You are on page 1of 4
174 A bicicleta briu com cuidado a porta do casebre. O interior estava 4s escuras ele apertou os olhos, querendo apagar deles algum resto de luz. Nas imediagdes um yidro se partiu, logo um grito de mulher, mas ele ndo teve a curiosidade de voltar-se e entrou, encostando a porta, Apal- pou a parede de tabuas até localizar o caibro que servia de tranca, mas ndo 0 pegou nem 0 moyeu. Deu dois passos minuciosos, medidos, abaixou-se ¢ tocou no colchdo, na dspera manta, na crianga que ela agasalhava. Passou uma perna por cima, depois a outra e sentou-se no chao, contraa parede, A seu lado, ocultando-o da porta que dava para a peca contigua, a superficie lisa e fria da geladeira. Por um momento ficou imével, 2 escuta, em seguida acomodou as pernas, puxando-as de encontro 20 peito. Ouviu um sonido na outra pega e encolheu-se, estremecido. Nao era a primeira vez nem a segunda que, tarde da noite, entraya e se escondia, mas no se acostu- maya € nos primeiros minutos sempre tinha medo. Nao, medo no, como poderia? Era algo sem nome que o fazia lembrar uma remota madrugada, quando despertara e vira, no colchao ao lado, o pai monta- do na mée, galopeando a mae. Seu cora¢ao galopeara junto, doloroso, amadrinhando aquela doma rude. ‘Ouviu novos ruidos, sobrepostos ao ressonar da crianga, ¢ agora 0s identificava, eram os arames do lastro, sons compassados, agudos, rangentes, as vezes cessavam, logo recomecavam, depois cessavam outra vex € outra ver recomesavam, como se jamais fossem cessar de todo. ‘Afrouxou o abraco que tinha dado 3s pernas ¢ pensou, com irritagao, que na proxima vez daria meia-volta e esperaria na rua, ca- Sergio Faraco minhando, fumando, bebendo em algum lugar. Como se isso fosse mudar qualquer coisa, instou consigo. E depois era perigoso, todo mundo sabia que era perigoso. Nao havia noite em que, pela manha, nao se soubesse de um angu nas redondezas, roubos, brigas, titos, de vyerem quando até morte violenta, as contas que se ajustavam entre os traficantes. Nao podia ficar caminhando & toa, arriscando-se. E estava tao cansado, e era sdbado, ansiava por deitar-se, dormir, tinha até um pouco de inyeja da crianga que dormia profundamente no quentinho da manta. Seu filho. Meu filho. Quisera aconchegar-se ali com ele, emendar um sono s6 até oito, nove da manha. E despertar bem-humorado, lampeiro, vadiar 0: domin- go inteiro no Parque da Redencao. Levariam um farnel. Isso. Um pique- nique no Recanto Chinés. Uma yolta no trenzinho, contornando o Jago e vendo lé embaixo = que bonito ~o0s namorados abracados nos barquinhos de pedal. E alugar uma bicicleta, claro, o pid era taradinho por biciclera ¢ no tiltimo passeio jf estava aprendendo a equilibrat-se. Figurou o rosto do menino, suarento, vermelho, triunfante, e logo mudou de idéia, nao, nao iria ao parque ¢ tampouco a outro lugar: gastar logo agora, desesperar, se faltaya tao pouco... Pegou um cigarro no bolso da camisa ¢ 0 pendurou nos labios. Pegou também a caixa de fsforos, tirou um palito. Se passasse um carro, acenderia, escondendo o lume. O cigarto fazia falta, era um bom companheiro. Melhor do que outros, pensou. Lembrou-se com édio do colega de servigo que se dizia seu ami- go ¢ andava com insinuacées, diz-que-diz-que, cuidado, 0 fiscal do almoxarifado estd de olho em ti, era tudo mentira, 0 fiscal nao sabia de nada e se soubesse ia fazer boquinha de siri, ele também roubava pecas de reposi¢ao. ‘Todo mundo roubava. B todo mundo precisava ‘roubar, nao havia outro jeito. Ele mesmo, naquele momento, nao es- tava sendo roubado? Imagine, chegar em casa e procurar a tranca. Dependendo do lugar em quea encontrava, tinha de ocultar-se, enco- Contos completos 175 Iher-se atrés da geladeira, como um feto, enquanto o roubavam. E agiientava, precisava agiientar, ainda que o coracao galopeasse ¢ se partisse em mil pedagos. Inés, a minha Inés. Sem querer acendeu o cigarro, 0 claréo foi to fugaz que nem chegou a ver 0 tosto de seu filho. Mas este, se desperto, teria visto os olhos de seu pai. © coracao partido em mil pedacos. Deu uma tragada funda, escondeu a brasa e mesmo assim a té- nue claridade desvelou, por um instante breve, a face do menino, Ele estava deitado de brugos, 0 rosto voltado para onde estava o homem. Meu filho. Quando seu filho nasceu aquele homem chegou a fazer planos, como fazem todos os pais ¢ ¢ téo natural, t2o necessério, Trabalhar duro para que o guri tivesse estudo, pudesse ser um guardaclivros, um fiscal. Hoje nao tinha ilus6es, jé nao planejava, nao sonhava nada e sé pensava nas necessidades mais préximas, concretas, a comida, 0 remé- dio, alguma roupinha. Ou no aniversério do guri, que era algo mais do que concreto: era sagrado. Ta fazer oito anos. Rufdos novamente, agora mais fortes. Ele apagou o cigarro no chio ¢ encolheu as pernas, abracando-as. Encostou-se na geladeira o mais que pdde. Ouviu passos furtivos, logo a porta da rua foi aberta cele pode ver a silhueta de Inés agarrando o trinco, o homem que se retirava. Era um tipo baixo, atarracado. Nao houve didlogo entre os dois. O homem fez uma saudacao, erguendo o braco. Inés fechou a porta. Siléncio. Ele ouvia o ressonar do menino ¢ esperava. — Estds af? Soltou as pernas, suspirando, procurow o toco do cigarro no chao. Ouviu Inés passar, em seguida a luz de uma vela iluminow a peca ao lado. Levantou-se, acendeu o cigarro. Deu uma olhada no filho, pas- sou por cima dele ¢ entrou no quarto. 176 | Sergio Faraco posig: = pouco. ab as perna aml tirou os eitou-se de través brilho, vam atentos. yermelha, da {o Inter. Bamcemcroe! del tu acha que nés... serd que... m sorriu, ou quis sorrir. A mulher viu ‘com os lébios j sobre ele, beijand olhos, a os completo

You might also like