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© DISCURSO WAIAPI SOBRE OQ OURO — UM PROFETISMO MODERNO —* Dominique T. Galois (Wepto. de Antropologia, Universidade de Séo Paulo) Ha cerea de quinze anos, garimpeiros descobriram ouro na bacia dos ios Aim@/Inipuku, no corag&o do territério Waiapi’. Desde entéo, suces- sivas levas de invasores penetraram na drea indigena, provocando um “apodrecimento” acelerado da terra: Ywy i-jupa, a terra esté podre. Este argumento — as derrubadas, a poluigdo e a lama dos garimpos — esconde em si uma realidade cosmolégica que merece maior atengao. Reali- dade a partir da qual procuro, neste artigo, analisar algumas manifestagdes do enfrentamento entre os Waiapi e os brancos (carai-ko). Um confronto que se manifesta na palavra dos velhos, nos discursos proféticos sobre os quais se apdiam outras modalidades — inclusive mais diretas — da resisténcia dos Waidpi a invasio de suas terras. Uma etno-hist6ria Waidpi passaria, de fato, pela compreensfo das re- presentages sobre 0 contato construfdas por este povo, envolvendo dife- rentes aspectos do relacionamento com o mundo dos carai-ko: a adaptacao a novas tecnologias, a introducao de doengas antes desconhecidas, as modi- ficagdes no meio ambiente etc. Por outro lado, a posigao histérica e simbélica dos brancos no mundo Waiapi se insere no sistema global de classificagdio social elaborado por (*) — Resumo de comunicagdes apresentadas no GT Histéria Indigena e do Indigenismo/ANPOCS, em 1985 e 1986, com base em material coletado na AI Waidpi do Amapari, entre 1983 ¢ 1986. Revista de Antropologia, (30/31/32, 1987/88/89). 458 Dominique T. Gallois esta sociedade: sistema este que se reflete em diferentes planos da tradigao oral do grupo: no discurso histérico, no discurso mitico ou, ainda, no discur- so etiolégico. Os mitos, como se verd adiante, tratam essencialmente do fu- turo levando em considerago a presenca — que os Waidpi sabem defini tiva — dos carai-ko no seu modo de vida. OS CARAL-KO NA CLASSIFICACAO SOCIAL WAIAPI O contato e, subseqiientemente, as modalidades do enfrentamento adotadas por esta sociedade nas suas relagdes com os brancos, deveriam ser analisadas num quadro global definido por P. Menget como a “gestao das relagdes exteriores” de uma sociedade (1985); envolve, no caso, os Waidpi e todas as etnias por eles conhecidas. Esses contatos se situam, por sua vez, numa taxionomia mais ampla de relagées entre esta socieda- de especifica e o resto do Universo (dividida, esquematicamente, em trés niveis: as relagdes entre Homem/Natureza/Sobre-humanidade e Sobre-Na- tureza; as relacdes entre sub-grupos waiapi; as relagdes com outras etnias). © que parece mais relevante notar nessa taxionomia, € a posigio am- bigua dos carai-ko, as vezes integrados ao sistema mas em outros momentos exclufdos?. A classificagdo etiolégica, na sua atual configuragio, pode ser exa- minada a partir do levantamento de acusagoes de feitigaria proferidas na regio do Amapari. Distinguem-se trés categorias de inimigos — perma- nentes ou possiveis — a quem sfo imputados todos os males e doengas que surgem na rea indigena: os vizinhos Wayana-Aparai, tradicionais inimigos apa; os “outros Waiapi”, habitantes do Rio Oiapoque, na Guiana Francesa, normalmente designados como amé-ko (literalmente, “outros grupos”); ¢, finalmente, os habitantes de outras aldeias (am6 ta-wan) na mesma regiao do Amapari. Nesse sistema, os brancos estao significativa- mente ausentes: nunca os carai-ko so acusados, pelos xamas, como causa direta de uma morte ou de uma doenga. No entanto, os Waidpi nao dei- xam de comentar ¢ julgar, constantemente, os comportamentos dos carai- ko — seja dos regionais com os quais tém contatos esporddicos, seja dos “brancos distantes” sobre os quais tém informagdes de segunda mao — e, as vezes, os inserem na categoria and. Trata-se da mais genérica entre as causas patogénicas, associada ao contato com espiritos da floresta ou com sombras dos mortos. And é um suporte, nfo uma categoria social, um efeito e ndo a causa real dé um problema, que deverd ser apontada pelo diagnéstico de especialistas, remediando-se entdo o desequilfbrio que resultou em morte ou doenca. Os xamés, entretanto, praticamente nunca recorrem & categoria carai-ko. Discurso Waidpi: profetismo moderno 459 A classificagio histérica situa os brasileiros na periferia do Universo, uma posiggo que partilham com uma categoria especifica de inimigos: os api-wer, inimigos “antigos” (isto é, ‘‘eliminados”: wapisipa). Vivem per- to de sowai, 0 “oceano”, que os Waidpi situam ao sul, na diregéo do Rio Amazonas. Outra classificagdo, construida a partir da andlise dos mitos de ori- gem, acrescenta novos dados. Faz-se, neste caso, a diferenga entre uma humanidade propriamente “criada” pelo herdi Ianejar (literalmente: “nos- so dono”) € uma outra humanidade “residual”, da qual fazem parte os carai-ko. Esta classificagéo mostra que os brancos sao totalmente diversos, € isto esté posto desde o tempo das origens, uma vez que nao surgiram da mesma forma que a “‘verdadeira humanidade”. Os brancos séo amana ta’yr, “filhos da chuva”: por isso, talvez, sejam tio numerosos. Com tal origem, os carai-ko passam a ser associados A categoria de inimigos apa — nao mais “antigos” e “vencidos”, mas constantemente presentes na vida dos atuais Waidpi. Trata-se dos j4 citados Wayana-Aparai — designados como moju tapuru-kwer (literalmente “residuos da putrefagdo da cobra sucuriju”) e fruto de um incesto animal. A classificagdo posta pelos mitos de origem pode ser esquematizada como segue: 1. Humanidade verdadeira, “criada” pelo heréi Ianejar, que inclui: : criados pelo herdi © posteriormente abandonados por este. grupos “parentes” (ex: Waidpi do Oiapoque, Emerillon, etc.) originalmente juntos aos Waiapi mas deles sepa- rados apés a morte do criador. 2. Humanidade residual, com origem externa e posterior a criacdo de Tanejar: — Apa: inimigos (ex: Wayana-Aparai), residuos de incesto animal, “crescidos” (alimentados) pelos Waiapi e posteriormente afastados. — Parainsi: “estrangeiros” (ex: carai-ko, os brasileiros), residuos de pedras ou de amendoins caidos do céu, “crescidos” pelos Waiépi € posteriormente afastados. Hoje, os Waidpi consideram que a “terra cresceu”; por isto, detalham com maior rigor as posigdes etno-geogréficas da categoria am6-ko: entre eles € 0s carai-ko estio situados esses “outros” povos indigenas do Rio Xingu/To- cantins, como os Asurini, os Parakana, os Araweté ¢ os Iawarapiti”, que os Waiapi aprenderam a situar recentemente. As informagdes sobre esses grupos indigenas chegam ao Amapari através de funniondrios da FUNAI, de antro- pélogos e de outros visitantes, nas fotos. filmes e gravagdes que Ihes con- firmam a proximidade histérica e lingiifstica dos povos do Xingu: 460 Dominique T. Galois “Antes, estdvamos todos juntos, era tudo Waidpi, 14 no Xingu. De- pois que Ianejar foi embora, nés fugimos, veio pro Jari, os outros ficaram ‘E tudo parente’” (Waiwai, Mariry, fev. 1985). Atualmente, entre “parentes” ¢ “inimigos” esto, por toda a parte, os brancos. Eles foram, na verdade, a causa da separacdo original da primitiva humanidade®. Em fungdo desta separagio, os Waidipi se dis