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‘Autonomia e interdependéncia na familia Asdiscuss6es sobre a familia contemporanea costumam caracterizé-la como uma instituicao social que vive momentos de fragilidade € desorganizacio. Estas discuss6es apontam para alto nimero de divércios, aumento de casais 1m filhos ¢ isolamento dos mais velhos como ais pessimistas para o futuro da familia. No tanto, este retrato pessimista da familia destoa le estudos sobre relacées familiares, que mostram que na sociedade urbana persistem tos niveis de contato € de troca de recursos € cos entre as geracdes, que as altas taxas de rcio esto diminuindo € que somente um eno nimero de casais férteis decide nao filhos (Cohler e Geyer, 1982). Joga. Terapeuta de familia. Doutoranda do tnstivato de Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ‘UERJ. Filha x esposa quando escolher é im ypossivel Miriam Felzenszwalb* Esta discrepancia entre a visio pessimista dos cientistas sociais ¢ a realidade da vida familiar reflete um paradoxo ainda mais importante na sociedade atual que concerne as formas consideradas apropriadas de relacionamento dentro da familia, especialmente entre adultos de varias geragoes. Enquanto a autonomia e a independéncia sio valorizadas como formas ideais de relacionamento, as relacées reais sio marcadas, principalmente, pela interdependéncia ¢ pela manutengio das “lealdades invisiveis”. A existéncia destas lealdades invisiveis podem ser negadas, mas as relagdes familiares continuam a ser importantes (Spark, 1974). A separacdo geografica das familias nucleares nao implica automaticamente num divércio emocional entre as geracdes. ‘Alealdade, éa forca reguladora dos sistemas humanos. A base da lealdade familiar € a consanguinidade. O fato de ter recebido a vida faz com que a crianga tena um dever ético com seus pais, uma divida que ele tem que “4 pagar. Nés somos por toda a vida os filhos de nossos pais ¢ os pais de nossos filhos (Boszomeny, 1981; Spark, 1974). A elaboracéo da lealdade € determinada pela hist6ria do grupo familiar, © tipo de justica que ela pratica e por seus mitos, A natureza das obrigagdes de cada um dos membros do grupo é determinada por suas disposicées emocionais e por sua posicio no “grande livro da familia”, registro do que cada membro da familia deve dar ¢ pode esperar receber dos outros (Miermont, 1987). Nas familias, como em outros grupos, a lealdade mais fundamental tem como objetivo a sobrevivéncia do préprio grupo. Consequentemente, seu poder, normalmente disfarcado, pode se revelar somente face a situacdes que questionem a prépria existéncia da familia ou face ao risco de separacio de um de seus membros. Ao longo da sucessio de geracées, as lealdades verticais, voltadas para as geracdes precedentes ou seguintes, podem entrar em conflito com as lealdades horizontais, orientadas para os companheiros, irmios ¢ amigos em geral. O estabelecimento de novas relacdes, especialmente no casamento ou no nascimento dos filhos, implica em novas lealdades. Quanto mais rigido é o sistema de lealdades inicial maior sera 0 conflito para o individuo: “quem vocé vai escolher, eu ou ele?”. Além dos sentimentos de obrigacao para com as lealdades familiares, os membros da familia também Iutam com um conflito interno inevitavel entre o desejo de ser cuidado e o medo de se tornar dependente demais € perder, assim, o sentido da autonomia. Gadernos IPUB/16 Na andlise da familia como uma unidade psicossocial, a resolucao de tensdes associadas com © problema da persisténcia da interdependéncia continua a ser um tema premente em todas as fases do ciclo vital, desde os estagios iniciais da formacéo da familia no namoro e no casamento, até a fase em que os adultos assumem a responsabilidade por seus pais mais velhos, O ciclo de vida da familia O ciclo de vida da familia é um processo complexo que envolve pelo menos trés ou quatro geragdes movendo-se juntas no tempo. Apesar dos padrées atuais de familias nucleares morando em casas separadas, as familias sio subsistemas que reagem a relacionamentos passados, presentes e antecipados dentro do sistema familiar mais amplo. Assim, duas ou mais geragdes tém que se acomodar a mudangas simultaneas do ciclo de vida, ¢ os acontecimentos em um determinado nivel tem um feito consideravel nos relacionamentos em cada um dos outros niveis, A familia normal vive sob um fluxo de ansiedade que é tanto vertical quanto horizontal. O fluxo vertical inclui padrées de relacionamento e funcionamento que sio transmitidos através das geracées numa familia € contém todas as atitudes familiares, tabus, expectativas, dogmas, e é carregado de temas com os quais as pessoas crescem. O fluxo horizontal inclui a ansiedade provocada pelos Filha X esposa: Quando escother