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ENSAI QO tempo morto do teatro Sérgio de Carvalho e Paulo Bio —_———— O inctnaio wo préiio da UWE, n0 Rio de saneizo, 6 talves o maior sisbolo aa ruptura resrentiva que o Golpe Rilitar eriou no cango das artes do pais. Como ot fsbo, nel talsva © princico de abril de 1964 'e gripes pereallicaree poctlores: “fe dante da eatidade evtudanti, na praia do Flamrayo no Mo de Janetro, Sando Gestioho Ge/ tops ba senspas|tzernertos d/slping Glue? apa Golan |eatcas/oat rajadan Ge netralhadorans All, onare vérias stividades de'tm novinento de Poli~ tiageo an cultura que se consoliduva, constrularee tambén tm tentco pare chri- ger on trabaihos do CFC, 0 Centro Popular de Cultura.’ 0 eepego seria inmugurado fu algunas semanas e fasian-se ov Gitinoe preparstivos para’ estseia da pega Of azarbao| nas cr, Sewrrides| de Ofuyalas Visean Filta com cites ce Meloes Xavier. h interrupgio wiolenta na montagen tepresentou un corte no provento Ge tprendisado dramatGrgico « cinico en curto, tio so entre ov artistas Ligados ao Bespin (colton nerapee alee iaeeipcaa stan ace oan ean Gunes des comuistas mie trengaian do moderna tectzo wo paler HO mmito Ga violanta/sevicavolta da esbiliseybo popular a oxrso, on que a grande maioria dos perseguidos pelo regime de excegdo eram liderangas canpone- Sas, operdrias e militares de esquerda (sendo o conjunto da cultura de esquerda relativamente poupado até 1968), a investida contra o CPC da UNE indicava, por outro lado, o reconhecinento da fora de experiéncias hoje to malcompreendidas, mesno subestinadas, e cuja vitalidade ~ advinda do interesse produtivo na poli- tizagdo da arte e da modificagdo do seu cardter de “privilégio de classe” ~ tinha sido gestada nos anos anteriores. (0 CPC nasceu de una cis&o do Teatro de Arena ocorrida em 1960, quando dois de seus principais integrantes, Vianinha e Chico de Assis, deixan o grupo para participar da montagem da peca A mais-valia vai acabar, seu Edgar. A montagem, toda coral, com recursos de projegéo de slides, jogo cémico e musical direto, encenando questées abstratas do marxismo e situagdo particular do trabalho no Brasil, foi realizada na arena do prédio da Faculdade de Arquitetura da antiga Universidade do Brasil. Ela mobiliza o movimento estudantil do Rio de Janeiro, coria um vinculo entre os artistas, muitos deles ao Partido Comunista, e os in- telectuais do Iseb, e agrega jovens descontentes de varias origens, inspirando lun movimento senelhante ao Movimento de Cultura Popular(MCP) em Pernambuco. Hn pouco tempo o CPC se junta A Unio Nacional dos Estudantes. \ como todos os CPCs, foram interronpidos os experimentos culturais em contato direto com as classes populares. Us exenplo € 0 fine Cabra marcado para morrer, de Eduardo Goutinno, ‘sobre o'assansinato do Lider canponts, Jodo’ Pedro Teixeira. En’ Pernenbuco, to- ‘sedes do Novinento de Cultura Popular (MCP) foram fechadas pelos militares, com Ghtegrantes peesoe e tortursdos, SCHWARZ, p62 44 [A INFLUENCTA DO TEATRO DE ARENA Mesno sinalizando una opgSo pela ruptura com 0 teatro profissional, em favor de una pratica de teatro de agitagdo e propaganda con finalidade politica direta, a encenagao jamais realizada de Os Azeredo mais os Benevides pelo CPC trazia a forte influéncia Gas pesquisas estéticas de atuacdo © dramaturgia realizadas nos anos anteriores no Teatro de Arena. (0 pequeno teatro da rua Teodoro Baima, em Séo Paulo, existia desde 1953, sob coordenagéo de José Renato. Mas foi somente trés anos depois da fundagdo que sua guinada politizante se deu com o encontro entre os jovens amadores do Teatro Pau- Lista do Estudante (comunistas cono Guarnieri, Vianinha, Vera Gertel, orientados pelo teatrélogo italiano Ruggero Jacobbi) e 0 recém-chegado diretor Augusto Boal, que forneceu instrunentos técnicos para que os interesses dranatirgicos do coletivo padessen se desenvolver. ‘Os processos de montagem dos espetéculos do Arena passaran a se fundanentar num novo olhar para o teatro como un todo. Boal introduziu a ideia dos laboratérios cria~ tives, de atuagéo e escrita. Por meio de longos exercicios, debates e inprovisacoes buscava-se investigar a fundo, tanto as dindnicas psiquicas (a base dos laboratsrios era o sistena de Stanislavksi, com influéncia relativa do método do Actor's Studio) ccono a correspondéncia social da personagem interpretada. Essa “escola” de interpre- tagdo laboratorial, gradativanente mais interessada em questOes sociais, fez hist6- ria no Brasil. Textos passaren a ser escritos pelos proprios integrantes do grupo, eran debatidos, reescritos e encenados. 