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Capitulo um Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua A personagem deste memorial nasceu na ci- dade de Djugu, na Africa Central, cujo rei era tributério ao rei de Berzu.' Jé que os africanos tém um modo totalmente distinto de dividir o tempo e calcular a idade, no se sabe a sua idade ou 0 ano exato de seu nascimento, mas ele supde ter cerca de trinta anos, pela lembranga que tem de certos eventos e pela sua recente habilidade com os ntimeros.” Mas nfo sendo isso importante na sua histéria, deixamos a questio de sua idade & sua pr6pria obscuridade, nZio achando em ne- nhum momento que a narragiio perca algum inte- resse por falta de data exata. Ele declara que os pais eram de paises dife- rentes. Seu pai, nativo de Berzu (de descendéncia arabe) e de cor niio muito escura, Sua mie, sendo nativa de Kashna, com cor bem escura, era intei- ramente negra. As maneiras do pai eram graves e silentes, sua religiio, o maometismo.? 28 Mahommah Gardo Baquaqua Como se sabe relativamente pouco do interior da Africa, uma breve descrigiio faz-se necessiria 4 maioria dos leitores. Procedamos com os deta- Ihes expostos pelo prdprio Mahommah, O modo de devogiio deles é feito da seguinte maneira: Meu pai (diz Mahommuah) se levantava cedi- nho toda manha ds quatro para preces matinais, depois voltava & cama, Av nascer 0 Sol ele cum- pria seus segundos exercicios devocionais, Ao meio-dia adorava de novo e, novamente, ao por- do-sol.4 Uma vez por ano se faz um grande jejum, que dura um més, durante o dia se abstém de co- mida, mas & noite, depois de celebradas algumas cerimBnias, permite-se comer. Depois das refei- ges permitem-se devogdes nas suas préprias casas, entéio se ajuntam para devogdes piblicas.° © local de devogio era um grande e agradivel quintal do meu av6, e o meu tio era o sacerdote oficiante. A gente se arranja em fileiras, 0 sacer- dote de pé a frente, os mais velhos junto a ele, e assim, arranjando-se em ordem pela idade.® O sacerdote comeca as devogdes uo inclinar a cabega A terra dizendo: Allah-hah-koo-bar, o povo respondendo Allah-hah-koo-bar, signifi- tanta “Deus, ouvi nossa reza”, “respondei nossa reza”. O sacerdote e os devotos entio se ajoelham € apertam a cabega a terra, 0 sacerdote repetindo Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 29 trechos do Corio, e os devotos respondendo como antes. Depois desta parte da cerim6nia, 0 sacerdote € o povo sentados no chiio rezam seus tergos, o sacerdote ocasionalmente repete frases do Cordo. Entéo rezam pelo rei, que Ald 0 ajude a conquistar seus inimigos, e que ele preserve a gente da fome, dos devoradores gafanhotos, e que ele outorgue chuva na devida época.” Ao fecharem as ceriménias do dia, os devo- tos do profeta vao para suas casas, onde se prova o melhor para o repasto vespertino. Esse mesmo ritual repete-se diariamente por trinta dias e en- cerra-sé com uma imensa reuniao. Nessa ocasifio o rei visita a cidade e grandes multiddes do pats vizinho junto com cidadaos se retinem no lugar designado para devogiio, chamado Gui-ge-rah, um pouco fora da cidade, Este lugar, consagrado 4 devogio do falso profeta, é um dos “Primeiros Templos de Deus [Ali]”." Consistia de varias arvores muito grandes, formando uma sombra extensa e linda, a terra arenosa e sem grama, con- servada muito limpa, permitindo a muitos se sentarem confortavelmente embaixo das drvores, e sendo 0 terreno alto, a aparéncia de tio grande assembléia é impressionante ao extremo, sendo os assentos meramente esteiras estendidas pelo chao, Um monticulo de areia (esta difere da do deserto, é uma mistura vermelha e grossa de areia 30 Mahommah Gardo Baquaqua com terra e pedrinhas, ¢ facilmente formada num monticulo