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O Pais Distorcido retine textos publicados por Mitton Santos na Folha de S.Paulo ao longo de 20 anos, Ce aC Mt REO ce ory eet entrevistas, registram-se, com caracteristico vigor de estilo @ independéncia, as idéias do grande gedgrafo sobre 0 ecole Re esse oe Keeani ee eek as ae ete os aioe) “Para quem estuda 0 territério, afirmar que um pais 6 eerste aL Men esome cert eee ara CMe Men gonial esol Us mueo ele err Milton Santos sabia que a distorgéio do teritério ocare The poh Sanco eesckenites(-|[e--menn( @fa a isso que 0 professor queria se reterir A expressao Cele eee och keno teem ter nee que olham o Brasil com idéias de fora. O pais distorcidi 6 resultado de um olhar distorcicc eet lM nen hear me Rees ete Milton Santos, escrito pelo professor Carlos Walter Port Goncalves (Universidade Fedetal Fluminense). “Uma das principais contribuigdes da obra de Milton Santos para a: Moh dee vet eke lone eee ee eee: jebate acerca dos eed edict ie eeeke Ronee Reon curer ac debate vai prosseguir, segundo tal viés, isso se dev Polesciaies ¢sMeMn two Mu cue icwe ee} cultura brasileira do nosso t PAU ASU AL LY il {e) xe. e Fe D a Ro oO qt oy : MILTON SANTOS © PAIS DISTORCIDO O BRASIL, A GLOBALIZACAO E A CIDADANIA Organizacio, apresentacao e notas de Wagner Costa Ribeiro Ensalo de Carlos Walter Porto Gongaives PUBLIFOLHA Dis de Publicages da Empress Fa da Man S/A Thos dirs races. Nhe pr dest Publi ~ redo de Publier da Emgent Jc ratio eedtoragio elettinica aula Aste vio Flore /Foha Amagem te nate pea ‘Mario Vilela “ PUBLIFOLIA Divide Puticagies do Grup APRESENTACAO mutton santos: do Territorio @ Cidadania Wagner Costa Ribeiro Parte 1: 0 Pals DISTORCIDO Pesquisa, Questéo Nacional © Territério e a Constituicéo Modernidade e Meméria De Novo Sobre 0 Territorio e a Constituicao Ainda Persiste a Noc#o Antiga da Disciplina Um Reordenamento Global Para o Brasil ‘$6 Geografia Reconstrél o Pais ‘uma Campanha sem Cara ‘As Duas Esquerdas © Chio Contra 0 cifréo (© Pais Distorcido ‘AVontade de Abrangencia Uma Metamortose Politica ‘Um olhar Dissonante a Cultura a indstria Cultural (0 Brasil (Segundo Mitton Santos) Parte 2 POR UMA GLOBALIZAGAO MAIS HUMANA ‘uma Terra Tratada a Ferro e Cobica Por uma Globallzagto Mals Humana Geografia ‘A Revanche do Tertitério Guerra dos Lugares ‘ANormalidade da Crise Nacdo Ativa, Nacdo Passiva ~ Revelagbes do Territério Globaltzado ‘A América Latina Nao Teve uma Real Redemocratizagao ‘Altos @ Balxos na Politica (0 Tempo Despético da Lingua Universalizante © Novo Século das Luzes v 18 a 24 27 32 35 43 ro 33 87 6 65 “0 73 74 79 8 s2see 102 105 109 15 Parte 3: OS DEFICIENTES Civicos 119 Rediviso Territorial e cidadania 120 ‘Quem Tem Medo das Grandes Cidades? 123 Ter Medo de Quem na Cidade Grande? 126 FIXoS @ Fluxos ~ Cendrio Para a Cidade sem Medo 129 A Lei da Causalidade as Avessas 133 Pesquisa Reforca Preconceito 136 ‘A Reinvencdo da Cidadania 141 Qual o Principal Pecado da imprensa Hoje? 148 s Deficientes civicos 149 . ORecomecoda Historia. 153 APRESENTAGAO Sertiesro na BreallHoje; 487 MILTON SANTOS: DO TERRITORIO A CIDADANIA Elogio da Lentidao 162 Wagner Costa Ribeiro Contra o Uso Politico das Estatisticas 167 Milton Santos: Ciéncia, Etica e Responsabilidade Social 174 Carlos Walter Porto Gongalves Bibliografia de Milton Santos 187 Para quem estuda 0 territ6rio, afirmar que um pais é distorcido é, no minimo, curioso. Como gedgrafo, Milton Santos sabia que a distorcao do territério ocorre nos mapas devido as diferentes projecdes cartograficas que se podem empregar. Mas nao era a isso que 0 professor da USP queria se referir. A expresso que da nome a este livro foi usada por ele para criticar os que olham © Brasil com idéias de fora. O pais distorcido é resultado de um othar distorcido, fruto da assimilagdo acritica de temas de pes- quisa impostos de fora, Fruto também da determinagao do que se deve estudar/entender por agéncias de fomento que nao definem claramente seus objetivos, nem o que fazem com os resultados que lhes sdo entregues, como costumava dizer Mil- ton Santos, Um olhar distorcido, entdo, porque desentaizado e porque se recusa a adentrar 0 territério para conhecer a gente que nele vive, bem como suas condigdes de vida e necessidades. Um olhar distorcido que enlaga o pats e seus recursos naturais em uma teia de relagdes sociais complexas - ditas “globais” ~ e que afirma um tinico padrao de insercdo intemacional para o Brasil, sem levar em conta nossa formagdo socioespacial, categoria que o Proprio Milton criou. Um olhar de quem tem “preguiga intelec- tual”, como dizia & boca pequena o gedgrafo baiano, e nao quer ousar buscar 0 novo para si ¢ para o Brasil Os textos aqui reunidos, originalmente artigos publicados a Folha de S.Paulo ao longo de duas décadas, permitem que se criem olhares alternativos para o Brasil e 0 mundo. Por meio de conceitos como globalizagdo, cidadania e a jé citada formagdo so- dioespacial — analisado iio ensaio do gedgrafo Carlos Walter Porto Gongalves, que integra esta obra juntamente com a bibliografia LTON SANTOS: DO TERRITORIO A CIDADANIA ° Mt mmpleta do autor (p. 187) -, constroem-se criticas que podem ear alternativas para um mundo ¢ um Brasil mais justos. 8 “Milton Almeida dos Santos nasceu em Brotas de Macatibas (BA), em 3 de maio de 1926, e formou-se bacharel em ela em 1948, em Salvador. Mas passou a ter lascinio pela geogratia a partir de aulas que minisirava no ensino médio. Foi por af que descobriu a Associagdo dos Geégrafos Brasileiros ¢ suas reu- nides cientificas, que na época se encerravam com um estudo geogralico da localidade onde ocortia 0 encontro. interesse pela disciplina, que acabaria consagrando-o, consolidou-se com o titulo de doutor em geogratia, aleangado na Universidade de Estrasburgo (Franca), em 1958. A partir dai, passou a ministrar aulas em diversas universidades, como a Ca- t6lica de Salvador e a Federal da Bahia, na década de 1960. ; ‘Milton Santos combinava a seu rigor académico outras vi tudes, como a habilidade politica, que o levou a ocupar cargos pUblicos de destaque, ¢ a produgao de textos para a imprensa, tornando-se colaborador de jornais na década de 1950 (A Tarde) ena década de 1990 (Folha de S.Paulo). Suas idéias contunden- tes despertaram seguidores e crticos, Seu estilo causou-the pro- blemas, como a prisdo por trés meses em 1964, durante o regi- me militar. Ao sair da priséo, ganhou o mundo. Comegou pela Franca. Depois, passou por diversos paises e continentes, fazendo pesquisa e ensinando. Entre as universida- des onde atuou naquele pats, destacam-se a de Toulouse (1964- 2), a de Bordeaux (1967-8) € a de Paris (1968-71). Deu aulas na América do Norte (Universidade de Toronto, no Canada, 1972-3; Instituto de Tecnologia de Massachusetts, 1971-2; Universidade Columbia, em Nova York, 1976-7, ambos nos Estados Unidos), na América Latina (Universidade Politécnica de Lima, no Peru, 1973; € Un'versidade Central de Caracas, na Venezuela, 1975-6) e na Africa (Universidade de Dar-es-Salaam, fa Tanzania, 1974-6). Seu retorno ao Brasil, como confessou €m entrevista ao jornalista Fernando Conceisio, foi para que seu filho Rafael nascesse baiano, em 1978. Mas a volta as atividades académicas foi conturbada e diff- Gil. Tal qual ocorreu pelo mundo, o geégrafo Milton percorreu 10 APRESENTAGAO diversas