tanciaram, enquanto os Asurini, Parakand e outros povos “‘parentes” fica- ram mais préximos do lugar onde o her6i Ianejar morreu, onde os antigos Waiapi viram seus despojos, a “pele de Tupa”, na casa de pedra Mairi. Deixemos a palavra a Waiwai, Anisio e Tsiré. Profundamente preo- cupados com o devir de seu povo, eles nos falam do destino dos Waiapi, “com” (e nao “contra”) os brancos. Os trés textos que seguem correspon- dem a interpretagdes modernas do mito da “Terra sem mal” e, para maior compreensao de sua estrucura, devem ser lidos em seqiiéncia. Sao discur- sos aparentemente antagénicos que, no entanto, sio construidos a partir dos mesmos valores e de um tinico sistema cosmolégico, comum a outras sociedades Tupi-Guarani. © PROFETISMO NO ESPACO — A BUSCA DA TERRA SEM MAL A est6ria de tamo Kuresisi (avd Kuresisi) trata da visita de antigos moradores do Rio Onipuku, que empreenderam uma viagem rumo ao sul, para procurar Mairi, a casa de pedra do herdi criador. Esta casa foi construfda por Ianejar para salvar alguns eleitos de seu povo do grande cataclismo que destruiu a primeira humanidade. Mairi resistiu ao incén- dio e foi levada pelas Aguas no topo de uma grande montanha, onde per- manece até hoje. Quando saiu da casa protetora, Ianejar teve que refa- zer a humanidade — Waiapi, brasileiro e outros povos — e reconstruir a paisagem. E no termino desta tarefa do herdi, que Tsiré inicia seu relato (tra- dugio resumida): “Tanejar distribuiu a cada povo suas armas: os taimi-we (os “avés antigos") recusaram a espingarda e as méquinas, escolheram 0 arco e fas flechas. Os outros apossaram-se das miquinas com as quais fabri- cam todos seus bens ¢ as ferramentas que hoje, os Wailpi devem com- rar junto aos carai-ko. Irritado com esta escolha e com a propagagio da violéncia que se seguiu distribuigdo, Tanejar sobe aos céus, morto pelos homens. Abandonados pelo “pai grande”, os Waidpi acabam por it embora, também. Deixam para trés Mairi que, desde entao, esta situada nas terras ocupadas pelos carai-ko. Seguindo seu caminho rumo Discurso Waidpi: profetismo moderno 461 ‘a0 norte, os antigos chegam ao Rio Inipuku, onde se instalam e perdem contato com os brancos por muito tempo. Kuresisi, segundo a tradigio, foi o primeiro a ter procurado, vol- tando atrés, a casa do heréi criador. Tamo empreendeu uma longa viagem: partiu no caminho do Rio Jari e voltou pelo norte, seguindo © caminho do Rio Oiapoque. Nesta longa viagem que o levou para além de sowai (oceano), ele chegou até ywy popy (0 final da terra), ‘onde viu os criatérios de porcos do mato; viu também as fabricas de migangas ¢ de todas as coisas dos parainsi-ko. Mas, sobretudo, Kuresisi viu Mairi, que ainda existe. A casa do her6i esté situada numa grande praca, cuja outra ponta é ocupada por uma “prisio” (com que os Waigpi traduzem kurara uagu), onde estio presos os “garimpeiros”. Na prisio e no Mairi transitam sotako (sol- dados), que se tornaram donos do lugar. Nessa praca, Kuresisi encontrou Monpe, que Ihe mostrou uma Série de objetos rituais que haviam pertencido aos antigos, recolhidos pelo heréi antes do dilévio (...). Kuresisi, ao ver 0s despojos dos antigos, ficou profundamente tris- te. Mas Monpe 0 conduz por um caminho sinuoso, dificil, ao topo de uma serra onde se encontra Tupanapire, a pele de Tupa. A pele — “que nfo fede” — do herdi que outrora abandonara suas criaturas. ‘A pele, 86 a pele, ficou na terra, apoiada num pau, com uma flecha atravessando 0 coragio”. Neste ponto do relato, o narrador prossegue com a descrigao de outra escolha, que faz eco & escolha das armas mencionadas acima: uma péssima escolha que os taimi-we fizeram no passado, quando recusaram a troca de pele (cfipiro) que thes daria juventude eterna. Como Tupanapire, deixa- tiam somente o couro na terra: “nao morreriam” (Tsir6, Mariry, fev. 1985). 