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EVTKr ei," — Luana Tolentino Outra educagao é€ possivel: feminismo, antirracismo e inclusao em sala de aula Mt Como uma carta, como uma irma, 14 Introdugao, 15 Rap da Felicidade, 25, “Professora, quando eu crescer, quero ser Carolina Maria de Jesus!” 26 IDesfile do Cabelo Crespo e Cacheado, 50 ‘Tafs: a menina que queria ser negra, 33, Encurtando distancias, 36 e Africa, 41 Futebol: um caminho para unir Bra: Chimamanda é linda e feministal, 45 “Todo dia é Dia de Indio”, 49 Leonardo da Vinci, Michelangelo, Donatello ea arte do Vale do Jequitinhonha, 54 Funk cordélico, 57 Que voce seja muito fel “A meditagao faz a gente ficar mais calmo’, 65 60 ‘A meditagao salva e cura, 67 Queremos estudar e aprender!, 69 Cartas de amor, 71 Noticias da sala de aula: uma carta para a minha irma, 74 Lugar de mulher é onde ela quiser!, 78 Por uma educagio feminista, 81 Precisamos falar sobre feminicidio nas escolas, 86 Educagio em Direitos Humanos, 90 Clara e a oportunidade de enxergar mais e melhor, 93, De Clara para Malala, 96 Aulas em efrculo: para que ninguém fique invisivel, 100 Marcela e Frida Kahlo, 105, Meu querido Didrio, 106 © que eu gostaria que a minha professora soubesse?, 109 A pobreza nao pode tirar da gente o direito de sonhar, 112 Referéncias, 17 Como uma carta, como uma irma Escrevo na manha de um dia decisivo, quando estaré em jogo ‘muito do que sabemos e construimos da histéria do nosso pais, e também muitas das nossas esperancas no futuro. Impossivel ficar indiferente a tanta tenso vinda dos jornais, das noticias, dos tiltimos acontecimentos, das conversas compar- tilhadas e também daquelas que naufragaram recentemente. E, no entanto, vejo que o livro da Luana atua em mim com uma forga dupla inesperada: por um lado, me ajuda a mergulhar em todas as memé- rias e sonhos que esttio em jogo agora; por outro, me lembra que ha algo ainda mais fundo e mais alto do que este dia. Algo que vem de muito antes e nao se encerra de modo algum depois. Peguei-me, inclusive, pensando: quando foi mesmo que o cami- ‘ho da Luana eo meu se tocaram? Como foi que esta ponte se construlu? ‘Ah, sim: lium texto delano Facebook e me encantei completamente. ___Tento entender o motivo. Vejo que tenho dedicado a vida, nos liltimos 10 anos, a um trabalho intenso de formagao continuada em larga escala de professores das redes piiblicas. E isso tem significado, mals que tudo, tentar trazer a tona a experiéncia concreta da sala oS do Ensino Basico, com seus desafios mais dificeis e relevan- *- Para isso, tem sido crucial desenvolver uma escuta atenta diante esses professores, de modo a contribuir para que o dislogo entre les e deles com a reflexo académica possa de fato acontecer. u Nesse sentido, desde o primetro texto da Luana, vi ali exaty mente o tipo de voz ue mais pude sonhar ver se erguendo: aque, que artiula em si mesma uma atenglo profunda aos alunos e une capaidade de reflexdo e de pesquisa mais que notével; aquela qug 6 capaz de experimentar na pele todo tipo de desaflo ¢ dificuldage e, ainda assim, €capaz de mobilizar todas as suas forgas e todas ag parcerias possivels no seu entorno; aquela que traz em si uma ap. ticulagio rara entre vocagio e talento, espirito de missio coletiva¢ desejo profundamente pessoal. Porque eu bem sei que ndo é isso que se espera de uma profes. sora como ea Estamos, afinal, falando de uma categoria que sempre esté a beira do esgotamento fisico e mental, obrigada a aceitar um volume de trabalho desumano e presses de todos os lados, apenas para conseguir sobreviver. E que é desvalorizada brutalmente nao si ‘com salérios baixos, mas também com a imagem de uma “hierarquia académica” que muitas vezes nos induz a pensar que a sala de aula das escolas pablicas é um ambiente destinado aos “menos qualif- cados’, e que aquilo que os pesquisadores mais talentosos deveriam fazer é, basicamente, tentar escapar desse lugar. Pois Luana faz 0 contrério disso e, com seu gesto acostuma- doa remar contra a maré, constréi pontes pelas quais de fato mui- regrante de sélidos to pouca gente tem passado. Estudiosa sé1 srupos de pesquisa, ela da conta de uma bibliografia teérica refinada