universidades ¢ institutos de pesquisa até estabilizar-se Profissionalmente no Brasil. Em meio a assessorias a érgdos puiblicos e de pesquisa do pais, ele passou pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (1978-82) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1983), até fixar-se no Departamento de Geografia da USP (1983-96), de onde saiu para regressar Universidade Federal da Bahia (1996), mas sem desligar-se do Programa de Pés-Graduag3o em Geografia Humana da USP. onde varios de seus alunos desenvolveram dissertagdes de mes- trado ¢ teses aplicando suas referéncias teéricas até depois de sua morte, em 24 de junho de 2001 Para os que trabalhavam com temas como planejamento urbano, urbanismo, geogratia e, mais tarde, epistemologia da ciéncla, globalizagao e cidadania, o impacto de sua volta ao pais foi muito forte, Isso ficou registrado em homenagens a ele rea- lizadas na USP, como 0 evento “Um Mundo do Cidado — um Cidadao do Mundo”, promovido pelo Departamento de Geogra- fia em 1996 com a presenga de intelectuais de varias partes do mundo; e na ceriménia organizada pelo Centro Interunidades de Hist6ria da Ciéncia, no mesmo ano, na sala do Conselho Universitério, com a coordenagao do professor Shozo Motoya- ma, quando 0 gedgrafo da USP Armando Corréa da Silva apon- tou que, no ambito da geografia, o livro Por wna Geografta Nova (1978)* tornara-se um marco teérico fundamental. Por sua vez, © arquiteto © professor da FAU Julio Katinsky confirmou a incorporagao da reflexdo original sobre 0 urbano e o planeja- mento de Milton Santos a produgdo de arquitetos brasileiros. E Milton Vargas, engenheiro da Escola Politécnica da USP. pro- hunciou palavras que deixaram nos presentes a impressio de um didlogo de gigantes, comentando aspectos éticos e metodo- l6gicos presentes na obra do professor baiano. Se teve reconhecimento amplo entre seus pares universi« térios, entre politicos (incluindo aqueles que emergiram desse meio) suas idéias geraram inquietagio. As criticas dirigidas a esse segmento, incluindo partidos politicos - mesmo os de €squerda, com os quais simpatizava -, foram duras, como o lei- ‘1 Milton Santos, Por uma Geografia Nova, $0 Paulo: Hucitec, 1978, [LTON SANTOS: DO TERRITORIO A CIDADANIA 41 “ tor poderé conlferir na primeira parte desse livro. Destacam-s¢ ali os textos referentes ao debate na época da constituinte brasileira, mas também reflexdes agudas criticando ‘9 modelo adotado de insercao do pais no mundo globalizado. Daf o titulo: 0 Pais Distorcido, extrafdo de um dos artigos. Outro aspecto presente nessa segao sao as idéias sobre a importéncia da pesquisa cientfica e teenoligica no pats e sobre a preservagdo da meméria nacional. Milton Santos seretona ser possivel desenvolver um sistema cientilico capaz de dar ao pais maior autonomia e meios para ingressar no complexo sis- tema de relagdes internacionais contemporaneo, incluindo uma maior participacio da sociedate brasileira. E também defendia 0 uso de iméveis tombados, pois do contrério “apodrecem”, se mica social que nao sao incorporados aos novos usos da ocorre nas cidades. © caminho percorrido por Milton Santos tomou-o um observador do mundo. O sistema de objetos, que ele detiniu como 0 conjunto de artefatos técnicos construidos pelo trabalho humano ao longo do tempo que compée a paisagem do mundo hodierno, merece ser analisado para que possamos reavaliar as condigdes em que vivemos. Para ele, de nada valiam as perspec tivas amplas que as alteragGes tecnol6gicas apontam para o cur- to prazo — alteragdes que permitem um intenso intercimbio de pessoas, de idéias e de mercadorias -, se fosse mantido o atual padrao de controle exercido por grupos econémicos. Elaborou, Por isso, uma critica contundente do padrao de produgao ¢ acu- mulagao em vigor. ; | Mas ele era otimista. Escreveu que 0 meio técnico-cienti- fico-informacional que caracteriza o espaco geogréfico no inicio do século 21 pode gerar um mundo melhor, Esse € 0 contetido de um pequeno mas importante artigo: “Por uma Globalizagao ‘Mais Humana’, t{tulo que emprestamos 3 segunda parte deste livro. Publicado pela Folla de S.Paulo em 1995, na segio desti- hada a jovens vestibulandos, ele j4 apontava para temas que Cinco anos depois apresentou de maneira mais acabada em seu livro Por wma Ouira Globalizagéo.? No artigo citado, ele propos 2 Milton Santos, Por uma Outra Globaizagdo. Rio de Janeiro: Record. 2000, 12 APRESENTACAO nao 0 abandono do sistema técnico em curso, mas a mudanga de seu destino, dotando-o de valores do humanismo voltados para a construgéo de um mundo mais justo, de modo a forjar- mos “um mundo solidério |...] onde os homens serao mais feli- Zes, um outro tipo de globalizacao” Nessa parte do livro estao distribufdos artigos como o que trata da situagao da Africa na década de 1980. O retrato elabo- rado na época permanece valido, indicando um diagndstico seguro do autor. Em outra passagem, o leitor verd uma inter- pretagio da condigo da América Latina a partir do caso da Venezuela. E textos que abordam o papel do Estado, algo em desuso ¢ fora de moda no meio intelectual brasileiro em tempos de globalizacao. Mas o destaque maior dessa seco fica para os textos em que analisa 0 territério, categoria central em suas andlises, que combinam economia e politica na “guerra entre os lugares” em busca de investimentos diretos. 0 papel do territério, ao delimi- lar fronteiras e instituir uma das formas da geografia, em nosso entendimento, coroa as idéias de Milton Santos sobre a acelera- ao contempordnea, tema que desenvolveu em outra obra.4 £ por meio do territério que o capital penetra, atraido seja por Politicas fiscais, seja por atributos geograticos, possibilitando a manutengéo da desigualdade, tanto no interior de um pafs quan- to entre paises no mundo. O tema da desigualdade encerra esta obra. Mais uma ver, fazemos uso do titulo de um dos artigos de Milton Santos para nomear a tiltima parte do livro: “Os Deticientes Civicos” $ Observador atento do seu tempo, das téenicas ¢ também 3 Em seu livro A Natreza do Espago - Téonica ¢ Tempo; Razdo ¢ Emogdo, publicado pela Hucitec em 1996, Milton Santos dedicou-se a avaliar também a globaliza- ‘0, porém detendo-se na anélise de seus fluxos. 4 Milton Santos, Maria Adélia Souza, Francisco Scarlato e Ménica Arroyo, Fim de Séeulo e Glabalizagio, S30 Paulo: Hucitec/Anpur, 1993, Em capitulo desse livro, apresenta a ideia de que 0 mundo atual caracteriza-se pela aceleragio da vida, baseada na acumulagio capitalista. Esse tema sera depois desenvolvide quando propie, em obras como Por uma Ouira Globalizagdo, a defesa do tempo lento, ou seja, daquele que ¢ préprio a cada ser no mundo independente de determina: bes externas, 5 A didadania percorreu a obra de Milton Santos, mas teve um livro em que ele se dedicou a ela: 0 Kspaco do Cidaddo, S80 Paulo; Nobel, 1987, piroN SANTOS: DO TERRITORIO A CIDADANIA 13 ™ das pessoas, 0 gedgrafo mantinha uma indignagdo vest ‘cisso somava-se uma enorme capacidade de comunicagdo ora, fe testemunhamos em imimeras passagens de sua vida acadé- aia, como no famoso debate com o filésofo José Arthur a em um evento para discutir os rumos da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Cigncias Humanas da USP, em meados da década de 1990, quando deferderam posigées distintas sobre os rumos da universidade amparados