0 PROFETISMO NO TEMPO — A INVERSAO NA TERRA SEM MAL “Trabalhem, disse Tanejar. A terra vai queimar. Os carai-ko nio trabalharo: outros irdo trabalhar. Quem construiré os aviGes? Serdo tamo-ko raiwer (as “almas dos ancestrais” ou sejam, os futuros Waiapi — ver adiante), quando a terra queimar. Quando queimar a terra, entio, os tamo-ko descerio do ctu. Ianejar também desceré. E ordenaré aos tamo-ko que trabalhem: es- crever, fazer carro e fazer avido. Os carai-ko nio fario nada. Assim ordenaré Janejar. Tudo seré invertido. H4 muito tempo, Yanejar orde- nou aos carai-ko trabalharem. No futuro, serfo os tamo-ko que traba- Ihardo. Escrever, fazer panela, serio os tamo-ko. Faro as facas, os 462 Dominique T. Gall machados e também os carros. Os carai-ko nio fario nada. Entéo os carai-ko virio comprar machado. ‘Nao comprem comida, disse Ianejar. Mais tarde, somente os ‘tamo-ko tero comida. Os carai-ko nfo fabricaro as espingardas. SerGo feitas pelos tamo-ko. Ianejar os ensinaré. Os carai-ko irdo cagar com flecha. Somente com arco e flecha. Os tamo-ko fabricario pao, bolacha, manteiga, tudo. E comerio 86 isso. Ser bom, disse Ianejar: € s6 comer. No futuro, disse. No tempo de nossos netos, talvez. Repitam isso aos seus netos: os carai-ko, no futuro, nao trabalha- fio. Somente os tamo-ko & que fabricaréo as migangas, 0s machados € ‘as espingardas” (Anisio, Aramiri, fev. 1985) UM PROFETISMO MODERNO — O REDUTO DE TERRA “DURA” No final de 1984, membros da aldeia do Mariry encontraram no bura- co do garimpo do Aima, onde trabalham esporadicamente desde 1983, um pedago de torrador de beiju (iape). Descoberta amplamente comentada, durante os meses que scguiram, especialmente pelo Iider da aldeia, Waiwai. O chefe construiu sobre este fato um discurso ouvido em fevereiro de 1985, durante uma reunifio de caxiri. Reporto, a seguir, elementos mar- cantes deste discurso, dirigido em parte a mim (pelas explicagdes bésicas que Waiwai achou bom me fornecer) e, sobretudo, & comunidade reunida naquele dia, a quem este acontecimento nunca deixou de interessar. “O torrador pertenceu aos taimi-we que habitavam 0 Aima antes do iiltimo cataclisma que fez desabar 0 céu sobre a terra, seguido pelo grande incéndio e pelo dilivio. A camada de terra (mais de um me- tro e meio) que cobria o torzador é 0 préprio céu, caido geragdes e gera- Ges antes... A presenca dos antigos, nese pedago de torrador, é lem brada com saudade por todos. .. Naquele tempo, no tempo dos taimi-we, no existia ouro na terra. E a terra, justamente, queimou, porque estava podre (i-jupa). A humanidade representada por aquele torrador era toda misturada: composta pelos primeitos Waidpi, mas também por carai-ko (brasileiros) e por parainsi-ko (franceses), que, todos, mor- reram pelo fogo e pela 4gua. Nés fizemos parte de uma outra humani- dade, que Tanejar recriou, ¢ depois separou, cada povo no seu territério. Depois desta recriagio, Tanejar se cansou dos cataclismos, dormiu € sonhou. E entio fez 0 ouro, através de seu sonho, distribuindo 0 metal na terra, em toda parte da terra, em todos os igarapés. O ouro tornou assim a terra mais dura, uma terra que nao deverd mais quei- mar. A terra, enquanto mantém seu ouro, nfo fica podre”. Discurso Waidpi: profetismo moderno 463 Esta observacdo me permitiu entender outra afirmacio de Waiwai, ouvida pouco antes, quando respondia, contente, as indagagdes