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METH-HSTORA A historia por tras da historia | da salvacao. Soberania de | Deus e Liberdade Humana. RUBEN NORE PREFACIO REV. CAIO FABIO RUBEM M. AMORESE Paulistano criado no Rio de Janeiro, Dr. Rubem Martins Amorese é um dos nossos mais brilhantes pensa- dores cristéos, casado'com Angela, possuem dois filhos, Ana e Estévao. Escritor, com seis livros publicados e varios artigos em jornais e revis- tas. Presbitero da Igreja Presbite- riana do Planalto em Brasilia, pro- fessor no curso de mestrado da Fa- culdade Batista de Brasilia, respon- savel pela cadeira: Igreja e Soci dade. Cursou Literatura Francesa, & mestre em Comunicagao Social pela Universidade de Brasilia e pés- graduado em Informatica pela Uni- versidade Catdlica de Brasilia. Pro- fissionalmente, € Assessor Legis- lativo no Senado Federal, tendo as- sessorado a Constituinte na area de Comunicagao Social. Membro do conselho consultivo do Cegraf. Se- cretario de ética da AEVB e membro. da Fraternidade Teolégica. META-HISTORIA Meta-Historia é a histéria da hist6ria. A busca do homem por compreender seu tempo e sua gente. Meta-Historia é um livro para todos aqueles que fazem histéria; enquanto con- versam com Deus. Boa Leitura! Oswaldo Paiao Jr. editor Rua Manguaba, 124 Sao Paulo / SP CEP 04650-020 1 / Fax (011) 246-7046 Meta-Histéria Rubem Martins Amorese © Abba Press Editora e Divulgadora Cultural Ltda. Categoria: Reflexao Biblica 01.08.102.09941 4 Edigdo no Brasil Setembro de 1994 Reviséo Comunicarte Computagao Grafica Rubem M. Amorese Arte da Capa Cida Paiao Foto da Capa Photo Rent Coordenacao Editorial Oswaldo Pa Fotolit REFRAN Studio RODRIGUES Rua Manguaba, 124 CEP 04650-020 Sao Paulo / SP Tel / Fax (011) 246-7046 METACHISTORIA A Historia por Tras da Histéria da Salvagdo RUBEM MARTINS AMORESE ‘Ao vencedar dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trano, assim como também eu venci, € me sentei com meu Pai no seu trono. Abba Rua Manguabs, 125, EF 04650-020 Sio Paulo, SP “Tel./Fax (O11) 246.7036 Aos meus filhos Ana e Estévao, na esperanca bendita de que haverdao de receber 0 nome novo na pedrinha branca Sumario eavasevenensncosenenensntoronssonses seseasssesenenencesenes LT Parte 1: Recontando Capitulo 1: O Grande Conflito ...... Uma Primeira Parada Guerra no Céu .. Segunda Parada Passando a Limy O Exterminador do Terceira Parada Digressées Uteis Primeiras Conclu: Capitulo 2: O Julgamento de Licifer A Segunda Queda O Prometido. Capitulo 3: A Batalha da Cruz A Plenitude dos Temp: O Encontro .. A Vitoria .. Concluséo Parte 2: Testemunhas Hoje Capitulo 4: A Peneira de Satan ...........sesesssesseeereee LOD Satanas Reclama Permissao .... Vitéria por Fé Guerra Simulada A Gloria dos Mortos Capitulo 6: A Armadura de Deus . A Verdadeira Guerra .... A Guerra Interna .... Detergentes Modernos 127 Da Democracia a Pornocracia . 131 A Cilada do Sistema... 132 Capitulo 8: A Ovelha-Ledo ............sssccsesesecsesesesessseeneneee 135 O Paradox0 .......0004 Ciladas Nao-Cognitivas 138 Socorro Bem Presente.. 140 Por Amor de Ti Leao-Ovelha Ao Vencedor Capitulo 9: Ressurreicao ........sssssesssssssssccesesereseseseeeers LAS CONCIUSAO .......ssscersescecerecseserscecereeeeeenersenes seeseseneeeeeeeees LAY -Prefacio Meta-Histéria é sempre a maneira como a Biblia lé e descreve a existéncia que se auto-percebe e em cujo topo esta o Jenémeno humano. Fala-se de meta-histéria porque se pressupée que tanto houve um cendrio “anterior” aos acontecimentos registrados pelos observadores humanos, quanto ha, também, cendrios profundos "por tras" e "dentro" do conjunto de forg¢as que se visibilizam na formagao das tramas universais que nés chama- mos, escravizados ao tempo, de Histéria. No presente livro, o meu querido amigo Rubem Amorese faz um exercicio de imaginacdo meta-histérica. Ou seja, tentan- do ser o mais coerente possivel com os contetidos dos cendrios histéricos percebidos e registrados, ele envereda na busca de causas e razées mais profundas, que possam libertar os acon- tecimentos de sua escravidao desgracada as dialéticas sociol6- gicas, que pretendem entender a histéria apenas 4 luz dela mesma. Rubem comega antes. Ele parte do Verbo que era, que é, e que ha de vir. Na sua busca de sentido e de trama para a historia, Rubem também faz um exercicio de "Fisica-Teologia". Ou seja, ele apanhao que ha de mais moderno na maneira de se conceber o "tempo" e enxerta tais percepgdes de contetidos teolégicos. Eu também vejo o universo do mesmo modo e tento fazer minhas leituras teolégicas a partir da mesma 6tica. Por exemplo, doutrinas biblicas aparentemente "contra- ditérias", como a liberdade humana e a soberania de Deus, quando vistas a partir da possibilidade da ndo-linearidade do tempo (ou seja, assumindo-se como teoricamente factivel a simultaneidade de passado, presente e futuro), tornam-se nao apenas absolutamente plausiveis, simples e desproblema- tizadas, mas também absolutamente necessarias a coeréncia de um universo que existe em simultaneidade dimensionais. O texto do Rubem é teologicamente rico enquanto tam- bém é provocante, imaginativo, informal, bem-humorado e mo- derno na sua construcao. Nele também subjaz