em {ilésofos como Kant, Sartre € Marx, entre outros citados mas ndo registrados em nossa meméria. : Essa indignacao e sua vica de itinerancia tornaram Milton Santos um militante, embora negasse isso em inimeras ocasides. Mas como definir de outra forma, por exemplo, sua participa- Go como mediador entre professores, funcionérios ¢ estudan- tes grevistas e 0s reitores das niversidades estaduais paulistas, para a retomada das negociagSes durante a greve de 2000? Ou mesmo a constante participacao ministrando palestras sobre cidadania ¢ justica social em eventos promovidos por outras categorias profissionais, como arquitetos, advogados ¢ psicélo- gos? Sua atencao aos intimeres convites para palestras, cursos € produgies de textos vindas das mais de 30 secdes locais da Associagao dos Gedgrafos Brasileiros (AGB)? Seu atendimento aos chamados de diret6rios académicos dos varios rincdes do pais, a convocacao de movimentos sociais diversos, como o de negros ¢ o dos trabalhadores rurais sem terra? Milton Santos era um militante pelas palavras. E a cidada- nia, que sua origem social e condigdo de negro nao 0 deixavam esquecer, foi sua busca permanente. Nao a dele, reconhecido no Pais e no exterior ao ser agraciado com intimeros prémios como © Vautrin Lud, considerado 0 Nobel na area da geografia € o pri- meiro concedido a um intelectual que ndo escreve em inglés como primeira lingua, em 1994. Os varios titulos de doutor honoris causa que recebeu em universidades como as de Toulouse (1980), de Buenos Aires (1992) e de Barcelona (1996) € 0 titulo de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras € Ciéncias Humanas da USP (1997) coroaram sua vida de reali- zacSes, Ele dispunha sua pena a favor de quem necessitava de apoio para ser no mundo. 16 APRESENTACAO Ao tratar com desprezo argumentos que buscam propor modelos de distingao social baseados na cor da pele, ou mesmo a0 abordar pesquisa sobre a condigéo do negro no Brasil, 0 autor se posiciona de maneira apaixonada, como caia hem a quem gostava tanto de conversar com as pessoas sobre as neces- sdrias mudangas no mundo atual. Mas ele também se preocu- pava com a formagao dos jovens ¢ destilava criticas “a difusio acelerada de propostas que levam a uma profissionalizacao pre- cace, 4 fragmentacao da formagao ¢ a educacao oferecida se- gundo diferentes niveis de qualidade”, que resultariam nos tais deficientes civicos. Os escritos aqui reunidos estéo recheados de passagens ricas, que se sobrepdem. Dai poderem ser lidos em ordens dis- lntas da proposta. Por isso manteve-se, no interior de cada Parte, a cronologia em que foram publicados, para quem quiser lé-los acompanhando 0 desenvolvimento das idéias do autor. Vez ou outra, encontram-se pequenas notas explicativas da conjuntura dos textos e de citagdes neles contidas Procurou-se com esta apresentacdo permitir ao leitor en- veredar pela trama resultante da organizagao dos trabalhos, jé que em outra ocasido apresentamos de maneira mais direta o autor € suas idéias (Ribeiro, 2001). Organizar o material fornecido pela Publifolha foi, antes de mais nada, um privilégio. Na verdade, duplo. Em primeiro lu- £2r, por ter podido reler varios textos e descobrir outros de um dos intelectuais mais vivos e contundentes dos iltimos tempos no Brasil. © outro foi a indicagéo pela AGB para realizar essa tarefa, fato que me honrou em especial pela deferéncia que a ela devotava Milton Santos, seu presidente em 1963. Como ele costumava dizer, a AGB abriu-lhe “as portas para a geogralia do Brasil ¢ do mundo”. Este livro também abrir as portas do Brasil ¢ do mundo Para seus leitores. Trata-se de um conjunto de idéias sobre a vida € sobre os meandros que a determinam, baseando-se em seus aspectos globais, mas também nacionais, regionais ¢ locais. Nessa sobreposicao de escalas geograticas, o autor fornece mate. tial fértil para quem deseja discutir o poder, a politica, a cidada- JON SANTOS: DO TERRITORIO A CIDADANIA 15 mie ja, a globalizacdo, 0 espace geogrdlico ¢ 0 territério. Além myeo, encontrard um intelectual engajado, que se dedicou a dossrpretar scu pats, 0 qual buscou intervir politicamente seja Be iielo de acées, j& que ocupou cargos piblicos, seja teorica- Este, propondo modelos de investigagdo que chegaram aos quatro cantos do mundo, formando pesquisadores tanto em paises centrais quanto periféricos Nao cabem mais palavras ao organizador a nao ser convi- dar leitor a entrar pelas diversas portas que as idéias de Milton Santos propiciam abrir. A elas! Barcelona, janeiro de 2002 WAGNER COSTA RIBEIRO € professor do Departamento de Geo- Rrafia ¢ do Programa de Pés-Gradua¢ao em Ciencias Ambientais da USP e autor de A Ordem Ambiental Internacional (2001) e Rela- §8es Internacionais: Cendrios Para o Século XXI (2000), entre outros trabalhos - PARTE 1 © PAis DISTORCIDO PESQUISA, QUESTAO NACIONAL Enquanto a Nagao assiste ao presente discurso eleitoral, hd grande ntimero de interrogacdes, de que depende o futuro do pais como um todo, mas que aguardam uma discussao aprofun- dada ¢ séria, Um desses assuntos é a clamorosa questo da pes- quisa, até agora carente de uma visio mais abrangente, tanto de um ponte de vista doméstico, quanto no ambito intemacional Essa questo ganha atualidade nova quando, através do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Cientifico © Tecno- l6gico, devem ser gastos, em cinco anos, cerca de 350 milhdes de délares (em torno de 700 bilhdes de cruzeiros de hoje) numa primeira aproximacao, para reforcar as investigacdes nas areas de: geociéncias ¢ tecnologia mineral; quimica e engenha- ‘a quimica; biotecnologia; instrumentaao; educagdo para Ciencias; informacao em ciéncia e tecnologia; manutencao; tec- nologia industrial basica; planejamento ¢ gest3o em ciéncia e tecnologia. Vivemos em uina época em que a histéria dos povos, para ser por eles prdprios conduzida, depende da forca ¢ discerni- mento de que forem capazes ao elaborar sua politica cientifica e tecnol6gica. A pesquisa € considerada como tio ou mais impor- tante que © territério e a populacao, entre os instrumentos nacionais de formulacao eficaz de um planejamento estratégico ou de uma geopolitica Tao decisivo é 0 seu papel na divisio mundial do trabalho que se esta gestando no bojo da crise, que a pesquisa passa a ter uma importancia crucial, neste final do século 20. Esse, alids, é © entendimento dos paises centrais que agora mesmo compe- tem, numa corrida desabalada, pela posse das matores novida- des cientificas e tecnolégicas naqueles ramos do saber conside- PESQUISA, QUESTAO NACIONAL 19 rados essenciais. Pois disso dependerd o lugar de cada qual no mundo dos proximos anos. — Por isso, 0 Programa de Apoio ao Desenvolvimento Cienti fico e Tecnoldgico, projeto brasileiro onl que ea toe apoio do Banco Mundial, deve merecer um debate aeealtee passe 0s limites profissionais ou corporativos e, desse modo, tor ne-se menos restrito. Esse debate deve incluir: os objetivos eo aleance do projeto em si mesmo, a comegar pela forma que nas- ceu e se desenvolve; o impacto que trard a estrutura atual 8 politica cientifica, incluindo as razdes que levaram & escolha de determinadas dreas do conhecimento e ao desprezo de outras: as possibilidades ¢ limitacdes correspondentes a cada qual das reas especfficas, com a visio, to clara quanto possivel, do seu escopo ¢ escala; a