You are on page 1of 122
Carlos Skliar se recusa a imobilizar o vital. Talvez esse tenha sido o seu de- safio mais permanente como escritor, como professor, como pesquisador. E disso ~ do vital na linguagem e do vital na educagio ~ € que é feito este livro, Talvez por isso recorra aqui a forma do fragmento e da montagem, a isso que no cinema se chama “edigio”. “Editar” significa cortar as sequéncias no mo mento certo € monté-las entre si em uma sucessio ritmica e significativa, Na montagem, uma imagem em movimento € seguida por outra imagem em movi- mento. Mas € no corte, no que nio se vé, nesse tipo de ponto invisivel produzido pela superposigdo de duas imagens vi- siveis, que se produz o essencial. Neste livro hé'um fragmento seguido de outro fragmento, Mas é no intervalo, na dife- renga, nesse siléneio que ocorre entre © final de um movimento (de um fluxo verbal, de uma respiracfio) € o inicio de outro, que se produz.o que mais importa: a possibilidade de que o leitor se detenha um momento ¢ crie em si mesmo uma espécie de bola que poderia muito bem ser caracterizada como “pensativa’. E é esta, exatamente, sua generosidade. Em um texto cuidadosamente edi- tado € montado, denso em ecos ¢ res~ sonancias, Carlos Skliar nos fala no ——— ee Desobedecer a linguagem Educar Coleséo Educagdo: Experiéncia e Sentido Carlos Skliar Desobedecer a linguagem Educar Trodugto Giane Lessa auténtica Copyright © 2014 Ceros Stiar Copyright © 2014 Auténtice Editore Tule origin Descbaciencas del lengua potas ce lacus, scritras& altered) Texosos dete eseracs pela Auntie Elta Nenhuma pare cesta publcacto posers ‘a eprcuzda, a Dor moos mecinicos,elenicos, soja va cpa xerogaica, sam a ‘ulorizageo prvi de Eitara, ‘CODRCENADORES DA COLEG HO EOUCAG ACY EXPERENEIAESERTIDO Jorge Larrasa Walter Kohan EDTORA RESPONSE, Pejane Dias sewsto Prisca Justina Ua Mertins Alberto sittencaurt (sobre imagem de tcia Kalbatas, 10s gozosy fs sombras) DinGRAMAGO Christiane Morais de Ofivera iin icc loge a nacnt Celmara tsar do tne, Se rea Stl, Cros Descbedecer a inguagem :edcar/Carks kia: tradugsoGianeLesa Teed. Belo Honzont :Autontca Editor, 2014. —(ClersaEaucaceo | Fxperendis@ Stiga J coorderadores lore Latross, Walter Kohan), ‘Tiulo original: Desobediencias del lengusje (poéticas de lecturas, | scr aries) ISON 970-65-0217-462-2 $ |. fveagio? Unguagem -Fstude eens 3. Texcos | Lars, sore IL Kohan, ie Te. I Sie. fs co0-370.11 Indices pare catilogo sistomatico: 1 esucea0 e inguagen 370.11 GRUPO AUTENTICA @ Belo Horizonte Sfo Paulo Rua Aimores 951, 6° andor. Funcondrica Pause, 2.073, Conjunto Nacional 30140071. Blo Horizonte MG Hows 23% anes Con. 2301 Cera Tel: 15531) 3214-5700 (César 0131 3-800. S80 Paula SP Tels 11) s03e4468 Televi: 0800 283 13 22 ‘enagrapoautnica come APRESENTACAO DA COLECAO, —> A experiéncia, e nfo.a verdade, & 0 que dé sentido A escri- “pica, Digamaos, com Foucault, que eserevemnos para transformar ‘0 que sabemos ¢ nio para transmitir 0 jé sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever € a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experiéncia em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser 0 que somos para ser outra coisa, diferentes do que vimos sendo. Também a experiéncia, e nfo verdade, & 0 que di sentido 4 educagio, Educamos para transformar 0 que sabemos, nio para transmitir o jf sabido, Se alguma coisa nos anima a educar a possibilidade de que esse ato de educacio, essa experiéncia em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo. A colegio Educagio: Experiéncia ¢ Sentide propée-se a tes temunhar experiéncias de escrever na educacio, de educar na escritura. Essa colegio nfo animada por nenhum propésito revelador, convertedor ou doutrinario: definitivamente, nadaa revelar, ninguém a converter, nenhuma doutrina a transmitir. ‘Trata-se de apresentar uma escritura que permita que enfim nos livremos das verdades pelas quais educamos, nas quais nos educamos. Quem sabe assim possamos ampliar nossa liberdade de pensar a educacio ¢ de nos pensarmos a nés préprios, como educadores. © leitor poderd concluir que, se a filosofia é um gesto que afirma sem concessdes a liberdade do pensar, entio esta uma colegio de filosofia da educacdo, Quicé os sentidos que povoam os textos de Educario: Experiéncia e Sentido possam testemunhi-to, Jorge Larrosa ¢ Walter Kohan Goordtenadores da Colegio * Jorge Larrosa & Professor de Teoria e Histéris da Educagio da Univer= sidade de Barcelona e Walter Kohan & Professor Titular de Filosofia da Educacio da UERJ, ‘SUMARIO 1. Linguagens.. Desobediéneias da linguagem.... A linguagem na ponta da lingua, A linguagem hostil. Os poetas e a linguagem.. A linguagem infecciosa. A linguagem intraduzivel A linguagem amorosa. A linguagem sem escrita, A linguagem do politico, A linguagem fechada. A linguagem sever A linguagem que julga Tempo e linguagem. A linguagem avariada.. ‘A linguagem da amizade. 2. Leitura Ler como gesto. Ler como deixar. Ler como solida« Ler como sabor.... Ler como abrir os olhos... Ler para ressuscitar os vivos. Ler sem poder deixar de fazé-lo, Ler como pedido... A leitura e suas moradas O labirinto da leitura. Ler entre idades, Ler é reler. A leitura e o medo. A leitura e 0 passado... O adeus ao livre... r Lero amore 0 sti¢idid.snun Eseritas... Sentidos do eserever Escrever como ensaiar. Escrever como nio morrer. A escrita amordagada. A escrita jf nfo € 6 que efaeun Escrever e sentir falta A escrita breve. Escrever cartas A pergunta pela 6sctitannnm Escrever como se fosse o fim do mundo. 119 Tomar 10a. Accscrita deserui Escrever, escrevendo. Escrever como escUtaT. ne A escrita em suas préprias palavras. Escrita como estranhamento. Como chegar a escrita Escrita do instante. Acscrita em voz alta 4 |. Alteridades... ‘Outras vidas Os outros aniquilados. Os outros desconhecidos... Culpas de alteridad Os outros desiguais. Os outros diferentes. (Os outros anor... (Outras criangas. Outta infincia., Outros tempos... Interrupgdes da infincia Criangas interrompidai Infincia entre norma ¢ literati. Infancia e infelicidade.... Infancia e alteridade..... A velhice em nés mesmos... A velhice € 0 cansago.. 5. Edueares, Sentidos do educar. oliticas fraternas, Cuidar e descuidar do outro.. Ensinar a viver. Ensinar a ese javentide de agora Educar como ensaiar. Educar como singularidade. Educar como dar tempo. Educar como conversar, Conversar entre diferengas.nn. A leitura pedagégica das diferencas. Cenas do geral e do particular. Do amor educativo. O monolinguismo educativo.. Contra a explicagio.. Razio juridica e educacio, Gestos minimos ¢ educagio.... Hospitalidade e educagl0.0.« 195 Referéncias... 1 Linguagens Desobediéneias da linguagem, ‘A linguagem na ponta da lingua, A Tinguagem hostil. Os poetas e a linguagem. ‘A Tinguagem infecciosa. A linguagem intraduzivel. A linguagem amorosa. A linguagem sem escrita, Allinguagem do politico. ‘Alinguagem fechada. A linguagem severa. A Tinguagem que julga Tempo e linguagem. ‘A linguagem avariada, A linguagem da amizade. % Hii vezes em que a linguagem obedecee outras nde, Geralmenie néo. A pedra, por exempla, é unas palavra que no te entende. Um gato é, antes de mais nada, una gramtca de rebeligo, A tua ‘obedececlaramente. Um desejo — que & a ponta ‘mais rugosa da linguager ~ supae, em partes ‘quais, desobediéncia © desordem (Skutan, 2012, p. 7) Desobediéncias da linguagem. ‘A linguagem desobedece naquela hora em que os silén- cios assumem a duragio do tempo e os sonhos adormecem a cexigéncia substantiva; na hora em que a perplexidade gover- nao olhar e da passagem ao desconhecer primeiro; na hora da morte tesa e do desejo timido. A linguagem desobedece naquela hora em que a confusio é a dinica possibilidade da alma, na hora em que parece que a passagem da vida € detida pelas palavras e o rogar da lingua demora mais de um século para pronunciar-se. ‘A linguagem desobedece quando suja a lingua com suas armadilhas de encantamento ¢ sentimentalismo exagerado, quando a falsifica, quando a infecciona com glossirios impunes € com ret6ricas sem ninguém dentro e ninguém do outro lado, quando se superestima em seu regozijo adulto ou deprecia 0 lugar de sua auséncia, A linguagem desobedece quando ji nto ha o que dizer e se anuncia 20s ventos o nome do mundo, um mundo desvairado que se move e se enreda no proprio som de sua falicia, até cair exausto; quando o ar é pouco ea palavra que descreve o ar é mais nula ainda. ‘A linguagem desobedece no instante em que a brevidade se confiande com a escassez, em que a pressa se mescla com 6 desprezo e a agonia se oculta depois de uma ordem pulcra ¢ ameacadora. No instante em que disfarga seu movimento, se oferece ao suicida como se se tratasse apenas de um grito ‘opaco durante seu abismo, responde somente de costas ¢ nega a passagem da voz pela ranhura das entranhas. 