a sensibilidade espiritual do autor. Afinal, para aqueles que conhecemo Rubem, Jica claro que por tras de sua mente esperta, jocosa e aguda, ha um_ ser humano extremamente piedoso e respeitador de seu préximo. A Cruz é 0 centro da Meta-Hist6ria. No livro do Rubem também. E por tudo isso que eu creio que o presente trabalho estava faltando na literatura evangélica. Nestes dias de profun- do vazio historico, nada pode ser mais sadio do que um pouco de meta-historia. Especialmente quando a Cruz é seu ponto de partida, de referéncia, de vista e de chegada. Afinal, "o Cordeiro de Deus foi imolado desde antes da fundagdo do mundo", Aqui nasce a meta-histéria. Rubem Amorese percebeu isto com alegre e inteligente devocao. Rev. Caio Fabio D’Aratijo Filho. Apresentacao omos convidados a dirigir uma palavra ao grupo de lideres da Alianca Biblica Universitaria de Brasilia, a reunir-se nacasado Miranda, num saébado do segun- do semestre de 1989. No convite vinha ja definido o tema a ser abordado: “Plano de Salvacao’. Como sempre acontece, a gente primeiro aceita, e depois comeca a pensar no problema que acabou de criar para si mesmo. Comeco a pensar: — Trata-se de um grupo de lideres. Logo, terao boa bagagem sobre as Escrituras. Gente que evangeliza universitarios; acostumados, portanto, a todo tipo de objecdo intelectual ao evangelho, o que forca um aprofundamen- to nele e em seus pressupostos para os dias de hoje. Por que estarao querendo que se lhes fale sobre “plano de salvacao”? O que é que poderiamos thes dizer que ajudasse, que contribuisse, que nao “chovesse no molhado”? Como sempre se faz nessas horas, a saida foi buscar a orientagao de Deus e esperar que a solucdo viesse com tempo para algum preparo. 14 — Meta-histéria Quando a idéia apareceu, nao foi recebida com grande entusiasmo. Pensei assim: ja que sdo universitdrios, e gradua- dos em plano de salvacao, porque ndo, alguma coisa no estilo “pés-graduacao latu senso” na matéria? Estaria bem dentro da vivéncia deles e poderiamos aprofundar o assunto, sem o incémodo de estarmos falando da “velha hist6ria” como sendo “aula de recuperacao”. Estrategicamente, pareceu uma saida bastante aceitavel, mas havia um defeito grave: ndo tinhamos a menor idéia de como pé-lo em pratica, porque sequer imagindva- mos 0 que poderiamos dizer que justificasse a abordagem. Passamos a pensar em alguma coisa que tivesse ligacao com sua vida académica, tanto na abordagem quanto no contet- do. Quem sabe algo na area da Hermenéutica, ou da Exegese, usando como base os problemas relativos a interpretacdo e autoridade das Escrituras, enfrentados pelos estudantes? Tal- vez uma pesquisa histérica, tirada de um livro do tipo “nos tempos biblicos”, que elucidasse algum aspecto do tema propos- to? As idéias vinham sempre no sentido da “pés-graduac¢ao”, mas néo satisfaziam. Parecia tudo um tanto artificial, afetado, presungoso, Nada devocional, enfim. Chegou o sabado, dia da reunido, e estavamos, como de costume, um tanto desanimados, tentando administrar um turbilhdo de idéias conflitantes e uma gama enorme de senti- mentos negativos em relacGo as mesmas e — por que nao dizer — ao autor delas, Na hora da reuniao, ainda nao tinhamos uma definicao clara do que fazer, do que dizer. Para alguns isso pode parecer trivial, considerando tratar-se de uma corriqueira reunido de trabalho de estudantes. Ha pessoas que confiam que as coisas se arranjam na hora “H”, e de fato acabam se desincumbindo sem grandes problemas. Mas eu nao posso evitar de ficar preocupado e inquieto. Na verdade, me sentia um tanto humilha- do por Deus, pelo fato de haver orado por uma iluminacao e ter embarcado num caminho meio sem volta, e cheio de becos sem saida: nao conseguia pensar em nada melhor e nenhuma das idéias satisfazia. Pior, me faziam sentir mal. Mas uma coisa havia acontecido. Eu havia orado aquele dia como um Jonas na Apresentagio — 15 barriga do peixe. Nada de grandes construcées teolégicas e eloqiiéncia de fraseado com o Senhor, mas apenas uma palavra simples e singela: socorro. E junto com a humilhacdo veio uma grande paz, daquelas que surgem quando sé resta confiar ~ nado porque se tenha uma grande fé, mas porque nada mais resta a fazer. A reuniao, por ter um cardater informal, permitiu uma conversa boa e criativa — abengoada — e algumas coisas que vinhamos pensando ha muito tempo foram surgindo e sendo aprimoradas pela interlocuc¢do dos participantes. Aconteceu, assim, uma conversa em nivel de “pés-graduacdo”, mas nado na forma académica que temiamos, e sim no sentido de se pensar sobre o que estaria por tras da historia da salvagao. O plano da salvacdo, por essa perspectiva, assumia seu verdadeiro carater estratégico, e nossa missdo seria a de perscrutar, com base exclusiva nas Escrituras, as origens e os desdobramentos desse plano. Algo como imaginar 0 que estaria o Senhor pensando, quando agiu assim e assim. Pretensdo? Certamente. Mas foi assim que a perspectiva surgiu. Depois, encorajado pelo inicio, passamos a burilar e explorar melhor o tema. Nossa esperanca é que ele possa abencoar a quantos 0 lerem, e que possa ser visto como uma proposta, longe de final, completa e correta, mas uma proposta de