parte respectiva que cabe aos participantes nacionais ¢ internacionais nz conducdo das diversas etapas da operagao. - A questao central, todavia, da qual as demais so meros acess6rios, parece-nos ser 0 lugar atribuido, pelos formulado- res nacionais e estrangeiros do PADCT, a uma divisio interna- cional do trabalho que, pela primeira vez na historia, esid podendo ser organizada e prevista, em termos globais, justa- mente porque uns poucos paises detém o privilégio de conhe- cimentos extensos e aprofundados quanto ais riquezas e ao po- tencial dos demais. Aliés, uma leitura dos editais com que se convocam os candidatos ao dinheiro do Programa a muitos deixa pensar que Se trata de encorajar atividades de pesquisa que reforcem nossa condicio de exportadores de certos bens e servicos (que 0s pai- ses do centro nao querem mais produzir) ¢ de importadores de tecnologias cuja cessao nao ervolve, da parte deles, perda de po- der. O caso das biotecnologias teria de ser tratado a parte. A ser assim, a escolha das areas do saber premiadas reproduziria, com Toupa nova, o velho partage colonial com que as nacdes centrais buscam reforcar a sua hegemonia, a saida de cada crise interna- Sional, e as custas dos paises periféricos. Trata-se de um debate nacional. Sendo nacional e nao téc- nico, nao estard limitado a 4rea universitdria ou a comunidade Glentifica ¢ tecnolégica, mas aberto a todas as parcelas da socie- 20 0 Pals DIstoRciDo dade civil. Sendo debate ¢ néo monélogo, supée que todas as informagdes disponiveis, nao apenas as regras operacionais, sejam abundante e facilmente distribuidas. O TERRITORIO E A CONSTITUIGAO 16/8/1984 Aqueles que acompanham atentamente 0 presente debate sobre a futura Constituigao brasileira j4 devem ter notado que um dos grandes ausentes é, justamente, o territério da nacao. Quando ha discussio, ela é feita de forma, digamos, classica, como se o mundo nao houvesse mudado e o pais com ele. Cabe discutir, antes do mais, a nova significagao do territério dentro do mundo, nas relagdes intemacionais; e dentro do pais, nas relacGes entre pessoas € lugares. O territério nacional ¢ hoje um subsistema do planeta ¢ internamente se define como um sub- sistema da sociedade. Trata-se de um elemento fundamental das ‘mudangas internacionais ¢ internas. Da forma que ele é encara~ do, advém as possibilidades de evolugio ou retrocesso nos diversos planos da vida social. A questdo do territério no é exclusivamente uma questo de geografia eleitoral ou de parti- Iha de impostos, como boa parte da classe politica teima em ver. Base da vida material que transcende a nagao mas cujo uso, em tiltima instancia, é regulado pelo Estado, 0 territério € hoje marcado pelo fato de que no hé mais espacos vazios, sendo todo ele ocupado por dados atuais - do mundo ja concreto ou do mundo das intengées. O Estado e o capital estéo em toda parte, embora de forma diferenciada. Diante do territ6rio, falar hoje em capital de maneira generalizada em nada contribui sua anilise. Também nao se ceve generalizar quanto a agao do Estado, como provedor de infsa-estruturas e servigos, regulador do crédito, tomador de impostos etc. Origem, escala € nivel da agdo dos miltiplos vetores sdo diversos. A generalizagao do uso do territério se acompanha de sele- tividades de uso, governadas por fatores estranhos ao lugar ¢ Tegiao. Por isso mesmo, a valorizagao das terras € das firmas é 22 © Pais bIstoRcivo diferencial, enquanto cada individuo se torna outro, mesmo sem sair do lugar. E 0 lugar, enquanto fator direto, tem influéncia cada vez menor na detinigao integral do habitante. A vida de ca- da qual passa a ser definida pela vida de todos os outros, tanto no cotidiano quanto no projetamento da existéncia. £ assim também que se define, pelas maos de alguns homens e firmas ¢ com 0 apoio do Estado, uma nova geografia, isto é, uma nova sociedade territorial. Para resumir tudo isso com uma frase, di- Temos que, segundo ritmos diversos em cada caso, os lugares ~ € 05 homens com eles - mudam muito rapidamente e muito brutalmente de significado. As grandes migracées so, alias, uma resposta ¢ represen- tam, na maior parte dos casos, uma queda no valor individual: © abandono nao desejado da rede tradicional de relagdes longa- mente tecidas através de geragdes; a entrada jd como perdedor €m uma outra arena de competiges cujas regras ainda tem de aprender; a ruptura cultural com todas as suas seqiielas ¢ todos 0s seus reflexos. A maior parte das pessoas nao é, hoje, direta- mente responsavel por estar aqui e nao ali, vitimas de migra- Ges que podem ser qualificadas como forcadas. Os lugares todos se descaracterizam, os antigos cimentos e fidelidades se desfazem, ¢ as novas elaboragies séo forjadas sem autonomia ¢ autenticidade. Como renovar fidelidades ¢ cimentos, como re- ctiar sociabilidades, que colaboram até mesmo para a eficacia das administracdes? Os dados da vida municipal, sobretudo nas regiGes metropolitanas, se alteram gravemente, incluindo varia- Ges desnorteadoras no capitulo da receita ¢ da despesa piibli- cas, multiplicando a tipologia das crises fiscais ¢ das crises urba- has € regionais, cuja medicina nao pode mais ser a classica. A quem incumbem todos esses énus? Cada vez mais as idéias de lugar e de localizagio, antes irmés gémeas, aparecem como divorciadas. Uma dada fracdo do territério permanece no mesmo ponto de encontro das coorde- nadas geodésicas, marcada pelas mesmas caracteristicas geogré- ficas ¢ freqiientemente guardando © mesmo nome herdado. Isso € 0 seu lugar fisico. Sua localizacdo, isto é, seu lugar econd mico e social (¢ politico), esté mudando, segundo uma lei que € a da nago como um todo. No caso brasileiro, tal mudanca, O TERRITORIO E A CONSTITUIGAO 23 rude € perversa, freqiientemente decorre de fatores distantes ¢ estranhos, sem possibilidade de contraponto local. A prépria Jégica interna do lugar, que deveria guiar e apoiar as tarefas dos governos locais, € com freqiiéncia deslocada, tornada alheia, no sentido de estranha. Mas a organizacao politico-territorial ainda é pensada como se houvesse unidade entre lugar e loca- lizagdo € como se os meios materiais e juridicos para enfrentar a nova sintese hist6rica pudessem ser os mesmos. Cada Estado se organize segundo uma sabia combinagao entre horizontes temporais que vao do mais longo prazo a0 cotidiano, As estruturas fundamentais do poder e a sua pratica de todos os dias apreendem e retratam essa dicotomia, como um guia na regulacdo da existéncia coletiva. De que forma deverd a Constituigio levar eri conta essa realidade e velar para que novos equilfbrios se possam instalar, em beneficio da cole- tividade € tendo 0 territério como pano de fundo? 