15 Covicho "Eau: Ean «Se A linguagem desobedece porque acredita que governa a dobra da percepsio e, em vez de acariciar, mostra suas garras no limite extremo do sentido; porque é mais seu sentido que sua estrutura, € mais sua poética que sua gramética, é mais sua desordem que sua conveniéncia. A linguagem desobedece porque nio reconhece o lugar de sua morada na humilhagio, na hipocrisia, no descaso € no assassinato; porque se rebela contra suas inimizades: o diflogo insipido, a avareza de tons, areniincia complexidade, o despojamento do nome proprio. A linguagem desobedece no momento em que as lin _guas se aproximam e © dizer esti mais atrés do que a boca, mais longe do que as mios, mais contido do que o sangue; no momento em que a fala, a escrita e a leitura pressupdem o sentido ¢ tornam a expansio e a explosio do som fragmentirias, desajeitadas e sem graga. ‘A linguagem desobedece na pretensfo falaciosa dos céus ¢ na indevida atenuagao dos infernos; na indiscrigo do segredo, nna negacio de sua pele estremecida, no desprezo para com a norma € no soberbo frenesi de alcancar 0 real com a palavra € de cagara palavra com o real. A linguagem desobedece na planicie quieta, na tosca imitagio da brisa, no invalido replicar das cores sem matizes. A linguagem desobedece ao sentir que as palavras caem, pisoteiam-se e se derrubam. Ao perceber 0 encobrimento do passaclo na gléria vi do faturo, nesse costume insano de enterrar © vivido, no hibito igndbil de destruir 0 pensado. Entretanto, a linguagem @ também desobedecida, De- sobedecem-na as criangas, os velhos, as mulheres, os artistas, 0s filésofos. Desobedecem-na a conversa, a leitura, a escrita, a inscrigfo nas paredes irregulares, os presos, os dementes, os autistas, os bébados, os que escrevem poemas, os que preferem ni fazé-lo, Desobedecem-na 0s gagos, 0s jogos, as incégnitas € as madrugadas. Desobedecem-na o tempo sereno, a calma despojada, as paixdes, os esconderijos, as frestas por onde se escoam sabores, odores, os sons sem palavras. Desobedecem= na o instante em que desconhecido continua sendo um jogo 16 Linguogens de adivinhacio irremediével, o momento em que uma se estica até a outra mio, a hora em que um gesto se revela contra a infimia Desobedecem-na as criaturas que estio a ponto de nascer, os néufragos, as dangas, a solidio a dois, a diivida na ponta da ingua, 03 olhos entrefechados, o olhar voltado para baixo, os surdos, 05 vagabundos, os exilados, os desaparecidos. Desobe- decem-na 4 procura de uma frase que no culmina, pelo artigo indefinido, pela rachadura cada vez mais extensa ~ cada vez mais incompreensivel ~ pelo pissaro que atravessa 0s olhos, pela Arvore que apaga a escultura, pela serpente timida, pelo fim da tarde, quando 0 corpo volta no tempo ¢ 0 tempo retorna i sua guarida, no siléncio, Desobedecem-na, enfim, as conspiragdes contra 0 aban- dono, contra o largar tudo em busca de nada, contra as sibias inconclusas traduges, contra os livros que contam histérias impossiveis, contra a pouca meméria, contra o esquecimen- to sem remédio, contra a recordagao de todas as falsidades cada vez que alguém toma a palavra e a desnuda, a desperta, dé-the vida. A fala, a leitura e a escrita procedem ¢ advém de cer to tipo de experigncia de desobediéncia da linguagem. Se a linguagem nfo desobedecesse se nfo fosse desobedecida nio haveria filosofia, nem arte, nem amor, nem siléncio, nem. mundo, nem nada. Entretanto, uma experiéncia dessa ordem nio é estructural, nem explicativa, nem duradoura, nem apaziguadora, mas, sim, existencial, uma existéncia postica da lingua e para a Iingua: “Por isso, seri possivel falar de existéncia poética num sentido rigoroso, se por existéncia entendemos aquilo que abre brecha na vida ea desgarra, por instantes, colocando-nos fora de nés mesmos” (LaCOUE-LaBaRTHE, 2006, p. 30). ‘A linguagem que desobedece e é desobedecida: colocar- nos fora de nés mesmos, nessa existéncia desoladora, nessa brecha ~ sonora ¢ silenciosa — que abre a possibilidade para a producto de um sentido. Cacho "Eovecio: Seetnon# S00" A linguagem na ponta da lingua. A linguagem habita e transita entre corpos, tempos ¢ es- pacos: cruza, atravessa, insiste, perambula, espera, acompanha, assedia, no deixa de dizer nem de escutar, sequer o interior de cenas extremas de privagio, desaparecimento, desterro, clausura. Afoga-se e renasce. Estar na linguagem poderd significar: existir, andar, ocu~ par, descobrir, nomear, duvidar, errar, desejar, desandar, es- capar, viver. E presenga nitida ¢, a0 mesmo tempo, um rastro espectral que assume a vertigem da existéncia e seus labirintos: proibe ¢ liberta, habilita ¢ confina, da passagem ¢ aprisiona, acende, transcende e abisma. ‘Ocupa o lugar de alguém: é narrador, impostor, impostura? Ocupa o lugar de outro: é tradugio, sobreposicio, ultraje? ‘Ocupa nosso lugar: é poética, é politica, é poder? Ocupa o lugar delas, deles: € segredo, € identidade, literatura? Hi gestualidade: a linguagem se torna aliada da expressio contida e ardente, do movimento das coisas, das pessoas e seus vinculos; é totalidade, ambivaléncia e contradi¢io. Sacode-se, desordena-se, é rebuscada e timida, mostra ¢ esconde, traca diregdes, ensina, oculta, indica, deseja tgcar o impronunciivel. Hi proniincia: a linguagem diz, fisica, metafisica ¢ eti- camente. Matéria do sentido e rastro de pé; a vor: “Torna possivel a realizago do enunciado, mas desaparece nele, ela se dissolve no significado que se produz” (Dotan, 2007, p. 27). ‘Tonalidades come estacdes do tempo, as palavras dependem de seu ritmo, de sua duracdo, de sua intensidade. Mas, também, produzem outros efeitos: a humilhago, o segredo, a vergonha, a serenidade, © édio, a afirmagio, a vinganga, a amizade, 0 desplante, a sensualidade, o abandono. ‘Hi leitura: a linguagem se oferece em disposigdes espaciais ¢ temporais, em artefatos e dispositivos, cm lugares onde os segredos se confessam aglomerados em paginas inscritas nas 18 Lingvogens pedras, pergaminhos, papiros, madeiras, papéis e telas. Alguém deve sustentar-se e sustenté-la, pois a passagem da leitura en- tre tempos, lugares, almas e histérias é desproporcional: uma pessoa em frente ao mundo, sozinha, numa solidio s6, feita de capitulos, secdes, notas, sublinhados, indiferengas, comogées. Hi escrita: a linguagem confirma sua estrita solidio, sua desobediéncia e sua rebeldia na escrita. Como se se tratasse de ‘um ponto de partida abismal, 0 escrito nao encontra antecesso- res nem antecedentes: tudo pode ser escrito, nada pode,chegar a sé-lo. A horizontalidade e/ou a verticalidade da escrita nao provam nada e nada garantem: sera preciso entalhar ¢ fizer irromper 03 nomes das coisas como se fosse pela primeira vez. ‘A linguagem esté na ponta da lingua: “Todos os nomes estio ‘sur le bout de la langue’ na ponta da lingua. A arte consiste em saber convoci-los quando for necessirio |... A mio que esereve éuma mio que futucaa lingeagem que falta, que avanca tateando em diregio a linguagem que sobrevive, que se encrespa, se exas- pera, que mendiga na ponta dos dedos” (QuiGNAKD, 2006, p. 9). 