atual; ao mesmo tempo, porém, mantém seu interesse apaixonadd por sua sala de aula, percebida por ela como um lugar complexo, Po- tente e fascinante, ‘Tentando dar conta desse fascinio, alids, é que ela comegou aes crever sobre o seu dia a dia na escola ~ inclusive nas redes socials. onde outros contam de viagens e praias, publicam fotos de gatinhos 6 compartilham textos supostamente sofisticados, ela faz esta cols? inesperada: mergulha na sala de aula de escolas pablicas usando ¥ fuente e originalissimo discurso autoetnobiogréfico e nos mostra a : scoeceemneiiniane 14, mesmo no meio de todas as precariedades e apertos, héum grande reqouro sendo encontrado dia apés dia, eh uma travessia preciosa que est sendo feta, B que importante que a gente vejaisso assim quando nos conta do engajamento de seus alunos ao oduzirem um video inspirado na letra de um funk que luta contra 7 tizagdo da pobreza. 6 assim quando inventa de refazer a a estigma rota entre a Africae 0 Brasil noutras bases, para outras descobertas, promovendo uma correspondéncia desbravadora entre seus alunos da periferia de Ribeirdo das Neves/MG e outro grupo de alunos de Mocambique. & assim quando se articula a colegas de trabalho ea uma igreja para conseguir receber ao vivo uma mulher indigena no ‘maior espaco disponivel naquela comunidade, & assim quando mos- tra o impacto que teve, para seus alunos, a descoberta de escritores negros e africanos capazes de revirar pelo avesso longas omissdes e esterestipos com que nos acostumamos a viver inclusive nos am- bientes escolares. 6 assim que se contrapée lucidamente a uma edu- cago “envenenada por preconceitos” que tem feito um mal secular a negros e brancos, que acabam se vendo, entio, pisando sobre um chio falso e separados por um abismo que nos afunda em solidées € ‘medos que precisam urgentemente ser ultrapassados, se quisermos de fato viver numa democracia que merega esse nome. assim, também, quando ela convida suas alunas e seus alu- hos a ler escritoras como Carolina Maria de Jesus ou Chimamanda Ngozi Adichie, oferecendo exemplo e inspiragao para que mais vozes Como as delas venham a tona. & assim que oferece, na prética, um Contraponto poderoso a uma cultura machista que, nas suas préprias Palavras,inibe as meninas e desumaniza os meninos. £ assim quando liga esse repertério a Gltima noticia sobre feminicfdio e trabalha, de fato, para que seus alunos se engajem na luta por outro padrao de elacdo entre homens e mulheres, Eassim, ainda, quando convida seus alunos a meditar Crever didrios e cartas: ela sabe que é possivel e necessario ativar, es 18 em cada um, certo espago interior para o contato consigo mesing « que é a partir desse contato que as melhores relagdes podem acon. tecer e transbordar de verdade, para além do seu tempo e seu lige: de origem. 6 asim, também, quando os estimula a escrever pang seus parentes,eserever para sua professora, bancarem a aventurg impressionante que ése despirem da capa mais superficial ese aris. carem em outro nivel de comunicagao. B assim quando escreve pary sua irmé morta hé cinco anos, reafirmando com seu impulso muity de um voto de fé e de uma prética de manter 0 pé no chiio e, ao mes. mo tempo, de fato cruzar distancias inimaginaveis. 4 algo, aliés, que me tocou muito em especial, nessa carta to tremendamente intima, foi publicada para que todos pudessem vvé-la; to atravessada por questées p comovente como a conversa mais pessoal. De certa forma, foi como se a Luana nos dissesse: ha aqui uma chance de irmandade entre nés que vai além dos lagos de sangue e das meras vizinhangas; hé aqui um gesto de amor e um voto de con- flanga que transborda sua origem, Bu, aqui, do meu lado, s6 posso abracar esta irma que a vida Ime trouxe e desejar que esta experiéncia de enfrentamento e entu- siasmo que ela divide com a gente continue afetando minha vida e meu olhar, assim como os de tantos que tém estado com ela na cons- truco de mais pontes sobre os abismos. Precisamos disso como de ‘um dia de Sol, como de sementes jé indestrutiveis porque eresceram € se fortaleceram mais do que costumamos perceber. Para muito além de todos os perigos de agora, para muito além de todo aparente isco de destruicéo. is, Manteve-se delicada e Cristiane Brasileir? Doutora em Letras pela PUC-Ri Coordenadona da Area de Linguagens & Cédigos da Fundagdo CBCIER! 