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3 OS TRES ALENCARES O desejo de escrever romances veio por duas etapas a José de Alencar. Aos quinze anos, em Sao Paulo, ainda estudante de preparatorios, lendo Chateaubriand, Dumas, Vigny, Hugo, Balzac, imagina um livro que fosse, como os dos franceses, um “poema da vida real”. Aos dezoito, viajando pelo Ceara e observando as suas paisagens, sente 0 impulso de cantar a terra natal — “uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com 0 primeiro broto do Guarani ou de Iracema"’. Scott, Cooper e Marryat seduzem-no ento completamente, arrastando-o para a linha da peripécia e da fuga ao quotidiano, que procura, durante quatro anos de esforco, exprimir n'Os contrabandistas, inacabado e infelizmente perdido.” A estréia se dé aos vinte e sete com Cinco Minutos, série de folhetins do Correio Mercantil em que esboca o primeiro dos “poemas da vida real’. O Guarani, publicado no mesfiio jornal a medida que ia sendo escrito, em trés répidos meses de 1857, € um largo sorvo de fantasia, que realiza talvez com maior eficiéncia a literatura nacional, americana, que a opiniao literdria nao cessava de pedir e Gongalves de Magalhaes tentara n'A Confederacao dos Tamoios. Toda a sua obra, por vinte anos, sera variacdo e enriquecimento dessas duas posig6es iniciais: a complication sentimentale, tenuemente esbocada em Cinco Minutos e A Viuvinha, e a idealizagao herdica d'O Guarani, De 1857 (0 ano mais fecundo de sua vida) a 1860, ocupa-se com o teatro, voltando ao romance apenas em 62, com Lucfola, onde se nota a marca da experiéncia teatral na firmeza do didlogo, o senso das situagdes reais e o gosto pelo conflito psicolégico, que fazem deste um dos trés ou quatro livros realmente excelentes que escreveu. Diva, de 63, pouco, ou nada vale, mas As Minas de Prata, comecadas ao tempo d’O Guarani e escritas na maior parte de 64 a 65, denotam capacidade de fabulagéo e seguranga narrativa que até hoje nos prendem. Contrastando as suas linhas puras e delicadas com esse vasto andaime, fracema, em 65, brota, no limite da poesia, como o exemplar mais perfeito da prosa poética na ficgdo romantica — realizando 0 ideal tio acariciado de integrar @ expressio literdria numa ordem mais plena de evocagdo plastica e musical. Musica figurativa, ao gosto do tempo e do meio. 6. José Alencar, Como e por que Sou romancista, cit. pags. 31, 35:37, 38.41. 200 Castro Alves (Cortesia da Biblioteca Nacional). Varela (Cortesia da Biblioteca Nacional), A partir de 1870, estimulado por um contrato com a Livraria Garnier, publica em seis anos doze romances ¢ um drama, sem contar os que deixou inacabados. O décimo terceiro, Encamnagdo, escrito no ano em que morreu, 1877, foi publicado mais tarde. Tera sido nessa fase que imaginou dar a sua obra um sentido de levantamento do Brasil, como deixa indicado no prefacio de Sonhos d'Ouro. 0 fato é que cultiva entao 0 regionalismo — descricdo tipica da vida e do homem nas regides afastadas — com O Gaticho (1870) continuando-o n’O Sertanejo (1875). A Pata da Gazela (1870), Sonhos d’Ouro (1872) e Senhora (1875) sio romances da burguesia carioca, ao primeiro dos quais, estudo curioso de fetichismo sexual, faltou musculo para ser um bom livro; o ultimo, apesar de desigual, é excelente est:do psicolégico. A Guerra dos Mascates, (1870) é um romance histdrico cheio de alusdes a politica do Império, muito mais cuidado documen- tariamente, muito mais “arranjado” como composigao que As Minas de Prata; mas nao tem a sua inspiracao e vigor narrativo. O Garatuja, O Ermitdo da Gloria e Alma de Lazaro (1873), formam no conjunto os Alfarrdbios baseados em tradigdes do Rio, valendo o primeiro por um certo humorismo. O Tronco do Ipé e Til (1872) inauguram 0 romance fazendeiro, a descricao da vida rural ji marcada pelas influéncias urbanas. Em Ubirajara (1874) tenta de novo o indianismo, desta vez na fase anterior ao contacto do branco e requintes mais eruditos de reconstitui¢ao etnografica, talvez para responder as criticas de Franklin Tavora, 0 Sempr6nio das Cartas a Cincinato, Desses vinte e um romances, nenhum é péssimo, todos merecem leitura e, na maioria, permanecem vivos, apesar da mudanca dos padrées de gosto a partir do Naturalismo. Dentre eles, trés podem ser relidos & vontade e o seu valor tenderé certamente a crescer para 0 leitor, 4 medida que a critica souber assinalar a sua forca criadora: Luciola, Iracema e Senhora. Hé outros que constituem uma boa segunda linha, como 0 Guarani, Mais do que isso nao convém dizer, porque a variedade da obra de Alencar é de natureza a dificultar a comparacio dos livros uns com os outros. Basta com efeito atentar para a sua gloria junto aos leitores — certamente a mais sdlida de nossa