substancial) € montado para o sacer- dote-chefe fazer sermdes ao povo. Nessas ocasi- Ges ele se veste com um manto preto, chegando quase a0 chao, e é atendido por quatro sacerdotes subalternos que se ajoelham ao redor dele, segu- rando a orla do seu manto, ondulando-o para cd e para la. De vez em quando 0 sacerdote-chefe “se agacha como sapo”, e quando se levanta, eles recomegam a operagiio agitando o manto, Con- cluidas essas cerim6nias, 0 povo volta para casa para oferecer sacrificio (sallah) pelos mortos e pelos vivos. Assim termina o jejum anual. Capitulo dois Governo na Africa Na Africa néio existem formas escritas nem impressas de governo, e 0 povo ainda se submete a certas leis, regras e regulamentos. O rei é in- vestido pelo poder supremo do governo, préximo dele ha chefes ou pequenos soberanos, ha tam- bém outros oficiais, cujos titulos e oficios nao se explicam bem em inglés." O rei de Djugu, como dito antes, € tributdrio do rei de Bergu.'' O roubo € considerado o pior crime em algumas partes da Africa, e 0 ladrao freqiientemente recebe a pena de morte. Quando alguém é suspeito ou acusado de roubo, é levado diante do rei, que Ihe dé um tipo de julgamento. Se julgado culpado, é vendido ou executado. Quando a tiltima sentenga se efetua, permite-se a qualquer um apedrejar e de outra maneira abusar e maltratar 0 condenado, quando ele é finalmente levado ao cume de um morro na cidade e morto & pedra ou a tiros. O assassinato nfo é considerado um crime tio ruim, € 0 assassino nfo sofre pena 32 Mahommah Gardo Baquaqua capital, mas € vendido como escravo e exilado do pats, !? O crime de adultério é severamente castiga- do, mas 0 pior € infligido ao homem. Um caso como esse € descrito por Mahommah. Ele diz: “Eu me lembro de um individuo que foi severa- mente punido por esse crime. O irmio do rei ti- nha varias esposas, uma das quais foi suspeita de adultério. Os dois foram trazidos diante do rei — eu estava com ele na ocasifio, O rei me mandou pegar uma corda, que foi atada pelos bragos do homem, atras das costas, entio enfiaram um pau pela corda, que tinham molhado para encolher, € entiio torceram até que o pobre foi forgado a con- fessar sua culpa, depois foi desatado e entregue como escravo, A mulher nao recebeu outro casti- go além daquele de testemunhar a tortura infligi- da ao seu culpado amante”.!3 Dessa maneira os lavradores tém seguras suas colheitas: Nao sendo as lavouras cercadas, 0 rei faz uma lei que todo homem dono de cavalo, burro, ou outro animal € obrigado a guardé-los fora da propriedade do vizinho, Se um animal vagueia no terreno vizinho e faz o minimo dano, € capturado € amarrado ¢ o dono € obrigado a pagar pesada multa antes de recuperar o animal, Esse € 0 estilo de resolugo na Aftica,"4 Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 33 As dividas, as vezes, sfio cobradas da se- guinte maneira, diz: — Se alguém numa vila ou cidade esta endivi- dado com alguém morando a distancia e que se recusa a pagar tal divida, o credor residente numa distante cidade pode apanhar qualquer dos vizi- nhos dele (o devedor) e prender naquela cidade, € se tem dinheiro ou objetos de valor, é permitido ao credor tird-los dele, e informar ao estrangeiro para recuperd-los do [devedor] seu compatriota quando ele volt Se nfio houver pro- priedade, ao credor é permitido agarrar a pessoa e deté-la até pagar a divida. Tal lei neste pats [EUA| teria grande efeito em confinar os cida dios em casa, e seria grande o perigo de viajar. A oportunidade de voltar para uma esposa ansio- sa e afetuosa seria muito rara em muitos paises civilizados. Imagine um viajante destituido de bens, ou um homem de posses, niio hd divida que seriam reduzidos consideravelmente os seus bens, antes de ele voltar feliz a sua casa.'