14 Introdugao Para quem acredita em destino, o meu se mostrou cedo de- sais. Quando crianga, ndo conseguia entender o meu interesse pelos {cos e pelos cadernos do Dennis e da Miriam, meus irmaos mais velhos. Sem falar da minha paixao pelas letras: cursiva ou de forma, nao importava. Sempre que tinha exercicios de uma colega ‘em mios, fixava o meu olhar na maneira como ela escrevia. Aos dez anos, alfabetizei a pequena Barbara, que, na época, estava com cinco. ‘Atenta ao meu interesse precoce pela docéncia, dona Nelita, minha mae, disse que ndo gostaria de ter uma filha professora. Na verdade, ela nao queria que eu experimentasse as dificuldades vivi- das por boa parte do professorado deste pais: os baixos salérios, as ‘condigées degradantes de trabalho e o desprestigio da profissio. Certa vez, ao passar em frente a uma passeata de professo- "as no centro de Belo Horizonte, minha mae me segurou pelo brago, apontou o dedo na dirego das mulheres que marchavam pela valo- Tizaeao do magistério e disse: “E isso que vocé quer para a sua vida?”, Fiquet em siléncio. Minha resposta nao era a que ela esperava. Sim. Apesar de tudo, ser professora era o que eu mais queria. bem verdade que tentei fugir, trapacear o que a vida havia reservado para mim. Sem si iN Carreira. Mantive o siléncio até 2001, quando prestei o vestibular ra iia © curso de Histéria. Se, para dona Nelita, a minha escolha foi "0 de desapontamento, para mim, foi um verdadeiro alivio. sucesso. Nunca consegui pensar em ou- 15 passei toda a graduacdo Imaginando como seria o me, ik meirodia como professora. Ansiava pelo momento em que Atay ‘tepoderia ensinar sobre a ditadura militar e, dessa forma, strana, minhas aulas com as misicas do Chico Buarque, Conclu a tceng. tura em 2006. Dois anos depois, assumi o cargo de professora suig ttutaem uma escola pblia localizada no municipio de Ribeiro ga, Neves, cujo indice de Desenvolvimento Humano (IDH) 6 um dos may baixos de toda Minas Gerais." As palavras da minha mie faziam sey. tido. Minha vontade de ensinar ainda na infancia também, Desde ento, refago-me professora em escolas da periferia de Belo Horizonte e da Regio Metropolitana da cidade, cujos bairros sto marcados pelo “fascismo social’, conceito cunhado pelo socislogo portugués Boaventura de Sousa Santos (2009, p. 37) para denomi- nar territérios urbanos em que imperam a segregago e a exploracio da maioria. Tomando de empréstimo as palavras do educador Paulo Freire, ha uma década me refago professora em espacos nos quais, desde “cedo se aprende que sé a custo de muita teimosia se consegue tecer a vida com sua quase auséncia ~ ou negagéo -, com carét com ameaga, com desespero, com ofensa e dor” (FREIRE, 2002, p. 82). s textos que compéem este livro emergem desses espagos. ‘Sao fruto da minha experiéncia como mulher, negra, professora, das classes populares ¢ ativista dos movimentos Negro € Femit So fruto também da interago entre os alunos, o mundo e eu." Ao escrever a partir dessa realidade, almejei nao cair nas armadilhas do fatalismo e da criminalizagao da pobreza. ‘De acordo com Nayara Amorim Salgado (207, p. 6a), 08 e soo revelam que 4o% da populagdo nevense Ribeiro das Neves ¢ consderada uma das cidades mais vol ‘2007, apresentava taxa média de “58 homicidis por 100 ‘e0una gr posigao num conjunto de 56 municipios brasileirs. “De modo a preserva aidentidade dos alunos e alunas, os nomes que apare iro si feticios, emacs 16 — aes precérias de existencia vivenciadas pelos estu- as situaci®" ig convivo diariamente sao percebidas como re- Ce se ergueu pela desigualdade e ee aoe ‘2007, p. 1136). A exclusdo, a violéncia e renta dela” ( ome - ‘ago so o combu irmas de discrimin eo Coe ticas pedagegicas revoruciondrias de res bag i comprometidas com a igualdade, com a just 2015 PS jos mecanismos de dominagao que pesam sobre a vida como stividuos que se encontram em condicao de subalternidade na dos indivi cede. ws —_ de uma escrita emocionada. A sala de aula me en- ata, fagcina e emociona. Nestes textos esta