5 falantes, porta-vozes ou vociferantes, leitores, es- critores se surpreendem inadvertidamente falando sozinhos, gesticulando na exasperagio ou na calma, pronunciando para ninguém, para nenhum, movendo-se como se fossem seres inarticulados & procura de uma forma Travessia da linguagem: sair para encontrar o mundo, permanecer para narri-lo, Entre 0 mundo e as formas em que se asstumem os sons da existéncia, tudo permanece na atmosfera da ponta rugosa e tensa da lingua. ‘A linguagem: mendicincia e opuléncia, a revelagio do vazio, a presenca da falta, 0 estupor por haver encontrado 0 que é impossivel de se encontrar, a perplexidade por no poder voltara repetir. A linguagem hostil. A linguagem seca, 0 chicote daquilo que acontece fora ou longe ou privado de toda experiéncia. Ou 0 que acontece 19 Cove "Eoxagho: Eerie Sam perto, mas como crime, como filsa economia, como violéncia, como fuuracdes e inundagdes, como 0 estado do trinsito e da temperatura; o que perece ao mudar de pagina ou de dia ou de estacao de ridio ou de televisio; a informacio que entorpece 6 tempo todo aquilo que gostariamos de dizer e de dizer-nos, 2 informago como conjuntura e como moralidade, em que as palavras costumam perder sua transparéncia, sua forma percep tiva e dio voltas ¢ se contorcem, se escondem e naufragam. A snformagio que nos obriga a uma conversa inanimada e sem voz sobre a propria informagio. Uma linguagem que, como dizia o poeta Juarroz;! esti feita de palavras caidas, golpeadas, pisoteadas. Mas nio se trata, somente, da informagio assim, no sin- galar; dessa acumulacio imprépria de noticias sobre nada, nem. ninguém, desse vértice como redemoinho sem tom nem som, que nos distrai da possibilidade de falar sobre 0 que sentimos € que nos obriga a filar apenas de um mundo visto como uma limina sem pele. A questio est na vertigem das trocas de informagio que impedem ou anulam — em seu declarado afeto pela substituigio daquilo que est cada vez mais velho pelo cada vez mais novo ~a leitura ou a escrita, transforman- do-a em desejo voraz de eficicia e éxito: “A aceleragio dos intercimbios informativos produziu ~ e est produzindo— um efeito patolégico na mente humana individual e, com maior razio, na coletiva” (Berarpt, 2007, p. 177). De certo modo, ser necessirio'@oltar a pensar numa linguagem habitada por dentro e nfo apenas revestida por fora. Como a pele, a linguagem também toma a forma de um * Também as palavras caem 20 cho / Como pissaros repentinamente en= Jouguecidos / Por seus pririos movimentes / Como objetos que perder ddesepente seu equilibria / Come homens que tropegam sem que existara dobsticulos / Come bonecos alienados por sua rigider / Entio, do chlo / As propria palavras constroem uma escala / Para escender de novo a0 iscurso do homem / Ao seu balbuceio / Ow a sua fase Binal / Mas hi algumas que permanecem caidas / Eis vezes alguém as encontra / Num {quase latente mismetismo / Como se soulvessem que alguém vai recolhé-las / Para constrair com elas uma nova linguagem / Uma linguagem feita somente com palavras caidas” (JUARROZ, 2005, p. 72). 20 Linguogens atimento cardiaco ou de uma agitagio do respirar ou de um estranho e persistente movimento; outras vezes, ela se converte ‘em muralha, em defesa, em contengio. ‘Como se fosse necessério, diante da linguagem recoberta ‘¢ encoberta da informagio, perguntar-se pela linguagem di- eta, a linguagem seca, a linguagem que nio diz mais do que aquilo que gostaria de dizer; uma linguagem, por acaso, sem falsidades, sem tecnologias, sem duplicagdes, sem laboratérios nem experimentos: a linguagem lisa e plana; uma linguagem sobrevivente, talvez, de nosso suposto dominio ox de nossa completa incapacidade para dominé-la. Uma linguagem cuja ‘voz advém e deriva estritamente daquilo que nos acontece. Uma Jinguagem 3 flor da pele. Ou uma pele 3 flor da linguagem. Em Claus y Lucas, Agota Kristof (2007) apresenta duas criangas estranhas ¢ solitirias que vivem nos confins de um povoado perdido, durante a guerra, ¢ que devem tomar, pela primeira vez, decisdes sobre a escrita. Em certo momento, perguntam-se como saber se alguma coisa do que escrevemn esti bem ou mal escrita, se & correta ou no: “Temos uma regra muito simples: a redacio deve ser verdadeira. Devemos escrever o que & 0 que vemos, o que ouvimos, 0 que fazemos” (Knustos, 2007, p. 31). A crueza com que as criangas assumem, sua escrita, sua linguagem, no deixa de ser também sua nudez, sua transparéneia, essa tentativa para que a linguagem diga alguma coisa, algo que possa ser sentido como verdadeiro, no meio da completa nulidade deixada pela informa Estes no sio bons tempos, porém, nem paraalinguagem di- reta nem para sua complexidade e ambiguidade: hi um predominio exagerado e desnecessixio da rapidez e da eficacia na transmissio € por isso vio sendo afastadas ou descartadas algumas formas de expressio mais rugosas, menos eficazes. Como se a linguagem procedesse apenas das agéncias informativas ou publicitérias € ccumprisse somente com uma fangao de tensa expectativa indife- rente 4 distincia ou de ripida procura de proximidades, Entretanto, nfo ha nenhum motivo pelo qual ligar a lingua- gem pressa, a urgéncia ou A emergéncia. A linguagem também at Concho “Bosch: Breneve ¢ Sno pode ser uma forma de detengdo, uma pausa que sirva para habitar tempos em parénteses, que nos vincule mais intensidade do que 4 fitalidade do irremissivelmente cronolégico. Nao se trata tanto de uma questio de géneros nem de geragdes, mas dessa tensio — tio viva, tio obsessiva — entre a linguagem da informagio que exige prontidio e consumidores ea linguagem literfria, que tenta fazer com que seus leitores respirem de outra maneira, As redes sociais modificaram as formas de escrever € co- municar-se e, sem divida, afetam 0 ato de ler. Mas, por mais massivas e naturais que se tornem essas praticas, hé alguma coisa na linguagem que faz. com que ela sobreviva a qualquer tentativa de fixagio ou de transformé-la em moda. E verdade que parte da realidade pode ser expressa em 140 caracteres, mas também é certo que se possa fizé-lo por meio de milhées. Nio ha nenhuma razio para assumir uma posigio definitiva a respeito, pois seré o carter contemporineo que resolveri a convivéncia ou o desapego entre 0 novo ¢ 0 anterior. © que E certo & que nio faz falta suicidar formas de linguagem, de escrita e de leitura em nome da novidade. Existe um enorme tesouro na linguagem e poder encontra- -lo é, de certo modo, uma tarefit que nos relaciona no s6 com 0 futuro, mas, sobretudo, com o passado. Para além de toda discus- slo sobre o novo, sobre o inovador, o atual e o contemporineo na linguagem, as perguntas esenciais continuam insistindo com lum tremor sempre presente: poderemoStomar a palavra, nossa palavra? Hi alguma coisa para ser dita? Hi alguma coisa para ser escrita? E, em relacio a essa tentagio para o expressionismo e para a produtividade da palavra: hi alguém ali, por dentro do que € dito, por dentro do que é escrito? E, ainda mais: se a questo é apenas um problema sobre quem emite € 0 que se emite, hi alguém do outro lado que escutari ¢ leré? Alguém que, simplesmente, deseje uma parada, uma pausa? Os poetas e a linguagem. © poeta, é bem sabido, mescla a caréncia e 0 exceso, 2 mera ¢ 0 passado. Dai o irresolivel de seu poema. Esti na 2 Uinguogers maldigio, quer dizer, assume perigos perpécuos e renas- centes na medida em que rejeita, com 0s olhios abertos, aquilo que outros aceitam com os olhos fechados: 0 be- neficio de ser poets. Nio pode haver poeta sem temeroso receio, do mesmo modo que nfo existe poemia sem provo- caglo, O poeta passa por todos os graussolitirios de uma gléria coletiva da qual estélegitimamente excluido, Tal & a condig3o necessiria para sentir e dizer apropriadamente (Caan, 1999, p. 44). poeta francés René Char destruiu os 153 exemplares de seu livro de poemas Las campanas sobre el corazén. Talvez porque sentia na prépria pele a maldigio que padece 0 poeta: extrema lucidez que lhe é atribuida, o perigo que entranha sua palavra no deserto dos discursos ressecados, os olhos demasiado abertos diante do mal e da maldade, © certo & que 20 redor da figura do poeta houve, hae haveré uma ambiguidade manifesta, uma duplicidade extrema. Nio se trata aqui de duas escolas de poesia ou de duas estirpes de poetas ou de duas formas materiais de fazer a poesia, mas de revelar a existéncia de uma dualidade no interior de uma eserita que no cessa de comover e de semear inquictagio. A figura do poeta esti vinculada, por utn lado, Alumino- sidade