You are on page 1of 233
Dos anos 1960 aos dias aluais, os marxistas 8m pas: sado por crises e reestrutura- ges que muitos considera riam improvaveis. Mas elas aconteceram, impostas pelas circunstancias criadas pe- las lutas sociais, pelos emba- tes e pelas controvérsias no campo das idéias. Nas organizagées e partidos comunistas (PCB, PCdoB, or- ganizagées trotskistas), nos movimentos sociais e sindi- cais, na luta armada e no exilio, entre feministas e cris- tos, nos partidos de esquer- da formades ja depois de 1980, os marxistas debate- ram e se bateram em inces- santes lutas para compreen- der e transformar a sociedade em que lhes foi dado viver. Concepedes formuladas, espe- rangas e expectativas, contra- digdes e impasses, 0s contornos complexos dessa saga que da se desenvolve sob nos- sas vistas estéo retratados nesta importante contribuigéio para compreender a historia do marxismo no Brasil. UUvastoune mount o6 Canons Retr Jost Tat one Cordendot Gel da Univenidade "Fewsno Pena Costa Ain Pecons ~ Ans Rastoe Manzo {Jost A. R Gow ~ Jost Romo Za Las Pisano Cannest Maot~ Manceto Kross, Orcantzagho : Marcelo Ridenti wal Daniel Aardo Reis HisT6R1A DO MarxisMo No Brasit Voune 6 Partipos & Movimenros Ards os Anos 1960 el fiwmnade i lace est exaLocetenELARADA HLA istéria do marcimo no Breil erganizadores: Marcelo ‘ident e Daniel Aarso Reis. ~ Campinas, SP: Edirora da HS Uyscasr, 2007 CContedo: v6, Partido € movimento apés os anos 1960, 1. Comins = Bra 2 Pardes pallicoe~ Beas. | Ride Marcela Ret, Danil Aas, I Tiel. cop 320.3520981, ISDN 978-85-268-0749-5 aaa Indice par ceilogo sstemico 1 Conausisena ~ Breil 320.5320981 2, Paridospolticos~ Brasil 329.981 Copyright © by Orgaizadres CCoprighc © 2007 by Edo da Unicawe [Nenhom pare deta publienio pode ser grvds, amannada ‘em nema cence, forocopids, eproduide por melas menos ‘ou outorququer sm acoso pévia do edo, 2eeF2ése> Sumario APnSENTAGIO Marcelo Ridenti e Daniel Aardo Reis. ante 1 Pagripos # Onantzagoes \pt = A Vavonizagio a Pouirica va Tragerénta Pecenist Dos Avos 1950 4 1991 José Antonio Segatto e Raimundo Santos \\ 7p Parvo Comunista po Brasit: Denvigoes Inzovécreas Traeroeia Poutrica oan Rodrigues SAl08 ro — ~~ Esquanpas Anuapas URBANAS: 1964-1974 Marcelo Ridenti = 0s Trorsiiswos No Brasit: 1966-2000 Dainis Karepovs ¢ Murilo Leal... — — 0 Panripo pos ‘TrasaLiaporss & 4 Conquista bo Estapo: 1980-2005 Paulo Henrique Martinez... a PARTE IL Movintenros: 6 ~ Denate no Exftto: Ew Busca px Revovgio Denise Rollemberg —— 1B 6 105 153 239 291 7 = 0 Bxcovreo Manxiswo—Feamniswo No Brastt I. Maria lypia Quartim de Moraes 8 —0 PCB, os Tranaunavonss x 0 Sinorcatisuo 1a Hastomt Recents. po Brast. Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes | 9. Crismianiswo a Lissaracio & Marxism: De 1960 a Nossos Duss Michael Loy pees : 10~ Manxiswo, Soctkoane. Parripos Poufricos Hoye Daniel aro Reis... — 341 375 au 439 APRESENTAGAO Javai longe o ano de 1988, quando, em 9 ¢ 10 de junho, em Teres6- polis, sob os ausp{cios do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnolégico (CNPq), se reuniu um semindrio espe- cial do grupo de trabalho Partidos e Movimentos de Esquerda, ento em funcionamento no ambito da Associagao Nacional de Pés-Gra- duagio e Pesquisa em Ciéncias Sociais (ANPOCS), para debater aidéia de uma hiseéria das esquerdas no Brasil, segundo sugestio origi- nal do professor Osvaldo Coggiola. No referido semindrio, conforme se diria na Apresentacio do volume I desta colegio, publicado em 1991 pela editora Paz ¢ Terra (organizagio dos professores Daniel Aario Reis ¢ Joao Quartim de Moraes), “A idéia mudou de forma [...] ganhou um corpo definido, temas precisos, sugestées de autores ¢ uma co- missio editorial: surgia, basicamente formulada, a Histéria do Marxismo no Brasil”. As grandes linhas do projeto, concebidas coletivamente, a partir de uma proposta do professor Carlos Nelson Coutinho, estrururaram-se em torno de trés eixos: 1) 0 influxo das teorias, doutrinas e revolugées internacionais; 2) a formulagio do mar- : autores € correntes; 3) a histéria das organi- zagbes marxistas no Brasil: experiéncias e momentos relevantes. xismo no Bras 7 Marcelo Ridenti + Daniel Aario Reis Entretanto, as circunstincias nfo pareciam propicias ao pro- jeto. Sob o influxo da derrocada das experiéncias do socialismo realmente existente e das repercussbes negativas que 0 processo teve para o estudo e a divulgacio do marxismo, a editora Paz e Terra perdeu o interesse em manter a colegio. Ao mesmo tem- po, talvez pelo mesmo motivo, o grupo de trabalho Partidos ¢ ‘Movimentos de Esquerda deixou de merecer 0 apoio institucio- nal da ANPOCS, migrando, algum tempo depois, para outra estru- tura institucional, a Associagio Nacional de Histéria (ANPUK), onde subsiste até hoje como simpésio temético. Era como se a Histéria do Marxismo no Brasil estivesse fa- dada a entrar no rol daquelas boas idéias que nao se realizam. Salvaram-na desse destino a insisténcia e a perseveranca bo/- chevista do professor Joao Quartim de Moraes, que persuadiu a Editora da UNICAMP a encampar e relancar 0 conjunto do projeto. Assim, em 1995 € 1998, apareceram, respectivamente, 0 vo- lume 2, que dé seqiiéncia & primeira parte destinada aos cha- mados influxos tedricos, ¢ 0 volume 3, que enfatiza as teorias ¢ interpretagbes marxistas formuladas por autores brasileiros — ambos organizados pelo referido professor. O volume 4, ainda sobre as “Vises marxistas de Brasil”, foi editado em 2000, orga- nizado pelos professores Joao Quartim de Moraes ¢ Marcos Del Roio. Algum tempo depois, em 2003, conferindo unidade & co- lego, houve a reedigio, revista e aumentada, do volume 1, no- vamente sob organizacao de Daniel Aarao Reis ¢ Joio Quartim de Moraes. ‘Tratava-se, entio, de completar 0 projeto, formulando, se- gundo o plano original, a histéria das organizagoes marxistas no Brasil, incumbéncia assumida pelos professores Daniel Aario Reis e Marcelo Ridenti, que organizaram o volume 5 — editado em 2002, sempre pela Editora da UNICAMP—, 0 qual estuda os partidos e organizagées dos anos 20 aos anos 60. 8 Apresentagao ‘Agora, em 2006, chegamos, finalmente, a este volume 6, que toma por objeto © mesmo tema, porém dos anos 60 aos dias atuais. O presente volume est organizado em duas partes. A primeira, referida a partidos e organizacies, rexine capitulos sobte o Partido Comunista Brasileiro (“A valorizagio da politi- cana trajetéria pecebista: dos anos 1950 a 1991”, de Jos¢ Antonio Segatto e Raimundo Santos); 0 Partido Comunista do Brasil (“Par- tido Comunista do Brasil: definigBes ideolégicas ¢ trajetéria po- Iitica”, de Jean Rodrigues Sales); as esquerdas armadas dos anos 60 € 70 (“Esquerdas armadas urbanas, 1964-1974”, de Marcelo Ridenti); as organizagbes e partidos trotskistas (“Os trotskismos no Brasil, 1966-2000”, de Dainis Karepovs ¢ Murilo Leal) ¢ 0 Partido dos Trabalhadores (“O Partido dos Trabalhadores ¢ a con- quista do Estado, 1980-2005”, de Paulo Henrique Martinez) ‘A segunda parte, referida a movimentos, agrupa capitulos sobre as elaboragées marxistas construldas no exilio dos anos 70 (“De- sm busca da renovagao", de Denise Rollemberg); 0s movimentos feministas e o marxismo (“O encontro marxis- ‘mo-feminismo no Brasil”, de Maria Lygia Quartim de Moraes); 0 Partido Comunista Brasileiro (PCB), marxismo ¢ sindicalismo (“O PCB, os trabalhadores ¢ o sindicalismo na histéria recente do Brasil”, de Marco Aurélio Santana e Ricardo Antunes); mar- xismo ¢ teologia da libertagio (“Cristianismo da libertagio ¢ marxismo, de 1960 a nossos dias”, de Michael Lowy). A parte se encerra com um balango da presenga