impresso 0 meu dese- canta, jo de promover uma educagdo que respeite os saberes, @ dignidade ‘ca identidade de meninas, meninos, jovens e adultes. Uma educa~ antes fo que, nos dizeres do 0 Con raiz as relagées autoritérias, onde no hé ‘escola! nem os de cultura e um coordenador, cujatarefa es- (WEFFORT, 1967, p-25)- de crdnicas, trago experiéncias vividas ao longo de fe de turmas dos Ensinos Fundamental e Médio. Ao tenho a intencdo de apresentar formulas prontas capazes de solucionar os mais diversos problemas apresentados pela «educagao pablica no Brasil. lo ponto de vista estrutural, acredito que a solugao das dificuldades que afligem professores e toda a comuni- manda uma mudanga de mentalidades, principal- deste pais. 0 direito & educagio de qualidade ainda um privilégio de poucos. £ urgente que ele seja estendido principal- ‘mente aos negros e a0s pobres. Do ponto de vista pedagégico, acredito que as turmas so di- ‘ersas € os alunos e alunas, sees tinicos. Desse modo, pedagogias que Costumam ter sucesso em algumas salas podem nfo ter omesmo éxito m outras. Sendo assim, 0 objetivo principal deste livro é promover a7 i reflexes quanto & necessidade de Se epensarem as pitas pe, ‘g6gicas comumente adotadas por nés professores. Basco mostrar que ensinar com alegra € entsiasme tant sio formas de resist ao proceso de mercantilzagio da educain falta de polticas de valorizagio do professorado eas mazelas entre, tadas em escolas de todo o pais. Tento apontar caminhos param. Ihorar o aprendizado dos estudantes, com vistas a fazer do Process ceducativo um momento ri Fago parte de um gruy tido, seria uma incoeréncia e profundo, ricamente oprimido. Nesse sen. gar em sala de aula opressao que nos cercam. Assim, no lugar de uma educacéo tirana repressora, procuro elaborar metodologias de ensino que dialogue com a realidade dos estudantes, que fagam sentido nesse exercicn de aprender e ensinar. Ao elabor nterrogo: se eu estivesse na condigao de estudante, que aula eu gostaria de ter? A resposta 6 sim- ples. Gostaria de estar em contato com pedagogias que agucassem a minha curiosidade ea minha vontade de saber. Além dessa resposta, dos elementos que compdem o meu ser, ‘sou guiada pelo pensamento da intelectual e educadora afro-ameri- cana Bell Hooks, que me inspira a fazer da sala de aula uma “comu- nidade de aprendizado entusiasmada” (HOOKS, 2015, p. 19), na qual enhum aluno seja silenciado ou invisibilizado. Nessa comunidade, todos sao convidados a assumir a condigao de protagonista na elabo- ago de novas epistemologias que contribuam para a construgdo de uma educagio critica e cidada. também a educadora estadunidense que me faz atentar pare © fato de que os estudantes esto dvidos para produzir e conhecet ‘saberes que deem significado as suas vidas. Bell Hooks langa-me ait a ao desafio de “ensinar de um jeito que respeite e proteja a alma dos meus alunos” (HOOKS, 2015, stir do momento em q¥e adentro a sala de aula, meu olhar nao é voltado apenas para as av liagies, exposigées orais e corregdes de atividades, mas também par 18 (elite SC ae "MPO para a reali 7 Tealizacg dades tenha sido curto, posso dizer que 0 trabathy feed 85 ati. Gentusiasmo das turmas era evidente. gunner oo ttog ticipacéo e © compromisso também. Foi MEN pap ~ Bu queria ser é . ‘a neBPa 86 para ser afto-brasileia igual aminha Estela, que é negra, respondeu: ~ Ainda bem que eu jé sou! Costumo dizer que o riso seguido de ligri ressio de emogiio que uma pessoa pode ter. Foi eu senti. Achei graca da sinceridade e da pur a pa? vras da Tais. Mas quel emocionada ao pensar na resposta afirmativa a Estela, carregada de orgulho pelo seu pertencimento racial. Ap mesmo tempo, lembrei do meu tempo de escola, dos meus amigos negros e de todas as vezes que alguns colegas de jornada tentaram desqualificar a minha pessoa e o meu trabalho, acusando-o de des- necessério e sem qualquer tipo de fundamento. ‘os doze anos, idade das duas alunas, a tiltima coisa que eu ‘queria era ser negra. Nao tenho o menor problema em dizer isso. 0 trajeto que percorri para afirmar a minha negritude, com 0 mesmo ensejo que a Estela, foi marcado por muito sofrimento. De modo @ nao dar margens a