° Os soldados sfio uma classe privilegiada, eo que quer que eles necessitem em aldeia ou cida- de, eles se permitem levar, e nao ha socorro de qualquer queixa contra eles. Se ume escravo fica insatisfeito, ele deixa o patrio, vai para o rei e se torna soldado, e assim se torna livre do dono, Nao pode atingi-lo a “lei do escravo fugitivo”. r para cas 34 Mahommah Gardo Baquaqua Esses siio alguns dos principais assuntos trazidos perante o rei para julgamento, de que ele dispde segundo as leis da terra,'® Capitulo trés Aparéncia e situacao do pais E bastante diffcil dar um relato correto da ge- ografia daquela parte da Africa descrita como o lugar de nascimento de Mahommah, mas que deve estar situada alguma coisa entre 10° e 20° de latitude norte e perto do meridiano de Gre- enwich, Situa-se na peninsula formada pela gran- de curva do rio Niger."” Quando Mahommah foi “retirado 2 forga de casa e de todos deleites dela”, 0 pé do homem branco ocidental ndo tinha feito sua impressio no solo da Africa. Por isso, os fatos, os assuntos € as coisas por aqui relatados serio mais fascinantes Aqueles cujos coragGes e almas esto voltados para os sofrimentos e as necessidades daquela porgiio do globo. A cidade de Djugu fica no centro de uma ter- ra muito fértil e aprazivel; o clima, apesar de quente em excesso, é salubre. Hd morros e mon- tanhas, gerais e vales, bem regados. A quase uma milha da cidade hé um rio, branco como leite e 36 Mahommah Gardo Baquaqua muito fresco, e nfo longe daf ha uma fonte de Agua fria, também bem branca. Os moradores freqiientemente saem da cidade em busca de gua.'* Nio se situa no meio da selva, como suposto, mas existem algumas planicies extensas, cobertas por capim espesso muito alto, usado pela gente para cobrir suas casas, & maneira de colmagem. Ha poucas drvores nessas planicies, mas as que existem sio de tamanho grande. Ali também va- gueiam 0 elefante, o ledio e outros animais selva- gens comuns A zona t6rrida, Ha duas espécies de elefante, uma muito grande, chamada Yah-quim- fa-ca-ri, & Outra pequena, chamada Yah-quim-ta- cha-na, Presas de elefantes estdio espalhadas em abundancia pelas planicies, e pode-se colhé-las em quantidade. Os nativos usam as presas (mar- fim) em instrumentos musicais, que chamam de Kafa. A cidade em si € grande, cercada por uma muratha grossa, feita de barro vermelho e liso em ambos os lados. O lado exterior da muralha 6 circundado por um fosso fundo ou canal, cheio de gua na época da chuva. Além disso, a cidade é também protegida por uma cerca viva de espi- nhos, to densa e compacta que ninguém pode 1, nela brota uma florzinha branca, que em 0 torna-se extraordinariamente linda.!9 Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 37 O palicio do rei (se de tal se pode chama-lo) fica dentro da muralha da cidade, cereado por (0 que alguns chamam) um parque numa escala am- pla, atras do qual ha um bosque denso, impedindo a construgiio de uma muralha naquele lado do dominio real. Uma larga avenida estende-se da cidade até a casa do rei, com um mercado extenso nos dois lados, lindamente sombreado por sali- entes drvores. A gente da América nao tem idéia do tamanho’e da beleza de algumas das drvores da Africa, particularmente nas cidades, onde fi- cam separadas por boa distancia, tendo assim a vantagem de obter seu completo crescimento. Hi uma drvore chamada bon-fon, que cresce a uma grande altura, mas os ramos nfo se espalham tanto como outras; € muito bonita” A entrada da cidade faz-se por seis portdes, com os nomes dos seus respectivos guardas, algo parecido a Londres e A maioria das fortificagdes na Inglaterra e, decerto, na maior parte do Velho Mundo [Europa]. Esses guardiaes sao escolhidos por sua coragem e bravura e geralmente siio