ou 20s clardes de luz que se movern em meio a escrita ou & prontincia do inconfessavel: aquilo que ainda tem palavras ¢ pode iralém do que parece haver acabado; aguilo que reina num territério hibrido entre o compreensivel e 0 incompreensivel. Mas, também, esti relacionada com a escuridio, com o risco de assumir a expresso de um mistério que nunca deixar de sé-lo, com o desconsolo ¢ o desassossego que assumem para sio trigico, aquilo que jé no esti nem nunca esteve, enim, relacionado & morte. Posicio, entio, de luminosidade ~ a es rita para, de certo modo, esclarecer, comunicar alguma coisa a alguém — e posigio de escuridio —a escrita para emudecer, sustentar a turvagio, a gravidade, para fazer sofrer. Hi aqueles que viram essa dualidade como a expressio de uma batalha do som sobre 0 siléncio e/ou do som sobre 0 cy Coecio “Eaveglo: Breuion€Sn00" sentido, Outros a entenderam como a batalha entre 0 dito ¢ 9 indizivel. Ainda seria possfvel ver-se como a impressio de uma marca, de um traco, de um signo que interrompe 0 alvo, um tipo de irrupio em meio & aparente calma. ‘Que qualidades assumiria para si o poeta e que ligio, se existisse, poderia dar-nos sua posigZo de escrita, sua exposigao A eserita? A primeira delas tema ver com 0 caréter astensivainente sen- sivel ¢ perceptive do poeta. E bem conhecida aquela afirmagio de Heidegger (2003, p. 126) a propésito de que a “poesia é escuta, durante a maior parte do tempo” A disposi¢ao do poeta para escutar & particular, no sentido de que atende, nfo s6 20 que € dito a0 seu redor, mas, também, a essa relagio to fagidia entre som e sentido ou, melhor dito, esa atengio sobre como soa aquilo que é pronunciado. O poeta, a poesia, é uma vor que escuta. ‘Mas nio 36: ele também assume uma disposicio peculiar para o olbar. Trata-se de um olhar que nio evita o detalhe, 0 insignificante, o banal, e que, a0 mesmo tempo, nao pode detxar de deter-se no excessivo, no transcendente, no extraordinitio. Essa disposicio da escuta ¢ do olhar do poeta é sempre inédita. Um evento, um tempo, uma coisa nfo podem ser in- corporados, mas sim escutados — detengio, pausa ~ ¢ olhados — abertura, Esse € 0 cariter perceptivo do poeta, que faz com que ele dispoaha de uma percepei0, yas nfo de uma teoria sobre 0 mundo: “Eu no tenho uma concepgio do mundo. Eu tenho uma sensacio do mundo”, escreveu Marina Tavietieiva 2008, p. 437) Por isso 0 poeta nfo ensina a escutar, ¢ sim comapartilha 0 escutado, sem animo de legislar, mas, talver, de transformacio. Por isso, © poeta no ensina a olhar, mas tenta oferecer, com insiseéncia e desespero, a possibilidade de olhar de modos sem- pre diferentes, Escutar ¢ olhar ~ e dizer — como se fosse pela primeira vez, porque, a cada uma, algo da ordem do inédito atravessa a percepgio € muda a prontincia. Esse como—do como se fosse pela primeira ver ~ é tudo na poesia: de fato, estabe~ lece a diferenga substancial entre conhecer ~ conhecer como 4 Linguoge fixar, conhecer como jf saber ¢ sua consequente indiferenga =e olhar ~ ou escutar — cada vez como se fosse a primeira ‘Assim revela o seguinte fragmento de um poema de Pessoa: [._4 Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira ver que conhecé-la, / Porque conhecer € como nunca ter visto pela primeira vez, / E nunca ter visto pela primeira vez € 86 ter ouvido contar” (2008, p. 133). ‘A lucidez sensorial e perceptiva do poeta nfo sé sugere uma virtude ou uma capacidade peculiar, mas, também, a radical dimensio do excesso, tal como 0 havia mencionado Char. Se, por um lado, © poeta é associado & clarividéncia de sua esctita, por outro no esti isento de ver-se aflito por um frijgil deslizamento para a vidéncia pessoal; como se 0 ser-poeta pudesse ser assimilado a0 ser-vidente. Talvez Rimbaud tenha vivido, em certo momento, essa cexperiéncia que se situa a meio caminho entre a metifora—como propriedade da acio de escrever—e 0 delirio— como propriedade da singularidade do sujeite, Em suas palavras: “Quero chegar a ser poeta e me esforco para transformar-me em vidente Tratase de chegar a0 desconhecido mediante a desordem de todos os sentidos |...]. E mentira quando dizemos ‘eu penso’; deverfamos dizer: Alguém me pensa” (RiMBAUD, 2009, p. 22). Acesse cariter ostensivamente sensivel e perceptivel, dev ria ser acrescentada uma condigio talvez mais evidente, mas nio menos enigmética: a particular relacio do poeta com a lingua, isto 6a forma em que traga essa relacio singular entre o escutado co olhado ~ € 0 tocado, 0 ouvido, o recordado, 0 esquecido, © presente ¢ ausente ~ com sua escrita e, também, com sia oralidade, Uma rela¢io que tem a ver tanto com sua propria escrita quanto com o modo como gostaria de ser escutado ¢ lido: uma ligdo que se preocupa em como entender sensivel- mente sem compreender e no em como as coisas devern ser postas ¢ ordenadas na lingua; uma ligo que alude & separagio entre a fala comum e a fala pottica. Em seu Discurso de Estocotmo (1996, p. 3), Wistawa Szym- borska se refere & relaglo do poeta com a Iingua como uma 25 Couto "Eoxacio: Brentnan Sno" rebelio contra o comum: “Na lingua da poesia, na qual cada palavra é pesada, jé nada é comum. Nenbuma pedra e nenhuma nuvem sobre essa pedra, Nenhum dia e nenhuma noite que © suceda. B, sobretudo, nenbuma existéncia particular neste mun- do. Tudo indica que os poetas terdo sempre muito trabalho”. A lingua do poeta no poema é, por assim dizer, uma Iingua 3 parte: um hibrido, nunca resolvido ¢ sempre a re- solver, entre 2 prontincia, a imagem, a especialidade singular © 0 deslocamento, Uma lingua que se detém entre a fala ea escrita, que permanece ali no meio, sem tomar partido, defi- nitivamente, de nenhuma delas, Sobrevém aqui a terceira particularidade do poeta: uma incapacidade manifesta, mas voluntaria, para a explicagao. Incapa- cidade voluntéria para explicar o poema, como bem esclarece Marina Tsvietdieva: “Explicar os poemas? Diluir (acrificar) a férmula, atribuir & propria palavra simples uma forga maior da que tem o cantor |...]. Como na escola; “com tuas préprias palavras” 0 Anjo de Lérmontov, mas tinha que ser precisamente com palavras préprias, sem uma s6 palavra de Lrmontov. E que resultado, Deus! [...]. Que queria dizer 0 poeta com esses ‘versos? Pois justamente 0 que disse” (Tsvirratsva, 2008, p. 14, grifo do original). Mas, sobre todas as coisas, a rejeigio do poeta 3 explicagio como finica légica para codificar © universo nos termos de legislacio ¢ conceituacio. © poeta nio explica em sua pocsiatitle deixa um trago que poder’ ser lido por outro. © poeta nio obriga um tipo espe~ cifico de leitura desse traco, 20 contrério, sua palavra culmina no fio do tempo em que outro poder’ lé-lo, reconhecé-lo. E preciso, aqui, sustentar essa ideia: a do poeta que oferece, que entrega signos que outros deverao decifrar, em seu tempo © a seu modo. E isso confére a esse particular oferecimento uma vinculagio maitscula com o ato de ensinar: “Signum, © clemento principal de insignare, remete a0 sentido de ‘signo’, ‘sinal’, ‘marca’ que se segue para alcangar alguma coisa. O ‘signo’ € ‘aquilo que se segue’. De modo que 0 que se dé no ensinar € um signo, um sinal a ser decifrado” (Konan, 2007, p. 131 grifos do original). 