comentarios equivocadas a respeito de um st posto racismo praticado por nés afro-brasileiras, explico: cotidians- mente, somos expostos a todo tipo de humilhagées. tv Ao longo de toda trajetéria escolar, difcilmente pans < negro ndo seré alvo de apelidos ou xingamentos due, desqualiicam seus tragosfisicos: “beigudalo’ "machin eo io alguns deles. A vergonha e o desprezo que sentim \etidos desde da violencia racista a ave somos subm go frutos se jeanos de vid. corpo particpagprmacio do Brasil: e também sendo conivente ¢ omissa aa = que menosprezam 0S estudantes afro-brasileiros. Jean comatitu “paul Sartre, no ensaio Onfeu Negro, afirma que Ministrando-o 20 negro, o professor, ministra-Ihe, ademais, cente- nas de hébi sobre o preto, 0 preto aprender a dizer “branco como a neve” para significar a inocéneia a falar da negrura de um olhar, de uma alma, ‘deum crime (SARTRE, 1960, p- 120). inguagem que consagram a prioridade do branco ‘Naquele momento, mesmo sem perceber, Tais e Estela mostra~ am que nés professores podemos adotar uma postura contréria & que ‘ol exposta pelo flésofo francés nas linhas acima. 0 didlogo estabelecido eas meninas trouxea certeza de que, por meio de préticas pedagégicas antiracistas, € possivelcontribuir para a desconstrugao de preconceltos “sterstipes que disriminam e inferiorizam o grupo social negro. - oo Professores possamos trabalhar para a construgao de To qual “Talses” reconhecam a beleza (em todos os sentidos) ‘opovo negro. E mais . Emais: que ou i orgulho de ser: she teaslatae. ‘as “Estelas” sejam ensinadas a sentir 35 34 Encurtando distancias Desde 2008, tenho o privilégio de participar do Grupo de Pes. quisa Muthe ras ¢ do Nicleo de Estudos tnterdiscipinane da Alterid ambos vinculados a Faculdade de Letras dg de Minas Gerais (UFMG). Esse trinsito enim ‘universidade e a educagio basica tem sido essencial para a cate, ‘ago das praticas pedagdgicas adotadas por mim em sala de aula Obviamente, ao falar da minha atuagdo nesses Grupos, te nnho consciéncia de que boa parte dos professores ndo tem a mesma oportunidade. Os baixos salirios obrigam muitos colegas a assum: rem jornadas extensas de trabalho, que dificultam a participagio en cursos de formagao continuada e de pés-graduagio. Nesse sentido, ‘dedicar momentos ao estudo & capacitacao profissional ainda éum ‘grande desaflo para a maioria, Fol em uma das reunides do Grupo Mulheres em Letras, que re cargo de Professora Visitante da Universidade Federal de Sio Joao de-Re enna 9s FO nein ocr Ps Poe sep.) amen i= wt AE, 15 ese mad, grad imensamente aos meus amigos € amigas ‘um trabalho com alunos da Escola provincia de Sofala, Mogambique. Moambique possul um servigo de correios muito precério, ina ves enviadas, nossas cartas corriam sérios riscos de no chega- ‘em a0 destino. Desse modo, entrei em contato com o Consulado de Mocambique em Minas Gerais ponte com a Embaixada do pais ‘2, que assumiu o compromisso de enviar as ‘“orrespondéncias. Pronto! A maior dificuldade estava vencida. reanasmo da Melissa essa odiasea jamate peter ga amais teria sido possivel. A ela Faces Etats ee ti seri mu itl empreender naa de Mog © dposido em n pinblave no Brat. Sou imensamente grate pele at 37 -_. do de compara" possibltOU ainda a visita do ge, Esse “trata Albino Moi uma aluna - ‘ag longo de um més, mini ‘nou o género carta e corti vino Projeto um camino pal dos estudantes. i: uranteas aulas, era grande o entusiasmo por parte dos alunos: nunca pensei que pudesse falar com uma pessoa de outro continente! - Disse 0 Pablo. ‘Mas a incredulidade e a desconfianga quanto a viabilidade do projeto também se faziam presentes: «A senhora jura diante de Deus que as cartas dos alunos de Mogambique va0 chegar? - Interrogou 0. Pedro. Jurei. Diante de Deus, conforme o meu aluno pediu. Achei graga da pengunta to incisiva, mas, ao mesmo tempo, tive nogdo da expec- tativa que eu havia criado entre eles. A Africa, tao distante, de repent, parecia préxima. Nada podia dar errado. Seria uma frustragao muito grande, Além disso, caso 0 “Encurtando distancias” ficasse pelo cam- nnho, eu seria elevada & condigao de Judas Iscariotes do sexo feminino. Nas cartas escritas & mao, estavam