de posigdo. Talvez seja instrutivo e divertido a nos- sos jovens amigos que léem este livro saber os nomes deles: |. U-boo-ma-co-fa. 2. Fo-ro-co-fa. 3. Bah-pa-ra-ha-co-fa. 4, Bah-too-loo-co-fa. 5. Bah-la-mon-co-fa. 6. Ajaggo-co-fa, A palavra cofa significa porto, e Bah quer dizer pai. Ajaggo Capitulo quatro Agricultura e artes A agricultura do pafs encontra-se em estado rudimentar. Os poucos utensflios existentes sio feitos pelos prdprios camponeses e consistem de uma enxada grande, para cavar a terra, e enxadas pequenas para plantar e limpar o milho e para outras plantagdes. Esse processo de preparar o solo € muito trabalhoso € tedioso, mas de certo modo a riqueza da terra compensa, pois um acre bem cultivado renderé uma imensa colheita. Cul- tiva-se milho, batata-doce e harnee, que se parece muito com o sorgo americano, e 14 é usada como alimento. Harnebee, um cereal muito fino, cresce hum talo grosso, como nenhum outro neste pafs |EUA\; 6 assado na espiga, e os griios sao retira- dos com as miios e comidos da mesma maneira que os americanos comem milho assado; é muito bom. Arroz cultiva-se em grandes quantidades, de uma excelente qualidade; & plantado em filas. Uma plantagio produz por dois ou trés anos e brota por si, sem necessidade de cultivo. Cresce 40 Mahommah Gardo Baquaqua muito vigoso. Também se cultiva feijio, Ha uma grande variedade de drvores frutiferas que cresce espontaneamente. Cultiva-se o inhame, que cres- ce com perfeigao, Abacaxi também cresce es- pontaneamente, mas nfo se come, porque os nativos tém medo de que seja de espécie veneno- sa, mas isso € s6 medo, por falta de conhecimen- to, O umendoim € abundante e bom. E ha uma grande variedade de cereal. E supondo que tives- sem os recursos e 0 cultivo, os mesmos que hé nos paises civilizados, a Africa seria capaz de prover sua imensa populagio. As manufaturas da Africa sio muito limita das. Constam de utensilios agricolas, roupa de algodo e seda, A seda € pouco manufaturada, mas poderia produzir-se muito mais, jé que exi tem bichos-da-seda em abundancia. O algodoeiro ld cresce muito eo produto & de boa qualidade.?! As mulheres fazem a fiagdo por um processo muito lento, tendo que torcer os fios entre os de- dos. Os homens fazem a tecelagem; eles tecem 0 pano em faixas estreitas, e depois cosem-nas juntas, As mulheres também moem o milho, O processo de moagem é assim: elas pegam uma pedra grande e fixam-na no chao, daf preparam uma outra menor, para mais facilmente manejar, que € cortada num lado & maneira das nossas més. As mulheres, entio, poem os gritos ou o que Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 41 querem moer na pedra grande e, com a outra, esmagam os grios até ficarem finos. Se querem faz8-lo muito fino, tomam outra pedra preparada para essa finalidade e, pacientemente, conseguem moé-lo to fino quanto a mais fina farinha ameri- cana. Moem inhame seco num pildo, misturado com uma espécie de milho chamado harnee, ja mencionado. Dessa mistura fazem um tipo de mingau consistente que comem com caldo de varias verduras, condimentado com pimenta e cebola. Nio hd comida que seja ingerida sem cebola. Os pastores e os boieiros da Africa sio uma classe de gente distinta e subordinada ao governo, ‘Tém cabelo comprido e liso e sio de cor tdo clara quanto os habitantes do Sul da Europa; sto quase brancos. Cuidam dos rebanhos e das manadas, fornecem & cidade leite, manteiga e queijo (a manteiga € muito boa e consistente, 0 que evi- dencia ser ela de uma regidio mais fresca do que outras partes da zona térrida), So maometanos e cumprem estritamente os ritos e as cerimGnias daquela classe de religiosos. Falam arabe e flanne [fula], entdio se deve inferir que so de descen- déncia érabe, mas da sua hist6ria somos