de um engenheiro da ICOMI*, sobre a existéncia de pedras na area indigena. Reportando a conversa, Waiwai dizia: “Tem muita pedra, entéo tem muito manganés, t4 preto, té preto, t4 duro, t4 novo”. Voltando aquela noite de caxiri, Waiwai continua seu comentario: “Agora, carai-ko ¢ parainsi-ko estio acabando com 0 ouro deixado por Ianejar na terra deles, por isso vem buscé-lo na terra Waidpi Segundo o lider, eles terio agora que vir “compré-lo (omo'epy), pois © ouro é dos Waidpi e agora eles mesmos sabem cavar a terra para retiré-lo”. Seguiu-se um comentério sobre 0 perigo de secar todos os igarapés, com a abertura de buracos ¢ © desvio das Aguas nos locais de garimpo. “Se tira (ouro) tudo garimpeiro, ame ijar onimoré, entio 0 dono (do ouro) fica bravo, e fara secar tudo, queimaré a terra. Quando esté cheio, af € que esté bom...” (Waiwai, Mariry, fev. 1985). PROFETISMO WAIAPI As trés estérias mencionadas acima constituem-se como trés momentos de um mesmo discurso profético, construido sobre uma Iégica comum & palavra de outros profetas Tupi-Guarani. Falam todos da mesma questo crucial: onde esté o parafso, onde est4 a imortalidade? A terra sem mal? Sao momentos que acompanham o lento processo de tomada de cons- ciéncia das diferencas com 0 mundo dos carai-ko. Discursos que, porém, apontam para uma superacao dessas dierengas. Todos os relatos estdo baseados sobre o tema da inversio e, por esta razdo, nao deixam de cor- responder & estrutura do mito. © primeiro relato parece tratar de uma viagem a Terra sem Mal, conforme a mesma estrutura messianica de outros mitos Tupi®. Aqui, no entanto, os Waiwai introduziram temas que melhor caracterizam suas preo- cupag6es, no contato com o mundo dos brancos. Esta estéria, contada em varias vers6es, sempre termina com 0 retor- no dos viajantes até a aldeia do Inipuku, trazendo as ferramentas que os Waiapi, desde entdo, devem comprar aos brancos, através de expediges semelhantes 4 de tamo Kuresisi. O relato, alias, inclui uma longa descrigao. dos artefatos cobicados pelos indios*. O que interessa analisar, neste ponto, € a associac¢ao da questéo das ferramentas com a pele de Tupa, marca viva da imortalidade perdida. A imortalidade, assim como o acesso direto 464 Dominique T. Gallois 0s motores, as espingardas e & munigGo foram perdidas pela atual, ¢ “verdadeira”, humanidade. Perda da imortalidade e do acesso irrestrito as ferramentas, so dois temas que se repetem em todos os relatos, velmente comentados pelos Waidpi do Amapari. Ambos dizem respeito a distancia da Terra sem Mal, questo que repercute na palavra de Anfsio. Outro tema recorrente € a posigdo especifica dos “garimpeiros”, aludida no relato de Tsir6, e que faz eco ao discurso de Waiwai. O segundo discurso, também criado a partir dos elementos da con- vivéncia de brancos ¢ indios na proximidade do Posto da FUNAI, onde vive o narrador, relaciona-se diretamente com o grande ciclo da criagao e destruigéo do Universo. O que explica, aliés, o uso da expresso tamo-ko raiwer, que poderfamos traduzir como “nossos ancestrais mortos”, 0 que também significa dizer: “os ancestrais futuros”. Na Iégica Tupi-Guarani, “nossos mortos” (jane raiwer) so ao mesmo tempo, a antiga e a proxima humanidade: com o desabamento do céu, os mottos de ontem tornat-se-Zo os vivos de amanha. As palavras de Anisio remetem & seqiiéncia anterior do mito, quando antigos moradores do Rio Inipuku procuraram a casa Mairi, de onde vol- taram carregados de ferramentas. Naquele trecho, o mito estabelece a necessidade de “comprar”, junto aos brancos, os bens que outrora os anti- gos recusaram. A fala