atual das referencias mat- xxistas nos partidos politicos que pretendem representar os inte- resses dos trabalhadores brasileiros ("Marxismo, sociedade e par- tidos politicos hoje”, de Daniel Aardo Reis). Os autores dos capitulos deste volume em particular —e da colegio em geral — sio responsaveis por suas respectivas abor- dagens. Elas sio as mais diversificadas e, evidentemente, nao tém a pretensio de ser consensuais, antes abrem possiveis debates bate no extli com outros pesquisadores. Marcelo Ridenti * Daniel dardo Reis Assim conclufmos 0 projeto formulado e planejado em 1988, conscientes de que néo esgotamos 0 objeto sob nossa conside- ragdo — 0 campo continua em aberto, nada impedindo a pu- blicagao de novos volumes que venham enriquecer ainda mais a colegio agora & disposicéo dos leitores. Marcelo Ridenti Daniel Aardo Reis Outubro de 2006 10 PARTE I PARTIDOS E ORGANIZAGOES 1 A Vatorizagao pa Poritica NA TRAJETORIA PECEBISTA Dos Anos 1950 A 1991 José Antonio Segatto* Raimundo Santos** Introdugéo propésito deste texto ¢ apresentar o Partido Comunista Brasi- leiro (PCB) como exemplo, para as esquerdas brasileiras, de um agrupamento que, embora nfo tenha conclufdo todo o percurso, transitou da condigio de partido revolucionério a partido com vocagao para a politica. Revisitar hoje a trajetdria dos comunistas brasileiros traz tona o tema do longo movimento — que chama- mos de pecebismo — de valorizagio da politica no PCB, até seu esgotamento como partido comunista no IX Congreso do PCB, de 1991. Aos olhos das tilkimas duas geragbes da classe politica bra- sileira, no escaparia esse trago exibido pela esquerda hist6rica nos momentos de sua maior gravitagio na vida nacional contemporinea. Em considerdveis ambientes politicos, 0 pecebismo jé foi reconhe- ido como sinal de lucidez.e moderagZo na esquerda. Isso resultou do fato de o PCB representar uma tradicéo de frente nica centrada na democracia politica, orientagéo para a qual evoluira, desde o suicidio de Getiilio Vargas — em 24 de agosto de 1954 —, a partir da intuigao de alguns de seus quadros mais influentes, que, em um rofessor do Departamento de Sociologia da FCL-Unise, campus de Ara- raquara + Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janczo (Uri) 13 José Antonio Segatto + Raimundo Santos processo complicado, politizariam sua prépria praxis de esquerda revoluciondria. Ao contrétio do que afirmam os criticos que ignoram essa marca ¢ jd 0 chamaram de “marxismo pobre”, o marxismo pecebista tem ito valor. Visto como marxismo de ator politico, nota-se— aqui entre nés — que ele se decuplicava: com todo o apriorismo con- ceitual denunciado por Caio Prado Jr. era um marxismo que tam- bém encerrava proposigies, ainda que fragmentadas e contradi- ‘6rias, as quais jd ndo continham tZo-somente os ingredientes do marxismo-leninismo por muitos anos reivindicado no Brasil por numerosas dreas das esquerdas, incluidos ambientes intelectuais. O PCB se envolveu, com muito proveito, com 0 marxismo po- Iitico (de Lénin, de autores do Partido Comunista Italiano [PCI] jd nos anos 50 ¢, bem tardiamente, de Gramsci), manteve conta- to com nosso ensafsmo cléssico (tendo a interpretacao de Brasil do prdprio Caio Prado Jr. como parte dele) ¢ também fer fronteira com a “sociologia da modernizacéo” da década de 1950. Embora 0 PCB nfo reivindique o historiador como seu autor cléssico, haja sido muito severo com o nacional-desenvolvimentismo 0 Insti- tuo Superior de Estudos Brasileiros (Issn) e ndo tenha compreen- dido seus intelectuais mais contemporineos, tanto a interpela- ‘lo direta de seu militante paulista e 0 contato com as teorizages cepalinas e sebianas quanto as relagdes desencontradas com seus publicistas de meados da década de 1970 produziram interagées muito benéficas, a0 contratio do que jé se disse no interior do partido e fora dele. Sempre constituiu uma atragio a idéia de avaliar a “obsesséo” do PCB por “fazer politic”, expresso, como ficou conhecida espe- cialmente no pés-64, que reflete as experiéncias dos comunistas com os outros atores — os mais diversificados da resisténcia de- mocrética, Ao mesmo tempo que, sob uma chave de esquerda, PCB traduziu tal interagio como gosto pela politica, esta também se difundiu, 2 partir do contexto do Movimento Democritico Brasi- 14 A valortzagao da politica na trajetéria pecebista leiro (MDB), manifestada em valores e atitudes que se espalharam centre camadas da opinio piblica muito além do mundo pecebista e das esquerdas.! Também agora, esse tema da “obsessio” pecebista pela politica adquire novo interesse pelo fato, histérico, de que foi uma outra esquerda, o PT — bem diferente da que aqui serd des- crita—, que conquistou, afinal, 0 governo da Republica. Em 2006, temos na presidéncia uma nova esquerda, que, em apenas 23 anos, se afirmou hegeménica como esquerda social, con- cluindo um ciclo vitorioso diverso daquele da esquerda histérica, no obstante 0 éxito na eleicio de Lula lembrar a radio de amplas aliangas da esquerda antiga. Embora se tena perfilado & margem da postura de frente democrdtica pluripartidaria, em 2002, 0 PT angariou apoios ao centro e saiu-se vencedor da disputa presidencial. A frente do governo da Reptilia, vive um dramético processo de redefinigio, vendo o desafio de operar em curso répido a superagio do oposicionismo social de origem e assumir 0 mundo da politica sem ambigilidades. © PCB processou 0 abandono de sua mentalidade revolucio- narista por um caminho de pedras. Sob impacto do suicidio de Ge- tiilio Vargas em 1954 e, depois, dos debates sobre o stalinismo de 1956-1957, os comunistas passaram a ter posturas mais licidas, orientadas por uma espécie de “praticismo ilustrado” ques afirmard em longo prazo. Os estrategistas que operaram essa evolucdo de- senvolveram um modo realista de aprender as coisas que, por certo, nio provinha de uma dissertagio sobre a singularidade bra- sileira, mas incorporava — pelas reticéncias e oposigbes que en- contravam no partido, apenas parcialmente — elaboragées oriun- das de sua intelectualidade. Hles também recorreram a constructas, por assim dizes, mais dispersos que nio interpelavam 0 PCB dire- tamente, mas circulavam como elementos que formariam referén- cias para os comunistas movimentarem-se & frente. So exemplos as discursividades veiculadas pelas revistas por meio das quais o PCB e seus publicistas gravitavam no mundo intelectual de centro-es- 15 José Antonio Segatto + Raimundo Santos querda em momentos cruciais: a Revista Brasiliense, de Caio Pra- do Jr, que poderia ter sido o melhor apoio ao PCB no que diz respeito ao tema das reformas de estrutura dos tempos cepalinos, no decénio pés-54; Estudos Sociais, revista menos ampla que aquela e que circulou no PCB apés 0 encerramento da controvérsia de 1956-1957 até 1964; e sobremaneira a prestigiosa Revista Civilizagio Brasileira, de Enio Silveira, com suas duas fases no longo pés-64. Exemplos de elaborages propriamente interpelativas so, em primeiro lugar, as dissertag6es de Caio Prado Jr. e, bem depois, as dos intelectuais que pretenderam interpretar nossa modernizagio como uma via prussiana & brasileira, hipdtese que equacionaré no campo pecebista o tema da democracia politica, ecoando aqui entre 1nés 0 curocomunismo e de certo modo recobrindo, na tiltima fase, a postura dos comunistas na resisténcia a0 regime de 1964, Men- cionem-se ainda duas outras publicagées nos tempos finais do PCB: a revista Presenga, editada na seqiténcia do VII Congreso do PCB, de 1981-1982 até 1993, por alguns daqueles intelectuais pecebistas, numa tentativa de aggiornamento da cultura de esquerda no