ignoran- tes? Os animais domésticos da Africa sio muito aos deste pafs [EUA] e aos de ou- semelhant a2 Mahommah Gardo Baquaqua tos, consistindo de cavalo, vaca, ovelha, cabra, burro, mula e avestruz. Aves ha em abundancia, tais_ como gansos, perus, paves; galinha- dangola e outras aves domésticas; estas sio grandes e abundantes. So, juntamente com os seus ovos, comida comum para a gente das sel- vas. Além desses, ha uma grande quantidade de cisnes no rio, e uma variedade de aves selvagens; ha também uma lindissima espécie de ave aquati- ca, cuja plumagem é to branca quanto a neve, e do tamanho de um pombo comum, e que anda em grandes bandos. Papagaios siio comuns, e aves canoras sio numerosas. Nos rios abundam o hi- popstamo, 0 crocodilo, ete. Capitulo cinco Usos e Costumes Grande respeito é devotado aos ancides; nun- ca usam o prefixo senhor ou senhora, mas sempre um termo carinhoso quando falam com uma pes- soa idosa, dizem pai ou mie, e a um igual cha- mam de irmao ou irma. Os filhos sio criados para serem obedientes e cordiais; a eles nunca é per- mitido contradizer nem sentar na presenga de um anciao, e quando véem um velho se aproximando, imediatamente se descobrem e, se calgados, ime- diatamente removem os sapatos. Dobram-se os joelhos ao ancifio, e este, por sua vez, também dobra o joelho, e pede-lhes levantarem-se de pronto; e todo respeito se devota a idade. O me- Ihor assento se reserva para eles nas casas de de- vogiio; o lugar perto do sacerdote é reservado para eles, Nio deveriam esses fatos envergonhar as maneiras dos filhos para com os idosos neste pais? Que pena é testemunhar a falta de respeito aos adultos pelos jovens deste pais, e em muitos a4 Mahommah Gardo Baquaqua ca os a conduta vergonhosa dos filhos para com 08 préprios pais, sem censura nem repreensiio! E aqui que deve comegar a grande regeneragiio moral do nosso pafs [EUA]. As criancas devem ser instrufdas desde cedo a prestar obediéncia e res- peito aos seus superiores, assim serfio preparadas para tratar a todos igualmente, quando se torna- rem adultas, ¢ uplas para governar bem seus prd- prios lares, Que o leitor perdoe essa digressio, que & apresentada com a finalidade de chamar a atengiio para um assunto, que é de vital importancia ao bem-estar de qualquer comunidade: que a juven- tude seja apropriadamente educada no bom cami- nho, para quando crescer niio se desviar dele. E Se esse contraste na conduta dessas pobres crian- gas africanas com a conduta das criangas da nossa iluminada nagdo puder ser um passo na marcha para a melhoria e a reforma a esse respeito, 0 compilador destas paginas se sentir amplamente recompensado pelo pequeno esforgo conferido a estas linhas extras. Essa € uma boa, senfio uma das melhores caracteristicas da Africa; a outra é a lei da generosidade, que reina por todas as partes nas relagSes entre as pessoas do mesmo nivel; tudo quanto a pessoa tem, compartilha livremente com 0 vizinho, e ninguém entra numa casa sem ser convidado a comer, Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 45 Mas é 0 mesmo que nos patses civilizados, se um sobe a riqueza e a honra, por certo serd inve- jado, seniio odiado. Nao gostam de ver um de seu mesmo nivel subir acima deles. Eles estimam altamente a pessoa que sempre foi rica. Isso deve ser assim em todo 6 mundo, seja onde for, seme- Ihante parece produzir semelhante em casos desse tipo. Vemos a mesma coisa manifestada no nosso meio. Achamos que somos muito distantes dos ignaros africanos, por causa de nossa sabedoria e educagdio, com todas nossas orgulhosas institui- gdes. Na verdade, 0 mundo inteiro € um com- posto de “negro, branco e cinzento, € as maneiras da humanidade diferem-se completamente”. A briga € ocorréncia comum, e de maneira alguma € considerada desgraga. Ha um lugar na cidade onde se retinem os homens jovens para esse fim; e, como em outras partes, ha duas fac- gGes que nunca se entendem; cada facg%io ocupa porgdes diferentes da cidade ¢ se confronta para 0 combate, que muitas vezes termina em luta geral, mas nunca se matam um ao outro. Capitulo seis Rituais de matriménio Quando um homem jovem quer se casar, re- colhe uma fruta seleta chamada gan-ran, e a manda, pela irmi ou amiga, ao objeto da sua es- colha; se ela aceita a fruta, ele entende que sera favoravelmente recebido e fica em casa por uma semana mais ou menos antes de tornar a visita- la.** Depois de passado 0 tempo em visitar e re- ceber visitas, arranja-se a ceriménia do casa- mento. Nio marcam um dia certo, nem a cerim6nia na casa do pai da noiva, mas ela é mantida ignorante da hora. Os arranjos se ajustam entre © noivo e os pais dela, A hora marcada, 0 noivo manda, 4 noite, um ntimero de homens jovens & casa do pai dela; ficam fora muito quie- tos e mandam uma crianga entrar para dizer-lhe que hé alguém que quer falar com ela. Ela vai até a porta e € imediatamente cercada e raptada pelos jovens que a levam a um lugar chamado Nya-wa- qua-foo, onde ela fica reclusa por seis dias. Du- rante esse tempo ela fica na companhia de ami- 48 Mahommah Gardo Baquaqua as, passando o tempo em brincadeiras e diverti- mentos. O noivo, enquanto isso, se confina em casa e € atendido por amigos jovens, banquetean- do e festejando até o sétimo dia. Enquanto esto confinados, enviam convites fos amigos das duas partes. O convite se faz as sim: serd dito que My-ach-ee e Ah-dee-za-in-qua- hoo-noo-yo-haw-coo-nah, significando que. os noivos saem hoje. Todos se retinem num lugar preparado. Os amigos do noivo o conduzem para Ide assim a noiva por suas amigas; os noivos tém as cabegas cobertas com panos brancos. Pée-se uma esteira para eles se sentarem; avangam os amigos e satidam o noivo, passando-lhe algum dinheiro, Colocam entio o dinheiro diante do casal, que € assim considerado marido e esposa. Espalham dinheiro também para o rei do tambor e seus acompanhantes, e para pagar as criangas do Povo. Depois disso, 0 casal é conduzido 2 casa do noivo, As celebragdes terminam aqui. Deve-se dizer que 0 consentimento do pai da noiva obti- do por meio de presentes.24 A poligamia é amplamente praticada e ratifi- cada pela lei. As vezes a riqueza do homem 6 avaliada pelo ntimero de esposas que ele tem. Ocasionalmente, um homem pobre tem um néime- ro de esposas, e entiio elas tém de sustentd-lo, Quando uma rica se casa com um pobre (caso Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 49 raro), ele nunca tem mais que uma esposa. A mie de Mahommah era mulher de posigio e riqueza. Seu pai tinha sido rico; era comerciante-viajante; levava sua mercadoria em burros, e tinha escra- vos para acompanhé-lo; mas, por alguma raziio, perdeu a maior parte de sua propriedade, e ao tempo do seu casamento era relativamente pobre; ele, conseqiientemente, tinha s6 uma esposa. Essa € outra razio para supor que ele era de nasci- mento drabe, jd que muitos arabes viajam para, desse modo, adquirir propriedades.”> As africanas sio consideradas muito inferio- res aos homens, e conseqilentemente presas na sujeicdio mais degradante. A condigao das mulhe- res africanas é semelhante ao que se passa em todas as nagGes birbaras. Elas nunca comem a mesa com os homens, nem na presenga deles (nzio tendo eles mesas), mas em cémodos separados."