de Waiwai constitui-se talvez no discurso mais interessante, ou mais “inovador”, em relagGo ao messianismo “tradicional” dos povos Tupi-Guarani. O lider da comunidade de Mariry, que tomou para si, em 1983, as ferramentas de garimpeiros inovadores e desde entfo tem acesso a0 ouro ¢ ao dinheiro (Ver “Aconteceu/Povos Indigenas 1984”), se apéia no mito para balizar o destino de seu povo. Um futuro que depende, segun- do Waiwai, do controle que os Waidpi terdo sobre seu territ6rio e de um uso parcimonioso do ouro. Nos trés discursos, uma série de oposigdes, constantemente associa- das, esto presente: ; vida celeste Vida terrestre parafso /eondic&io humana imortalidade smorte espingarda e ferramentas Jaco e flecha O enfoque na questo do acesso & tecnologia dos carai-ko, como motor do discurso profético, remete As preocupacdes fundamentais da sociedade Waidipi, no atual contexto das invasdes de garimpeiros e mineradoras Discurso Waidpi: profetismo moderno 465 Nao se trata, portanto, da questo do devir individual (0 destino da pes- soa humana, cujo principio vital (-d) sobe aos céus onde se transforma em principio imortal, mas do devir da soiedade como um todo, sopre © qual recaem as principais preocupagées dos Waiapi do Amapari. Se a est6ria de tamo Kuresisi poderia corresponder & forma cléssica do messianismo Tupi, que se produz “no espago”, a fala de Anisio pro- e uma ordem invertida “no tempo”. O discurso de Waiwai coloca a lidade de uma nova ordem, no tempo e no espago, pela qual os de certa forma recuperam os recursos e a imortalidade recusada pelos taimi-we, nas origens. Vejamos como se contréi essa associagao entre ouro © imortalidade. A PERENIDADE DO OURO As palavras de Waiwai remetem a uma série de elementos fundamen- tais da cosmologia ¢ cataclismologia Waidpi: terra/agua/fogo ¢ ainda, pedra/lama. Os primeiros trés elementos se referem diretamente ao mito de destruicao do mundo, pelo fogo e pelo diltvio. Neste sentido, “secar” os igarapés com a abertura de buracos e o desvio das 4guas, nos garimpos, representa para os Waidpi, um sinal de cataclismo. A “seca”, a rarefa- cdo das aguas, antecede — em todos os relatos tradicionais — a chegada do “grande fogo” que destruiu a primeira humanidade Na recriagdo do Universo, Ianejar garantiu perenidade a esta terra, colocando nela 0 ouro, que segundo os Waiapi, “segura” as Aguas, ao mesmo tempo que confere & terra uma juventude eterna. E preciso lembrar, neste ponto, outros episédios do mito de criacao, como a escolha entre os dentes de pedra e os dentes de madeira. Os pri- meiros nfo apodreceriam, e foram escolhidos pela onca e pelas cobras. Os segundos, preferidos pelos taimi-we, so moles e apodrecem logo. Hé ainda 0 episédio dos cantos da pedra e das Arvores. Se os antigos tivessem res- pondido ao grito do primeiro, nio morreriam. Mas preferiram responder ao canto da floresta e, desde entéo, morrem, como as Arvores. Na segunda oposig&io presente no discurso de Waiwai, a pedra sim- boliza a imortalidade. associada & plataforma celeste, & morada do herdi criador, construfda sobre uma laje de pedra. A lama, ao contrério, repre- senta a “podridio” da terra, relacionada com a mortalidade da atual huma- nidade. O podre é normalmente associado ao niimero elevado de sombras de mortos que se misturam & terra. Apés a morte, de fato, a pessoa Waidpi se cinde: sua sombra (kwaray’a pore ou Jurupari) regride ao lugar de nascimento para depois se amalgamar aos animais fétidos (como a mucu: 466 Dominique T. Gallois ra), aos residuos vegetais e & lama que recobre a terra; seu principio vital 4), por sua vez, ascende