0 Seminario de Dranaturgia, que se organiza apés 0 sucesso de Eles ndo usam black-tie, em 1958, e que dura trés anos, fornece elenentos para que una geragio ganhasse consciéncia técnica sobre a possibilidade de esceita de dranas socialmente interessados, a0 mesmo tempo en que langa as senentes para a experimentagdo de recursos teatrais ais narrativos, inspirados nos modelos do teatro politico de Piscator, do teatro épico de Brecht, € nas formas cOmicas po- pulares brasileiras. ‘A pega mais significativa do Teatro de Arena gestada pelos debates do Seminario de pranaturgia - Revolugdo na anérica do Sul, de Augusto Boal, escrita en 1960 - & un bom exemplo de un processo de aprendizado em curso, que levou a un exane autocritico dos préprios procedimentos. Néo por acaso, sua forma irdnica inspira grande parte dos ‘trabalhos do CPC. De estrutura fraguentada, descontinua e narrative, quase circense apesar de una trajetéria trégica em que um operdrio € manipulado pela fone e por fal~ sas esperangas, ¢la apresenta uma personagen central ingénua que € antes objeto da histéria do que seu sujeito. Ela se distingue mito dos dranas sociais encenados pelo Arena e de certo modo modifica a técnica de dialética dranstica utilizada (em que una personagen autoconsciente, com contradigées internas e externas entra en contradi¢ao ‘com outras personagens, sendo o conjunto pressionado pelo ambiente social). Foi no Teatro de Arena - ou inspirado por ele ~ que os melhores dranaturgos do pais se interessaram pela representagio da vida do ponto de vista popular, en tenética 1i- gada ao Brasil miserdvel, e, por forga desses interesses politizados, vieram a adotar tuna atitude experimental, o que fazia com que as contradigdes, sempre produtivas, Jo 2014 MEVISTA PRANTEA gs pedissem resolugso: quando se queria heroicizar, o assunto obrigava rarefacio do sujeito; quando se queria mostrar una vitina dranética da violéncia, a auséncia de ident idade individual do brasileiro obrigava a una constatagao sobre o caréter servil Ga personagen. im outros ternos, com toda precariedade das solugées literérias, havia tuna atengio ao fato de que o Brasil era uma contradigio a ser enfrentada, e de que cabia A cena abrir sua estrutura para que o mais importante, o olhar critico, fosse estimilado, 0 teatro da época estava, assim, na linha de frente de un movimento de Gesmonte do inaginério social-dominante que se irradiou para o cinema e para a can~ go, inspirado pela movinentagéo social pés-Juscelino. Um tempo em que, como dis: Roberto Schwarz, “nunca o pais foi tdo inteligente”. (0 que 0 CPC tinha de novidade, em relagéo ao Arena, era a disposigéo a una rup- tura maior com 0 cardter estético da produgdo de arte, a servigo de una maior pré- tica militante. J& em 1959, Boal se perguntava: “Pazer ‘bom teatro’ para que e para quen?”” 05 integrantes do CPC levaran a frente essa reflexio pratica sobre a fungao da arte — desenvolvendo una crise do Arena (e de todo teatro anticapitalista) sobre © alcance e sentido da produgéo de arte nas condigées do aparelho burgués. Sabian que a questo néo pode ser resolvida de dentro do campo estético. ‘Quando foi fundado em 1961, 0 CPC pretendia produzir obras engajadas, en torno dos ‘temas do chanado nacional-popular, e que saissem as ruas e fossen en dirego a0 povo. Wao bastava a atitude inconformista do conteido social, era necessério estabelecer ‘un novo dislogo com plateias populares. Apesar da mistificagio potencial ligada a ideia de “arte popular” e, por vezes, ingenuidade ideolégica em relagdo aos tenas que atendiam a pauta do Partido Comunista (no centro deles, o anti-imperialismo e a critica 4 suposta burguesia entreguista = a dita burguesia progressista era mais ou menos poupada), a