° Quando alguém morre, enrolam 0 corpo num pano banco e enterram-no tio logo possivel. De- pois de deitarem o corpo com a face voltada para o leste, mandam trazer o sacerdote, e celebra-se uma ceriménia religiosa, que consiste de rezas para Ald, pela alma do falecido. O modo de sepultamento é feito cavando-se um lugar no chiio, a alguns pés de profundidade e a dez ou doze pés na horizontal, onde depositam © cadaver e fecham a abertura com uma grande 50 Mahommah Gardo Baquaqua pedra. Outras ceriménias sao celeb ‘adas sobre a cova. Pranteiam 0 falecido, com gritos altos e amargos, numa lamtiria que continua por seis dias. Os amigos do morto fecham-se em casa por esse espago de tempo, convocando reunides de devogdes todas as noites, No sétimo dia faz-se uma grande festa, e 0 perfodo de luto acaba quando a familia volta a suas atividades normais. Os africanos sio muito supersticiosos e cré- em na feitigaria e em outras entidades sobrenatu- rais. Corpos da noite, algo como ignus fatuas, ou fogo fiituo, so freqiientemente Vvistos nos morros © nos lugares altos, movendo-se espasmodica- Mente em volta. Esses fendmenos supdem-se ser de maus espiritos; tm uma aparéncia estranha a distancia, e, com gente menos ignorante do que os africanos, podem ser tomados como um objeto muito distinto. Sio maiores em aparéncia que 0 Jack-o-Lantern da Europa, e parecem proceder dos bragos estendidos de um ser humano. Quando se supde que alguém esteja enfeiti- gado, consultum o astr6logo, que consulta as es- telas, € por esse meio descreve a suposta bruxa, que geralmente acontece ser uma pobre e decré- pita mulher, que levam fora e executam, Essa pratica assemetha-se ao que era praticado nos estados do leste dos EUA, na maior parte da In- Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 51 glaterra antiga e, decerto, pela Europa, em geral “nos dias passados”, Com certeza, em muitas partes da Inglaterra, em pequenos povoados eem vilas isoladas, 0 mesmo se faz até hoje, pois tais crengas siio fruto da mais grosseira ignordncia, daf a necessidade de educar as massas em todas as partes do mundo.”” Ha uma classe de homens chamados curan- deiros que a gente acredita serem incapazes de serem feridos; esses homens tém o officio de exe- cutar as supostas bruxas, Eles se chamam unbahs e se espalham por todo o pais; andam nus; co- mem carne de porco e sia camaitionadas pelos mugulmanos gente muito vil.” / ; E costume dos mugulmanos vestirem um tipo de calga folgada nas pernas e atada 4 cintura com uma corda. Um manto frouxo € vestido sobre. isso, cortado em forma circular, aberto ao centro, suficientemente para passar a cabega, € pousado nos ombros, com mangas frouxas, expondo o pescogo e 0 peito. As mulheres vestem um pano de quase duas jardas quadradas, cantos dobrados e atado a cintura, 0 nd feito 4 esquerda. O traje do rei é feito em estilo semelhante, mas de tecidos mais caros. As criangas néo usam muita roupa. O comércio entre Djugu e outras partes do pats é feito por meio de cavalos e mulas. Trazem sal de um lugar chamado Sabba. Trocam escra- 52 Mahommah Gardo Baquaqua vos, gado e marfim por sal, Essa viagem geral- mente leva quase dois meses. Ocasionalmente, havia mercadorias européias trazidas de Ashanti, mas eram muito caras, A maioria dos artigos era feita & mio. A cerfmica faz-se do barro. Ha um bom barro vermelho e branco, mas os artigos que fazem sao grosseiros, j4 que sabem muito pouco daquela manufatura e, provavelmente, de qual- quer outra.”