6 Linguogens © poeta nio explica. Percebe nos altos e baixos ¢ com sua peculiar proniincia da Iingua aquilo que, talvez, escuta quando escreve Eo que mais deseja € ser escutado, isto &: ser lido. ‘A linguagem infecciosa. A linguagem se perde, se reencontra em seu proprio, labirinto, se anuvia, fica aprisionada entre redes de sentidos sem sentidos, torna-se severa, dspera, padece, poetiza, filosofa, permanece avariada, conserva suas amizades e suas inimizades, convive, atravessa, respira, conversa, ama. E, também, pode desfazer-se em pedagos, perder por completo suas faculdades, tornar-se indisponivel is palavras, incapaz de pensar, de falar, mofar: a linguagem abandona. Abandonar, aqui, éuma expressio literal: como se em certo instante, por razdes indeciftiveis, alguém sentisse com desoladora nitidez a impossibilidade de dizer nada sobre nada, tocar com © corpo o limite tiltimo da linguagem, perceber que jé no ha nada sobre o que pudéssemos exercer a propriedade das palavras. ‘Mas ni € abandono 3 linguagem, a vontade manifesta de deixar de pensar e dizer, a autoridade do sujeito sobre 0 codigo, o livre arbitrio do falante-ouvinte ideal que se retira com suas honras & calma de seu siléncio, ‘Também nfo se trata do abandono explicito da escrita, como aconteceu com Bachmann ou Rimbaud — entre tantos outros — que assumem essa posicio mais ou menos definitiva de deixar de fazer. £, ao contrario, o abandono da linguagem ao sujeito: seu confinamento, seu desatamento, 0 desterro de sua voz. Como se, de tanto falar falar, houvesse um momento em que a linguagem rminasce um territrio até ali ignorado: 0 da ligeireza habitual das palavras, a confianga cega ¢ habitual no sistema, a mesquinhez dos sentidos, a crenga de que é possivel falar de qualquer coisa, a dissolucio do mito em que o mundo se representa como questo de alguns poucos nomes, alguns poucos adjetivos. 7 Cusco "Exvrcto: eutnan t Soro” Assim, a linguagem se retira, escapole, coloca um limite na perda da estranheza, procura outras vores, nos deixa ca~ lados sem discurso algum sobre o siléncio. O abandono da linguagem que nega sua razo ow sua explicagio de abandono. O abandono da linguagem se apresenta diante de nés com virios zostos que nos confundem e nos fizem sentir incapazes © esgotamento, o entontecimento, a teimosia, a urgéncia, a conhecida produtividade, o utilitarismo, a progressiva simpli- ficagio, a perda da metifora e da imagem, as frases jf feitas, 0 suiefdio da conversa, a humilhagio, 2 frivolidade do verbo, ete. Mas o maior dos abandonos reside na pena por advertir a filiagio da linguagem 20 poder ou, melhor dito, a0s poderosos, 20s altaneiros, aos soberbos, aos mentirosos, 20s cruéis, aos publicitirios, 20s politiqueiros, aos violentos, ete.; 0 sequestro das palavras mais vitais da lingua como limite de propriedade privada de um conglomerado de proveitos pessoais consumis~ tas; enfim, quando a linguagem se coloca ao lado daqueles que fizeram deste mundo um mundo insuportivel e irrespirével. Eles e suas palavras. Essa a doenga da linguagem ou sua inabilidade ou, para ser mais claro ainda, sua podridio. Uma linguagem infectada, pestilenta, corrompida, que no podemos nem pensar nem sentir como nossa: “Porque foi arrasada, aplainada, alisada, mutilada, simplificada, desumanizada,,porque foi transfor mada numa linguagem de deslinguados, numa linguagem de ninguém, sem ninguém e para ninguém, ¢ por isso sentimos que ficamos sem palavras, e nos sentimos muds” (LarRosa, 2010, p. 16-17) Talvez a sensagio de mudez, como diz Larrosa, nio seja, seniio 2 expressio iilsima de um deserto desolador, no qual permanecemos atdnitos em meio de uma linguagem 2 qual rejeitamos — a linguagem que recebemos ~ € outro com a qual gostarfamos, ainda, de dizer on escutar ou ler ou eserever alguma coisa ~ a linguagem que nao temos. A doenga da linguagem: sua letargia, inclinagio e aban- dono 4 abjeta apeténcia do poder. 28 Linguogens A linguagem intraduzivel. A tradugio resolve a desordem, diziam-nos. Ordena para sempre a desordem. Tudo é questio de acreditar que, para além de todas as nossas torpes diferengas, havemos de dizer sempre as mesmas coisas, do mesmo modo, de forma trans parente. Mas isso também quer dizer que as mesmas coisas jé cestavam ditas desde sempre, que nossa confusio € inoperante, perfeitamente passivel de ser dissimulada e esquecida, que todas as nossas diferengas no sio sengo verses do mesmo, pura diversidade indeua. Nesse tempo mitico nao havia outras coisas que nio fos- sem facilmente traduziveis. A traducio se traduzia a si mesma sem perder sua compostura. Todo 0 resto era ignorado, deserda- do, destituido da linguagem. Tudo era Universal: os nomes, os homens e as tradugdes, A diferenca era uma grosseira oposigio a identidade. Haviamos conseguido deixar para tras todas as nosis confusSes babélicas. Nosso espirito era unitirio, grasas 4 traduzibilidade genética da nossa linguagem. Entretanto, 2 certeza arrogante da traduzibilidade foi sa~ cudida por uma gigantesca ambiguidade das linguas ¢, assim, destruida. E jé nio havia traducdo, mas sim a impossibilidade de tradugio, Ji nfo havia um destino de traducio, mas sim um, porvir de confusio. © castigo, dizem, foi desejar demasiada unanimidade, demasiada comunidade, demasiada traduzibilidade. Mas, em ver de se sentirem castigados, os humanos se sentiram babél cos, porque entenderam que sua condigao era a da confusio € no mais a da equivaléncia. Humanos cujas diferencas foram somente diferengas, nada mais que diferencas, nenhuma outra coisa sendo diferengas. intraduzivel acabou sendo 2 irredutibilidade daquilo que estamos sendo. Se traduzir pode ser reduzir 0 outro a al- gumas poucas palavras, traduzir sabendo da intraduzibilidade pode ser restituir ao outro sua irredutibilidade. Por isso, 0 paradoxo da traducio é inevitavelmente babélico: se a traducio 3 Coscle “Eovecto: Beeb Sooo" quer dissimular as diferencas, nfo faz outra coisa seniio revela-las cada vez mais, torné-las cada vez mais diferengas. Se antes se pensava na Linguagem — assim, com mai- ‘iscula — agora é possivel pensar na existéncia de linguas que so, em sua esséncia, tradugdes de tradugdes de tradugdes. E também quer dizer que cada texto, cada ser, cada outro revela certa originalidade, algo inédito, pois cada tradugio é diferenca. ‘Mas a diferenca é uma traducao que perturba: como. pensar outra coisa em nosso préprio pensamento? Como dizer outra coisa em nossa prépria linguagem? Como lé-la, como escrevé-la? Diante da tranquilidade que o idéntico oferece — © mes- ‘mo texto, a mesma voz, os mesmos seres —a diferenga nio faz mais que produzir 0 sem forma, o indefinido, a perturbadora sensagio do estranho sem nome. Por isso, a0 pensar diferenga, sentimos mais medo do que paixio, mais repugnancia do que comogio. E, por isso mesmo: “E como se experimentissemos uma repugnincia singular ao pensar a diferenga, ao descrever os distanciamentos ¢ 2s dispersdes, ao desintegrar a forma tranguilizadora do idéntico [.. de pensar 0 outro no tempo do nosso préprio pensamento” (Foucautr, 1996, p. 19-20). Talvez por isso é que boa parte das culturas ocidentais se tornou capaz de fantisticas retrospectivgs e prospectivas das di- ferengas ¢ incapaz, entretanto, de um pensamento que difira de sino presente. Naquele mesmo instante em que algo nomeado. como diferente toma lugar, num local inesperado onde no havia nenhum lugar, nesse tempo em. que se pensava com um pensamento nio pensado, ali onde nao havia pensamento e em que se fala numa lingua nunca antes escutada nem pronunciada. |. E como se tivéssemos medo A linguagem amorosa. Quem disser que o amor tem uma dinica trajetoria, um ponto de partida sdlido e um destino depurado, s6 ama a si mesmo. A verdade € bem diferente: cada amor que comega 30 Linguogans é-um exemplo aleatério de uma categoria universal que no existe, O amor & humanidade é uma maneira solapada de no amar ninguém. © amor A verdade é receber as verdades que (08 outros nos oferecem. © amor dirigido a uma imica pessoa poderia ser a forma mais mesquinha de habitar 0 universo, Se um amor se fragmentasse, como acontece com a Iuz, por exemplo, 0 prisma nfo ofereceria cores, e sim partes aleat6- ras de diferentes corpos: uma mio especifica — ou inclusive seus dedos soltos -, uns olhos concretos de tonalidades imprecisas, uma pele detalhada, uma testa ou umas costas determinadas. (© amor ¢ como uma arte figurativa: um corpo & composto por partes de corpos quase reais, talvez puiramente inventados © amor nio é ttil, nem poderoso, nem cortés. Acontece com © amor 0 mesmo que com quase todas as coisas que esto ali na natureza, porque estio: uma tempestade, um rekimpago, aaridez, a ingreme montanha, a fluidez do rio, 0 voo do pis- saro, © lado visivel da lua, 2 planicie, 0 buraco de ozénio, um tremor, uma vida que se seca, 0 ar que sufdca, a brisa que danga, 0s s6is, a tormenta, a fruta mordida, a serpente que espreita. Se duas pessoas planejam seu amor, detalhando-o, con signando-o, é possivel que seu conhecimento os arranque da natureza ¢ 05 atire no interior de uma implacivel