21/11/1986 MODERNIDADE E MEMORIA Houve momentos em que Sao Paulo decidiu, pelas maos dos condutores da economia e da politica, que em nome do futuro ~0 chamado progresso — a meméria do passado podia ser varri- da. Todavia, 0 préprio jogo das forcas de mercado, levando a migracio parcial do centro de negécios, deixava incélume uma Parte dos bairros venerandos. Ao longo do seu processo, a cida- de, organismo vivo, impée solidariamente valores funcionais, mercantis ¢ simbdlicos as suas diversas frages. Novos lugares so chamados a novas fungdes, velhos lugares se renovam intei- ramente ou parcialmente, sendo arrasados ou conservando rel quias. A cada momento histérico, cada pedaco da cidade evolui diferentemente, 0 centro histérico sendo, por sua persisténcia como lugar central, 0 espago por exceléncia das mudangas con- tinuas e as vezes brutais de valor. As préxis individuais revelam a impossibilidade para alguns de ficar na terra valorizada, a incapacidade para outros de sair dos lugares desvalorizados, Nese contexto se inscrevem as migracdes de conforto, os bairros buligosos sendo deserta- dos pelas camadas mais présperas. O que sobra de “histérico” & muito mais o resultado dessas praxis individuais inseridas nu- ‘ma economia politica cambiante; € muito menos o fruto de uma deliberacao oficial explicitada em leis, decretos, portarias. E por isso que, na questao da remodelacao do centro urba- no, pelo menos duas éticas se defrontam, a da economia politi- ca ea da memoria urbana. A economia politica da cidade supde © jogo das forgas de mercado mais a regulacéo por agio ou omisséo do poder piblico. Quanto 8 meméria, tanto ela pode ser herdada do passado, como, simplesmente, projetada no futuro. A paisagem é uma heranga que pode ou nao ser preser- MODERNIDADE © MEMORIA 25 yada; ela também pode ser deliberadamente construida para tornar-se simbélica, Em qua'quer caso, nas cidades que acor- dam tarde para este seu dever, a idéia e a pratica de defender 0 patrim6nio hist6rico defrontam-se com as tendéncias jé forte- mente estabelecidas pelo que, hoje, se chamaria de especulacao inercial. © problema deve ser estudado luz da cidade como um todo. Por isso, um dado novo se incorpora ao debate, isto é 0 projeto de reurbanizacao das marginais. Esse prometido espaco novo seré funcionalmente adequado, desde a sua origem, a fun- {gOes novas ou suscetiveis de renovagao. O solo criado em gran de escala nao apenas acolheré © novo centro civico municipal, como atraira outras atividades. Podem-se prever migragdes de fungGes em toda a cidade, e elas serao tanto maiores quanto for maior a indugdo econémica. 0 capital monopolista atualmente ocioso se incumbiré de preencher 0 solo novo e vazio. A nova composic’o. organica urbana, gerada pela redistribuicéo de valores relativos dentro da cidade, atingiré sobretudo aquelas reas inadequadas, por sua configuracao atual, a dar uma res- posta territorial as novas exigincias da modernidade. Deixado 4 lei do mercado, o centro velho sera, ainda mais do que hoje atrativo de atividade e residéncias pobres, agravando 0 contras- te jé presente entre valor venal dos terrenos, valor mercantil dos edificios, valor locativo e de uso. A oposigao agravada entre valor de uso e valor de troca vird acompanhada de uma tendén Gia crescente 4 deterioracao. F esta seré tanto maior quanto for maior a rigidez dos regulamentos de uso, que nao apenas deses timularéo as construgbes segando os gabaritos propostos, mas impedirao a propria conservagao dos iméveis, A menos que se Pense numa intervengéo rapida e maciga. Mas ai retornaremos 4 questao da economia politica e da meméria, cuja oposigao tera de ser resolvida pelo poder piblico. ‘A questo tem de ser enfrentada com sisudez. Centros imobilizados por decreto apodrecem, esquecem-se as leis funda- mentais de evolucdo da cidade. Veja-se 0 caso exemplar do cen- tro hist6rico de Salvador, caindo aos pedacos. O tombamento Puro e simples pode conduzira resultados opostos aos desejados Pelos seus defensores. A modernizagio sem limite ou critério 26 0 PAIS DisToRCIDO levaré a desfiguracéo dos bairros atingidos e a expulsio, em ritmo acelerado, dos moradores.t O problema é 0 de encontrar as formas de intervengao adequadas. Renovacao e revitalizacao nao so obrigatoriamente antagonistas, Falemos antes de uma Tegeneracao que leve em conta as novas exigéncias da moder- nidade, permitindo, ali mesmo, a renovagao das fungdes cen- trais, sem desfiguracdo do cardter hist6rico e sem ofensa ao di- reito dos moradores de viver onde estao. Isso ndo significa manté-los em pardieiros irrecuperdveis, até que a degradacao avangada os torne completamente inabitéveis. Lembrar-se-4, apenas a titulo de ilustracdo, que é mesmo possivel acelerar a deterioracao, como ja foi feito com éxito no Harlem, em Nova York, mediante o esforco conjugado de pesquisadores urbanis- tas da universidade ¢ dos bancos, pela recusa sistematica de dar crédito para os mais simples remendos. Felizmente ha exemplos opostos, como o de recente operacao urbana em Barcelona, on- de velhos ¢ pobres foram alojados na drea em que viviam, mas em edificios dotados de conforto moderno, enquanto se elimi- navam obstéculos a uma utilizagéo mais rentavel, do ponto de vista econémico ¢ social, dos equipamentos preexistentes. Me- diante um projeto de renovagao parcial bem concebido, é pos- sivel conjugar a produtividade espacial ¢ 0 direito & memoria. 5/3/1987 1. renovagdo urbana promovida no Pelourinho confirma o texto de Milton Santos. A maior parte dos moradores foi retirada de suas habitagdes, que foram. adaptadas para novas fungbes, como bares, restaurantes e lojas diversas que atendem a turistas de varias partes do mundo. A populagdo que lé vivia, entre tanto, dispersou-se para diversas dreas periféricas de Salvador. DE NOVO, SOBRE O TERRITORIO E A CONSTITUICAO Miltiplas questdes de natureza espacial tero de ocupar o inte- esse dos que preparam projetos e dos constituintes de fato e de direito. Uma dessas questdes ¢ a das grandes aglomeragSes ur- anas ndo apenas das nove regides metropolitanas da defini- do oficial. 0 problema metropolitano esté exigindo urgente- mente novas formas de regulagao, cuja pratica incumba, em maior parte, aos poderes ptiblicos mais préximos do cidadao, sem deixar, todavia, que este seja esmagado por interesses loca- listas ou manipulagdes de grupos municipais. Tal regulagao tera de escapar as injungdes de um jogo obliquo, mas eficaz pela proximidade dos atores, de forcas confluentes contra os interes ses do maior ntimero € onde as ambigies cleitorais ou de lucto se congregam e equivalem na subordinagao aos mandamentos nem sempre sutis das classes dominantes e do poder econémico. ‘As chamadas campanhes preservacionistas dos “verde: dos “ecolés”, mas também dos defensores sem adjetivos de uma convivéncia saudavel entre 0 homem e 0 seu quadro de vida, também deverdo se exprimir ce modo a separar joio ¢ trigo, dis- curso volétil e vontade efetiva de transformar a natureza hostil €m natureza amiga. A Constituigdo poderé estabelecer limita- GGes gerais, que obriguem Estados federados e municipios, quanto a certos usos que agora se generalizam apesar de insen- satos, isto é, como abusos. Por exemplo, a aboligio sistematica do desflorestamento inconsiderado, 0 zoneamento agricola res- Ponsavel, a fixagio de um maximo de altura para os prédios urbanos e da distancia a manter entre os mesmos, a instituigdo de um cédigo severo com relagao as dreas verdes urbanas (mas reas realmente verdes ¢ nao apenas vazios cimentados), levan- doa respeitar o que jé existe ea criar 0 que ndo existe, ainda que 28 0 PAIS DIsTORCIDO seja pela eliminagao pura e simples de quarteirdes existentes. Por que no? Neste ponto, chegamos 4 questéo do meio ambiente, parcialmente agambarcada como um modismo, recentemente objeto de uma ou outra intervengio efetiva e de muitas mais com efeito exclusivamente demonstrativo (vide, por exemplo, os sabios mas risiveis boletins da Cetesb). Esse