas que nao podem ser lamentadas. Hi uma impossibilidade de se fazer o luto puiblico das vidas nao reconhecidas ~ como nos casos da mencionada guerra contra oIraqu a ocupagio israelense dos territorios palestinos ou da aids. A guerra controlae potencaliza o efeitos da distri induzido da precariedade, que compromete o status ontolégico de po- pulagées, mantendo-as como descartiveise no merecedoras de luto. ‘Ao discutir a tortura como politica de Estado, a condicio de reco- hecimento dos corpos dissidentes, a biopolitica como uma forma de controle de corpos, Butler se interroga sobre a violencia ea possibilidade dde uma ética politica que sejacapaz de balizar uma critica violencia de Estado es novas formas de poder. Por todo o ivro, sustenta que a politica necessita compreender a precariedade como condigio vital generaizada, ‘A vida entendida como vida precéria implica dependéncia de redes e de concigies sociais. Nossas obrigagdes surgem da ideia segundoa qual no pode haver uma vida vivivel(e, portanto, suscetivel de pranto) sem am- paro, que é uma responsabilidade politica e ética, Como Butler havia sublinhado em Relatar a si mesmo, estamos todos em relagdes intensas ‘e matuas. Nao ha nenhum vinculo entre 0 eu € 0 outro anterior a essas relagies ~ aids, tinico vinculo anterior seria 0 que se instaura quando surge a questio ética do reconhecimento de sua humanidade. A guerra (€a tortura) mostra que somos vulnerdveis & destruigao pelos demais e por conseguint, estamos necessitados de amparo, de protegao mediante acordios baseados no reconhecimento da precariedade compartida Butler questiona incisivamente o papel dos meios de comunicagio

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