movinentagdo do CPC gerou rapidamente posicdes novas e irreverentes. Fonentou um ambiente de experiéncia artistica politizante, o desenvolvimento de um estilo proprio de teatro de agitagdo fe propaganda ainda desconhecido no pais, conectou-se radicalmente A atualidade. Mais ainda, a prética do CPC em enbrenhar-se pelos grotées da exploragio secular brasi- Leira, com viagens por todo o canto, apresentac3o en favelas, sindicatos, escolas, zonas rurais, midou no apenas a forma de trabalho dos artistas de teatro, mas 0 conjunto das perspectivas de criag3o e de interpretagio social brasileira, em todas as areas da cultura. Se miitas vezes partilharam das ingenuidades populistas € nacional-desenvolvinen~ tistas tipicas do periodo, a verdade € que a hist6ria do CPC s6 seré compreendida se néo for analisada apenas pelo idedrio (de qualquer modo en constante movinento € debate, que néo pode ser restrito ao célebre documento de Carlos Estevam Martins), nas sobretudo por sua dinensio prética. Foran jovens artistas que se alinharan aos ovimentos sociais populares, vivendo com conpronetimento a experiéncia de un Bra~ sil miserdvel que revelava tragicanente 0 avesso do progress periférico. Conheceran ¢ deran forma de arte a um mundo no qual, conforme a cangdo final da pega de Vianna: "se un existe, outro sone.” ‘po prograna da pea A farsa do esposa perfeita. Disponivel para consulta no sitio: hetp:// san. uol..com.br/testroarena/arena.html 46 (0 que importava do CPC néo era assim sua crenga discutivel de que o valor teatral deveria ser medido pela capacidade de atingir as massas (uma contra- @igdo com @ prépria forma de comunicagéo teatral, sempre pequena, e que gera luna anélise quantitativa da agao cultural em termos muito semelhantes aos da indistria cultural), mas sim sua disposiggo em procurar multiplicar-se e se irradiar coneretamente, com qualidade critica, desenvolvendo, no limite do projeto, 0 direito de que todos - sobretudo os mais pobres — tenham direito a produzir cultura e no apenas a consumi-la, £ significative que, nos Gltimos momentos do CPC, no mesmo compasso das hesitagdes de Jodo Goulart, a comemoragdo de certo progresso nacionalista de esquerda comecasse a ser posta em xeque. £ como se houvesse um abalo no ‘ton positivo que envolve as pecas e autos cepecistas da primeira fase (mes- mo quando o assunto era tratado negativamente), que passam a ser criticados, a despeito de seu marcante vigor experimental, seu sabor de liberdade e das favangadas formas populares e vanguardistas desenvolvidas ali. Vianinha deci- de escrever Os Azeredo mais os Benevides para a inauguragéo do Teatro da UNE como un simbolo dessa consciéncia das difculdades. A pega contém a procura de un avango no sentido de una maior verdade estética da representagéo, ¢ un regresso aos padrées do drana social de andanento literdrio, que deveria ser epicizado para dar conta dos temas hist6ricos. A pega encarna contradigdes de varios tipos. Procura ser épica pela angulagdo negativa do processo ¢ pela evolugdo histérica mais larga. Seus temas so 0s conflitos no campo, a ferida aberta da exploracéo de classes no Brasil, na regigo do cacau na Bahia. Re~ trata um perfodo de 20 anos desde a expansdo do cultivo até sua decadéncia. Destaca o clientelismo da elite, as relagdes de semisservidio. 0 proprietario piridido aparece inicialnente como o desbravador aventureiro de inspiragdo nacionalista: “ESPIRIDIAO - Vou para a Bahia plantar cacau [...] nossas terras estéo abandonadas. Isso 0 Brasil espera de nés."* Trata-se, contudo, da mes: ma figura que, adiante, criaré um curral eleitoral entre seus arrendat&rios, obrigaré os camponeses a uma semisservidio prendendo-os As suas dividas con 0 armazém da propriedade, expulsara todos da terra quando 0 cicle do cacau esmorecer e reprimiré violentanente um espasmo de revolta dos trabalhadores Tudo isso operado por um empreendedor nacionalista, intelectual, sensivel a pobreza, amigo do trabalho meritocrético, afnado, portanto, aos valores hu- manistas de sociedade moderna. Venos um proprietério que podia escolher ser patréo ou senhor, de acordo com seus interesses ou caprichos. Todo e qualquer nacionalisno