problema é tatado no plano da Unio e dos Estados com uma timidez que nada tem de republicana. Ainda aqui, cabe responder a essa insistente indagagio de estudiosos, desde socidlogos e juristas até urbanis- tas € paisagistas: que € espaco piblico, que é espaco privado? Quem fala nisso? Nao mereceria esse problema, entretanto, um tratamento de nivel constitucional? Ainda aqui poderia ajudar a estaurar essa figura ignorada em nosso pais que € 0 cidadio, pois os projetos existentes somente se referem as associagies de defesa do meio ambiente. Qualquer pessoa deveria ter acesso as informagées sobre o que se passa em seu entomo € 0 dircito de acionar as autoridades competentes para reprimir os abusos. Uma quesiao puxa outra. Que falar da distribuigao atual dos servigos, escandalosamente em desacordo com 0 prdprio presente das populacées e comprometendo o seu futuro? Deve esse capitulo ser ainda deixado ao arbitrio dos administradores ou regulado pela lei? Cada um de nés é mais ou menos consu- midor (e, neste caso, também mais ou menos cidaddo) em fun- do da acessibilidade concreta aos bens e servigos de uso fre- qiiente e necessario. Para que esses servicos constituam um direito insepardvel da condigo de cidadao ~ isto é, daquele que € igual em deveres e direitos a todos os demais -, uma regula- mentacao constitucional também parece se impor. Hé desigual- dades sociais que so em primeiro lugar desigualdades territo- riais, porque derivam do lugar onde cada qual se encontra. Seu tratamento nao pode ser alheio as realidades territoriais. 0 cida- dao € 0 individuo num lugar. A Nova Republica somente o sera quando considerar todos 0s cidadaos como iguais, independen- temente do lugar onde estao. A questo da representatividade eleitoral ultrapassa 0 valor quantitativo do sufrdgio no ato de votar, Trata-se de um dos elementos do “pacto territorial” da nagio, dado explicito ou implicito da definigao concreta da sociedade civil. O que esta em pe NOVO, SOBRE OTERRITORIO EA CONSTITUIGAO 79 jogo nao € apenas a distribuicao das pessoas sobre 0 tertitéro. Nao se pode ficar impunemente repetindo que 0 niimero de eleitores-eleitos deve ser estabelecido em conformidade aritmé- tica com © ntimero de eleitores-votantes ou, ainda melhor, da populagdo residente. Niimeros sao, simplesmente, abstagoes. Falta dar-lhes contetido se se quer continuar discutindo de mancira adulta e responsivel. A idéia antiga segundo a qual o senado representava os Estados ¢ a Camara dos Deputados a populagdo, chamada aqui de nagao, entrou em colapso diante das novas realidades nacionais. As desigualdades territoriais sao hoje de novo tipo, ¢ os critéries de representatividade devem espelhar a nova condigdo. Em primeiro lugar, o mimero de bra- sileiros vivendo fora do seu lugar de nascimento ¢ cada vez maior, do mesmo modo que se criou a figura do trabalhador cir- culante, como aquele que mora no vale do Jequitinhonha e vem trabalhar nos canaviais ce Sao Paulo. E a questao da den- sidade? Ela seria, apenas, o reverso da questdo da rarefagao, se 05 ingredientes fossem apenas dados pelos mimeros. A questéo nao é simples, nao pode ser tretada de maneira simploria. Gracas as disparidades econdmicas e sociais que caracterizam 0 territé- rio, fruto de uma divisdo do trabalho para a qual o lugar e a re- gido so apenas o lugar funcional de sua realizagéo, adotar a simples demografia como critério pode merecer 0 qualificativo de bisonho, e seré certamente injusto, por nao considerar a geo- grafia social e econémica do pafs. Que cidadao € culpado de migrar ou de ficar residindo em regides que se despovoam? Entre estas tiltimas, alias, h4 as que se empobrecem, mas hé. também, as que prosperam; anesar da crise. A significacao social e econdmica dos lugares nao se obtém de maneira mecanica. A questo é banal, mas nao € simples. A questo ¢ séria, A Constituigéo teré de levar em conta essa ¢ tantas outras realidades emergentes do novo desenho social do territério brasileiro, se desejamos uma Carta Magna que real- mente incorpore 0 pais real € leve em conta que as leis demo- créticas devem existir para seduzir as desigualdades sociais € nao para agrava-las. 1713/1987 AINDA PERSISTE A NOCAO ANTIGA DA DISCIPLINA ~~ A geografia ¢, possivelmente, de todas as disciplinas sociais, aquela em que o debate interno atual € 0 mais vivo e proficuo no Brasil. Mas perdura a velha nogio de geogralia corografica como enumeragao de sitios e lugares e como descricdo nem sempre iluminada de acidentes chamados geograficos: rios, oceanos, lagos, montanhas, vulcée: Essa visio ultrapassada ¢ todavia mantida entre os que nos dirigem e mesmo por colegas da universidade pouco curiosos do saber do vizinho. Os gedgrafos se queixam de que essa criatura nao permite 0 reconhecimento do seu verdadeiro trabalho ¢ Ihes dé uma imagem desfavordvel. A geografia se ocupa das relagdes entre a sociedade e o seu entorno, desde a comunidade humana ¢ o planeta até a escala do lugar menor. As subdivisdes da disciplina, como a que sepa- ra a geogralia fisica da geografia humana, ou a geografia geral da geografia regional, as vezes conduzem a deixar em segundo plano o seu cardter globalizante e totalizador. ‘/ Exageros podem ser cometidos quando 0 gedgrafo se apro- funda € se perde na rigider das relagdes de causa e efeito do mundo natural e se esquece de que 0 homem se tornou nao apenas o grande fator geogréfico que ele é, mas um importante {ator geol6gico em nosso tempo. Ameagada do interior (pela incompreensao quanto ao seu objeto) como do exterior (pela incompreensdo quanto ao seu alcance), a geografia, entretanto, porta-se bem, apesar dos pequenos recursos materiais com que conta. Aumenta a jd grande lista de departamentos de geografia nas faculdades, amplia-se 0 estoque de estudantes, cresce 0 mtimero de horas ensinadas no ensino secundério, multiplicam-se as teses de AINDA PERSISTE A NOGAO ANTIGA DA DISCIFLINA 34 goutorado ¢ de mestrado (nos dez tiltimos anos foram mais de 300, das quais metade na USP e dois tergos em Sao Paulo) {literatura geografica, praticamente confinada as publica- goes oficiais até fins dos anos 60, agora participa vantajosamen- te do movimento editorial comercial (por exemplo, as colegdes das editoras Hucitec, Difel, Nobel)* e compete pelo ptiblico com as demais ciéncias humanas. © proprio crescimento pode, todavia, acarretar perigos, Jevando a distorgdes se nao se tomam os necessarios cuidados. ‘Maior demanda pode significar menor qualidade no ensino. J essa hist6ria é nossa conhecida, Ea recente prolissionalizacdo pode conduzir a comporta- ‘mentos intelectuais menos abrangentes ¢ mais imediatistas, yalorizando, por exemplo, o ensino das técnicas — ainda que ‘momentaneamente atrativas ~€ estreitando espaco reservado A conquista metédica do conhecimento do mundo e de suas leis de funcionamento, cujo dominio somente se obtém através de ‘uma formac3o que privilegie 0 pensamento légico e nao o ins- tmumental. ‘Mesmo que haja ainda muito o que fazer, 0 inventério do trabalho dos gedgrafos € da geogratia do Brasil é positivo e encorajador. 