maquina Se duas pessoas no querem plangjar sew amor, deverio morar perto do mar ou ao pé de uma montanha e bem longe de um templo, de um quartel do exército ou de um penhasco. Amar-se nio é questio de proposigdes nem de atragdes nem de vontades. Os cies € as criancas se atraem quase que sem querer. As estrelas se atraem desde a origem do universo A atragio entre dois seres acontece sem que ninguém precise fazer concretamente: nem piruetas, nem serenatas, nem poe mas. As flores que vivem no campo cantam baixinho para no distrair 0 mundo. As pedras atraem os rios, mas para desvi-los de seu leito, Existem pessoas que se atraem, mas somente para enganar-se. Atrair é uma constatagio que acontece no lugar em que nos encontramos em determinado momento, nio uma acio premeditada & qual nos dirigimos. a Cons "Eovrcto: Emaevca'e SxmB0" Amar-se nfo encontra nenhuma contrapartida na lin guagem, mas sim séculos de esforgo: poesia, misica, adoracio, filosofia, pintura, silencio, Entretanto, tocar 0 amor coma lin- guagem nio é outra coisa sendo pensé-lo antes ou dizé-lo depois, O instante do amor nao tem nome: a boca, 0s ouvidos, 0 corpo tremem ¢ s6 poder expressar 0 rastro de uma constatag egal 1 eascomoned thee Te: qoaien al Entreennkts quanto mais experimentoa especificidade de meu desejo, ‘menos posso nomear; i precisio do enfoque corresponde tum tremor do nome; a propriedade do desejo nio pode produzir senio uma impropriedade do enunciado. Des se fracasso da linguagem nio resta mais que um rastro: a palavra “adorivel” (@ correta tradugio de “adorivel” seria 0 “ipse” latino: é ele, & precisamente ele em pessoa) (Barres, 1982, p. 38). Do amor pouco se sabe. E-© pouco que se sabe, no faria falta saber. Amar é ignorar qualquer sentido primeiro e qualquer {iltimo desenlace do amor. Trata-se da maior das ignorincias: 2 ignorincia que nio sabe o que ignora ‘Mas, sabe-se que © amor supe sua propria curvatura, Um esplendor que nao chega a ser tempo antes de converter-se em p6, em brasa, Sabe-se que o amor é héspede da chuva por vir, de uma caricia que teré como ritmo 0 universo consequente. © que nfo se sabe nunca, 0 que nunca se sabers é por que amor sim, por que o amor nio. +; A linguagem sem escrita. ‘Também as palavras tomam suas decisdes, seu proprio rumo ¢ realizam sua danga particular e, em algumas ocasides, nos convidam a dangar com elas, Sio dangas macabras ou dangas puras, mas nunca se sabe. So serpentes a admirar e a temer. ‘Ou paisagens a distincia, Ou turbuléncias e tremores no meio do corpo. E se desvanecem. Desvanecemos-nos. Qual & 0 limite desse movimento de palavras? Que faze mos para que a linguagem ndo seja de ninguém em particular e de qualquer um e de cada um em especial? 2 Linguogens Se hi algum lugar onde nao pode existir a autoridade = autoridade como posi¢io de altura ou como privilégio de distincias, no como a autoriza lugar é o da leitura e da escrita Estio demasiado presentes os argumentos de autoridade que se exercem da linguagem para o ler € para 0 escrever; insistem, sublinham, enfatizam, vociferam outra ¢ outra vez, com gestos ostentosos e desmedidos, a importancia do ler e do escrever. Mas em muitas ocasides se trata somente de argumen- tos para sustentar a autoridade, quer dizer: estio vazios, isto & abismam. Provocam 0 contrério do que prometem; sugerem proximidade e se afastam até transformar em alheio aquilo que poderia ser préximo e proprio. ‘Como transmitir a experiéncia da linguagem, da leitura e dda escrita? Serd que se trata de hibitos insossos, alavancas para um tempo futuro ¢ incerto que munca estar no presente; paixdes que nio tém nenhum porqué nem quando, convites que s6 sugerem, ‘uma travessia de que no se sabe munca onde desembacara? Ingeborg Bachmann escreveu Ulzintos poemas (1999). Tra ta-se, efetivamente, de seus iitimos poemas, de uma reniincia cexplicita a escrita, uma declarago de guerra contra alinguagem flitil e banal, o precipicio da escrita em meio A propria escrita; a saturagio de si mesmo e a abertura infinita e desconsoladora para a alteridade: “Tenho que, com a cabega apedrejada / com 6 espasmo de escrever nesta mio / sob a pressio de trezentas noites, romper o papel / varrer as enredadas éperas de palavras / destruindo assim: eu tu ¢ ele ela ou / nds vos? # (Que seja Que sejam os outros) / Minha parte, que se perca” (BACHMANN, 1999, p. 27) Como bem se sabe, existe uma longa tradigio de eseritores gue em certo momento preféritam no fazé-lo, isto &, que toma- rama decisio de desertar da escrita frente 4 impossibilidade de seguir escrevendo, em nome do chega de escrita. Bachmann assumin, até as Hltimas consequéncias, um mun= do que nio era mais do que um barulho constante, desatinado, tortuoso, a certeza de que a poesia havia cafdo em sua propria de uns para outros — esse 3 Concho "Eovacke: Exestvaa Stas" armadilha: uma claboragio, um attificio, uma vontade falsa na nfo menos filsa tarefa de pretender esclarecer 0 mundo: “Mas.0 senhor hé de compreender que de repente podemos estar to- ralmente contra qualquer metifora, de qualquer som, qualquer obrigacio de juntar palavras” (BACHMANN, 1961, p. 32). Nio se trata de um simples abandono ou de um capri- choso exepentino receio. Também nfo se trata de uma fuga Hi alguma coisa a mais, muitissimo a mais, ¢ que mostra com profunda complexidade essa relacio singular do eseritor com a lingua: “Suspeita das palavras, da lingua, disse muitas vezes para mim mesmo, afoga essa suspeita ~ para que um dia, talvez, algo novo posss originar-se ou que nio se origine nada mais” (BACHMANN, 1961, p. 32). Entre o querer saber © que nos dizem as palavras © 2 desconfianca permanente em relagio 3 lingua; nesse amplis- simo espaco que se abre quase sem querer, talvez se encontre a contradi¢ao da linguagem, da escrita e da leitura. Porque, de algum modo, escrever ¢ ler, ou escrever ou ler, tem um movimento que & 20 mesmo tempo, de intencionalidade de impossibilidade. Esse € seu vaivem, sua danga, tio vital quanto macabra. Nio se deixar tentar pelo centro, pela propria centralidade, no permanecer em si mesmo, fugir do ji conhecido e dessas formas de expressio que se dominam, vontade, ainda que se sinta a incapacidade por retirar-se, por no poder sair, por estar fechados dentro do pouco que jt sabemos. A linguagem como 0 aperto da alma, como um péndulo ccujos extremos nio chegam a tocar nenhum ponto fixo, ne- nhuma medida reconhectvel de antemio. A linguagem do politico. A pergunta pela convivéncia foi-se transformando pelas bordas, mais ambiguas e tortuosas, em diregio a uma questio cujo significado imediato remete exageradamente a uma lin- guagem formal, a soma ou ao que resta dos corpos presentes, 34 Linguagens aos direitos c obrigagdes das relagdes. Quase nio se fala da contingéncia da existéncia, do devir insuspeitado de um en= contro, da incégnita do estranho, da intrusio do desconhecido, go acaso daquilo que, talvez, possa vir a ser. ‘A regulagio do afeto sugere que conviver ¢ uma nego- ciacio comunicativa, uma presenga literal de dois on mais sujeitos especificos ~ donos de uma identidade nitida —e cujo finico propésito e destino é 0 de dialagar, companithar, convergir fe consensuar ‘Maso termo “‘convivéncia” obriga-nos a um primeiro ato de distingao: trata-se daquilo que se distingue entre diferentes seres € que provoca, diante de tudo, contrariedade, receio, desconforto, perturbacio. Se nio houvesse estranhamento, & pergunta pela convivéncia nem sequer nasceria, porque con= wviver é, essencialmente, estar em meio a intranquilidade, per- manecet na turbuléncia, tensionar-se entre diferengas, revelar alteridades, nio poder dissimular desconfortos. Existe convivéncia porque ha a sensagio de ser afetado e de afetar. De outro modo estariamos falando nao de comu- nidade, mas de um inexpressivo € mais que duvidoso manual sobre boin comportamento. Estar juntos, estar entre varios, estar entre diferencas néo é consequéncia de uma relagio juridica, nem do voluntarismo cego por suia propria probidade, nem de algum virtuesismo particular: trata-se da contiguidade entre os corpos —quer Gizer: 0 rogar, a friegio, a caricia, o toque, ete, ~ cujo