literatura — para nos certificarmos de que h4, pelo menos, dois Alencares em que se desdobrou nesses noventa anos de admiragio: o Alencar dos rapazes, herdico, altissonante; o Alencar das mocinhas, gracioso, as vezes pelintra, outras, quase tragico. Heroismo e galanteria Sob o primeiro aspecto a sua obra significa, em nosso Romantismo, o advento do herdi, que a poesia nao pudera criar na epopéia neoclissica, ou no préprio Goncalves Dias. Peri, Ubirajara, Esticio Correia (As Minas de Prata), Manuel Canho (O Gaticho), Arnaldo Louredo (O Sertanejo), brotam como respostas a0 desejo ideal de heroismo pureza a que se apegava, a fim de poder acreditar em si mesma, uma sociedade mal ajustada, em presa a lutas recentes de crescimento politico. No meio de tanta revolucéo sangrenta (cada uma das quais, depois de sufocada, ficava como marco de uma liberdade perdida, de uma utopia cada vez mais remota); em meio a penosa realidade da escravidio e da vida didria — surgia a visio dos seus imaculados Parsifais, puros, inteiricos, 201 imobilizados pelo sonho em meio & mobilidade da vida e das coisas. Por corresponderem a profunda necessidade de sonho os seus livros ficaram, para sempre, no gosto do publico. Se Alvares de Azevedo exprime o aspecto dramatico, dilacerado, da adolescéncia, esta parte da obra de Alencar exprime a sua vocacdo para a fuga do real. Nos romances herdicos — 0 Sertanejo, O Gaticho, Ubirajara, As Minas de Prata, sobretudo O Guarani — a vida aparece subordinada & manifestagao de personalidades inteiricas. A vida corrente, a das Memsrias de um Sargento de Milictas, obriga o personagem a dobrar, amoldarse, recuar; a sofrer 0 medo, os maus desejos; a praticar atos dubios ou degradantes; obrigao a tudo a que estamos obrigados. Mas a vida no romance heréico é aparada, aplainada, a fim de que o herdi caminhe numa apoteose sem fim. Os monstros, os vildes, os perigos, so parte do jogo e apenas aparentemente o constrangem; na verdade, a luta é combinada como em certos tablados de box, ¢ o heréi ndo pode deixar de vencer; mesmo se 0 triunfo final ndo Ihe pertence, pode sempre dizer, como Aramis a D’Artagnan: “Os homens como nés $6 morrem saciados de gloria e jubilo”. A vida, artisticamente recortada pelo romancista, sujeita-se docilmente a um padrao ideal e absoluto de grandeza épica, pois no mundo falaz do adolescente, onde tudo ¢ possivel, a légica decorre de principios soberanamente arbitrarios. Se aceitarmos de inicio o carater excepcional de Arnaldo Louredo, nao oporemos nenhuma objegao ao vé-lo dormir na copa da mais alta drvore da mata, com uma onga no galho inferior; tampouco a descida de Peri no preciptcio, & busca do escrinio de Cecilia. Uma vez embalado, 0 sonho voa célere sem dar satisfagdes 4 vida, a que se prende pelo fio ténue, embora necessério, da verossimilhanca literdria. Esta forca de Alencar —o tinico escritor de nossa literatura a criar um mito heréico, © de Peri — tornou-o suspeito ao gosto do nosso sécullo, Nao seré de fato escritor para a cabeceira, nem para absorver uma vocacao de leitor, mas nao aceitar este seu lado épico, ndo ter vibrado com ele, é prova de imaginacao pedestre ou ressecamento de tudo 0 que em nés, mesmo adultos, permanece verde e flexivel, Assim como Walter Scott fascinou a imaginagéo da Europa com os seus castelos ¢ cavaleiros, Alencar fixou um dos mais caros modelos da sensibilidade brasileira: o do indio ideal, elaborado por Goncalves Dias, mas langado por ele na prépria vida quotidiana, As Iracemas, Jacis, Ubiratis, Ubirajaras, Aracis, Peris, que todos os anos, hé quase um século, vio semeando em batistérios e registros civis a “mentirada gentil” do indianismo, traduzem a vontade profunda do brasileiro de perpetuar a convencao, que dé a um pais de mesticas o alibi duma raga herdica, ¢ a uma nagdo de histéria curta, a profundidade do tempo lendario. Debaixo das barbas neurasténicas e petulantes do Conselheiro Alencar, velho precoce, facil triunfador num Estado de facilidades, reponta a s6frega adolescéncia de todos os tempos, nossa e dele préprio, tio encartolada, abafada antes da hora. Reponta a aspiracdo de herofsmo e o desejo eterno de submeter a realidade ao ideal. Quem j4 achou necessdrio indagar a vida interior de Peri ou queixar-se do primarismo do vaqueiro Arnaldo? £ como estao que devem permanecer, puros e eternos, admiraveis 202 bonecos da imaginacéo, realizando para nés o milagre da invioldvel coeréncia, da suprema liberdade, que s6 se obtém no espirito e na arte. “Ubirajara travou do arco de Itaqué e desdenhando fincéo no cho, elevoue acima da fronte; a flecha ornada de penas de tucano partiu (...) Ubirajara largou 0 arco de Itaqué para tomar o arco de Camaca. A flecha araguaia também partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava & terra. As duas setas desceram trespassadas uma pela outra como os bracos de um guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade. Ubirajara apanhou-as no ar: — Este é 0 emblema da unio. Ubirajara fara a nacdo Tocantim to poderosa como a nagdo Araguaia, Ambas serio irmas na gléria e formaréo uma s6, que ha de ser a grande nag&o de Ubirajara, senhora dos rios, montes ¢ florestas”. Nessa fusio de duas nagdes guerreiras, gracas 4 energia superior de um homem, esté o dpice do heroismo de Alencar; e a imaginagio adolescente (nao forgosamente dos adolescentes) sobe com as flechas e vem parar, com elas, no simbolo do supremo vigor, © boneco Ubirajara, heréi sem vacilagées, mais hirto que Peri na sua inteireza de animo. Bem diverso é o Alencar das mocinhas ~ criador de mulheres cdndidas e de mogos impecavelmente bons, que dangam aos olhos do leitor uma branda quadrilha, ao compasso do dever e da consciéncia, mais fortes que a paixdo. As regras desse jogo bem conduzido exigem inicialmente um obstaculo, que ameace a unio dos namorados, sem contudo destrufla: tuberculose, em Cinco Minutos; honra comercial, n’A Viuvinha; orgulho, em Diva; erro sentimental, n’A Pata da Gazela; fidelidade a0 pasado, n’O Tronco do Ive; tespeito & palavra, em Sonhos d'Ouro. Em todos esses livros, salvo O Tronco do Ipé, 0 fulcro de energia narrativa € sempre a mulher, desde as evanescentes € apagadas, como a viuvinha, até a imperiosa Diva, que procura compensar a fraqueza e desconfianga de menina feia, tornada de repente bonita, por meio duma desequilibrada energia. Delas todas, porém, apenas a Guida de Sonhos d’Ouro se destaca, na equilibrada dignidade de mulher de gosto e carater, que “sentia, como toda moga bonita, 0 desejo inato de ser castamente admirada”. E de notar-se que nos romances de que os homens sio foco — os romances do sertao — Alencar nao apela para o desfecho da uniao feliz. A palmeira do Guarani desaparece sem deixar vestigios; Amaldo, n’O Sertanejo, continua servindo a dama inaccessivel; Manuel Canho, n’O Gaiicho, precipita-se no abismo enlacado 4 amada que lhe roubaram_ — como se a fibra herdica ficasse mais convincente posta acima da harmonia sentimental dos romances urbanos, nos quais a rusga ou a barreira ndo passam de preambulo daquelas cenas de entendimento final, onde surge, triunfante e cheio de cortinados, o “ninho de amor em que 0 bom gosto, a elegancia ¢ a singeleza tinham imprimido um cunho de graca e distin¢io que bem revelava que a mao do artista fora dirigida pela inspiragao de uma mulher” (A Viuvinha). Nos seus livros sentimos aquele desejo de refinada elegancia mundana, que a presenga da mulher burguesa condiciona no romance “de salo” do século XIX. 203 Temas profundos Todavia, hé pelo menos um terceiro Alencar, menos patente que esses dois, mas constituindo nao raro a forga de um e outro. E 0 Alencar que se poderia chamar dos adultos, formado por uma série de elementos pouco herdicos e pouco elegantes, mas denotadores dum senso artistico e huinano que d4 contorno aquilino a alguns dos seus perfis de homem e de mulher. Este Alencar, difuso pelos outros livros, se contém mais visivelmente em Senhora e, sobretudo, Luciola, tnicos livros, em que a mulher e o homem se defrontam num plano de igualdade, dotados de peso especifico e capazes daquele amadurecimento interior inexistente nos outros bonecos e bonecas. A Berta, de Til, tem algo dessa densidade humana, que encontramos também num esboco de grande personagem novelesco — 0 jesuita Gusmao de Molina, d’As Minas de Prata. Dessa energia dao testemunho certos rasgos atrevidos, como a orgia vermelha de Luciola, a paixdo mérbida de Horacio de Almeida por um pé, n'A Pata da Gazela, ou 0 cretino epiléptico de Til, Bras, descrito com sangue frio naturalista. Assim, o impulso herdico e a quadrilha idealizada dos romances de salao — um sobrevoando o quotidiano, outro retocando-o, — se aprofundam por terceira dimensao, que corresponde, na exploracdo da alma, ao mesmo desejo de coisa nova e liberdade de gestos, que o levaram a buscar meios os mais diversos para cendrio da sua obra. Mais importantes, todavia, do que os ambientes, sio as relagdes humanas que estuda em fungio deles. Como em quase todo romancista de certa envergadura, hd em Alencar um socidlogo implicito. Na maioria dos seus livros, 0 movimento narrativo ganha forca gracas a0s problemas de desnivelamento nas posigdes sociais, que vao afetar a propria afetividade dos personagens. As posigdes sociais, por sua vez, estio ligadas ao nivel econémico, que constitui preocupagio central nos seus romances da cidade e da fazenda. Apenas no primeiro, Cinco Minutos, tudo corre como se 0 dinheiro fosse um dado implicito, os personagens