? Eles tm idéias estranhas sobre 0 homem branco. Suas idéias sio vagas e cheias de fantasias. Supée-se que eles vivem no mar e que, quando 0 Sol se pée, esquenta a agua ea gente branca co- zinha sua comida com ela. Pensam que os bran- cos sio superiores a eles em todos os aspectos, e temem fazer agulhas, porque imaginam que os brancos podem espiar por um instrumento e ver tudo que se passa; e créem que o branco tem rai- va deles por fazerem agulhas; eles t@m muito medo quando esto ocupados nessa manufatura, pois acham que estio sendo vistos pelos brancos. Isso se dé pela crenga 2 qual estdo erradamente arraigados, E © mesmo para toda a raga humana: quando um engano est sendo perpetrado, 0 medo toma conta da mente. [sso € natural a toda a hu- manidade; fantasiam eles que, por manufaturar agulhas, os brancos tém o poder de arrancar-lhes os olhos, Por predominarem tais idéias, nfo fa- Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 53 zem agulhas em grande quantidade, mas encon- ram alguns suficientemente fortes e atrevidos para fazé-las. Por que tais idéias se espalham nao podemos explicar bem, mas o instrumento “tudo- vé", sem diivida, € 0 nosso telescépio, que de tempo em tempo tem sido exibido, provavel- mente por marinheiros que tém viajado por partes da Africa, e a hist6ria foi difundida pelos merca- dores das tribos negras.? As guer Africa sfio freqiientes, sendo a terra dividida em varios pequenos reinos. Os reis esto sempre envolyidos em contendas que levam A guerra?! Quando morre um rei, ndo hé nenhum suces sor regular, mas muitos pretendentes ao trono emergem, e quem puder reunir mais forgas fica ucessor, ento a guerra resolve a sendo © rei s eine questao, A escravidio & também outra frutffera causa da guerra, sendo os prisioneiros vendidos como escravos, As armas usadas sio arco e flecha, ar- mas de fogo e um tipo de faca ou espada curta, (cita d mao. Essa faca ou espada é usada em tem- po de paz como arma de porte. Os africanos nun- ca saem sem armas. As vezes, muitos deles so mortos nas guerras, mas nunca tantos como na Europa e em outros paises. Tratam muito cruel- mente os prisioneiros; agoitam-nos e abusam de- 54 Mahommah Gardo Baquaqua les, até surgir a oportunidade de dispor deles como escravos. Bebem consideravelmente antes de entrar em batalha, para fortificar-se e instilar- se de coragem e bravura (porém isso nZio ocorre com os maometanos profe: porque nunca usam bebidas excitantes). As vezes, cidades intei- ras siio destruidas e as terras devastadas, ocorren- do, entio, a fome. Isso, infelizmente, tem sido freqiientemente causa de guerra, nfo s6 na Africa, mas em todas as partes onde luta sangrenta se trava. Quando o Evangelho com suas belas verdades for total- mente entendido e apreciado pela gente em geral, a paz e a boa vontade reinardo supremas e jamais haverd “guerras e rumores e guerras”. Que estranho que as nagdes, que se orgulham de ser governadas pelo iluminismo e pelo poder do glorioso Evangelho de Cristo, possam se en- gajar no corpo a corpo nessas cenas de carnificina € de destruigdo, Como podem nagées cristis pen- sar no éxito de su missiio de converter 0 pagio quando, em suas préprias casas divergem tanto das belas verdades expostas no sagrado Livro? Deixam que 0 espirito cristo e 0 espirito da guerra se alinhem em oposigtio perpétua. Mas nao esta distante o dia quando do ermo brotaré a ro- seira enfeitada para a decoragiio da paz e da san- tidade. Cristios e professos das doutrinas do Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro 55 Evangelho devem fazer tudo 0 que estiver ao seu alcance para banir a guerra, Entiio seria seu “jugo facflimo e seu peso mais leve”, e 0 trabalho da conversio, mais répido. Escravidio na Africa A maior causa da miséria na Africa € 0 seu sistema de escraviddo, a qual ocorre em grande extensio. Mas a escravidio doméstica naquela terra ndo é nada em comparagiio com a deste pais. O trifico de escravos é horrivel. Os escravos sio apanhados no interior e levados A costa, onde sio lrocados por rum e fumo ou outras mereadorias. Este sistema causa muito derramamento de san- gue e leva & miséria. Mahommah uma vez foi feito prisioneiro e vendido, mas foi resgatado por sua mie, mas falaremos disso em um momento apropriado.”*

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