limite € duplo: nio poderia derivar para a assimilagio ou para a fusio de dois corpos, nem para a violacZo ou para o ultraje do outro. Estar juntos, olhando-nos nos olhos, para que, afinal de contas, exista a linguagem, exista o mundo, Conversar no mundo sobre o mundo, tecer a lingua- gem, olhar-nos nos olhos, fazer aquilo que & comum: pode set, por acaso, uma definicio torpe, ingénua, inacabada, mas essencial, do politico? politico n3o nos preexiste, £ alinhavado na duragio de cada encontro entre homens ¢ mulheres, velhios e velhas, 35 (Coco “Eouacio: Berenice Soe" adultos e adultas, jovens, meninos e meninas. Ese dilui quando mulheres ¢ homens se dispersam, se evadem, se ignoram, se vio- lentam, © politico acaba ali onde homens e mulheres deixam de olhar-se, deixam de falar-se, deixam de fazer coisas juntos. E por isso que o politico dé inicio ae novo: & exposigio inédita frente aos olhos dos outros, da relacio intima e trans~ bordante com a contingéncia, da fragilidade, do poder do imprevisivel. © poder da politica: “s6 & realidade onde palavra e ato nko se separaram, onde as palavras nio estio vazias e 0s feitos no so brutais, onde as palavras no sio empregadas para ve- lat intenges, mas para descobrir realidades, e 3 atos nio si0 usados para violar e destruir, mas para estabelecer relagdes ctiar novas realidades” (AnzNDT, 2008, p. 206). © contritio da palavra vazia ou prejudicial é 0 segredo ¢ tudo aquilo que oculta suas intengdes é a mentira. Segredo € mentita parecem ameagar 0 espago do politico, impedir ou violentat as relagdes, dissociar 0 comum em dire¢o 20 espario © 0 individualismo sem fim. Se é exigido de cada cidadio que expresse tudo o que tem para expressar a cada momento, nao sobra lugar algum para nenhum segredo: a velha tradicfo da polftica supde que seja preciso dizer tudo em praca piblica e no existe lugar para uma retirada para fora do politico. Q individuo resultante € um cidadao de cabega para baixo, na largura e na altura, na intimidade e na akeridade. Antes os politicos mentiam ali onde os cidadios no sa- biam, porque nio podiam sabé-lo, diz Arends. Hoje, mentem a0s cidadios ali onde, em principio, podem saber de tudo: a conspiragio & plena luz do dia, a exposicio absoluta da mentira, ‘Mas, entio, 0 que diferencia o politico da politica? Por que 2 sensacio de que a politica conspira contra os cidadios e que o «que quiséssemos fazer terlamos que fazer entre nés, como novas formas de irmandade, amizade, fraternidade e amorosidade? Se a politica parece estar destinada a uma cega e obsessi- va transformagio do outro, o politico é a transformagio de si 36 Linguagens ‘mesmo: “Encontrar nele as vias de sua prépria transformagio, de seu proprio ir além de si, encontrando-se passo a passo com seu desejo de ser, para ir sendo cada vez algo mais préximo do proprio desejo, isto é, mais préximo daquilo que ainda nio se € (Pénez De Lara, 2002, p. 7) Esse espago daquilo que nao se 6, esse espaco que no esti em branco nem se inscreve com a tutela ou a humilhagio ow com 0 amparo violento de outro, é 0 politico. Um espago de desejos de transformagio, sim, no qual a fumaceira criativa dos acontecimentos nao se dissipa, mas é compartilhada, disposta em comum, aberta A conversacio. Como se 0 politico fosse colocar a linguagem 2 servigo da propria nudez e da alheia, do sussurro que se converte em ‘uma paixio para a qual ainda nfo temos palavras, da poténcia do descobrimento que brota. E nio zo lado da nova e da antiga escravidio, da submissfo, da palavra tragada em dirego a0 si Encio aténito, do filso testemunho e da diminuigio dos outros. A linguagem fechada. Juana Castro escreveu em 2005 um livro de poemas in- quietante intitulado Los cuerpos escuras; uma escrita que tenta nomear, talvez, a mais impronuncisvel de todas as coisas: a de- méncia e seus confinamentos, 0 confinamento e suas deméncias. ‘Um dos poemas que compéem o livro comove em es- pecial, pois deixa o leitor ali onde nunca teria querido estar: & beira do abismo, do tragico. O poema se chama “Los encer- rados”? e nessa brevidade aguda, nessa descrigio imperiosa # "Los atrancades. Los encersades vivos. /Oscurecidos, sherrojados en el ‘kimo cuerpo de ls cata, se consumen y hablan / Corre la muerte afvera (/ Hablan con el eelevisor y con sus muertos / Olvidan los plazos del faeuro igual que olvidan hoy / qué cosas les dolieron ayer tarde / No abren les ventanas porque no entren el sol ni los ladrones / y el cielo est cechado de uralita, y no quieren saber a cuiintos aft / se marieron so madre nt su padre / Por olvidar, olvidan enfadarse, se ragan las horas, el ealdo, las pastllas, y areastran / su nombre y sus dos pies como un misterio /Y 37 Cech “Eavacio: Botha ¢ Soa © sem respiragio que se pode ler o que de outro modo seria ‘impossivel sequer imaginar: a voz da linguagem dos confinados, dos enclausurados, dos trancafiados, escurecidos em meio a luz do dia; aqueles seres a quem ninguém dirige a palavra, aqueles seres que parecem nio falar com ninguém, ‘As metiforas sobre as deméncias ¢ seu confinamento ~ 0 sombrio, 0 infausto, as trevas, o siléncio, 0 perigo, o sufoca- mento, 0 abandono, etc. — nunca alcangam ¢ enfraquecem diante de tanto horror e tanta incapacidade para compreender aradicalidade do singular. E a divida sobrevém: existe ali uma vor? O que diz? A quem se dirige? Com que palavras? Para nos dizer alguma coisa? A nds? Trata-se de uma linguagem cuja realidade nao pode ser pensads apenas como deterioragio, perda, desvio, patologi: ‘ou desatino, Se assim se procedesse, Ficaria apenas uma sensa- io do literal, discreta e mesquinha. Deveria ser dito: é uma linguagem incomparavel, como toda linguagem. A questio reside em compreender qual é a diferenca entre aqueles cor- pos ~ € linguagens ~ que so falados ¢ aqueles corpos ~ € linguagens — que falam. Efetivamente, existem corpos € linguagens dos quais se fala e corpos e Tinguagens que falam, que tomam a palavra, «que se arrogam a virtude de dizer. Como se mundo estivesse, de fato, partido em dois: de um ladg, os silenciados, os que ndo tém nada a dizer, nem a quem dizer; os que nio se diri- gem a ninguém; anénimos que s6 poderiam chegar a tomar a palavra € usar sua voz, somente para justificar sua presenca © para desculpar sua existéncia. Depois, encontram-se os que dizem por si ¢ pelos outros, os que cobrem o mundo de pa- lavras, explicadores de ocasiio que justificam vidas préprias e alheias, que sabem tudo ¢ ocultam com refinada técnica suas proverbiais ignordncias. Teen y releen, una vez y otra vez, tercos como funambulistas / Ta events dd la luz, el westamento / la invitaciéa de boda de una sobrina nicta” (CASTRO, 2005, p. 67) Lngvegene ‘Mas 0 mundo, se 0 escutamos um pouco com atengio, nao é tio assim, De fato, muito se escreveu sobre a linguagem, ce sobre as deméncias, mas, a partir de uma linguagem especia- lizada com pretensdes de clareza; a linguagem arrogante que cexplica tudo, essa linguagem composta a propésite da distingzo entre 0 que deveria ser linguagem ¢ 0 que deixaria de sé-lo. Nio seria, por acaso, possfvel que a linguagem das deméncias, pudesse filar por si mesma, em si mesma, desde si mesma? Também foi dito demasiado sobre as experiéncias de confinamento, Entretanto, a distingio volta a ser necessaria: existe corpos confinados dos quais se fala a partir de uma posigio de liberdade e existem corpos confinados dos quais se supde que nada poderio pensar a respeito, A palavra no € romada, porventura, no interior do préprio confinamento? Sera que a Gnica possibilidade de narrar 0 confinamento € esperando a luz do exterior? Esbogo de uma ideia: trata-se, talvez, de uma linguagem ede um corpo que nio se dirigem a nés, mas a um vinculo essencial existente no espago ténue e licido que permanece mével ¢ frégil entre a meméria e 0 esquecimento. Um frag- mento do poema “Los encerrados” diz: “Falam com o televisor © com seus mortos”. Falam, talvez, a partir do movimento sub-repticio de uma luz que se escapa, com 0 fragmento de uma lembranga perdida ou partida pela metade, com o deslocamento aleatério das coisas, com 0 enigma do mistério, com pessoas presentes, fis quais