agindo independentemente dele. Nos outros, 0 conflito da alma dos protagonistas com as possibilidades materiais é basico no encaminhamento da ago. A sociedade brasileira Ihe aparece como campo de concorréncia pela felicidade e 0 bem-estar, onde a seguranga, a solidez, se encarnam em dois tipos: 0 comerciante € 0 fazendeiro. O mogo de talento, que nos seus livros parte sempre a busca do amor e da consideragio social, tem pela frente o problema de ascender & esfera do capitalista sem quebra da vocacao. Posto entre Deus e Mamon, salvao sempre a intervencao do romancista, que 0 livra de apuros da melhor maneira, casando-o com a filha do ricago (Diva, Pata da Gazela, Tronco do Ipé, Til, Sonkos d’Ouro), Todavia, num romance do comego e outro do fim — Viuvinka e Senhora — Alencar toca mais diretamente na questi da consciéncia individual em face do dinheiro. O primeiro é a histéria dum rapaz falido, que morre alguns anos para o mundo a fim de arranjar meios de saldar os compromissos e restaurar o seu nome: uma pequena aquarela balzaquiana, cheia de ligdes para a psicologia e a seviologia do nosso romancista. 204 O drama do jovem sensivel em face da sociedade burguesa é, de fato, a contradicao entre a necessidade de obter pectinia (critério supremo de selecdo social) ea de preservar as disponibilidades para a vida do espirito. Se escolher o dinheiro, deverd ganhélo sem tréguas, como, no tempo de Alencar, os caixeiros e tropeiros, que terminavam bardes e comendadores na maturidade. O bario de Sai (Sonhos d’Ouro) ‘‘comecara a vida como tocador de tropa’”e “em uma de suas viagens & corte arrumou-se de caixeiro no armazém de mantimentos do consignatario. Aos cingiienta anos achousse (..) possuidor de algumas centenas de contos; e convencido que nao era préprio de um grande capitalista chamar-se pela mesma forma que um moco tropeiro, trocou por um titulo & toa o nome que valia um brasao”. “0 visconde de Aljuba comecara a sua vida mercantil na escola, onde exercia o mister de belchior”; mais tarde arranjou ele uma espelunca chamada casa de penhor, onde emprestava dinheiro especialmente aos pretos quitandeiros”. Uma vida inteira de aplicacao, portanto, que no Ocidente capitalista acabou por transformar- se em verdadeira ascese pelo avesso e acarreta o abandono do sonho e da utopia. O jeito de remediar é a alienagdo da consciéncia, que nos mitos medievais foi a venda da alma ao diabo e, na sociedade burguesa, veio a ser a prostituigao da inteligéncia ou do sentimento. Carreirismo politico nuns casos, casamento com herdeira rica, noutros. N’A Viuvinha, Alencar quis superar tudo e fazer o herdi rico, feliz e honesto, na flor da mocidade. Condensou, ento, em cinco anos, o que demanda uma vida de trabalho, fazendo Jorge da Silva retirar-se do mundo e aplicar-se ao comércio com fervor monéstico, na porfia de resgatar a firma do pai. “O seu aposento era de uma pobreza e nudez que pouco distava da miséria’. Esta reclusao porém, nao se repete nos outros livros, em que os personagens nao suspendem provisoriamente a vida para liquidar 0 problema financeiro. Em Senhora, resolve, mesmo, largar um pouco o herdi e em vez de casé-lo com a herdeira rica, o faz vender-se a uma esposa miliondria. Fernando Seixas é um intelectual elegante e pobre, que, incapaz da ascese comercial de Jorge da Silva, resolve o problema da posicdo social trocando por cem contos a liberdade de solteiro numa transa¢do escusa. “A sociedade no meio da qual me eduquei, fez de mim um homem 4 sua feigdo (...} Habitueime a considerar a riqueza como a primeira forga viva da existéncia, e os exemplos ensinavam-me que o casamento era meio téo legitimo de adquiri-la, como a heranga de qualquer honesta especulagao”’. Alencar sentiu muito bem a dura op¢o do homem de sensibilidade no limiar da competicao burguesa. Nao tinha, contudo, o senso stendhaliano e balzaquiano do drama da carreira, nem a ascensao, na sociedade em que vivia, demandava a luta dspera de Rastignac ou Julien Sorel. Por isso, gjeitou quase sempre os seus herdis com paternal solicitude, sem mesmo hes ferir a susceptibilidade; em Sonhos d’Ouro por exemplo, faz Guida ¢ 0 pai auxiliarem Ricardo sem que este perceba. Como bom romantico, procura sempre preservar a altivez e a pureza dos herdis, levando-os ao casamento rico por meio dum jogo habil de amor, constincia e inocéncia, que tornariam inoperante a acusacao de interesse. Com efeito, no casamento de Augusto Amaral com Diva (Diva), no de Mario com Alice (O Tronco do Ipé}, no de Miguel com Linda (7i/), no de Leopoldo com Adelaide (A Pata da Gazela) — quem ousaria falar noutra coisa sendo “o mais verdadeiro, 0 mais santo amor’? O 205, certo, entretanto, é que 0s rapazes so todos pobres e as amadas muito ricas, filhas