presentes palavras de ca- rinho, sonhos, ocotidiano violento da periferia de Ribeiro das Neves e odesejo de agradar os alunos de Sofala: “Sou mito gata ao querid Albino Most porte levado um pouco de Mera aia para mim ear oe meu alunos. Su rjetra neste mando (1 == odin g de margo de 28. e 'Sougrataa Fran pel apoio, pela parceriae pela toreia ao longo de toda es 38 ~ Meu sonho é ser atriz. Me inspiro na Angetina Joie ceunfo conseguir, quero fazer medicina mesmo, -Eacerey 3. ae = Aionde vocé mora as pessoas inocentes morrem de tea? perguntou o Bruno. _ se vocé vier ao Brasil, eu te ensino a dancar funk’ - Esen _gravar as percepgGes dos alunos a respeito da Africa, de Mogambique edo intercambio com os estudantes de Sofala. ouvindo os depoimentos de cada um dos alunes. Fernanda lembrou: ~ Professora, até que enfim a nossa escola esta sendo filmada or uma coisa boa! - Dias antes, varias equipes de reportagem esti- ‘veram lé para registrar o assassinato de um aluno, ocorrido minutos tembro, finalmente recebemos as correspondéncias dos estudantes Mogambicanos. A sala de aula se transformou em uma verdadeira “ANiea toda a minha gato pela pareria, plo entusiasm pela sega de Same 39 se. be um lado, 0 fascia, a curiosidade, 0 nselo para je. vce ver a fotografasenviadas pelos alunos mocambicang professora que vos escreve emocionadissima, fa do Bruno, na qual ele perguntou se em Mocambigue 3, es mortem de ios, 01 respondida peo Elson cog apoteo respost: Do outro, a Acart pessoas inocent seguintes dizeres: denn Goataria muito conhecer o Brasil. Sei que af tem uma cig. te muito grande, chamada Rio de Janeiro. Aqui as pessoas ng mop. rem de tiros, Nao ha armas, nem droga. ‘Tudo aqui é maravilhoso, ss palvras do garoto mocambicano mostram como os ado. centes dos dois paises se aproximam no que diz respeito as suas expe. riéncias e trajet6rias de vida, Durante a elaboracao das cartas, meus alunos relutaram em escrever que moravam e devido& pobreza ea violencia que marcam om com oFidson, uma vez que a regio em que se localiza a BscolaSecun- daria de Barada 6 vitimada pela precariedade e por contflitos armados, esse modo, possoafirmar que o desejo de desfrutar de uma vida plena, com seguranga e oportunidades é algo inerente a todos os povos. [Em dezembro daquele ano, ainda tivemos mais uma surpresa Melissa nos visitou. Com toda a sua simplicidade, ela levou até nds ‘mais um pouco de Mogambique, da sua vida e dos Estados Unidos. ‘Ags meus alunos, deixou palavras de encorajamento e perseveranga ‘Tivemos uma tarde para a vida tod 0 “Bncurtando distancias muita dedicago e empenho. Fot uma te rmeus alunos e aos mogambicanos a condigio de protagonistas desst odisseia. Mais do que isso. Nesse trabalho, estava presente a educa (Gao que eu desejo e acredito: uma educagao em que os alunos possa™ aprender pelo encanto, pela curiosidade e pelo afeto. Uma educass? patticipativa, cheia de possibilidades, que dialogue com as mis = versas formas de conhecimento. A experiéncia tem me mostrado que essa educagao € poss! balho que demandou de proporcionar 20s iu 40 Futebol: um caminho para unir Brasil e Africa [Antes de dar inicio as aulas sobre o continente africano, sem- pre tomo como ponto de partida a seguinte pergunta: Quando eu flo em Africa, qual €a primeira palavra que vem a cabeca de vocés? Ao longo da minha caminhada como professora, no houve ‘uma Gnica vez. em que as respostas dos meus alunos ndo destacas- sem apenas os aspectos negativos da regio conhecida como “bergo da humanidade’, Fome, pobreza, miséria e doengas sao as palavras mais lembradas pelos estudantes. Infelizmente, essa visio estreita € resultado das imagens amplamente disseminadas pela midia, nas quais sao priorizadas apenas as mazelas decorrentes de séculos de exploracao colonial, determinante para que minhas turmas néo con- sigam igdes da Africa para o nosso pais e para os ‘demais povos é 0 racismo presente no curriculo, que impede que as Aisciplinas escolares sejam protagonizadas também pelos africanos ‘seus descendentes. Ao adotarem um olhar eurocéntrico, professo- es e gestores negam principalmente aos estuclantes negros a possi- bilidade de conhecer a prépria histéria e sentir ongulho dela. Esse pudéssemos desconstruir todos esses esterestipos em re- ‘ago ao continente africano de maneira prazerosa e divertida? Foi © due pensei ao decidir promover um jogo de futebol entre os meus ‘alunos do 3° ano do Ensino Médioe estudantes africanos matriculados a cemeursos de graduagio e p6s-graduagio da Universidade Fedora 4, Minas Gerais (UPMG). 