caminhada. Brasilia, julho de 1994. Rubem Martins Amorese Introducao emos aprendido que as “leituras” que fazemos da vida sao diferentes para as diversas situa- ¢6es existenciais em que nos encontramos. Conforme sejamos ricos, pobres, jovens, ve- Ihos, homens, mulheres; se estamos alegres, tristes, angustiados, em crise ou numa boa fase, as coisas se nos mostrarao de forma diferente. Isto nado quer dizer que a realidade mude de acordo com nossa percep¢déo, mas sim que “aceita” leituras diferentes. Um mesmo fato pode ser interpretado de forma diferente por duas pessoas ou por uma mesma pessoa em situagées diferentes. O mundo nao muda, mas 0 significado que lhe atribuo sim. Esse fendmeno indica que nossa formacaéo influencia a nossa forma de atribuir (e mesmo de perceber) significado aos fatos, fenémenos e objetos que nos cercam. Um ciclone, por exemplo, pode ser visto por uma pessoa como um interessante fendmeno da natureza, 18 — Meta-historia enquanto outra o encara como desgrag¢a, e uma terceira, como portador de mudangas nos acontecimentos proxi- mos. A primeira, um turista, pode nao se aperceber que © ciclone passa por sobre a plantagao da segunda, enquanto a terceira, um indio, obsefva com pressupos- tos misticos. Bem, se éassim, nao ha motivos para se estranhar que nossa percepc¢ao da Biblia possa variar, conforme a nacionalidade, posicdo social, estado de espirito, sexo, idade etc. de quem a 1é. Isto quer dizer que, embora a Palavra de Deus nao mude, sua interpretacao pode variar em algum grau, de pessoa para pessoa, de época para época, sem que, necessariamente, alguém esteja sendo incorreto ou negligente em sua analise. Quero crer que esta seja a explicacao para o fato de que alguns textos biblicos sao mais lidos por determi- nados grupos, ou em determinados periodos da historia, que outros. O que se constata é que selecionamos ou destacamos um conjunto de passagens do global das Escrituras e, inconscientemente, imaginamos que ele contém toda a Escritura. Montamos 0 “mapa” global da Biblia na nossa cabega, a partir daquelas leituras predi- letas, aquelas que melhor compreendemos, daquelas com as quais tivemos alguma experiéncia importante, com as quais concordamos ou temos mais afinidade, etc. Fazemos isto, talvez, até pela dificuldade de in- cluir em nossa sistematizagao pessoal todas as facetas de um mesmo tema, apresentadas nos muitos textos. Algumas até em profunda tensdo entre si. Veja, por exemplo, os capitulos 9, 10 e 11 de Romanos: ali, o apostolo Paulo coloca lado a lado os temas da responsa- bilidade humana e da soberania divina, sem nos dar uma solucao para o impasse. Temos a compreensivel tendén- cia de afirmar um dos lados, esquecendo-nos do outro. Assim, com o passar do tempo, alguns textos vao- se afirmando, de forma desapercebida, nas mentes das Introdugio — 19 pessoas, igrejas ou denominagées, como mais canénicos que outros, por sua aplicabilidade imediata, por sua facilidade de compreensao, auséncia de tensao, integra- ¢ao dos leitores (nao geram disputa teoldgica) etc. Ocorre uma espécie de acomodacao. E também selecdo: as passagens problematicas, que nao se afinam com o que entendemos ser a mensagem geral, ou que invalidam nosso sistema ja formado tornam-se palavras nao-vali- das. Temos a tendéncia de dizer que nao as compreende- mos, que tém um significado oculto, nado revelado ou enigmatico. Talvez nado seja para nossa época, dizem alguns. Para estas, designamos um arquivo teolégico com o seguinte enderego: Dt. 29:29a. “As cousas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus...” E bem verdade que esse recurso ja significa uma escolha: acionou-se o dispositivo para dizer que aquelas passagens que consideramos ja compreendidas nos per- tencem, e aquelas com as quais temos dificuldades ja vém com a marca do proibido ou do inacessivel. Acredito, verdadeiramente, que haja muito mais material biblico a ser arquivado na gaveta “a” de Deuteronémio 29:29 do que na “b”: “...porém as reveladas nos pertencem a nés e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei.” Mas creio também que esse fato se tornou, lamen- tavelmente, como que uma valvula gasta de panela-de- pressao, que deixa escapar o ar quente antes da hora. A qualquer dificuldade ou embarago, lancamos mao da valvula. O professor biblico, ao ser confrontado com uma pergunta dificil, nao precisa pesquisar: basta citar Dt. 29:29 (geralmente, somente a gaveta “a”) que, sem res- ponder, mantém sua reputagdo intocada. O pastor, ao ser inquirido aberta e ingenuamente por uma mente infantil ainda nao censurada, ensina-lhe que certas perguntas ndo se fazem. Ao invés de responder-lhe, ou de reconhecer que nao sabe, reprime a curiosidade, como 20 — Meta-histéria perigosa, indesejavel, desfuncional, rebelde, etc. E 0 resultado é que “nossos filhos para sempre” vao herdan- do apenas segmentos das Escrituras. Mais que isso, vao aprendendo que ha terrenos minados nas Escrituras. Outro motivo do acionamento da valvula é 0 receio de cair em heresia. Se comeco a descobrir informagoes biblicas e a chegar a conclusées que nao se encontram em nossos manuais ou comentarios, por um processo de auto-censura, ou receio de me perder nessas aguas, aciono (diante, inclusive, do treinamento que tive) no coragao 0 dispositivo e paro. Prefiro ficar com o que ja esta provado e comprovado por tedlogos de maior peso que eu. Ou melhor, prefiro ficar com 0 pouco que conhe¢o do que se pensou antes de mim. Isso faz com que, sem saber, se estabeleca uma espécie de canone das Escritu- ras, com textos mais ou menos sagrados; mais ou menos permitidos; sem falar nos mais ou menos incémodos. Esse canone varia de denominagado para denominagao, de geografia para geografia; mas € significativamente unificado no mundo do ensino teolégico, assumindo rétulos definidores, como “reformado”, “tradicional”, “fundamentalista’”, “liberal”, etc. Parece-me um processo normal e compreensivel de auto-protecao. Nao é 0 caso de criticar, aqui, nem os mecanismos de defesa do lider, nem a auto censura que desenvolvemos. Mas 0 fato € que, com tudo isso, a Biblia passa a ter alguns “cantos escuros” e “armarios embolorados”; aguas profundas, onde é melhor nao se arriscar. No entanto, e se de repente, com isso, estamos deixando de lado porgées importantes da revelacao de Deus para nossas vidas? Coisas que nao eram relevantes para os “pais da igreja”, dado a época em que viveram, mas imprescindiveis para nosso tempo? Ou, ao contra- Introdugio — 21 rio, coisas que eles sabiam tanto que nem se importaram de tratar explicitamente, e que hoje nos escapam?! Nao fica apenas nisso, entretanto, nosso processo seletivo. Talvez por falta de ousadia e imaginacao teolégi- ca (além do treinamento intimidatério mencionado), somos, desde a infancia, aprisionados naquele particu- Jar mundo fechado das informacées biblicas, e treinados a nao pular jamais a cerca da ortodoxia, ou da tradicao, ou do estabelecido, qualquer que seja o nome dado ao conjunto de textos biblicos selecionados como proprios 4 leitura, e qualquer que seja a configuracdo da coeréncia estabelecida entre eles. Quero dizer que, além de nao lermos tudo nas Escrituras, as ligacdes que estabelece- mos entre eles também sao, de alguma forma, determi- nadas pelas restrigdes mencionadas. Isso quer dizer que © nosso processo sistematizador também é afetado. As ligagées especificas e finitas entre os textos que com- poem um “cAnone”, formam uma rede de compreensées, ou Seja, uma sistematiza¢ao de conhecimentos que, para sobreviver intacta, tende a excluir os textos que a arra- nhem ou desautorizem. Faz-se assim, necessariamente, uma selecao. E nés fazemos muito isso. Embora essas afirmagées parecam bem graves, e talvez impertinentes, é importante dizer que nao ha como evitar este fendmeno. Somos humanos, e projetamos na nossa andlise, muito do nosso proprio conhecimento, da nossa sensibilidade, dos nossos medos, das nossas fobias, do mundo em que vivemos, da nossa cultura, enfim. Projetamos isso, também, no nosso discipulado, como ingrediente inconsciente. Somos parciais, sem remédio. Guardados certos limites, pode-se ver esse 1A titulo de exemplo, podemos mencionar o tema do jejum. Pouca coisa nos chegou, a respeito de praticas e técnicas. Parece que era um costume tao corriqueiro que jamais o autor biblico se preocuparia em ensinar como fazer jejum. Limitava-se, portanto, a recomenda-lo ¢ a tecer consideracées sobre S€U USO e Suas conseqiéncias espirituais. 22 — Meta-historia fenédmeno como riqueza, e nao necessariamente como limitagdo. Passa a existir um problema, quando nao nos dispomos mais a considerar a existéncia e validade de outras alternativas, ou quando passamos, por motivo de radicalismo ou conforto, a condenar qualquer outra abordagem que nao a nossa. A imaginacao teolégica ajuda-nos a “ler” uma passagem, ou um conjunto de textos, sem que nos aprisionemos tanto pela sua concretude. E bem verdade que a imaginacao em si traz a possibilidade da incursao no mundo do inexistente, da fantasia, da fabula. Por isso, precisamos entendé-la como uma “imagina¢ao instru- mentada”, ou seja, nao totalmente livre, mas ligada ao bom-senso, a técnica, ao conhecimento, ao método — uma espécie de imaginacao cientifica. Ela precisa, por- tanto, estar associada a uma boa hermenéutica, que considera todas as informagées do “la e entao”, para poder alcar véo no “aqui e agora”. Com essas restri¢ées e cuidados, ela permite voos, permite ligacdes mais ousadas entre dois temas — menos seguras, admitamos. Mas sem ela — e isso nao acontece apenas no ramo da Teologia”, mas em qualquer area do conhecimento humano — néao ha invengées, nao ha descobertas, nado ha ciéncia, nao ha progresso. E ela que nos impulsiona para o desconhecido, para 0 nao-6bvio (ou para 0 6bvio nao dito). *wright Mills diz assim: “Nao é apenas de informagao que precisam [os cientistas sociais] — nesta Idade do Fato, a informacao Ihes domina com freqiiéncia a atengo e esmaga a capacidade de assimila-la. Nao é apenas da habilidade da raz4o que precisam — embora sua luta para conquista-la com freqtiéncia Ihes esgote a limitada energia moral. O que precisam, e o que sentem precisar, é uma qualidade de espirito que Ihes ajude a usar a informagao e a desenvolver a razao, a fim de perceber, com lucidez, o que esta ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmos. E essa qualidade, afirmo, que jornalistas ¢ professores, artistas ¢ publicos, cientistas e editores esto comecando a esperar daquilo que poderemos chamar de imaginagao sociolégica.” MILLS, Wright C. A Imaginacao Sociolo- gica. Rio de Janeiro, Zahar, 48 ed., 1975, p. 11. Introducio — 23 Eu imagino que vocé esteja morrendo de medo disto tudo, pensando no abismo de “perigo” que estamos criando. Mas pense comigo: se Crist6vao Colombo tives- se ficado na sua caminha, quentinha e segura, jamais teriamos sido descobertos (vocé pode até achar que, nesse caso, teria sido melhor, mas espero que tenha compreendido meu argumento). Resumindo: sem imagi- nacao, perdemos muito em nosso quefazer teolégico. Bom senso? E claro! Critérios de validade e validacao? Sao absolutamente necessarios. O perigo, é a imagina- cao solta, sem vinculos com a realidade — neste caso, com a autoridade das Escrituras. Bem, nao queremos dramatizar demasiadamente a questao. O que desejamos, com esta introdugao, é que o leitor tenha condigées de nos acompanhar no caminho que pretendemos trilhar. Nas paginas que se seguem, pretendemos trabalhar alguns textos que nos tém cha- mado muito a atencao por sua capacidade de elucidar areas obscuras das Escrituras (pelo menos para mim). Alguns daqueles cantos e armarios embolorados a que nos referimos anteriormente. ° A Biblia € um conjunto de livros sagrados que revelam o Deus vivo e verdadeiro; 0 Deus que criou 0 céu, a terra e tudo o que neles ha. As Escrituras nao parecem querer provar sua existéncia, mas revelar-nos sua perso- nalidade e suas propostas de relacionamento com suas criaturas. Ninguém pode conhecer a Deus se ele nao se revelar. Revelacdo é uma palavra chave para a teologia. Revelar € 0 ato de tornar visivel e perceptivel algo que estava oculto, velado. Aurélio Buarque de Holanda diz que revelar é tirar o véu. Nesse sentido, a Biblia existe Para, com a atuagao do Espirito Santo, nos tirar 0 véu da compreensao das coisas de Deus. Por outro lado, o “deus deste século” trabalha para manté-la velada, cegando o entendimento. Revela-nos a nos mesmos, como um espelho, e nos mostra como Deus espera que nos relaci- 24 — Meta-histéria onemos com ele e conosco mesmo, por via de conseqtién- cia. Nesse sentido, a revelagéo maxima de Deus é a pessoa de Jesus Cristo®. O que nos é possivel compreen- der de Deus estava encarnado e manifesto em seu Filho. Em todo esse processo de revelacao, no entanto, ha alguns textos que consideramos especiais. Percebo- os como “janelas dimensionais”, porque nos fornecem informagées nao-convencionais, nao-substantivas, nao- centrais, no argumento biblico. Parecem ser janelas explicativas; textos que falam sobre outros textos, sobre os fatos revelados, explicando-os. Apresentam-se, algu- mas vezes, numa linguagem alegérica, como que desti- nados a nao revelar fatos, mas a explicar realidades ja reveladas. Usam, digamos, uma meta-linguagem, para falar de uma meta-realidade. Trabalham por fora da linha central da revelagao escrituristica, Parece-me que com o fito de alinhava-la. Talvez por isto, me tenham chamado a atencao: sao textos que nao tratam diretamente da historia da salvacao, mas constituem-se em um relato que explica essa historia. Trata-se de uma meta-historia, portanto. De que estariam falando? — pergunto-me. Que funcgao exercem no corpo do canon? Isso equivale a perguntar: porque estao ai? porque foram incluidas no texto biblico? Teria sido descuido da Septuaginta? Se nao, se acreditamos que Deus esteve presente no mo- mento critico da montagem do corpo biblico, entao, qual o seu significado? Teria eu coragem e imaginagao* para assumir e sugerir o que parecem estar dizendo? Depois de muito matutar, e ouvir amigos, decidi tentar trabalhar com alguns desses textos, buscando um 3Cf. Hebreus 1. “Faco, aqui, um paralelo com a necessidade de “Imaginagao Sociolégica” de Wright Mills, op.cit. Introdugao — 25 caminho pelo qual eles fossem integrados, com uma funcao elucidativa, ao corpo da revelacao. Pode parecer grande pretensdo, eu sei. Mas servira a tentativa pelo menos para que o debate seja levantado e, eventualmen- te, eu possa ser ajudado com mais eficiéncia, em cima de um texto escrito. Nossa intengao, assim, é evitar acionar a valvula “Dt. 29:29a”, e entrar por essas “janelas de revelacao” sem medo de ser feliz. Parte 1 Recontando Nesta parte, propomo-nos recontar a “ve- lha hist6ria”. Até onde possivel, recontando-a da perspectiva de toda a Biblia, buscando com que os diversos escritos das Escrituras contem o que tém para contar. Para tal, procuraremos abrir algumas “ignelas de revelacao” das Escrituras, janelas essas que nos tirem o véu que encobre meta-realidades, existentes na meta-histéria; para além do tempo, do espaco e da matéria. Nossa esperanca é que essa histéria ainda seja muito contada nos lares do povo de Deus, e anunciada aqueles que ainda nfo 0 conhecem pessoal- mente. Nas palavras do salmista, "falar-se-4 do Se- nhor 2 geragio vindoura. Hao de vir anunciar a justica dele; ao povo que ha de nascer, contariio que foi ele quem o fez.” Capitulo 1 O Grande Conflito ossa primeira janela de revelagdo esta, sinto- maticamente, no Apocalipse. Digo sintomatica- mente porque € 0 livro da revelagao