Ihes € outorgada outra idade, outros rostos © outros nomes, em territérios da infancia, onde jé nada nem ninguém permanece, com detalhes bordados no menor Angulo do olhar. Falam, quem sabe, com uma voz cuja moral foi aban- donada ou fatigada ou farta de si mesma, com palavras cuja ressoniincia nio esté na linguagem, mas no ouvido, através de ‘uma dor antiga que ficou pendente, com os pés arrastando-se por corredores sem desembocadura. Quando, por acaso, falam com alguém, dirigem-se a alguém em particular, s6 encontram, em troca, desconcerto, 39 Court “Eoxaclo: Bente Seo" indiferenga, talvez a vontade efémera da tradugio impossivel, © ripido resguardo na lingua si, 0 retiro em diregio & norma- lidade mais banal de que se dispde. Existe um vinculo essencial entre poesia e deméncia, & sabido. © filéso% Nietzsche acabou demente, sendo poeta e pela ‘poesia; o poeta alemao Hélderlin permaneceu demente, durante décadas, preso de uma inesgotivel obsessio pela escrita divina. ‘Uma das vozes mais limpas e testemunhais, neste sentido, & a de Alda Merini, poetiza italiana, nascida em 1931, que atravessou varios periodos de internagio, silencio e isolamento. Um de seus livros, Clinica det abandono (2008) esta composto, entre outros poemas, por aqueles que ditou por telefone a seus amigos durante os tempos de clausura numa sorte de manicé~ mio carceritio, Desse livro, este poema, “A outra verdade” Nos tempos da prisio intl ewamei um compasheizo 2 tum pobrezinho sem santidade. E assim deste amor infeliz for de meu pensamento, Ninguéai no manicémio jamais deu um beijo que ni fosse no muro que © oprimia isso quer dizer que a santidade é de todos, como de todos € o amor (Masttst, 2008, p. 143). A linguagem da deméncia diz: tempos da prisio inétil; diz: amar numa prisio indtil; diz: amor infeliz que ama no meio de uma prisio indtil; diz: de todos é 0 amor, isto é de qualquer um e de cada um. Prisfo intuil: a lingua que encerra um corpo e a sua lingua. Trigica e inutilmente. A linguagem severa. ‘Nio dominamos a linguagem, nos dizem, no é nossa. E essa afirmagdo é parcialmente certa. Funciona sem nés, antes ¢ 40 Uinguegens depois de nés, e pode parecer que nio hi modo de deté-la, de agarri-la, de amarré-la, senfio de entrar nela como quem abre seu corpo a tormenta de um rio empedrado, & serenata dos tempos, 40 intersticio que se encontra entre 0 que ja foi dito, escrito ou ido ¢ 0 que ainda nao se disse, nem escreveu, nem leu. Existe uma palavra que talvez possa nomear a relagao que se gostaria de ter com a linguagem: a “detengio”. Detencio, no no sentido de contengo nem de suspensio, mas de espera, de pausa, de paréntese. Deten¢io como calma tensa, como a expectativa do discurso, como a modulagio de uma vor pronta para se expressar ou para se arrepender. Talvez no possamos fazer ovtra coisa que nio seja deter as palavras, nio reté-las, mas deté-las: dar-Ihes ar, voz, pausa, {félego, ressonancia. Timidamente, sabendo que nio queremos ser participes dessas ceriménias fiunestas de fixagio de termos, nem da clausura dos sentidos. ‘As palavras detidas sto o murmério do pensamento, esse pensamento que nio se dirige 4 captura do real para asfixii-la ou para simplificd-la ou para deixar de pensar, mas aquele cuja tentagio é a de acompanhar 6 movimento com o movimento, a solidio com a solidio, a impossibilidade com 0 impossivel. Palavras que nio obstruam nem destruam o redemoinho dos sentimentos. Palavras que, como feixes de luz e nuvens enor- ‘mes, deem tempo, nfo julguem nem subjuguem: “Meu amigo, a propésito das palavras. Nao sei de palavras que possam nos perder: © que é uma palavra para poder destruir um senti- mento? Nio reconhe¢o nela uma forca assim. Para mim, todas as palavras so mindisculas. E a imensidio de minhas palavras nao é mais do que uma ténue sombra da imensidio dos meus sentimentos" (TsviErAteva, 2008, p. 19). ‘As palavras, diante da imensidio do que sentimos. As percepgdes diante das concepgdes. Sentir-nos encurralados em meio i linguagem, diante de milhdes de particulas do humano que nao podem ser sujeitadas nem nomeadas. E df pena, muita pena, a exigéncia e a opuléncia des sa Tinguagem severa que se torna aliada da normalidade, do a (ax “Eovrche: Eeatucn Sota normal. Quando falar ou pensar criam um falso pacto entre a linguagem e a normalidade, alguma coisa morre no mundo. Quando um ser qualquer é nomeado na superficie de seus atos, ou Ihe & imposto 0 contorno opaco de uma iinica identidade, algo do gesto da amizade, da igualdade e da fraternidade acaba. (Ou, para dizé-lo de outro modo: cada vez que se diz: (que algo, que alguém) é normal, um fruto seca e se atira do alto de uma Srvore, uma crianga adormece sem deseji-lo ¢ uma conversa fica interrompida para sempre A linguagem que julga. © homem: um animal desalmado que julga. Todo 0 seu corpo se concentra no ato de condenar. Tor na-se severo diante daqueles que cometem um pequeno mal, por exemplo: a galhofa que se supSe inofensiva ow a balela que coculta sua otigem; ou que deslizam um mal intermediirio: desinteresse proximo ao desprezo; ou que materializam o pior dos males: o assédio a partir da sombra espessa do sem sentido, da torpeza da compreensio quando no hi nada para ser explicado. A linguagem que julga esta pesada, carrega o peso de séculos de humilhagdes e habita a impericia da banalidade. Seu carter foi submetido 2 uma rigorosa solidio, essa solidio que é resultado de um lento @ progressive abandono da cumplicidade ¢ da complacéncia com os demais, essa soli~ dio como desterro, que faz com que © mundo nio seja outra coisa além de am fervedouro de desconfianga, de desapego, de suspeitas de uns para com outros. Mais do que conversar, a linguagem do homem, que julga, sopesa, mede, esquadrinha, desconfia. © ew em teu lugar, ou aguilo que deverias fazer, ou 0 que seria coneto, sio emblemas de uma investida que pergunta: estd bem ou esté mal? Reitera até a saturagio desde os jornais, as radios e as televisbes ¢ se replica em nés mesmos. ‘© homem que juilga no se di conta do envenenamento de sua lingua. Ao contrario, ele vive longos periodos assumindo 2 Lrarogons 0 destino de uma altura tio suprema quanto desnecesséria; acredita ser convocado, no para conversar, mas para oferecer sua clarividéncia, sua percepgio incontrastivel, certeira; con fande 0 equinime com 0 golpe de um martelo que nio sabe mais do que sentenciar a morte. Para o homem que julga, 0s outros sio corpos indeléveis dispostos a receber as verdades que oferece. Mas os outros, pouco a pouco, se esgotam, murcham, se afastam. Porque, diante do homem que julga, dé a sensagio de que ninguém pode se distrair por um segundo, desviat-se para seus proprios pensamentos, ou fazer o primeiro comentario que Ihe venha 3 mente. E se esquivam como os réus diante do juiz e renunciam ‘esgotados pelas justificativas e explicagGes: fingem que escutam, ‘mas estio mais pendentes de uma folha que cai, de uma porta que nio fecha nunca, da justa distragio. E com 0 tempo saem para procurar 0 movimento do som de outras palavras, fogem sem deixar rastros. ‘A moral do homem que julga € como uma pintura sem ranhuras. E isso impede de desfrutar da conversa, da leitura ou da escrita, Em vez de ler, por exemplo, empenham-se em discussdes com autores e personagens — nao perdoam fraquezas de carter, nio suportam que tudo se resolva sob 0 duvidoso manto de uma justiga torta — e quando escrevem nao conse- guem silenciar sua mente, todos os seus relatos preveem falsas histérias com um longo desenlace cheio de pesadas pedantes ligdes de moral. Nictzsche ¢ a moral: “A moral € a idiossincrasia do deca- dente coma intengio oculta de vingar-se da vida”. Ou: “Toda moral é um habito de automagnificacao, pelo qual uma classe de homens esta satisfeita com seu modo de ser e de sua vida" (Ou bem: “A besta que reside dentro de nds quer ser enganada, a moral éa necessidade de mentira”, Ou, por iltimo: “A moral, com seus preceitos absolutos exerce uma injustiga sobre cada individuo” (NretzscHE, 1976, p. 37) Teri razio Nietzsche, como sempre? Que o homem que Jjulgase contenta e apazigua com sua linguagem, servindo-se de a

You might also like