de grandes comerciantes e fazendeiros. A capacidade de observagio levou 0 romancista a discemnir 0 conflito da condicao econdmica e social com a virtude, ou as leis da paixdo; © Seu idealismo artistico levou-o a atenuar o mais possivel as conseqiiéncias do conflito, inclusive no happy-end da forte historia de conspurcacdo pelo dinheiro, que ¢ Senhora. Desniveis Esta diferenca de condigées sociais é uma das molas da fic¢do de Alencar, correspon dendothe, no terreno psicoldgico, uma diferenca de disposigdes e comportamentos, que é aesséncia do seu processo narrativo. Pelo fato de serem pobres ou socialmente menos bem postos, os seus galis nunca enfrentam as herofnas no mesmo terreno: ou se acachapam de algum modo ante elas, como o Augusto Amaral de Diva e 0 Leopoldo d” A Pata da Gazela; ou as tratam com altiva reserva, como Ricardo, em Sonhos d’Ouro @ Mario, n’O Tronco do Ipé. Este segundo caso € 0 do orgulho peculiar ao “jeune homme pauvre”, da literatura romantica, prolongado até hoje pela literatura de carregagio e as novelas para mocas, Vale a pena, neste sentido, observar que apenas um gala de Alencar — um gala vencido ao cabo do livro — trata as heroinas com certa naturalidade superior : Horacio, d'A Pata da Gazela, rico e desocupado, A diferenca de situagio, como elemento dindmico na psicologia e na propria composigio literdria é, alids, peculiar a toda a sua obra, ultrapassando os limites dos romances urbanos e de fazenda. N’O Sertanejo, a posicéo subordinada do vaqueiro Arnaldo, afastando a propria idéia da unido a Dona Flor, determina o seu herofsmo, que aparece como necessidade de compensag&o, assumindo aos poucos um carater tiranico de vigilincia, que imobiliza finalmente o destino da moga. N'O Guarani, a diversidade, mais que de posigio, é quase de natureza, entre a fidalga loura e 0 indio selvagem. Se nos lembrarmos, em Luciola, da inviabilidade das relagdes normais entre um jovem ambicioso de boa familia e uma meretriz; se nos lembrarmos do conflito, em Senhora, do grande amor de Aurélia com a vergonhosa transa¢do que pde Fernando a sua mercé, veremos que os seus melhores livros sio aqueles em que 0 conflito é maximo; nos quais 6 pode haver happy-end gracas a um expediente imposto 4 coeréncia da narrativa, como em Senhora; e que deixam um sulco de melancolia no espirito do leitor. Profundamente romantico, Alencar parece mais senhor das suas capacidades criadoras. nas situacdes mais dramaticamente contraditérias. Aste desnivel da situacao, ver juntar-se outro, na concepgdo literdria: odo presente e do passado. Uma simples vista de olhos em sua obra mostra o papel decisive do passado, como elemento condutor da narrativa e critério de revela¢ao psicolégica dos personagens. J4 em Viuvinha dois passados determinam o destino de Jorge: o honrado, de seu pai, e 0 seu, eivado de fraquezas que virdo pedir-lhe contas numa hora decisiva, encurralandoo na respeitabilidade burguesa. No Guarani, quase todo o elemento romanesco repousa sobre Loredano, que é, por assim dizer, 0 amarrilho das meadas, ora, Loredano é um desses escravos da vida anterior, que povoam a ficgio romantica 206 de tenebrosas possibilidades de crime e de mistério. Esta vocacao romantica foi ao auge em dois livros: As Minas de Prata e Encarnacdo. Naquele, 0 presente é governado, asso a passo, pelas coisas que foram: o segredo de Robério Dias pairando sobre tudo; a vida de Gusmao de Molina; a de D. Diogo de Mariz; até 0 stmbolo duma era perdida que € 0 velho Pajé, Neste, a heroina se substitui praticamente & esposa morta de Hermano, que, petrificado emocionalmente pela lembranga das primeiras nupcias, recusa a nova experiéncia na sua integridade, tentando reviver em Amalia a imagem obsessiva de Julieta. Em Lucfola, a situagio ¢ mais complexa, superando este jogo facil de cordéis. A pureza da infancia; 0 sacrificio da honra satide do pai; a brutalidade fria com que é violada, condicionam toda a vida de Liicia. A lembranga de uma inocéncia perdida € ndo apenas possibilidade permanente duma pureza futura, (que desabrocha ao toque do amor), mas a propria razdo do seu asco a prostituigdo. A vigorosa luxtiria com que subjugava os amantes € um recurso de ajustamento por assim dizer profissional, que consegue desenvolver, uma espécie de autoatordoamento; quase de imposigao, a si mesma, duma personalidade de ircunstancia que se amoldasse 4 lei da prostituicdo, preservando intacta a pureza que hibernava sob o estardalhago da mundana. Por outras palavras, a sua sensualidade desenfreada nos aparece como técnica masoquista de reforco do sentimento de culpa, renovando incessantemente as oportunidades de autopunigdo. Este processo psiquico, admiravelmente tocado por Alencar no mais profundo de seus livros, reduz-se— em