por exce- léncia. No entanto, tem sido um grande desa- fio aos estudiosos, que lutam por encontrar alguma certeza do sentido das figuras, imagens, alegorias, sim- bolos e metaforas ali profusas. Parece um texto cifrado, contendo um grande segredo, que muitos lutam por desvendar. Nosso texto comeca no auge do relato do livro, como que a coroar toda uma preparacao. Isto quer dizer que da para perceber que o relato vai se desenvolvendo em uma ordem, caminhando numa determinada dire- ¢do. Apesar de nao compreendermos muito bem o signi- ficado de todas as visdes e experiéncias de Jodo, perce- bemos que elas tem uma ordem que leva a um climax. Imaginamos que nossa janela, ou é esse climax, ou esta muito perto dele. 30 — Meta-histéria A revelagdo das ultimas coisas comeca com as cartas as igrejas, que desembocam na visao do trono de Deus. Ali, o Cordeiro, que foi morto e venceu, abre os sete selos, que dao seqiiéncia As sete trombetas, no desenro- lar das quais se revelam os sinais escatol6gicos. A ultima trombeta, no final do capitulo 11, parece anunciar o Apice, ou o climax dos tremendos acontecimentos que Joao presencia. Nesse momento, a partir do verso 19, acontece uma espécie de mudanga tematica no relato. Asequéncia do assunto é interrompida, como que num corte de cena, comum nas novelas e enredos televisivos, para mostrar algo que esta acontecendo concomitantemente com o que se estava acompanhando. E nao é somente mudanca tematica, mas também de linguagem. O tom se torna dramatico, a linguagem alegorica, figurada, e o relato descreve uma cena, com técnica quase teatral. Gostaria de ver o diretor de cinema Spielberg reproduzindo, com sua técnica magica, esta cena. Tudo € solene, tudo é grande, profundo, misterioso, grave, quase insuportavel. Vamos, entao, a Apocalipse 11:19. Abriu-se, entao o santuario de Deus, que se acha no céu, e foi vista a area da alianga no seu santudrio, e sobrevieram relampagos, vozes, trovées, terremoto e grande saraivada. Viu-se grande sinal no céu, a saber, uma mulher vestida do sol com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeca, que, achando-se gravida, grita com as dores do parto, sofrendo tormentos para dar a luz. Viu-se também outro sinal no céu, e cis um dragao, grande, vermelho, com sete cabegas, dez chifres e, nas cabecas, sete diademas. A sua cauda arrasta a ter¢a parte das estrelas do céu, as quais lancou para a terra; e o dragao se deteve em frente da mulher que estava para dar a luz, a fim de lhe devorar 0 filho quando nascesse. Nasceu-lhe, pois, um filho vardo, que ha de reger todas as nagoes, com cetro de ferro. E 0 seu filho foi arrebatado para Deus até ao seu trono. A mulher, porém, fugiu para o deserto, onde Ihe havia Deus preparado lugar para que nele a sustentem durante mil duzentos e sessenta dias. Houve peleja no céu. Miguel ¢ os seus anjos pelejaram contra o dragao. Também pelejaram o dragao e seus anjos; O Grande Conflito — 31 todavia, nao prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragao, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanas, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirado para a terra e, com ele, os seus anjos. Entaéo ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora veio a salvagdo, 0 poder, o reino do nosso Deus ¢ a autoridade do seu Cristo, pois foi expulso 0 acusador de nossos irmaos, o mesmo que os acusa de dia, e de noite, diante do nosso Deus. Por isso, festejai, 6 céus, e vés os que neles habitais. Ai da terra e do mar, pois o diabo desceu até vos, cheio de grande célera, sabendo que pouco tempo lhe resta. Quando, pois, o dragdo se viu atirado para a terra, perseguiu a mulher que dera a luz o filho varao; e foram dadas a mulher as duas asas da grande aguia, para que voasse até o deserto, ao seu lugar, ai onde é sustentada durante um tempo, tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente. Entdo a serpente arrojou da sua boca, atras da mulher, agua como um rio, a fim de fazer com que ela fosse arrebatada pelo rio. A terra, porém, socorreu a mulher; ¢ a terra abriu a boca e engoliu o rio que o dragao tinha arrojado de sua boca. Irou-se 0 dragéo contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendéncia, os que guardam os manda- mentos de Deus € sustentam o testemunho de Jesus; € se pos em pé sobre a areia do mar.® Acredito que este texto tem uma mensagem que s6 pode ser integralmente compreendida a partir de um conceito correto de eternidade. Isso quer dizer que pre- cisamos de novas ferramentas conceituais para a abor- dagem do texto. Deixe-me explicar melhor. Temos a tendéncia de tentar organizar nosso mundo e nossas coisas em termos de tempo, espa¢o € matéria. Por estarmos confinados a uma natureza com- posta desses ingredientes, ou melhor, dessas dimensoes, necessitamos, naturalmente, de cronologia (isto primei- ro, isto depois). Para nos, por outro lado, “aqui” e “la” nao podem ser entendidos como os mesmo lugares (0 que esta aqui, nao pode estar em outro lugar, ao mesmo tempo, e vice-versa). Dois corpos nao podem ocupar 0 mesmo ®Apocalipse 11: 19 - 12:18 32 — Meta-histéria lugar no espago, ensina o nosso manual de fisica elemen- tar. Assim, quando um texto nos fala de uma