4a de formar um time de futebol com seis dro, Meu amigo fleou desesper a onganizagio do jogo. acreditaram muitono que = Perguntou 0 Joie, (0 que os meus alunos no sabiam & que o port = Contel com a dispo- anos. Contel ainda com o apoio ram responsdveis pelas mi- sicas, Pedi a eles que baixassem também ‘0 de Cabo Verde, pois tratava-se de um momento muito imp\ Se, nos jogos entre selegées, tocam-se os hinos dos paises que dispu- tam a partida, por que no nosso seria diferente? Lucas tomou a responsabilidade de treinar o time do 3° ane. Gabriel, aluno do 2? ano, assumiu o compromisso de ser 0 drbitro da "ao queido Pro Matos, agradego por sempre atender aos meus pedis, or peti comigo os ial de uma eucagioantieraista eanticolonal. Agradeyo ain PO lear ao continent frcanoe sua bela Cabo Verde por meio de seus estos FAH, * A 6poca da realizago do jogo, © portugues ainda no era a lingua ofl Si Equatorial, o que ocorew em 204 42 fa, Fo| também 0 Gabriel que consegui os uniformes para os «¢,Coube ao Daniel, & Carolina e 20 Natanael me ajudarem na partid 14 de junho de 2012, nossa escola esperava ansosa pela chegada dos jogadores. Bra a primetra vez quea grande amor dos 350 estudantes presente tinha a oportunidade de co- cr estrangeios. Aria, representada por Pedro, Zenit Montel Ivestre Somo e Suleimane Mane estava diante dos fu estava feliz ¢ bastante nervosa. Momentos antes do |, alguns colegas tentaram impedir que o jogo acon- tecesse. Felizmente, no deu certo. ‘Quando 0s estudantes africanos entraram em quadra, tive a Impressio que a escola ria desabar. As arquibancadas lembravam um cextidio em final de campeonato. A alegria tomava conta de todos nés. ‘lex, Hebert, Vietor, Jodo e Danilo, jogadores do time do 5° ano, pare- ciam estar a poucos minutos do jogo mais importante de suas vidas. ‘Quando a bola rolou, nao deram chances aos adversérios, Apli- caram um sonora goleada de 12 X 1. Contudo, 0 gol mals comemorado {oiodeZenir Monteiro, afinal de contas, o objetivo era celebrar a Africa e toda a sua importaneia para a formagao do nosso pais e do mundo, Como em um jogo oficial, apés o apito final, tivemos 0 momento ddeentregas cas medalhas. im segulda, longasfilas se formaram para a fotos tao esperadas. A pedido dos meus alunos, alguns estudantes listribuiram autégrafos. Bles queriam registrar aquele mo- ‘mento de todas as maneiras. Da Simone, ouvi as seguintes palavras: ~ Professora, nunca imaginei que um dia eu poderia conhecer Pessoas de outros paises! Joao, a aquele dia tao bonito e especi ~ Vou guardar a camisa desse jogo! Vai ficar de lembranga ara mostrar aos meus filhos. Eles vlo saber que o pai dees jogo Contra africanos e venceu de goleada. encontrou uma maneira de eternizar __ — sme! Viera dein o que aquee jogo representou Para toon = Nesse dia ndo importava a derrota em termos de resulta, porque a amizade deu um salto mas alto do que qualquer cogs" existia Brasil e Africa, mas, aos. Ble estava coberto de Jogo nos deu a oportunidade ge lancar novos olhares sobre o continente africano e sobre nés mesma, Aprendemos um pouco mats sobre unio, respeito, soidariedade ¢ amizade, Nunca me esqueci daquela manha. Aquelas horas de tenia e felicidade reforgaram a minha convicgao de que outra escola éposy,. vel. Aprender de um modo entusiasmado e que faa sentido também, 44 chimamanda é linda e feminista! Gosto da idefa de ensinar pela curiosidade, de dar autonomia gos meus alunos durante o processo educativo. Gosto também de a0 menos tentar incutir em cada um deles o gosto pela pesquisa, tal qual nos ensina o mestre Paulo Freire (1967). ‘Apés aprendermos um pouco sobre a Histéria da Africa, como trabalho final, pedi a cada um que realizasse uma pesquisa sobre personalidades africanas. Nelson e Winnie Mandela, Paulina Chizia- ne, Mia Couto, José Craveirinha, Chimamanda Ngozi Adichie e Samo- raMachel foram alguns dos nomes sugeridos. 