termos da presente andlise ~ a uma dialética do passado e do presente, cujo desfecho é a redengio final, $6 mesmo a obsessio clentifizante do naturalismo pode explicar a cincada de Araripe Junior, ao analisar como caso de ninfomania esse vislumbre do que seria, n’O Idiota, o drama de Nastasia Filipovna. N'‘O Gaticho, a infancia e a mocidade de Manuel Canho sao condicionadas pela impressio do assassinio do pai e do desejo de vingélo. E preciso assinalar, neste livro aparentemente plano, e sem diivida mediocre, o inesperado fator edipiano que explica a misoginia e aspereza de Manuel, respeitoso, mas surdamente revoltado contra a mie, que desposara, pouco depois de vitiva, o involuntdrio causador da morte do marido. A discrigio de Alencar é nao obstante suficiente para crispar a narrativa, Til e O Tronco do Ipé decorrem direta, e quase simploriamente, da mancha no passado dos dois fazendeiros: Luis Galvao e o Bardo da Espera. No primeiro, encarna-se em Pai Benedito, testemunho das geragdes que passam; no segundo, é 0 alimento de cada pagina, simbolizado na loucura da velha escrava, Zana, e na revolta que leva Jodo Fera ao banditismo. Em Sonkos d’Ouro Ricardo age, no presente, em fungao do compromisso com Bela; desfeito este, assume a atitude romanesca de Ihe dar validade perene, cravando o passado na trama da vida quotidiana, apegando-se 4 beleza da fidelidade e gozando o préprio sacrificio, como ferida que se porfia em lacerar. Essa presenga do passado, na interpretagio da conduta e na técnica narrativa, representa de certo modo, no romance de Alencar, a lei dos acontecimentos, a causagao 207 dos atos e das peripécias, que os naturalistas pesquisardo mais tarde no condiciona- mento biolégico. Para o Romantismo, tanto os individuos quanto os povos sao feitos da substincia do que aconteceu antes; e a frase de Comte, que os mortos governam os vivos, exprime esse profundo desejo de ancorar o destino do homem na fuga do tempo. Desarmonias Outro fator dinamico na obra de Alencar é a desarmonia, o contraste duma situagao, duma pessoa ou dum sentimento normal, e tido por isso como bom, com uma situacao, pessoa ou sentimento discordante. Sob a forma mais elementar, é 0 choque do bem e do mal. Ja vimos que n’O Guarani a perversidade de Loredano dinamiza o livro; sem ele no haveria drama, como nao haveria n’As Minas de Prata sem o Padre Gusmao de Molina, que tece praticamente todos os empecilhos desse livro fecundo em acontecimentos. Em Luctola, a luxdria do velho Couto, e mais tarde a pratica do vicio, torcem a personalidade de Luicia, Diva é uma longa e mondtona luta interior da moca — entre 0 orgulho, que estimula 0 sadismo, e o amor, que finalmente a salva. Til € uma exibigio de malvados, a partir duma vilania inicial, formando roda em torno da bondade e da inocéncia. N’O Sertanejo, 0 entrecho decorre das perfidias do capitio Fragoso — 0 Reginald Frontde-Boeuf deste romance calcado no arcabouco do Ivanhoé. ‘A forma refinada desse sentimento da discordancia é certa preocupagio com o desvio do equilibrio fisiolégico ou psiquico. Relembrese a depravagdo com que Lticia se estimula e castiga ao mesmo tempo, e cujo momento culminante é a orgia promovida por S4— orgia espetacular, com tapetes de pelticia escarlate, quadros vivos obscenos, flores e meia luz, ultrapassando pelo realismo qualquer outra cena em nossa literatura séria, Relembrese, em Til, 0 cretino epiléptico e cruel, rojando em crises a cada momento, desmanchando a elegancia burguesa dos almogos da familia Galvao com a sua ruidosa pore 0 fetichismo sexual de Horacio, n’A Pata da Gazela, é talvez a manifestagao mais flagrante desse aspecto de Alencar. Cansado de amar normalmente, Hordcio se apaixona por um pé, a ponto de desprendélo de todo resto do corpo e mudar de amor quando Supde que errara quanto 4 dona, Em sua casa (como exemplo citado em livros de sexologia), tem o sapatinho numa almofada vermelha, sob redoma de vidro. E ao acabar aleitura, embora sintamos a relativa argucia do autor, imaginamos, pesarosos, que conto nao teria aquilo rendido nas maos de Machado de Assis. Em Senhora — para dar um ultimo exemplo -- a compra do ex-noivo pela menina pobre e humilhada, agora grande dama miliondria, sendo um truque habilidoso de romancista de salao é, psicologi- camente, profundo recurso de andlise. Gragas & situagio anormal e constrangedora que determina, reponta, sob a grandeza de alma e o refinamento de Aurélia, um estranho recalque sddico-masoquista, dando musculo e relevo a um entrecho que, sem ele, talvez nao fosse além de Diva ou Senhos d’Ouro. 208 A forga do romancista Assim, sob varios aspectos — uns convencionais, outros mais raros; uns aparentes, outros virtuais ~ sentimos em Alencar a percepcdo