1244/1987 1 Além das citadas, metecem ser inclufdas as editoras Contexto e Bertrand Brasil, que nos itimos anos abriram colegbes de geogratia.. UM REORDENAMENTO GLOBAL PARA O BRASIL A Constituinte esid sendo o palco de um debate importante a propésito da redivisdo territorial do pais. Velhos € novos ressen- timentos se valem da oportunidade para levantar diante da nagao reivindicagdes aparentemente funcionais, mas cujo con- tetido estrutural em muitos casos ¢ inegavel. Tais reivindicagies revelam um mal-estar em relacao a forma que o territério na- cional é repartido. Olhando-se o mapa do Brasil ¢ a forma que as populacies sio atendidas, sobretudo nas periferias, entende-se sem dificul- dade por que brotam aqui e ali tais movimentos. Muitas 4reas de nosso vasto pais vivem praticamente a mingua de cuidados da parte dos respectivos Estados e tém o sentimento de contri buir, pelo seu trabalho e riqueza, para beneficiar outras regides do mesmo Estado, sobretudo aquelas que abrigam tradicional- mente as burguesias econémicas e a tradi¢So do mando poli- tico, Tais regides espoliadas, ou apenas esquecidas, devagar ou depressa se convencem de que vivem em situagio de minori- dade politica, dai a vontade de emancipagao. © debate tornou-se acalorado. E, como é natural, argu- mentos se alinham para defender as pretensdes de autonomia ou a integridade dos atuais territdrios estaduais. H4, certamen- te, de um lado e de outro, segundas intengdes que nao afloram no debate ptiblico, como a vontade de hegemonia eleitoral ou econdmica. E ha também argumentos emocionais. Por exem- plo, que significa a invocagdo a unidade territorial para quem se sente espoliado exatamente por pertencer ao conjunto? Onde 0 Estado se tornou uma verdadeira regio, isto é, uma area con- solidada de um ponto de vista demografico ¢ econdmico, a mul- iplicidade, a freqiiéncia ¢ a densidade de relagGes garantem a ym REQRDENAMENTO GLOBAL PARA O BRASIL 33 fexisténcia de um tecido que funciona como um verdadeiro ‘gmento regional. Mas, naquelas onde esse fendmeno nao se geu, a manutengdo do atraso ¢ da pobreza geral ou um cresci- mento extravertido com a chegada da riqueza para outros Jevam a um mesmo resultado, isto é, a incapacidade de integra- ao efetiva. E por af que deveria ter-se iniciado a discussao do Problema, pois a desintegracao tornou-se estrutural € nao con Ffisaral e aleatéria, Essa verdade historica é objetiva ¢ permite ‘ultrapassar uma argumentagéo puramente emocional Que significa o recorte territorial do pais? Quais devem ser 05 seus objetivos e o seu contetido? Pode ele ser perma- nente, rigido, imutdvel, um tecorte geografico-politico dado para todo 0 sempre? Comecemos a responder pela tiltima per- gunta, e a resposta € nao. Nosso préprio pais, ao longo de sua historia, j4 conheceu diversas modificagdes em seus limites internos, tanto no nivel do que hoje sao os Estados, como no que refere aos municipios. E que cada época cria necessida- des distintas, a exigir arranjos diferentes, pois, sobretudo nos paises novos € nas regides novas, a eficdcia das agbes do poder publico ¢ da iniciativa privada depende das divisdes territo- riais, do respectivo estatuto politico, das formas de gestao adequadas. Nao cabe, certamente, redividir 0 territério para atender mais depressa A vontade de lucro de empresas hegem@nicas, ou A fome de votos de um politico. Também nao hé por que manté- Jo indiviso por esas mesmas razdes. De um ponto de vista Social, que aqui nos interessa, é evidente que em imensas Tegides ainda desarticuladas, 01 que ja nascem desintegradas € onde 0 exercicio da cidadania se tornou impossivel, tanto sob 0 Angulo politico-eleitoral, como sob 0 Angulo do acesso aos bens © setvicos indispensdveis a uma vida decent, a criagio de novos Estados em muitos casos criard as condigées para uma acessibi- lidade politica. Lagos de proxiraidade reciprocamente mais for- tes e sob o impulso das caréncias comuns e da unidade da agao PUblica podem desembocar em um atendimento mais pronto as necessidades locais. A descentralizagio ndo apenas formal ©u funcional, mas estrutural, pode e deve ser um instrumento de democracia politica e social 34 0 Pals DISTORCIDO Desse modo, © movimento pela criagdo de novos Estados nao apenas est na ordem das coisas, como € oportuno, pois 0 momento constituinte ¢ adequado a procura de um reordena- mento global do pais. O que agora estamos assistindo é a procu- 1a de um novo pacto social através de contradigées ¢ compro- missos, pressdes € acordos, avangos e retrocessos. Dai resultaré a construgio de um compéndio legal que ird presidir as regras de convivéncia da sociedade civil. Essas relagdes nao sio ape- nas patrimoniais e de trabalho, politicas, religiosas, morais, so- ciais ¢ econdmicas, mas também sao relagdes propriamente tertitoriais, Nao hé pacto social sem pacto territorial concomi- tante, mesmo que este ndo venha explicitado. Nos tempos atuais, essa explicitagio se tora cada vez mais necesséria para que todos saibamos para onde nos levam. O pacto territorial nao se forma somente de arranjos eleitorais, nem da repartigo geografica dos impostos e das jurisdigdes administrativas, mas sobretudo do contetido politico € social que as fronteiras in- cluem para tornar mais adequado o exercicio da cidadat Na auséncia de alusdo ao territério € as relagdes que ele cria, a no- Gio de sociedade civil que nos resta € abstrata. Por isso, as divi- ses € subdivis6es territoriais, através da conformagao dos Es- tados, municipios e outras configuragses, ndo so apenas uma moldura, um dado passivo, mas constituem um elemento ative do quadro de vida. Das relagbes territoriais depende cada vez mais a orientacao ¢ a eficdcia das demais relagdes sociais. 20/6/1987 50 A GEOGRAFIA RECONSTROI 0 PAIS Entrevista a Otdvio Diast Como 0 senhor avalia 0 sucesso do Atlas da Folha? As pessoas estdo at6nitas com as mudangas que 0 mundo estd sofrendo, $40 {a0 répidas e to profundas que cada um se interroga sobre 0 que estd se pasando, o que pode se passar. Ha um desejo de saber mais. A geografia como ciéncia auxiliar no desenvolvimento de um pats tem sido levada a sério no Brasil? Jé foi. © primeiro a levar a sério foi o presidente Gerilio Vargas, que criou 0 IBGE (Fundacao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica). Também os governos aucoritérios tinham como cérebro um grande gedgrafo e geopolitico - o general Golbery do Couto € Silva. Ele tracou em sua cabeca o que o Brasil ia ser como ter- rit6rio. E tracou hem? Bom, essa pergunta € uma casca de banana. Uma coisa ¢ ctiar novos objetos, outra é 0 uso que se fa7 deles. Se vocé me perguntar se as novas estradas e hidrelétricas, 9s novos portos foram um trabalho importante dos tiltimos 30 anos, eu digo sim. Mas, se me perguntar se o uso que foi feito desse progres- $0 material foi correto, digo nao. Com esse equipamento €xtraordindrio do territério, poderiamos ter alcangado uma Sociedade mais justa 1 Nessa entrevista, o jornalista Otivio Dias interroga Milton Santos sobre © imteresse despertado pelo Atlas Geagréfco Mundial (1994), publicado pela Fotha ‘em fasciculos semanais aos domingos, 0 que resultou no aumento da procura Pelo jornal, indicando também um maior interesse publico pelas transformagies cogralia politica do mundo contemporaneo, 36 0 PAIS DISTORCIDO A partir de um estudo geografico, seria possivel reestruturar polt- tica ¢ economicamente o pais? Creio que nao hé outra forma de entender um pais. A sociedade € algo, nao vou dizer abstrato, mas ela nao existe fora do territ6rio, ¢ sim por suas relacdes com ele. A partir da geo- grafia, podemos chegar a