realidade que foge a esses nossos condicionamentos, ficamos confusos, e imediatamente atribuimos a dificuldade ao problema de traduc¢do ou ao carater ndo-revelado do texto, e surgem os problemas a que nos temos referido. Vem, com eles, a tendéncia de passar por cima, e seguir em frente. Na verdade, o que precisamos para compreender este texto, é abstrair tempo, espaco e matéria. Hoje em dia, ja temos condicées de levar adiante tal exercicio. Com o advento da Teoria da Relatividade, e de sua popularizacao em filmes tais como a série “De Volta para o Futuro”, de Spielberg, “O Exterminador do Futuro”, ou ainda “Em Algum Lugar no Passado”, comecamos a desenvolver a capacidade de aceitar essas abstracées, sem bloqueios exagerados, independentemente de serem elas corretas ou ndo, do ponto de vista cientifico. Talvez essas questées metodoldgicas fiquem mais claras se as explicarmos 4 medida em que nos envolve- mos com a analise do texto. Vamos, portanto, a ele. Abertura As cortinas se abrem — literalmente! — acompa- nhadas de relampagos, vozes, trovées, terremoto “e grande saraivada”. Imagine-se no lugar de Jodo, presenciando uma abertura como esta, com cortinas reais, som mais que estereofonico, terremotos, gritos e tudo 0 mais. Acho 0 clima fortissimo. E importante lembrar que ele nunca havia assistido a um filme de aventuras, em 70 mm, com 1000 watts de som estéreo dentro da sala, ou visto (e ouvido) um Jumbo levantar véo, da cabeceira da pista. Ainda assim, acho que Jodo presencia a uma cena mais forte que todas essas juntas. Nunca vi um teatro mani- pular o som do trovao, soltar raios de verdade e abrir as O Grande Conflito — 33 cortinas do céu, em meio a efeitos especiais tais como terremotos verdadeiros. Se estivesse no lugar de Jodo, eu estaria, no minimo, petrificado de pavor, perplexidade e angustia. Esta cena deveria ter uma plaquinha na porta, avisando a enfartados, safenados e pessoas im- pressionaveis sobre o risco que correriam de serem acometidos de mal stbito. Os Protagonistas Bem. Como em toda pega de teatro, comega-se 0 enredo com a apresentagao do ambiente, dos persona- gens e de um tema inicial, que, no caso, pretende oferecer um apanhado genérico do que se desenvolvera com maiores detalhes mais adiante. O primeiro elemento, que compora a cena heste grande palco é a arca da alianga, no seu santudrio. Uma apari¢ao quase “roubada" pelo vigor do contra-regra. Os comentaristas entendem que esse santuario é o templo, e a presenca da arca da Alianga, simboliza a presenca inequivoca de Deus. Concordo. Essa imagem, todavia, nao precisa se referir ao templo de Salomao, nas suas formas terrenas. Na verdade, creio que a cena esta mais proxima daquele templo a que Davi se refere no seu salmo 29: “... @no seu templo tudo diz: Gloria.”* Davi estava a beira do mar Mediterraneo assiste a uma fortissima tempestade que se aproxima da banda do sul. Para ele, extasiado com a grandiosidade da cena, aquilo nada mais é que uma demonstragao de poder e gloria do Altissimo. E entende todo aquele cenario como sendo o santuario de Deus’. Invejo muito esses poetas que tém capacidade de encontrar janelas dimensionais "Salmo 29:9 7Uma descricdo mais detalhada dessa compreensao pode ser encontrada em D'ARAUJO FILHO, Caio Fabio, Um Projeto de Espiritualidade Integral. Brasi- lia, Sido, 1988 [Teologia Pratical, p. 41. 34 — Meta-historia nas cenas mais inesperadas, e “ver” a gloria de Deus nas coisas da criagao. Voltemos ao nosso texto de Apocalipse. Parece que a inten¢ao do “diretor” da pega é produzir um clima de grandioso temor; apropriado para o que se vai revelar. Foi uma cena rapida, e logo o palco esta vazio, em meio a fumaga e escuridao. Jodo, com os ouvidos ainda zumbindo, e provavelmente ainda trémulo, nem percebe a mudanga de cenario, uma vez que ainda nao se recuperou do impacto inicial. A Trama Genérica O capitulo 12: 1-6 abre uma nova cena, cheia de movimento, alegoria, som e luz. Tudo é rapido, dramati- co. Ha gritos, gemidos, correria, persegui¢ao. Joao vé uma mulher, vestida do sol, sofrendo as dores de parto, gemendo, gritando, aflita, diante da ameaga de um grande e terrivel dragao vermelho, cheio de cabegas, chifres e uma grande ~auda, que a espreita para devorar-lhe o filho. Ela grita, se contorce, foge, e é perseguida pelo dragao. Mas o filho, ao nascer, é miraculosamente arrebatado para Deus, escapando, assim, das garras do dragao e a mulher foge para o deserto, onde se esconde por um periodo cifrado. Uma Primeira Parada Talvez seja hora de comecar a procurar saber 0 que nos revela este segmento inicial; 0 que temos até aqui. Para isso, vamos evitar, até onde possivel, nos envolver com a interpretagao da simbologia. Isso pode ser encontrado nos bons comentarios. Vamos nos ater a busca da compreensdo do sentido mais amplo do texto. Sobre esta mulher, diz-se pouco. Fala-se de sua vestimenta, de sua gravidez e do sustento que recebe no O Grande Conflito — 35 lugar que Deus lhe preparara no deserto, a salvo do dragao. Sobre este ultimo, surge uma descricao alegérica, e a informacao de que persegue, com faria, o filho da mulher, para devora-lo. Diz-se também, que sua cauda arrastou a terga parte das estrelas do