complexa do mal, do anormal ou do recalque, como obstaculo a perfeigéo e como elemento permanente na conduta humana. £ uma manifestagéo da dialética do bem e do mal que percorre a ficgdo romantica, inclusive a nossa. No menos caracteristico Manuel Antonio de Almeida, vimos que nio existe; em Bernardo ela se atenua, sob a influéncia de um otimismo natural e sadio. Em Teixeira e Sousa e em Macedo, aparece como luta convencional dos contrarios, para atingir, em Alencar, a um refinamento que pressagia Machado de Assis. Por isso, a sua galeria de tipos é varia e ampla. Afrontando o possivel ridiculo, poderiamos dividilos em trés categorias: os inteiricos, os rotativos e os simultaneos... Inteirigos sao D, Anténio de Mariz, Loredano, Peri, Arnaldo, (O Sertanejo), Ricardo (Sonhos d’Ouro), Ribeiro Barroso, (Til), — sempre os mesmos, no bem e no mal, inteiramente fixados duma vez por todas pelo autor; so os que predominam em sua obra. Em seguida vém os rotativos, ou seja, os que passam do bem para o mal, ou do mal para o bem. Exemplos tipicos: Jodo Fera, de Til, que passa de bom a vilao com a desgraca de Besita; depois, de vildo a bom, gracas a bondade evangélica de Berta; Gusmao de Molina, de doidivanas a jesuita sinistro, daf a santo ermitao; Diva, de feia e meiga a bonita e md; depois, meiga de novo; e muitos outros. Os simultaneos sao aqueles em que o bem € ‘omal perdem, praticamente, a conota¢do simples com que aparecem nos demais, cedendo lugar & humanfssima complexidade com que agem: Lucia e Paulo Silva (Lucfola), Aurélia e Fernando Seixas (Senhora); um pouco, a Guida de Sonhos d’Ouro, Isto néo quer dizer apenas que Alencar foi melhor romancista ao crié-los, pois a simplificacao dos demais corresponde a outro tipo de ficcdo; mas que foi capaz de fazer literatura de boa qualidade tanto dentro do esquematismo psicolégico quanto do senso da realidade humana. Por estender-se da poesia ao realismo quotidiano, e da visio herdica 4 observacao da sociedade, a sua obra tem a amplitude que tem, fazendo dele ‘© nosso pequeno Balzac. No romantismo, é 0 grande artista da ficgio, dotado no apenas da capacidade basica da narrativa como do senso apurado do estilo. Neste setor os seus defeitos séo os do tempo. Menos independente do que Manuel Anténio de Almeida, o seu fom nao aberra das normas contempordneas: abusa por vezes da descrigio, como no Gaticho; e da leitura dos folhetins guardou um amor constante pela peripécia espetacular, o jogo arbitrério dos cordéis. Costa de revelacdes surpreendentes, como a filiagao de Berta, em Til, 0 falso suicidio de Jorge, n'A Viuvinka, o passado monacal de Loredano. Gosta de espraiar-se em consideragGes gerais; mas apenas de passagem, ¢ freqitentemente com ironia, assume o tom sentencioso. E se por um lado tenta preservar a purezae a sanidade das relagdes dos seus herdis, observa, por outro, fidelidade realista quando é preciso. “Sempre tive horror as reticéncias (diz 0 narrador de Lucfola); nesta ocasiéo antes queria desistir do meu propésito, do que desdobrar aos seus olhos esse véu de pontinhos, manto espesso, que para os severos moralistas da época aplaca todos os escrupulos, ¢ 209 que em minha opinido tem o mesmo efeito da mascara, o de agucar a curiosidade”. Por isso, falando de certos aspectos da prostituicdo tem a frase seguinte: “é a brutalidade da jumenta ciosa que se precipita pelo campo, mordendo os cavalos para despertarlhes 0 tardo apetite”. E na descrigéo dos amores de Liicia e Paulo, vai tio longe quanto € possivel. Quando, porém, idealiza, pende para o extremo oposto, Hé nos seus livros o impudor muito romantico de ostentar e acentuar sentimentos ébvios: mies, pais, irmaos, sio amados com uma veeméncia que anula as penumbras da afetividade, como se o romancista quisesse pagar tributo a instituigdo da familia pela hipertrofia das suas relagdes basicas. “Nesta irma tinha ele resumido todas as afeigdes da famflia, prema- turamente arrebatada & sua ternura; 0 amor filial, que nao tivera tempo de expandir-se, a amizade de um irmo, seu companheiro de infancia, todos esses sentimentos cortados em flor, ele os transportara para aquele ente querido, que era a imagem de sua mae” (A Pata da Gazeta). Também a paixio descrita pelo mesmo processo, de tal forma, que respiramos aliviados quando Paulo Silva ofende e tortura Lucia, desrespeitando-a com egoismo masculino; ou quando 0 amor de Fernando Seixas ¢ abafado pela vaidade e o interesse. A forca de Alencar fica provada pelo fato de ainda estimarmos os seus livros apesar do agucaramento, que acabou por enfastiar, ao fim de duas geracoes. Os seus didlogos, na maioria excelentes quanto & distribuicdo e & dosagem, denotam igual tendéncia para idealizar. Talvez correspondam ao esforco de dar