progressista por parte destes aparecia ent&o como de fato era, contingente. Ainda que essa abordagem dialética esteja presente, a narrativa da pega ainda se organiza en torno do centro dramatico de um agente responsé- vel (e da consciéncia geral sobre o sofrimento), o que sentimentaliza a es- trutura quando a encenagéo ndo consegue fortalecer de modo mais materialista © conjunto das personages. “VEAWA Filho, Oduyaido, Os Azeredo mate os Benevides. Rio de Janeiro: Servico Nacional Ge Teatro: Plano Editorial, 1969, p. 12 SULHO 2014 REVISTA FALAWEA yey De qualquer modo, 6 enorme a acumulagdo de experiéncia hist6rica contida nessa pega de Vianinha, como reflexio social e estética. F ela certanente abriria um ca- minho novo no trabalho do autor e influenciaria uma geracéo na medida em que suas contradigies — a tipica luta nacional entre o arcaico e o moderno ~ obrigavam a movinentos de ativagio critica. A pega, a seu modo, era uma sintese do passado © © andneio de un futuro. Esto nela presentes a construgdo dranatirgica moderna e experinental, a organizagéo produtiva laboratorial e coletiva, a critica de um te- atro que ndo se contenta em ser “teatro", bem cono una observagio sobre os runos do pais, Cono baliza para o préprio CPC, ela encaminhava novas relagbes entre teatro, Literatura e cinema, e sugeria una desconfianga produtiva da ideologia nacional- desenvolvinentist 1A possibilidade geatada com a construgdo do Teatro da UNE nos prineiros meses de 1964, seu sentido de um laboratério de cultura anticapitalista (que rompe espe- cializagoes com novas conexses entre atores, misicos, cineastas, escritores © mo- vimentos sociais) decerto reorientaria o trabalho teatral de muitos, oferecendo um modelo distinto em relagio ao do mercado de artes (incluido ai o mercado de cultura de esquerda de entio). Conquanto o retorno & sala de espetéculos tivesse algo de recuo com relagdo aos espetéculos de rua, feitos junto aos despossuidos da cultu- ra, a ideia de construgdo de un espago proprio ligado so movimento social tentav ‘a0 que parece, enfrentar outros angulos da questéo da denocratizagéo cultural. 0 horizonte aberto seria amplo e talvez possibilitasse um ambiente, cujo avango real estaria mito préximo dos avangos sociais em curso, néo fora o “tempo morto que nunca acaba” decretado desde entéo pelo Golpe.' Por outro lado, una outra forma de teatro de resisténcia existiu até o final da década de 1960, cada vez mais apartada do contato direto com as forgas populares. Qualquer posicdo de real denocratizacio do teatro — também nun nivel produtivo - tornou-se inpossivel. As reflexdes sobre ‘a anbivaléncia do progresso periférico, sobre luta de classes, o direito a terra, minguaran ou foram substituidas por debates internos & classe média progressista. Difundiram-se as autocriticas sobre as raztes da derrota de 1964, sobre o papel do intelectual de esquerda na luta social, sobre o sentinento de paralisia e a neces- sidade de combate ao Poder. 0 teatro pés-golpe cumpriu inegavelnente ainda um papel de grande importincia e inventividade até ser quase extinto spés o AI~5 em 1968, mas @ preciso lenbrar que a cultura heroica que persistiu durante o regime de excegio estava aleijada, subtraida do seu vinculo com o conjunto social de outrora. Restou luna fantasmagoria e 0 esforgo de seguir em frente.‘ As geracdes teatrais que vieran depois tiveran que andar sobre essas ruinas. E por muito tempo ndo sabiam onde es- tavam, porque o mato 4 tudo cobria. Um novo ciclo de politizagao do teatro no pais se iniciaria somente na década de 1990, com a retomada da organizagio teatral de ‘grupo, mas 0 sentinento ~ no auge do neoliberalismo e do p6s-nodernismo - era de un ‘comego sobre terra arrasada. Quen se interessa por questées da arte na atualidade precisa compreender, de um jeito de outro, essa supressao do passado. ‘a expressso ¢ de Paulo Arantes: < Ces SCHWARZ, Roberto, Cultura e pol{tica, 1964-1969. In: SCHNARZ, Roberto. 0 pai de familia e outros estudos, S40 Paulo: Conpanhia das Letras, 2008, p. 81; COSTA, ind Ganargo. A hora do teatro épico no Brasil. S8o Paulo: Pez'e Terra, 1996. 48

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