Brasil, ea revista Novas Rumos, nos anos de 1987-1994, quando seus editores buscaram fazer uma ponte entre a renovacio do socia- lismo real no contexto da perestrdica e uma atualizag4o do PCB que seria tentada por seu préprio niicleo dirigente, rardiamente, como se verd, em seu IX e tiltimo Congreso, de 1991. Como se descreverd nas paginas seguintes, se nessas mudancas © PCB nfo abandona completamente a antiga mentalidade de par- tido movido por uma visto terceiro-mundista das coisas brasilei- ras, em todo caso, desde a reorientagdo pragmatica posterior 20 24 de agosto de 1954, especialmente apés os debates de 1956-1957, cle jé dava sinais de que caminharia em direcdo a uma estratégia de reformas parciais concretizaveis & medida que o pafs se fosse demo- cratizando. O discurso bastante cosmopolita e a linguagem mar- xxista-leninista, que ainda perdurariam, nao impediram os comu- nistas de ir deixando de lado o espftito demitirgico-revolucionétio 16 A valortzagao da politica na trajetéria pecebista préprio de um partido comunista e de assumir progressivamente nova missio como ente processador de interesses ¢ com responsabi- lidade no aperfeioamento ¢ na mudanga da ordem sociale politica. Evoluindo pelo caminho da “frente tinica permanente”, o PCB vai cada vea mais descentrar sua préxis da idéia de revolugio stricto sensu apostar na democratizagio politica da vida nacional. Vivendo mo- mentos de “revolugio democrtico-burguesa’ da nossa contempora- neidade que suscitariam novos referenciais para a recriagio da préxis de esquerda no Brasil, o PCB fard travessias dificeis e comecard a adquirir feiges de partido propriamente politico, 0 pecebismo contempordneo ‘Apés 0 suicidio de Vargas eo fracasso da tentativa golpista de no- vembro de 1955, os comunistas flexibilizaram sua postura ante a nova conjuntura que entio se abriu no pais, especialmente com a eleigo de Juscelino Kubitschek. Ao provocar a desconstrugéo do revolucionarismo, o impacto do XX Congresso do Partido Comu- nista da Unidio Soviética (Pcus) estimularia no PCB um modo de ver as coisas brasileiras que também evidenciava quanto a vida interna do partido — de forte centralismo burocritico — se tornara tum obstaculo as poscuras mais licidas que vinham surgindo da pré- pria ago cotidiana e forgavam passagem desde que o Comité Cen- tral, com a resolugio sindical de 1952, abandonara a pratica do paralelismo sindical dos anos da dogmatizagio, durante a Guerra Fria. A propésito, lembrem-se os registros memorialfsticos que falam das resistencias da militincia & palavra de ordem que exigia a rentincia de Dutra num momento em que as esquerdas estavam sendo duramente reprimidas. O partido tinha entéo a orientacéo radical de oposigio a todos os “governos de traicio nacional” (era como eles chamavam o governo de Dutra ¢ também o segundo governo Vargas). 17 José Antonio Sogatto + Raimundo Santos ‘Aprovada por um novo micleo dirigente que emergira e, em 1958, encerrara os debates sobre o stalinismo no PCB, a chamada “Declara- ‘cdo de margo” desse ano anunciou, como “nova politica”, mudangas que nio setiam radicais, pois ainda estavam fortemence permeadas pelo marxismo-leninismo, entGo compartilhado por todas as tendén- cias pecebistas e que pesava, contendo os avangos, sempre que o par- tido tentava mover-se para frente, Essas mudancas, alids, seriam con- duzidas por integrantes do partido que néo eram propriamente os autores das teses renovadoras oriundas da controvérsia de 1956-1957. No contexto de uma tradigio ortodoxa que se flexibilizava sem re- novagio te6rica, as mudangas estarao condicionadas pelo com- promisso com o fim ultimo revoluciondrio que cimentava 0 cot junto do partido e se sobrepunha a0 senso pragmitico e de responsabi- lidade dos comunistas, notivel desde agosto de 1954 e especialmente quando eles se viam ante as quest6es da vida real.” Essa abertura dos comunistas ao mundo politico teri efeito benéfico, e serd com ela que conseguirdo melhor se colocar na lideranga das lutas populates. A medida que se integravam a0 processo politico efetivamente em. curso, movimentando-se com desenvoltura, eles afirmariam sua pre- senga no movimento sindical urbano e rural ena mobilizacao estudantil exerceriam influéncia na intelectualidade e nas campanhas por re- formas de caréter nacionalista e democrético entio emergentes no pals. Em ocasi6es anteriores aos anos 50, o PCB havia ensaiado passos buscando tornar-se influente, como em 1934-1935, quando esteve na organizacéo da frentista Alianga Nacional Libertadora (ANL) visando interferir nos rumos do pés-30. Em 1945, com o processo de democratizagio, os comunistas participaram de iniciativas uni- tdrias em volta da Unio Democritica Nacional (UDN) na bata- tha pela redemocratizago politica do pais.’ Retomada quase dez anos depois, a aproximacéo do PCB com a politica agucou sua percepgéo das coisas brasileiras ¢ ampliou a perspectiva do nticleo dirigente. Primeiramente, 20 passarem a ter outra visdo do capicalismo brasi- leito —a qual os levaria a uma nova percepgio do dinamismo dos 18 A valorizagao da politica na trajetéria pecobista grupos sociais —, os comunistas valorizariam cada vez mais a demo- cratizagio politica do pais. A partir daf teria curso no PCB outra idéia de mudanga social mediante “solug6es positivas”, um reformismo concebido para ser levado adiante por configuracées pluriclas- sistas, Em terceiro lugar, os comunistas passaram a acredicar que esse caminho reformista-revolucionsrio pudesse transcorrer me- diante a via pacifica que concretizasse a perspectiva de democrati- zagio do Estado e de reorganiza¢ao da economia nacional sem pré- via ruptura das instituigées. Se nfo ha uma explicita operagao de idéias novas que alcance © conjunto do partido, observa-se 0 aproveitamento parcial das ptoposicdes inovadoras de 1956-1957 por parte da parcela do nti- cleo dirigente que com elas justificava o nascimento de uma “nova, ment: dade” nos termos da “Declaragio de marco”. E plausivel localizar como ponto argumentativo da virada desses anos a visto positiva que aquele grupo dirigente passou a tera respeito do nosso industrialismo, apreciacdo ja proposta nos debates sobre o Rela- t6rio Kruchev.‘ Mesmo sem mobilizar propriamente uma teorizagao sobre o pais urbanizado e moderno daqueles anos 50, eis a proposi- fo que abre o texto de 1958: Modificagées importantes tém ocorrido, durante as iltimas décadas, na estruvura econémica que o Brasil herdou do passado, definido pelas seguintes caracterfsticas: agricultura baseada no latifindio e nas relagbes pré-capitalistas de trabalho, predom{nio macigo da produgio agropecutia no conjunto da produgio, exportagio de produtos agricolas como eixo detoda a ida econdmica, dependéncia da economia nacional em relacso a0 estrangeito, através do coméicio exterior e da penetraco do capital mo- nopolista nos postos-chave e da circulacio, Nos quadros dessa estrutura atrasada, foi-se processando um desenvolvimento capitalista nacional que constitui 0 elemento progressista por exceléncia da economia brasileira. Esse desenvolvimento inclutivel do capitalismo consiste no incremento das forgas produtivas ena expansio, na base material da sociedade, de novas relagées de produgio, mais avancadas (PCB, 1960; 1980, pp. 3-4). 19 José Antonio Segatto » Raimundo Santos Rompendo com o velho dependentismo que via o pals como uma formagio estagnada, essa proposicéo constituird 0 estimulo decisivo para os comunistas repensarem, naquele tempo, a revo- lugéo no Brasil no contexto de um conjunto de “reformas de estru- tura” parciais e progressivas.