aos céus onde tera uma existéncia eterna ao lado do criador Tanejar. Assim, na escatologia Waidpi, a presenga de lama é um sinal de cataclismo: refere-se A presenca excessiva de sombras “podres” na terra e, paralelamente, ao peso excedente dos mortos no céu. Peso que determinaré a destruigdo do mundo, com o céu e seus ocupantes (aine raiwer) desabando sobre a terra, para substituir a atual humanidade. Muita Agua, terra repleta de ouro, Muito ouro, terra “dura”. Garan- tias para a perenidade da atual humanidade, tal como é concebida no mito Waiapi. Num jogo de conceitos que o lider Waiwai soube manipular para incentivar sua aldeia a um trabalho exclusivamente indigena no ga- rimpo, alertando a comunidade sobre o perigo que representa a presenga de garimpeiros invasores. A fala de Waiwai, naquela noite, estava longe do “misticismo” ou do “pessimismo” atribuido aos povos Tupi por geragGes de etndlogos. “Mis- ticismo” que discursos, ouvidos em outras aldeias, pareciam perpetuar. Poucos dias depois, os lideres da aldeia do Aracd, desesperados com a mor- te de vérios membros da comunidade, comentavam que a terra ja estava totalmente “‘podre”, que o fogo iria queimé-la até Sao Paulo, que todos seriamos destrufdos. A atual humanidade ser4 transformada em mucuras, enquanto “‘nossos mortos” — dotados de eterna juventude — nos substi- tuirao, vindos da aldeia celeste de Ianejar. A argumentaco dos profetas Waiapi, qualquer que seja, continua mantendo intocada, a perenidade da “Terra sem mal”. NOTAS (1) — Os Waidpi do Amapari, com uma populagdo de 285 individuos (1986) distribuida entre 8 aldeias, ocupa as bacias dos rios Inipuku, Aroi ¢ Felicio, na margem esquerda do rio Jari (Amap&). A AI Waiapi, cuja delimitagao foi apro- vada pelo Grupo de Trabalho Interministerial (Dec. 88.118/83) em 1985, ainda nfo foi demarcada '2) — Nao cabe reproduzir aqui os diversos modelos de classifica¢io social waiapi, apresentados numa comunicagéo ao GT “Histéria Indfgena e do Indigenismo” (Anpocs, 1986). Tais modelos serio integrados a0 trabalho que venho desenvol- vendo como tese de doutoramento, a ser apresentada na FFLCH/USP. (3) — Ver no mito de origem transcrito in: Gallois D., 1987 (no prelo). (4) — Indfstria e Comércio de Minérios S.A., cuja base operacional, Serra do Navio, est situada a 90 km da drea indigena (5) — Refiro-me especialmente As versdes Kaapor (Ribeiro, D. “Uira sai a procura de deus”, 1976) e Tembé (Nimuendaji, C. “Mitos dos {ndios Tembé do Para ¢ Maranhao”, 1951), além das versées analisadas por H. Clastres (1978). (6) — Ver Gallois, 1986a Discurso Waiapi: profetismo moderno 467 BIBLIOGRAFIA. CEDI. Os Waidpi e os garimpos. Aconteceu esp. Povos Indigenas no Brasil 84, 1985. CHAUMEIL, J. P. Le discours de la maladie soufflée, comme marqueur de distanciation sociale et spatiale chez les Yagua de l'Amazonie péruvienne — EHESS, 1985. CLASTRES, H. Terra sem mal: 0 profetismo Tupi-guarani. Brasiliense, Sao Paulo, 1978. RIBEIRO DA CUNHA, M. ¢ VIVEIROS DE CASTRO, E. Vinganca e tempora- lidade: os Tupinambd. 1985. dat. 22 p. GALLOIS, T. D. © pajé waidpi e seus espelhos — Revista de Antropologia, Vv. 27-28, 1985. Indios e brancos na mitologia waiapi: da separagio dos povos & recu- peracdo das ferramentas. Revista do Museu Paulista, v. 30, 1986a. Migracdo, guerra e comércio: os Waidpi na Guiana. Série Antropolo- gia, FFLCH/USP, 1986b MENGET. P Jalons pour une étude comparative. Journal de la Siciété des Amé ricanistes, v. LXXI (131-141), 1985. VIVEIROS DE CASTRO, E. Araweté: os deuses canibais. Zahar/Anpocs, 1986.

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