céu, as quais lancou para a terra. Sobre o filho da mulher, além de seu arrebata- mento, diz-se que é um varao, que ha de reger todas as nagées, com cetro de ferro. Temos, em primeiro lugar, uma cena que se desenrola no céu. Os versos 11:19 e 12:1, 3e 4 repisam esse fato. Como que a dizer que esses fatos se dao em uma outra dimensdo da criacao de Deus (e aqui, comecamos atomar cuidado coma questao do “aqui” e “la”). Os versos 5 e 6, no entanto, referem-se a realidades tipicamente terrestres. Quando o verso 4 se refere ao filho da mulher, induz-nos a pensar que se trata do proprio filho de Deus, em sua gloria. Afinal, quem ha de reger as nagées com cetro de ferro? Em segundo lugar, temos uma ligacao daquelas cenas no céu com a nossa realidade na Terra. Esse elemento de ligacdo é 0 verso 4, que nos diz que a cauda do grande dragao arrasta a terca parte das estrelas do céu, as quais lanca para a terra. Vale notar que é na seqtiéncia desse fato que o dragao se posta defronte 4 mulher que estava para dar a luz, como que a insinuar que ela ja estivesse na terra, e que esse filho nasceria aqui. Ha, portanto, no verso 4, uma sutil mudanca “geografica” (se é que se pode utilizar 0 termo para coisas que se dao na dimensao eternidade) de cena.® “LADD, George. Apocalipse, Introduc&o e Comentario, Sao Paulo, Vida Nova/ Mundo Cristdo, 1984, entende que esta cena se da ainda no céu (ver p. 128). Isso somente reforca nossa tese de que o aspecto espacial precisa ser abstraido. 36 — Meta-histéria Terceiro, parece que a grande dificuldade de com- preensao deste texto reside na necessidade natural de colocar as coisas em termos de tempo, espaco e matéria —a tridimensao da natureza em que vivemos. Parece-me que aqui esse impulso atrapalha, pois os acontecimentos nao se limitam 4a historia e ao espago, mas os extrapolam. Essa dificuldade vai crescer no proximo segmento da narrativa. Finalmente, cabe perguntar: quem sdo esses per- sonagens? O que quer dizer tudo isso? Nao vamos nos alongar na andlise, para nao desviar nossa trajet6ria. Um bom comentario dira que o dragao é Satanas (Vv. verso 9); a mulher, o povo de Deus; as "estrelas do céu”, anjos, e o filho, Jesus Cristo. Com isso, o que temos até aqui é um conflito césmico, que acaba por envolver nossa realidade sensi- vel: um dragao enfurecido, rondando e aguardando o nascimento do filho de Deus para aniquila-lo. Esse Filho nasce no tempo (na nossa histéria), de um povo terrestre escolhido, apresentado em uma forma feminina — esta- ria preparando o terreno para o tema da noiva? A mulher, apés o parto, consegue se refugiar da ira do dragao, com a ajuda do proprio Deus. O Filho, por sua vez, também escapa da faria assassina, sendo arrebatado para Deus. A impressao que se tem é que este segmento de texto, até o verso 6, encerra todo um argumento do relato revelador. Como em Génesis 1 a 2:3, onde toda a historia da criagao é resumida para subseqiiente desenvolvimen- to. A partir dai, outras informacées se adicionarao, mas nao necessariamente na seqléncia cronolégica; pode envolver, inclusive, uma retomada. O fato é que cronolo- gia, aqui, atrapalha, ainda que nao consigamos nos desvencilhar dela todo o tempo. Que interessante! Um conflito cuja origem nao é aqui relatada. O texto nos abre o véu, mostrando a arca da alianca, que faz parte (até onde sabemos) da nossa O Grande Conflito — 37 histéria. Sabe-se que esses fatos iniciam-se fora do nosso tempo, em algum ponto (ponto seria um termo adequa- do?) da eternidade. Repentinamente, as coisas precipi- tam-se sobre nosso pequeno planeta, como que num descuido dos protagonistas em luta, mas na verdade como parte de uma logica ainda superior; talvez uma estratégia do Criador; e, num obscuro recanto da terra, se desenrola o epicentro desse embate titanico, que acaba por ser reconhecido por nés e contado entre nés como nossa propria historia. Acontecimentos que con- vulsionam de tal forma a historia dos homens, que nao lhes permite ficar alheios a tudo. Ao contrario, acabam por engajar-se, em um ou em outro lado (ou sao usados, por quem é afeito a esses recursos, como inocentes uteis). Nesse momento, pode-se dizer que a historia é uma s6: a nossa. Apenas nao a conhecemos toda. Guerra no Céu Apresentado o enredo genérico, abre-se nova cena, na qual se tentardo esclarecer os detalhes do que ja se adiantou. E cena de guerra. Guerra no céu (v. 7). Os protagonistas sdo apresentados ja em acao: 0 Arcanjo Miguel e seus anjos contra o dragaéo e seus seguidores. Que seguidores sao esses? Bem, somos levados a crer que sejam aquela terca parte das estrelas que o dragao arrasta com sua cauda para a terra. Nao sei o que dirao as autoridades no assunto, mas me parece licito crer que se refira a uma propor¢ao do total dos anjos criados pelo Senhor. O desenlace é anunciado logo em seguida (v. 8): Miguel e suas hostes vencem e expulsam o grande dragao, que passa a ser chamado pelos seus varios nomes: antiga serpente, diabo e Satanas. Num impulso de maior precisao o texto ainda apresenta o principal trago do seu carater: o de seduzir (enganar, em outras vers6es) 0 mundo. Derrotado, ele é expulso para a terra,

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