* Mesmo marcada pela forte mentali- dade marxista-leninista, aquela proposicio afastava o PCB do “pes- simismo econémico” que alimentava tanto a idéia de revolugio stricto sensu quanto 0 agrarismo camponés revoluciondrio, dois parimetros que levavam & descrenga nas possibilidades de mudar ce aperfeicoar o regime politico existente no pals. Observe-se que aquele infcio da evolugao do PCB para a esfera do institucional e da politica passa muito pelo equacionamento que o partido faré do tema agrério em chave diversa da tradigio marxista-leninista inspirada nna Revolugéo Russa e também na Revolugio Chinesa, O abandono do estagnacionismo desenvolve o pragmatismo do niicleo diigente, que se transformard em condigio vital para a reprodugao de um partido ao mesmo tempo com apelo marxista-leninista ¢ arguto. Sera sob essa tensio que, a0 longo do tempo, 0 PCB renderd a va- lotizar a politica como tal — como se sabe, o paradoxo existencial do ptéprio comunismo, com o qual os comunistas brasileiros se de- baterdo até o fim da existéncia do partido, Vejamos, agora a partir das teses do V Congreso do PCB, de 1960, mais detalhes sobre as “raz6es pragmaticas” que levaram 0 PCB aquele rumo. Registre-se, em primeiro lugar, que o texto con- gressual retoma a tese da “Declaracéo de marco”, fazendo uma equena dissertagdo sobre a vida nacional, de certo modo um tanto estranha aos padres marxista-leninistas. Dizia-se ali quea tendéncia ia 20 industrialismo pds-30, adviera de uma democratizante, associ articulagio de classes que se havia estabelecido no cenario urbano, Por afo texto antecipava a colocacio do problema camponés com sentido diverso da fungio diruptiva prescrita no modelo marxis- taleninista, As teses de 1960 realgavam o protagonismo agrério no processo brasileiro, mas nosso campesinato era de constituigio con- 20 A valortzagao da politica na trajetéria pecebista tempordnea es6 viera.a ter presenga na cena piblicaa partir da dé- cada de 1950, Por complicado caminho, os comunistas aqui termi aro vendo o mundo rural brasileiro com realismo. Os redatores das teses nao se deixaram confinar nos modelos das revolugbes clissicas de 1848 e de 1917 (e também da Revoluglo Chinesa), de acordo com os quais teriam de pensar a revolugéo no mundo rural reivindicando para 0 campesinato brasileiro misséo desestabil zadora do sistema politico. Abandonando os manifestos radicais © 0 campesinismo de 1948 e 1950 que adotara nos piores anos da Guerra Fria, no comeso da década de 1950 o partido abandonou a tética das resisténcias camponesas localizadas e procurou adaptar seu trabalho agrétio A situagio de abertura que lhe renderia melhores resultados, j4 notéveis em 1954, ano em que, com um niimero aprecidvel de sindicatos e outras entidades que havia organizado legalmente, estruturou a Unio dos Lavradores e Trabalhadores “Agricolas do Brasil (Utas). Com a nova politica de 1958, os comu- nistas passaram a encaminhar a questio agréria e camponesa com base na aposta que faziam na democratizacao politica do pals ena retomada do industrialismo, processos que seriam garantidos por ‘uma frente nica nacionalista e democrética em conformagio des- deo suicidio de Vargas. Mesmo sem suscitar uma teorizacio agritia, © sentido “cepalino” e “isebiano” — com o qual os estrategistas do PCB também viam a formacio social brasileira (como um corpo “em crescimento”) — impés-se e levou os comunistas a se empenha- rem, com éxito, na institucionalizagio das massas camponesas nos sindicatos — perspectiva mais bem formulada na dissertagio cai pradiana, como se sabe, assumida pelo PCB apenas em termos parciais.® Citando a “Declaragéo de margo”, o texto do V Congresso assim anunciava a tendéncia contemporanea & democratizacao do pais: ‘As forgas novas que crescem no sci da sociedade brasileira, principalmente proletariado, a burguesia ea intelectualidade pequeno-burguesa, vém im- an José Antonio Segatto + Raimundo Santos ppondo um novo caminho ao desenvolvimento politico do pals, com o declinio da tradicional influéncia conservadora dos latifundirios. A tendéncia que predomina nese novo curso é.a da democratizagi, da extensto dos direitos po- rics a camadas cada vez mas amplas. E. claro que essa marcha softe muitas ‘eres rectos isto se deve principalmente ao fato de ser justamente a forsa mais vacilante — a burgue 1 pequena burguesia tém, ainda, uma aglo intermitente [atente-se para esta —a que ditige 0 processo. O proletariado ¢ repetigio],’fazem o movimento antiimperialsta e democritico avangat com ‘maior vigor quando, em determinados momentos, compartilham da sua ditesio com a burguesia; outras vezes, imporences, deixam a lideranga in- teiramente com a burguesia e, nesse momento, o movimento claudica, sofre as limitagbes e inconseqiiéncias da forca que o divige.[..] Mar a tendéncia dominante €0 processo de democratizagao. Vem-se afirmando desie modo, no ls, a legalidade democrdtiea, que é defendida por amplase poderosas forgas socias (idem, op. cit., pp. 44-45, grifo nosso) Por sua reitera¢do em outras passagens, pode-se dizer que a se- gunda proposicio-chave das teses, acima citada, nao valorizava a democratizagao do pals por ela apenas preparar a irrupgio das sgrandes massas¢ levar & quebra da ordem, mas a considerava uma tendéncia que poderia ter curso duradowro. Aquela tese-guia assen- tava no PCB outro modo de ver vida nacional, nfo obstante esse tipo de valorizagio da abercura do sistema politico ter de conviver, € por muito tempo, com residuos ideolégicos marxista-leninistas que dificultavam a superagio da idéia de democracia politica reduzida a instrumento das classes dominantes, definigao que 0 marxismo-leninismo havia generalizado a partir do optisculo O Estado e a revolugao, que Lénin escrevera 4s vésperas de 1917. abe realcar uma terceira tese sobre a democratizagio do pats. Em tom “desenvolvimentista’, as teses repetiam o seguinte trecho que abre 0 tépico da “Declaracéo de marco” chamado “A demo- cratizago da vida politica nacional”: “O desenvolvimento capi- talista do pats nfo podia deixar de refletir-se no cardter do Esta- do brasileiro, em seu regime politico ¢ na composicéo do gover- no” (PCB, (1958) 1980, p. 8). Esse democratismo tampouco era 22 A valorizagao da politica na trajetéria pecebista apresentado como resultado de uma dirupcio revoluciondria, Ble vinha descrito num capitulo das teses sugestivamente chamado “As classes sociais, o Estado e as instituig6es do Brasil”.® Em todo caso, nesse t6pico, os redatores das teses de 1960 trabalhavam com a idgia de que o Brasil era um pafs de capitalismo recente, “no possuindo a nitidez das sociedades capitalistas maduras” (PCB, 1960, p. 37); segundo eles, um pafs que vivia, naquela época, uma transigao em que as classes se movimentavam intensamente no curso da revolugio nacional, animando processos que ultimavam a evo- lugio politico-insticucional do pals (“no sentido de um Estado burgués moderno”, iniciado com a Abolicéo € a Repiiblica) (idem, op. cit., p. 44). Vivia-se um processo de ampliagéo da vida poli- tica sob pressio das “novas forcas que crescem no seio da sociedade brasileira’, democratizagao que se refletia no Parlamento, no Ju- dicidrio e no préprio Executivo e perpassava até mesmo as Forgas ‘Armadas; “o processo de desenvolvimento capitalista e a parti- cipago da burguesia na organizagio dos diferentes governos do pals, a partir de 1930”, influiam em todas essas esferas puiblicas (idem, op. cit. p. 48). O texto se referia & movimentagao dos grupos sociais nas cidades e mencionava o alargamento do associativismo, especialmente sindical, a militancia estudantil, a ativasio da érea cultural, a tendéncia & democratizagio chegando até mesmo as zonas rurais, onde crescia 0 processo de contengao do arbitrio dos “grandes senhores da terra” (idem, op. cit., p. 47). Como na socio- logia politica nacional-desenvolvimentista, as teses realgavam 0 im- pacto do “desenvolvimento econdmico” nos partidos politicos ¢ como seres urbanos, se estabi- registavam que eles haviam cresci lizado ¢, de modo geral, passado a expressar “mais nitidamente as classes sociais ou fragées dessas classes”, jé tendo adquirido estruturagdo nacional (idem, op. cit., p. 49). Chama a atengéo o realce conferido & presenca de organismos que tradicionalmente exerciam e que —dizia-se — passavam a exercer grande influéncia na vida nacional.? As teses aludiam a instituigdes que estruturavam 23 José Antonio Segatto * Raimundo Santos a ordem liberal-democrética como um dado que naquele tempo deveria ser levado em conta pelo ator politico que quisesse operar com os pés fincados no terreno nacional, atento as tramas sociais € aos componentes do sistema politico Os redatores das teses também asso wvam ao industrialismo a diferenciacio societéria que animava a vida nacional. Eles compreen- diam esse tipo de correlagio entre economia e sociedade na vida politica nacional por meio da categoria maoista da contradicéo, jé uusada em textos antigos e que permanecera na “Declaragio de mar- 60”. Aqui, porém, ela exerceria func desconstrutiva do estagna- cionismo que caracterizara os velhos documentos da época da Guer- 1a Fria, estagnacionismo consagrado, alids, no IV Congresso, de 1954, mesmo tendo este se realizado logo apés o suicidio de Ge- tulio Vargas. Descrevendo a ratio dos tempos ativados apés 0 24 de agosto, as teses também traziam da declaracio de 1958, em pri- meiro lugar, a idéia de uma contradigio que impactava a maioria da nagio contra o imperialismo ¢ o atraso, pondo em marcha 0 “mo- vimento nacionalista”, desde meados da década de 1950 em crescen- do pelo pais, como sua expressio. E mais: seguindo a diferenciagio «que Mao Tsé-Tung fazia em busca do ponto mais eficaz para poten- ializar o trabalho revolucionério, as teses descreviam aquela nossa “contradigéo principal”, entéo chamada de nacional pela énfase aqui posta, como na China, na oposico ao elemento invasivo externo. Segundo as teses, essa contradicio principal subordinava A sua légi- cca todos os demais antagonismos da formacio social ¢ interditava os impulsos moderno-renovadores da nacfo, Ela constrangia o desen- volvimento de uma segunda contradigio, fundamental mas de- pendente daquela principalidade anciimperialista: 0 conflito estru- tural que opunha o velho ao moderno na agropecudria, limitando 6 mercado interno rural eo desenvolvimento das forcas produtivas nacionais.!” No entanto, as teses anotavam que a nio-solucao desse Ultimo antagonismo recriava o poder dos grupos proprietitios atra- sados com a exclusio das demais classes agrérias, amesquinhava a 24 A valortzagao da politica na trajetdria pecebista vida social e politica no mundo rural e até reproduzia suas “posigles de grande influéncia na vida do pats [que] ainda dispoem de im- portante forca politica” (idem, op. cit, p. 37). Segundo esse imagi- nitio, a “contradigao principal” sobredeterminava o pulsar de um terceiro conflito, que as teses definiam como aquele que opunha o proletariado & burguesia, tensfo, igualmente fundamental, que dinamizava o pafs, “sem que se coloque, porém, a questo da sua solugio final na etapa em curso” (idem, op. cit., p. 56). Esses textos-chave de 1958 € 1960 se distanciavam do teorema terceito-mundista “estagnagio~revolucio” ¢ reconheciam a moder- nizaco capitalista como um dado estratégico para a compreensio da revolugio nacional — a qual, todavia, era pensada como um proceso inconcluso naqueles anos 50, justamente pela auséncia de um protagonismo pluriclassista conseqtiente que levasse 0 curso mudancista a bom termo, “progressista’, “nacional” (soberano) ¢ “democrético”. Observe-se nessa tiltima conotag4o — usada na cha- mada definigio pecebista do “cardter da revolugio” — uma nogéo de democracia ora intercambivel coma idéia de democracia “subs- tantiva’, ao aludir & incorporagio social, no exemplo dos grupos rurais, ora refetida & democracia no sentido propriamente polit co. Como o Ista, os comunistas viam a animagio sociopolitica e cultural daqueles anos como decorréncia das grandes tensGes ante- riormente descritas. O pais experimentava processos de diferen- ciacio e institucionalizagao notéveis, vividos pelas classes sociais, no comeso da década de 1960, com grupos seus jd mobilizados ow.em vias de se moverem contra o travamento maior que a contradi- «fo contida na dependéncia do pals impunha a seus préprios inte- resses. Alids, uma mobilizacio concebida, nesse imaginétio, sobre- determinada pelo processo aglutinador de um corpo majoriaria- ‘mente identificado com os “interesses nacionais” que o avango do industrialismo ensejava."” Dessa “sociologia da modernizagio” decorria o grande para- mos ensejaria metro do pecebismo: conjunto desses antagor 25 José Antonio Segatto * Raimundo Santos a formagio de um tipo de frente tinica moderno-antiimperialisa, que poderia reunir um espectro econémico-social muito variado, desde a classe operéria e os camponeses até setores latifundidrios (conservadores, mas atingidos em seus interesses corporativos pela invasSo estrangeira). Por mais imprecisa que fosse a imagem de Brasil e mais aceito 0 modelo da revolucio democrético-burguesa de Lé- nin, a linha argumentativa da “revolugio nacional-democritica” dos textos de 1958 € 1960 j& nao se baseava to-s6 na construgéo leninista. A nova modalidade de revolugio burguesa conduzida por forcas nfo-burguesas, sugerida por Lénin a partir do caso russo para © contexto pés-1789 (de classe econémica débil e temerosa), man- tinha-se internalizada no PCB, mas aqui a tese da mobilizagao agrarista nfo teria por fim a derrubada da ordem politica ou seu devassamento revolucionétio (participagio direta, sovietes ou go- vernos revolucionérios locais), néo obstante as ambivaléncias do PCB no pré-64 em relagio ao papel dos camponeses na revolucio (cf. Prado Jr., 1966). Ao contrario, na visio exposta naqueles textos, a tendéncia democratizante era entendida como um processo ainda por se firmar em um sistema politico que precisava melhorat, Como no cilculo leninista falava-se de democracia politica como requisito indispensdvel & livre movimentacdo dos grupos sociais — em espe- cial o proletariado, a classe conseqiiente, como se dizia, se dirigida pelo PCB — para que pudessem aumentar sua influéncia e disputas, cem contexto de frente tinica, os rumos da democratizacio, elevando © processo a patamar “superior”. Vale realcar esse tiltimo comple- mento — que vinha do argumento leninista—, lembrando que aqui ele projerava a “situagio concreta” de progressio de um governo existente & época (Juscelino Kubitschek) em direcio a um outro tempo de governos “nacionalistas e democréticos” mais nitidos, sucessividade vista — essa era outra conotagio que acompanha- va aquele complemento — para afirmas, em fase subseqiiente, uma configuracio avancada da frente tinica que abrisse a porta para 0 socialismo. 