estilo e fom a uma sociedade de hdbitos pouco refinados, composta na maioria de comerciantes enriquecidos ou provincianos em pleno ajustamento. As cenas mundanas, as conversas, parecem ter poucas rafzes na realidade de cada dia, sendo uma espécie de convengio literdria calcada nas crdnicas sociais do tempo. Mas superados estes obstaculos & nossa acomodacio, poderemos sentir o seu excelente e variado estilo, como aparece princi palmente n’O Guarani, Iracema, Luctola, Senhora e O Sertanejo. Na lingua d’O Guarani ainda hi um pouco da deslumbrada faciindia de quem descobre uma férmula de prosa; dai, em mais dum passo, algum desfibramento do estilo, que, embora belo, tem menos mordente do que terd em Luciola, e menos densidade lirica do que em Iracema. Em nenhum outro, porém, aparece melhor o trabalho de visualizagio artistica, compondo uma atmosfera de cores, formas e brilhos para celebrar a poesia da vida americana. Alids, seu exaltado senso visual era quase sempre diretamente descritivo, construindo por vezes certas visdes sintéticas de um luminoso impressionismo: “Nao me posso agora recordar as minticias do traje de Lucia naquela noite. O que ainda ‘vejo neste momento, se fecho os olhos, so as nuvens brancas e nitidas que se frocavam Sraciosamente, aflando com o lento movimento de seu leque: 0 mesmo leque de penas que eu apanhara, e que de longe parecia uma grande borboleta rubra pairando no célice das magnélias. O rosto suave e harmonioso, o colo e as espdduas nuas, nadavam como cisnes naquele mar de leite, que ondeava sobre formas divinas” (Lucfola), A poesia e a verdade da sua linguagem permitiram-Ihe adaptar-se a uma longa escala de assuntos e ambientes, do mato ao saldo elegante, da Colénia aos seus dias, da 210 desenfreada peripécia ao refinamento da andlise. A verdade e a eloqiéncia de muitos dos seus personagens provém menos da capacidade de andlise, que de certos toques estilisticos de forca divinatéria, que revelam por meio da roupa, da voz, dos detalhes de ambiente. A nobre e resignada pureza de Berta est4 sutilmente presa ao honrado asseio da casinha em que vive, ¢ & poesia doméstica do forno e quitutes de sua mae adotiva. Em Senhora ha um passeio quotidiano pelo jardim, que envolve e assinala 0 processo ps{quico dos esposos inimigos. Enquanto Fernando conserta a trepadeira, rega as horténsias, Aurélia apanha uma flor ou contempla os peixinhos vermelhos no tanque; e esse passeio didtio vai dando expresso e densidade ao drama também didrio de que éepisédio, ao aferilo periodicamente na sombra das arvores. Alencar tem um golpe de vista infalivel para o detalhe expressivo, desde 0 charuto aceso ea mao que apanha a cauda até as frutas de um prato ou os gestos comerciais dum corretor. Em Sonhos d’Ouro, toda a acanhada modéstia de Dona Joaquina se contém numa inesquecivel manteigueira azul, cujo conteiido, nunca renovado, vai-se esvaindo até o lambisco das bordas. Mas é na atencdo com a moda feminina que podemos avaliar todo o senso dos detalhes exteriores, que iluminam a personalidade ou os lances da vida. Balzac foi porventura o inventor da moda no romance, o primeiro a perceber a sua intima associagao com o préprio ritmo da vida social e a caracterizagdo psicolégica. Alencar nao denota a influéncia marcada do mestre francés apenas na criagio de mulheres cujo porte espiritual domina os homens ou na mistura do romanesco e da realidade, Denotaa principalmente na intui¢éo da vestimenta feminina, que aborda como elemento de revelagio da vida interior: os vestidos de Liicia, por exemplo desde o discreto, de sarja aris, com que aparece na festa da Gléria, até a chama de sedas vermelhas com que se envolve num momento de desesperada resolucio, sio tratados com expressivo discerni- mento. A personalidade terna e reta de Guida transparece nas cassas brancas, no roupao de montaria com que galopa pela Tijuca. Em Senhora, um peignoir de veludo verde marca 0 Ambito maximo da tensdo entre os dois esposos. A sua arte literdria é, portanto, mais consciente e bem armada do que suporiamos & primeira vista, Parecendo um escritor de conjuntos, de largos tracos atirados com certa desordem, a leitura mais discriminada de sua obra revela, pelo contrério, que a desenvoltura aparente recobre um trabalho esclarecido dos detalhes, e a sua inspiracdo, longe de confirmar-se soberana, é contrabalancada por boa reflexao critica. Tanto assim, poderiamos dizer, que na verdade nao escreveu mais do que dois ou trés romances, ou melhor, nada mais fez, nos vinte e um publicados, do que retomar alguns temas basicos, que experimentou ¢ enriqueceu, com admirdvel consciéncia estética, a partir do compromisso com a fama, assumido n'O Guarani. 211

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