0 objetivo da atividade era desmistificar a imagem do continente africano como um lugar em que ha somente “pobreza, fome, miséria, Aids e animais”, confor- me eles disseram na primeira aula sobre esse assunto. No dia da apresentagdo dos trabalhos, cada aluno péde falar sobre a personalidade que escolheu: ~ Professora, achei que o Mia Couto era uma mulher! ~ Disse o Samuel, ~ Professora, a Chimamanda é linda! A senhora parece com lal ~ Afirmou a Anna. Fiquei muito feliz ao ouvir esse comentario. E gratificante ver ‘meninas de z ‘anos tomando a escritora nigeriana como um re- “encial de beleza, uma vez que no Brasil ainda predomina 0 padrao “tético branco-europeu. Vi nas palavras da minha aluna a certeza 45 - ae é preciso trabalhar para a construcao de novas epi oe nner a formagao de detiaes Positivas, ee centre as criangas e os adolescentes negros. Palmer, Chimamanda fz tanto sucesso que no dia seguinte ey de seuss para asa de ala. Ts alunas pediram que gy 9 prestase para que eas pudessem levar Para C283. Jamais nega petido deses. No eoncordocom 3 afirmagiode ques fovea gh no postam de ler. Entendo que ha mais uma falta de estimula q, cpalquer outra css De ado com os dados do CensoEsecaray apenas meta das escola brasileiras possuem bibliotecas, suits, las funciona como verdadeiros depésitos de los etambm cae, Jocais em que os alunos devem cumprir castigos e punigies, ‘anna ficou com 0 Sejamos todas feministas (ADICHIE, 2015) mg escolheu Para educar criangas feministas (ADICHIE, 2017) Vitéria pe. diu 0 Hibisco roxo (ADICHIE, 2016). Minutos depois, me dei conta de que havia emprestado tne ‘que tinhiam como cerne o pensamento feminista. Pensei nos problemas que tal ato poderia me acarretar. Parece loucura dizer isso, mas temi ‘que algum pai ou mae me acusasse de estar “doutrinando” as meninas. Embora o movimento de mulheres tenha se popularizado nos tiltimos anos,’ atualmente existe uma verdadeira corrente de édio contra ofe- minismo. 14 paginas na internet feitas exclusivamente para desinfor- mar a populacao, acusando nés feministas de destruidoras de lares, mal amadas, pervertidas ¢ tantos outros absurdos. MASCTINS, Helena. Censo aponta que escolas ainda tém defiienctas de ioe ter. apne em: . Acesso em: 78 Aproveitando o ensejo do 8 de Marco, expliquei que o Dia in- ternacional das Mulheres foi gestado a partir das reivindicagSes das ias norte-americanas € europetas no inicio do século XX, Du- rante a conversa, © Raul afirmou que as mulheres devem ser bem tratadas, pois, se no fossem elas, os homens nao encontraviam em casa roupas lavadas eo jantar pronto. Antes que eu interviesse, milly foi enfética: ~ Voeé fala isso porque machista! Lugar de mulher nao é na pia, no fogao ou no tanque! Lugar de mulher é onde ela quiser! Emilly n&o poderia ter dado resposta melhor. A partir das palavras da jovem de 15 anos, lembrei que as atividades domésticas devem ser divididas de maneira igual entre ambos os sexos. 0 pen- samento de que 0s cuidados do lar séo uma obrigago somente das mulheres e das meninas é mais uma forma de | injustiga ede limitar as capacidades femininas, afirmei. No meio do debate, a violéncia e a cultura do estupro ga- nharam espago. Sérgio repetiu a ideia arraigada no imaginario Social de que as mulheres sao as principais culpadas pelos casos de estupro: ~ Tem mulher que gosta, que pede para ser estupradal Com as Toupas que as meninas usam, os caras vio estuprar mesmol - Afir- mou com conviegao, Ao responder, fui dura. Taxativa. Disse que nada justifica a Violéncia sexual contra as mulheres, muito menos as roupas que elas, Westem. Disse ainda que os homens e 0s meninos precisam receber uma educacao nao violenta, pois ela é uma das principais responsé- els pelos altos indices de estupro e feminicidio. Ao final do longo e acalorado debate, pedi que cada aluno Produzisse um texto apontando como seria a sociedade Ideal para 8s mulheres ‘viverem. Poderia reproduzir uma série de relatos, mas “Scolhi o do Keven, aluno de 15 anos, que fez com que eu me sentisse ®Professora mais rica desse mundo: 79

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