26 A valortzagao da politica na trajetéria pecebista ‘Apesar de suas ambigitidades, pode-se dizer que hé na “nova po- litica” de 1958 um cAnone central que norteia os comunistas € os leva a redefinir a revolucio brasileira, a saber: Nenhuma classe ou camada social, isoladamente, pode vencer as resis- téncias das forgas interessadas na conservagio da dependéncia do pafs aos ‘monopélios ianques e na manutengéo do monopélio da tera. A experiéncia da vida polftica brasilcira tem demonstrado que as vitria antiimperialistas ‘edemocrdticas parciais 86 puderam ser obtidas pela atuagao em frente tinica de vita Forgas interessadas na emancipagio e no progresso do pals. Aalianga estas forgas resulta portanto, de uma exigéncia da prépria situagio abjetiva (PCB, 1960, p. 61). Nao obstante o finalismo revoluciondrio presente na mente dos militantes e dirigentes, nao sé jd parece haver outra referéncia por tris do agit pecebista, como também as teses parecem trabalhar com um estilo diferenciado de enunciar os temas da conjuntura, espe- cialmente no modo de projetar os possiveis cendrios de concreti- zacko da revolugio democritica daquele tempo. Os comunistas viam a conjuncura que se formara a partir da pos- se de Juscelino Kubitschek como uma cena politica plena de desdo- bramentos, Daf para frente, acelerar-se-d a evolugio da conduta do PCB, a comecar pela defesa, sem reservas, da importincia das cleigées, Os estrategistas do PCB defenderdo uma atitude positiva ante uma situagéo — como se chamava ento — de governo hete- rogéneo com componentes reformistas e desenharéo, a partir da idéia de reformas parciais ¢ “soluges positivas”, um programa para balizar as “forcas progressistas e populares” nesse cendrio. Jé ten- do 0 partido vivido a experiéncia de Juscelino Kubitschek por m tempo (de 1956 a 1960), os redatores daquele texto congressual tra- balhavam com a perspectiva de que a estruturagao de uma frente tinica, como arregimentacio habil para interferir no processo em curso, criaria condig6es para mudar a orientagio, até mesmo a com- posicéo, do governo da época. Concebida a partir de uma situagéo 27 José Antonio Segatto * Raimundo Santos concreta, aformagio da frente tinica era pensada tanto para melho- raras coisas em andamento quanto como uma operacéo que poderia desdobrar-se aproximando a conjuntura aos outros tempos das for- ‘mages governativas conseqiientes. Note-se que, por um lado, as teses do V Congresso vinculavam esse tema do desdobramento dos governos nacional-democriticos em processo propriamente revo- luciondrio — mediante caminho pacifico (sic) —& hipérese de um contexto internacional favordvel, como era 0 caso — dizia-se—da- ucla época de auge do sistema socialista mundial e do chamado movimento de libertagio nacional anticolonialista espalhado pelo Terceiro Mundo. Mas, por outro, as teses radicavam a via pacifi- cana “democratizagio crescente da vida politica, [nJo ascenso do movimento operétio, [no desenvolvimento da frente tinica nacio- nalista e democratica” (idem, op. cit., p. 80)." Embora seja préprio da autodefinicao revoluciondria associat oagir de curto prazo ao objetivo de formar outros governos mais conseqtientes, a insisténcia das teses para que nao se perdesse a oportunidade de fazer politica corrente sugeria que seus formula- dores operavam com um cilculo cada vez mais orientado para inter- ferit no andamento das coisas postas na conjuntura. Nessa linha argumentativa, eles projeravam os eventuais desdobramentos da- quela sua circunstincia, segundo eles, favordvel & obtencao de certos ganhos, desde que se operasse em contexto de centro-esquerda, Com o estilo do agir com perspectiva ensaiado na “Declaracio de marge”, os formuladores do V Congresso repetiam a passagem na qual o texto de 1958 previa trés possiveis cendrios para a concre- tizagio do caminho gradualista de reformas, a saber: a) pela presso pacfica, popular e politica, dentro e fora do Parlamento, “no sentido de fortalecer e ampliar 0 setor nacionalista do acual governo, com 0 afastamento do poder de todos os entreguistas e sua substituigéo por elementos nacionalistas”; b) através da vit6ria da frente tinica nas eleigGes (de 1960); c) “Pela aco das massas populates [no texto de 1958, dizia-se ‘pela resisténcia’], unidas aos setores naciona- 28 A valorizagao da politica na trajetéria pecebista listas do Parlamento, das Forgas Armadas ¢ do governo para im- por ou restabelecer a legalidade democritica, no caso de tentati- vvade golpe por parte dos entreguistas ¢ reaciondtios, que se propo- nham implantar no pafs uma ditadura a servigo dos monopélios norte-americanos” (idem, op. cit., p. 79). Certamente os autores das teses desenhavam essa terceira cena relembrando a instabi- lidade do imediato pés-agosto de 1954, prevendo, alids, 0 qua- dro de crise que se formard logo depois, em conseqtiéncia da re- ntincia de Janio Quadros. Por outto lado, a leitura do texto de 1960 mostra que, a0 pas- sarem ts formulagdes mais gerais, os redatores tinham dificuldade para compor uma estratégia de reformas mediante “solucées po- sitivas” em termos de uma progressio democrética ao socialismo, diferentemente do PCI." No pré-64 inexistia no campo pecel um lastro de marxismo politico, a néo ser o de Caio Prado Jr., cuja obra nfo foi apreendida pelos comunistas como teorizacio do tema das relagdes entre economia e sociedade."é De qualquer modo, era avaliando 0 “desenvolvimento complexo da vida politica nacional” «que os redatores das teses pensavam a revolugio em contexto de democratizacao e diziam que aqui o processo revoluciondrio po- deria ter seus objetivos — a “orientagio de emancipagio nacio- nal ede transformag6es estruturais” — realizados “por um ou por sucessivos governos, que se apdiem na frente tinica nacionalista e democrdtica e sejam sua expresso” (idem, op. cit., p. 79). Jése observou que, se por um lado essa proposigao apreendia tanto a experigncia pés-54 quanto o sentido do tempo juscelinisca € 0s projetava na “grande politica” da eleigao presidencial préxi- ma (1960), por outro ela encerrava conotagio doutrindria que também balizava 0 PCB. Ou seja, mesmo na melhor formulacéo dessa proposigio, 20 associar o gradualismo & busca do fim revo- lucionério iltimo — a transigo ao socialismo por meio de um governo sob hegemonia proletatia (sic) —, 0 discurso pecebista descontinuava 0 proprio olhar sobre a evolugio da vida nacional 29 José Antonio Segatto + Raimundo Santos ‘Go acurado nos cendrios descritos nas pdginas anteriores. Aqueles estrategistas pragméticos também nutriam a idéia de que era pos- slvel acelerar 0 processo em curso naqueles anos rumo & meta histérica, quer mediante o ascenso do movimento de massas (“exi- gindo a radicalizacio da composigao e da politica do atual governo”), quer a partir do advento de um outro governo — repita-se outra passagem das reses — que levasse a situago a um nfvel mais avan- gado da “correlagio de forcas” (“que permititia, com um poder das forcas antiimperialistas ¢ antifeudais, sob a diregdo do proletariado, ¢ por um caminho pacifico, as transformagées revolucionétias exi- gidas pelo desenvolvimento econémico e social de nossa pétria’, idem, op. cit, pp. 79-80, grifo nosso). Em suma, os redatores das teses conciliavam-se com a mentalidade marxista-leninista antiga, deixando-a reproduzir-se como uma ideologia do tipo “patriotis- ‘mo de partido” (cf. Mathias, 1978) — que tanto garantia aos comu- nistas reconhecida eficiéncia, especialmente organizacional, quanto introduzia duplicidade em sua conduta politica —, a que jése aludiu anteriormente.'