uma reconstrugao do pais como socie- dade nacional 0 que impede esse tipo de pensamento no Brasil? Caminhamos para isso. A idgia de que a economia resolve 0s problemas é muito forte por aqui. Mas os economistas nao 1ém nogao do que é o espaco, s6 produzem teorias descoladas_ da realidade territorial, Por isso, suas solugdes nao tém resulta- dos eficazes. A economia deve assumir seu papel subalterno A partir da cabeca de um gedgrafo, como repensar 0 Brasil? Comegaria pela questdo do emprego. E preciso reconhecer as formas atuais de trabalho no pats, O que é trabalho no Brasil? Onde se dé? Como se dé? Por exemplo: na cidade de Séo Paulo, o trabalho se da em grandes empresas que fornecem quase metade dos empregos, mas também se di em empresas menores, cujo destino estd relacionado com 0 territério da cidade. E necessério facilitar a vida dessas empresas, de forma a ampliar a oferta de trabalho. Precisamos fazer um estudo expe- dito, mas sério. E sugerir relagdes mais intensas entre comércio, indtistria, transportes e distribuicdo, de modo que a economia urbana cres¢a. O que se poderia fazer no plano politico? Poderiamos tentar formas intermedidrias de governo reu- nindo 4reas entre 0 Estado € 0 municipio, No Estado de Sao Paulo, por exemplo, existem reas carac- terizadas por certo tipo de produgéo cana, laranja ou outras ~ que tém identidade de interesses Por que nao organizar essas areas politicamente, criar dis- tritos onde o territério fosse identificado por interesses concre- tos? Nao ideolégicos, mas da vida real de todo dia, Teriamos, entdo, instrumentos de agio informados. Essa forma intermediria teria poder executive? £0 que algumas pessoas chamam de “quarto nivel” ~ além $0 A GEOGRAFIA RECONSTROI O PAIS 37 ga Unido, Estados ¢ municipios, Haveria segmentacdo das atri- puigdes. A Unido daria o quadro geral, mas cada regiao levaria em conta sua tealidade. Esse “quarto nivel” teria de ter forca juridica, produzir leis, Haveria eleigées nesse “quarto nivel"? sim. A sociedade civil seria importante porque 0 exercicio do voto seria comandado pelo cotidiano. 1sso ndo aumentaria ainda mais 0s gastos do Estado? E 0 que é que tem, se esse aumento de custo também aumenta a producao? f muito grande © ntimero de empregos que resultam hoje apenas do fato de a gente conversar. Quando as pessoas vao para a rua dangar, comer, conver- sar, a economia cresce, Se eu fesse prefeito, me consagraria em aumentar 0 movimento de gente. Na sociedade de informagio, a relagio entre as pessoas cria riqueza. ‘A reforma agraria é um tema que vai e volta no Brasil e nunca é enfrentado. A redistribuigho de terras diminuiria a crise social do pats? A primeira coisa é saber que, se eu deixo 0 campo atrasa- do, as pessoas saem. Se eu modernizo 0 campo, as pessoas saem. Areforma agréria ndo tem o peso hoje que tinha antes. 0 Brasil € outro, o mundo € outro. Creio que pessoas que querem trabalhar a terra, devem ter terra. Mas é preciso dizer a elas que ndo vao ter a terra por muito tempo. Por qué? Porque o sistema de circulagao de mercadorias ¢ a compe- tigdo entre os produtores fard com que, em menos de uma gera- Go, a terra seja objeto de reunido outra vez. A medida que 0 Pais se modemizar, o pequeno produtor rural ficard sem defesa, A reforma agraria reduziria 0 éxodo rural? Pedir as pessoas que fiquem no campo é uma heranga TomAntica, Por que elas deveriam ficar no campo? No campo & Mais dificil ter educagio, satide. E até mais dificil consumir ideologia A idéia de prender 0 homem ao campo € um equivoco. Em_uma economia de prosperidade, eu vivo na cidade e traba- tho no campo. A reforma agraria vai acelerar 0 éxodo, Nao vai reduzi- 38 0 PAIS DIsTORCIDO Por qué? Vai criar relagdes mais modernas no campo e diminuir a necessidade de homens. Marx dizia que capital ¢ trabalho se opdem, A reforma agraria representa tm aumento de capital no campo. Se eu aumento o capitalismo, diminuo o emprego. ‘Mas as unidades de produgdo também aumentam.. Num primeiro momento. Num segundo, as pessoas vo para as cidades. E nao para as médias, mas para as grandes, ‘Mas deve-se fazer a reforma agréria? Deve-se, respeitando as diferengas regionais e sabendo que € uma solucao proviséria, Para ser eficaz, deve ser seguida de outras medidas. No mundo de hoje, o importante nao é produzis, mas fa- zer circular. A idéia de reforma agréria vem de um mundo ‘onde o importante era produzir, porque a circulagao era dificil. Hoje, se eu nao tenho os instrumentos para fazer circular bem, sou aleijado. Um dos temas polémicos do momento é 0 papel que o Brasil deve assumir no mercado global. Qual a sua opiniao? © que a gente esté chamando mundo, seri que € 0 mundo? Ou sdo os atores hegem@nicos do mundo? Na minha opinigo, ha dois mundos: um pequeno mundo e um mundo grande. Eu tenho de aceitar o que este pequeno mundo diz que eu devo ser? Ou devo escolher o que quero ser no mundo gran- de? O menu que nos oferecem é reduzido € pobre. Que menu é esse? Eo menu que considera que s6 ha uma solugao para 0 mundo. A maneira que os pafses sio convidados a participar desse... ndo 6 um banquete, é uma comida do McDonald's... é muito restritiva, O uso das técnicas que nos aconselham € res- tritivo, quando nunca se ofereceram tantas possibilidades ao homem quanto hoje. Pode explicar methor? Por exemplo, a competitividade, que todo mundo diz que € boa para a economia... Serd que €? Serd verdadeira a idéia de que, para ser competitive, ndo devo ter garantia de trabalho? Existe hoje uma nova ordem mundial? A nova ordem mundial é baseada no mercado global, na 50 A GEOGRAFIA RECONSTROIO PAIS 39 democracia de mercado e na informagao. Agora, ela € fragil, rio garante a ordem, Na verdade, cria desordem nos paises, cria desordem urbana Que perspectivas traz a nova crdem? © que busca hoje o mercado global? Ele ndo tem outra finalidade sendo o proprio mercado. & uma fase em que o mundo vai sofrer. Mas nés vamos chegar a um outro tipo de mercado global, onde as realidades regionais e nacionais serdo importantes. Nes- se momento, a globalizagio terd como finalidade a humanidade. Existe allernativa para um pais em desenvolvimento, como 0 Brasil, sendo integrar-se 2 globalizacéo? Ha a lei da necessidade. Entdo vocé danga a mtisica, mas ao mesmo tempo prepara outra mtisica. A gente vai rapida- mente virar a mesa. O Primeiro Mundo? é subordinado a re- gras, normas, € prisioneiro de esquemas. Nds néo. Somos soltos, riativos. Os instrumentos com que contamos hoje jé bastam para produzir uma nova ordem mundial que seja humana, As tecno- logias a disposigao sdo acessiveis e nao escravizam o homem como antigamente. Ao contrério, o libertam. Esté tudo af. Te- mos tudo na mao para fazer um mundo gostoso. 5/9/1994 2.A expressio Primeiro Mundo indicava os patses desenvolvidos do chamado ‘loco capitalsta durante os anos da Guerra Fria, para distingul-los dos que for mavam o Segundo Mundo, os socialisias, e do Terceiro Mundo, que estavam excluidos desses dois grupos. Em um contexto intemacional em que aqucles ois blocos desaparecemn, a diviséo regional em Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo perde o sentido. Apesar disso, emprega-se essa divisio regional do Mundo com muita freqiiéncia. Entre os especialisias, organizam-se _novas divisbes regionais do mundo segundo

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