> 0 arejamento do marxismo politico no pés-64 O pesquisador de cultura politica de esquerda ainda tem diante de sia tarefa de reconstituir 0 debate sobre os rumos da oposigo 20 regime de 1964 que teve lugar antes de o pals submergir nos anos de chumbo apés o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Assim como. no pré-64 0 PCB centralizara os debates dos grupos mais 4 esquerda por seu reformismo gradualista, nessa nova época partido referen- ciard grande parte das discussbes sobre os rumos da oposigio, rece- bendo criticas por sua moderacio pelo valor que atributa is liber- dades democréticas na estratégia da resisténcia & ditadura, cen- tralidade anunciada na “Resolucéo politica do Comité Central do PCB" de maio de 1965. O pesquisador poderd reconhecer uma 30 A valorizagao da politica na trajetéria pecebista dimensao propriamente discursiva dessas controvérsias sobre os ru- mos das esquerdas se apurar as vistas em relagio aos debates sobre a crise do socialismo e da propria natureza do marxismo daquele tem- po, conforme aparece ao PCB — como ja suger texto de arejamento fomentado pela editora Civilizagao Brasileira e pela revista de mesmo nome entre os anos 1965-1968. ‘Nesses primeiros anos do pés-64, 0 PCB vira-se obrigado a re- definir sua tética de frente tinica sob um duplo influxo. Enquanto, por um lado, defendia a centralidade das liberdades democréticas, antes de cudo intramuros, por outro ele também se faria presente numa espécie de segunda frente, recebendo influéncia de uma es- fera propriamente intelectual. Num tempo em que a ctise do socia- — como um con- lismo real se propagava para dentro do proprio marxismo e eviden- ciava que este, como diria Bobbio, carecia de teoria politica, obser- vava-se, nas esquerdas brasileiras, o que se poderia chamar de batalha pela reabilitagio da politica. Necessria para resistir a ditadura, essa batalha tinha muito a ver com a discusso marxista a respeito das teses estruturalistas sobre o papel do individuo na histéria, sobre 0 determinismo e as certezas gerais, por esses temas passando 0 debate a respeito das possibilidades e limites dos tipos de ado imediata de resisténcia & ditadura, As publicagées de Bnio Silveira traziam os “sinais dos tempos” como um movimento que impedia a esterilizago do campo da es- querda tanto comunista como marxista em geral. Em modos dife- rentes, oracles vinham anunciados pelas discussBes que alguns PCs ocidentais faziam sobre as conseqiiéncias (2 época, falava-se do do- minio da energia nuclear, das exploragées césmicas eda cibernética) da nova era da revolugao técnico-cientifica, principalmente no mundo do trabalho, ora chegavam estimulados pelo sopro reno- vador da Primavera de Praga, ou ainda eram trazidos pelas discusses a propésito da concepgio de socialismo que evocavam os Manus- critos econdmico-filoséficos do jovem Marx. Essas controvérsias divi- diam parte da intelectualidade européia entre o que se chamava de 31 José Antonio Segatto » Raimundo Santos “humanismo marxista” (ensejando o “socialismo com rosto huma- 1no”) € estruturalismo marxista que resistia a essa tiltima releicura do legado de Marx, sendo Althusser um dos maiores nomes da rei- vindicagdo do marxismo como ciéncia. Mas, se por um lado tanto a crise do stalinismo quanto a eftmera tentativa de renovacéo do socialismo real favoreciam um pluralismo criativo, por outro esse era um tempo que encerrava obsticulos & renovagio do ma (guevarismo, foquismo, maofsmo, movimentos de libert: ismo ional) que empolgavam grupos de esquerda com origem nas ca- madas médias (estudantes, intelectuais, profissionais liberais, re- ligiosos) e privilegiavam 0 vanguardismo politico ¢ também a luta armada. A prépria ascensio do brejnevismo na Unss, com a der- rota do “degelo” de Kruchev, e sufocamento militar da Prima- vera de Praga pelo governo soviético (1968) traziam de volta muitos elementos do periodo stalinista no Leste Europeu. Havia ainda a influéncia adversa de determinados modismos intelectuais ¢ de grupos de esquerda em voga na Europa e nos Estados Unidos que combatiam a heranca racionalisea c a dialética e eram amplamente difundidos, até mesmo pela midia. No Brasil sobreveio o endu- recimento da ditadura militar, com a decretagéo do Al-5 em de- zembro de 1968, abolindo os resquicios de liberdade e aumentando a repressio, a censura ¢ outras medidas de cardter autoritétio (Cou- tinho, 1988, pp. 59-60). No entanto, aqueles “novos rumos” que chegavam antes do completo fechamento do regime eram apenas uma ponta de todo um mundo de idéias e busca cultural. A prépria Igreja percebia os “sinais dos tempos”: enciclicas eram refundidas no espirito do II Conetfio do Vaticano e conferéncias vinham testemunhar 0 “didlo- go da Igreja com o mundo moderne”, usando a expresso que, aqui entre nds, Alceu de Amoroso Lima empregara no artigo que abria 0 primeiro niimero da revista Paz e Térra, empreendimento levado adiante na mesma época da Civilizagao Brasileira por alguns “ho- mens de boa vontade”, catélicos ¢ comunistas que, como dizia 32. A valorizagao da politica na trajetéria pecebista articulisea, se aproximavam seguindo o programa inscrito no pré- prio subtftulo daquela revisea: “Ecumenismo e humanismo. En- contro e didlogo”. Notam-se, nesses anos, de um lado, as démarches do “grupo pragmético” do nticleo dirigente do PCB, mais particularmen- te de alguns membros que agora se empenhavam — na luta in- terna que jd em 1966 esgarcava 0 PCB — em defender a tese de frente tinica pelas liberdades democriticas. De outro, estava a mo- vimentagao de abertura do marxismo brasileiro que chegava & rca pecebista por meio dos titulos da editora Civilizacao Brasileira e dos materiais publicados na Revista Civilizagéo Brasileira. Ao levar seus leicores, por assim dizer, até aqueles “sinais dos tem- os”, as iniciativas de Enio Silveira poderiam produzir signifi- cados miltiplos. Desde o primeiro ntimero, de marco de 1965, a Revista Civilizagto Brasileira acolheria tanto artigos (traduzidos ¢ brasileiros) sobre marxismo teérico quanto textos que traziam enfoques e temas novos; artigos com reflexes sobre as questdes internacionais e textos que discutiam o pafse sua cultura, inclufdos 0s editoriais, as notas e manifestos publicados pela revista sobre os impasses da conjuntura naquele imediato pés-64. Ainda nao se reconstituiu, em detalhes, a trajetéria da proposicéo da frente de- mocritica daquele grupo de dirigentes comunistas e como a dis- cussio desenvolvida no “espago piblico” daquelas publicagoes re- percutit: nos grupos de esquerda e de centro-esquerda que se de- frontavam com os desafios das oposigdes naqueles momentos imediatamente anteriores aos anos de chumbo."* O contato de um ntimero considerdvel de leitores de esquer- da com um marxismo diversificado era permanente naquele Iécus intelectual, incluindo as traduges que tanto a editora quanto a propria Revista Civilieagao Brasileira punham em circulagio. Alids, a revista dedicou dois volumes ao tema da crise e renovagio do comunismo (preparados por uma equipe coordenada por Cid Sil- vita ¢ Luiz Mario Gazzaneo). O caderno especial n® 1, A Revolugao 33 José Antonio Segatto * Raimundo Santos Russa — Cingilenta Anos de Histéria, de novembro de 1967, tra- za textos de Trotsky e Lenin, Garaudy (com tradugao de Leandro Konder), Deutscher, Henri Chambre, Kolakowski, Louis Aragon a famosa carta que Lukics escrevera para o debate sobre o stalinis- ‘mo promovido pela revista Nuovi Argument (rambém com tradugéo de Leandro Konder)."” O terceiro caderno especial, sobre 0 pro- cesso de renovagao do socialismo da Tchecosloviquia (Revitia Ci- vilizagdo Brasileira — RCB, n° 3, de setembro de 1968), dedica cerca de dois tergos de suas paginas a informagio documental (crono- logia da crise, posigo dos PCs, conversagées soviético-tchecoslo- vacas para impedir a invasio do pats, discurso de Dubcek) e traz uum dossié com os textos do préprio PC tchecoslovaco. As segées de economia ¢ cultura desse tiltimo volume reproduzem vérios arti- 0s, entre outros, de Ota Silce de Kosic, e entrevistas com o secre- tério-geral do PCI, Luigi Longo, e com Garaudy.’ O empreendimento da editora Civilizacio Brasileira de trazer Gramsci ao Brasil entre 1966-1968 espelha o clima de busca de am- pliagio do marxismo."? Se nao se aproveitavam politicamente os livros de Gramsci, como por certo pretendiam seus tradutores, era mais provével que os tfeulos gramscianos menores tivessem algu- ‘ma repercussio mais imediata na abertura do marxismo brasil ro — por exemplo, a tradugio do capitulo de “Gli intellettuali ¢ organizzazione della culcura’, versio chamada pelo tradutor, Lean- dro Konder, de “A formagao dos intelectuais” (publicada na RCB, 1% 5.6, de marco de 1966). Pelas maos de Enio Silveira, Leandro Konder teria assim proporcionado, 2o grande puiblico contempo- rneo, 0 primeiro texto de Gramsci, que antecedeu 0 artigo “A vida de Gramsci”, o qual Oto Maria Carpeaux escreveria para recordar “dhe right to dissent” na trajetéria de um dos maiores intelectual do século XX (sic), do qual — relembrava 0 préptio Carpeaux — até Croce falava “com respeito e com afeto” (publicado na RCB, 87, de maio de 1966; republicado em Gramsci o Brasil, dispont- vel em gramsci.org, 1999). E muito interessante a percep¢ao do 34 A valorizagao da politica na trajetéria pecebista cxftico literdvio ao dizer nesse texto que a “personalidade poética” (usando uma nogio crociana) de Gramsci, pensador ¢ homem de ago, continuava bem atual, até mesmo para os brasileiros, naqueles tempos dificeis.* Se entéo 0 PCB no vivia apenas de pura intuiga panhar (e publicas, por meio de seus intelectuais) todo aquele mo- as nos espacos das revistas Civilizapdo Brasileira e ler eacom- vimento de i Pas: e Terra cettamente significava influir no interior do partido. ‘Ao confirmarem a estratégia frentista de oposigao & ditadura em termos de uma politica gradualista de “resisténcia, isolamento ¢ der- rota’, algumas éreas pecebistas pareciam ter em mente textos desse tempo. E possivel fazer essa conjectura a partir dos seguintes do- cumentos, nos quais se véem contornos mais definitivos do movi- mento, jé referido em paginas anteriores, que vinha constituindo © pecebismo: o “Informe de balanco do Comité Central dos de- bates do VI Congresso” (1967), a “Resolugio politica do Comité Estadual do PCB da Guanabara” (1970) e a resolucao “O traba- Iho de entendimentos politicos” (aprovada pelo Comité Central em setembro de 1971). Como que inspirada em Gramsci, a reso- lugdo de 1970 examinava 0 quadro politico combinando a anéli- sedo curto termo (naquele pés-68, o endurecimento do regime mi- litat) com a consideracio dos “fatores permanentes” de médio elongo prazos (conflitos do regime com a classe politica, a crise econdmica etc.) realizando um exercicio de previsio para definir 0 espaco dos movimentos da oposigao. Por sua vez, trabalhando o tema da pers- pectiva como baliza da prética corrente, 0 texto dos comunistas da Guanabara mobilizava a habilidade pecebista na estratégia das miu- dezas (compulséo por ages, mesmo pequenas, para acumular as forcas das causas gerais) e estimulava iniciativas que iam desde contatos, didlogos ¢ acordos até agbes que visavam a movimentos de opiniao de maior envergadura — como comegar a concretizar, naqueles anos de descenso ¢ terror oficial, possibilidades de atuagao junto & Igreja (com setores ¢ com a instituigéo) ao MDB e “com 35 José Antonio Segatto + Raimundo Santos todos aqueles que discordavam, rotal ou parcialmente, de um ou vrios aspectos, do regime de 1964”. Essa valorizagéo das “miudezas” era a tradugio pritica da idéia de “partido organizador” que per- passava a resolucio de 1970. Por outro lado, esse exercicio de pre- visio, que nao obedecia cegamente a um modelo de filosofia his- t6rica ou demiurgia de “classes universais”, se evidencia quando © refetido texto simula os cenérios do fim do regime militar. Es- tas eram as hipdteses que deveriam orientar “estrategicamente” 0 PCB e as oposigées: 1) a ditadura poderia ser derrotada no contexto de um movimento irresistivel de opinio piiblica que galvanizas- se parte das Forgas Armadas para a causa da redemocratizacio ¢ or- ganizasse um levantamento nacional (com maior ou menor em- prego da violencia); 2) o regime também poderia ser derrotado apés tum longo processo de desagregacio interna do poder, sob pressio das massas ¢ apés sucessivas crises, forgando uma parte do gover- no a facilitar uma abertura democritica; 3) ou, ainda, pela predomi- niincia e vitéria nas Forgas Armadas da corrente nacionalista da- quela época — hipétese qualificada com a anotacio de quettil cor- rente, se hegemnica, poderia cancelar o entreguismo do regime, ‘mas fentaria manter 0 poder militar autoritrio, o que exigiria novos esforgos para entio desmontar os restos do regime e democratizar a vida politica nacional (PCB, (1970) 1980). Esse modo de pensar a politica — diferente daquele do pré-64, agora desde fora dos aparacos governamentais e como invengo ante adversidades — se consolidaré mais ainda no PCB & medida que ele participar da construgo da frente tinica democratica. A expe- rigncia no MDB seré emblemética para a prépria reabilitagio da politica, que deveria ser a primeira obrigagio da esquerda em um momento em que a politica parecia, aos olhos de muitos, impo- tente para resist e derrotar o regime de 1964. Desde finais dos anos 60, passando por toda a década de 70 e inicio dos anos 80, o PCB cexerceu papel-chave na articulagio do MDB/PMos em diversos estados (sobretudo em Séo Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do 36 A valorizagao da politica na trajetéria pecebista Sul ¢ Pernambuco) nacionalmente. Desempenhou papel ativo na montagem de candidaruras, até de majoritérias, nas eleigées de 1974, 1976, 1978 e 1982. Os comunistas intervieram decisivamente na manutengio da legenda no in{cio dos anos 70, quando um grupo de oposicionistas, diante das dificuldades eleicorais e parlamentares impostas pelas medidas arbitrdrias do regime, propunha seu des- mantelamento. Novamente, nos anos 1978-1979, os comunistas tiveram postura similar quando outros grupos oposicionistas ¢ personalidades (Fernando Henrique Cardoso, Almino Afonso, Miguel Arraes, Leonel Brizola, entre outros) tentaram substituir a frente democrética representada pelo MDB por uma formacio de esquerda, nessa ocasiao falando na criagio de um Partido Po- pular ou Partido Socialista, movimentagio que depois da anistia ensejou o surgimento do PT. Esse pecebismo vai reaparecer mais perfilado como pensamento oficial na chamada elaborago do exilio (1976-1979). Esse era um momento em que o PCB recebia novas influéncias, até mesmo do temério eurocomunista daqueles PCs com os quais se relacionara a parte da diregio pecebista que migrara para a Europa apés as pri- Ges e desaparecimentos de 1975 — influxos que se fazem presentes nas resolugdes que 0 Comité Central entao adota, procurando consubstanciar a estratégia democrética contra o regime de 1964." So textos desse tempo do exilio: as resolugées politicas do Comité Central, de dezembro de 1977 e novembro de 1978, 0 artigo de Josimar Teixeira “A questo democratica” (que espelha a discussio italiana da época) e um texto sobre o patriménio da politica de frente democritica, assinado por Jaime dos Santos, os trés tiltimos pu- blicados no jornal Voz Operdria, & época editado no exterior. Ten- tando sintetizar essa elaboracio, a resolugio de 1978 dizi Para os comunistas, a luta pela democracia, pela manutengao ¢ ampliacio c aprofundamento das conquistas alcancadas, parte integrante da luta pelo socialismo... Em nossa concepcio democritica,lutamos no s6 pelo direito 37

You might also like