é impossivel estresses na familia ao longo de sua passagem pelo tempo, tendo que lidar com as mudangas ¢ transicdes do ciclo de vida. Contém tanto os estresses previsiveis do desenvolvimento quanto que podem dilacerar 0 processo do ciclo de vida, tais como doencas crnicas, o nascimento de uma crianca deficiente etc. Caso haja um excesso de pressio no eixo horizontal, qualquer familia parecera extremamente disfuncional, Ou ainda, um pequeno “stress” numa famili écarregado de intenso “stress”, ocasionara uma \de ruptura no sistema. Desta forma, o grau de ansiedade gerado slo “stress” nos cixos verticais ¢ horizontais, no to onde eles convergem, é o fator chave, aminante do modo como a familia lidara suas mudangas ao longo da vida, Quanto iior for a ansiedade gerada na familia em juer ponto de transigio, mais dificil ou aqueles eventos imprevisive ia cujo eixo vertical ional ser esta transicio. modelo apresentado aqui considera 0 ento de todo um sistema de trés ou geracdes no seu percurso pelo tempo, ie, como um sistema em movimento, a tem propriedades que diferem de todos sistemas. $6 pode incorporar novos spor 10, ¢ 08 membros s6 podem sair através fe. Nao se escolhe nenhum dos amentos familiares, 2 excecio do . As pessoas nao tém o poder de nascimento, adogio ou relacdes na complexa rede de lacos s ao longo de todas as geracées. 45 Quando 0s membros agem como se as relacdes familiares fossem opcionais, eles o fazem em detrimento de seu proprio sentimento de identidade e da riqueza de seu contexto emocional social. Os principais processos a serem negociados nos diferentes estagios do ciclo de vida da familia so a expansio, a contragao ¢ 0 realinhamento do sistema de relacdes da familia para suportar a entrada, a saida ¢ 0 desenvolvimento dos membros da familia numa forma funcional. Cada estagio implica num proceso emocional complexo para realizar as adaptacdes necessirias. A formagio do casal Neste trabalho, nos interessa especialmente a fase da formacio do casal. Tornar-se um casal € uma das mais complexas transices do ciclo de vida. A visio romantica € positiva desta transi¢do aumentam sua dificuldade, ja que todos, desde o casal até a familia € os amigos s6 querem ver a felicidade da mudanea, forcando um ocultamento dos problemas que, desta forma, s6 sc intensificam para emergir mais tarde. A mudanga ou a quebra de vinculos antigos e a formacio de novos laos pelo casamento sio pontos de transi¢o sujeitos a tensdes potenciais (Bell, 1962). O casamento requer a negociagio conjunta pelo casal de uma série de assuntos pessoais previamente definidos por eles ou por seus pais, incluindo decisdes cotidianas, como quando ¢ 46 como comer, dormir, falar, ter relagdes sexuais, brigar e aliviar tensio. Eles devem decidir sobre férias, ¢ como usar 0 espaco, 0 tempo ¢ 0 dinheiro. Depois, hi as decisoes familiares sobre quais rituais ¢ tradigdes manter de cada familia de origem, ¢ quais serao criados por eles. Estas © muitas outras decisdes similares nio podem mais ser tomadas individualmente. Os assuntos que nao foram resolvidos pelos parceiros em suas préprias familias tenderao a pesar na escolha do parceiro ¢ muito provavelmente interferirao na formagio de um equilibrio conjugal. Os primeiros anos do casamento sio, em geral, os anos de maior felicidade, mas sio também os anos onde ocorre 0 maior ntimero de divércios (McGoldrick, 1980). © casal também vai ter que renegociar suas relac6es com seus pais, irmaos, amigos e outros parentes. Todos os outros animais amadurecem, separam-se ¢ acasalam-se sozinhos. $6 0 homem tem que aprender a lidar com a complexidade do sistema de parentesco. O casamento transforma o relacionamento privado em uma unio formal de duas familias. Ele representa a jungao de dois sistemas extremamente complexos ¢ implica numa reorganizacao estrutural de todo © sistema familiar (Meyerstein, 1996). Os casais lidam com suas familias de varias Muitos consideram 0 casamento como a tinica maneira de se separar de suas familias de origem. Eles tendem a ser fusionados com suas familias ¢ este padrio continua mesmo depois do casamento. Nestes sistemas, encontram-se normalmente padrées formas diferentes idernos IPUB/1G de culpa, intrusio e fronteiras difusas. Outros casais separam-se emocionalmente de suas familias mesmo antes do casamento. Nestes casos, os cénjuges podem chegar ao extremo de nem mesmo convidar seus pais para o casamento. Os pais sio vistos como controladores erejeitadores e 0 casal decide se passar deles. Um terceiro padrio envolve contato continuo, mas conflituoso, Em qualquer destes padres de relacionamento com a familia extensa - conflito, fusio, distincia ou separacio -,a nao resolugio destes relacionamentos € 0 maior problema na negociacao desta fase do ciclo de vida. A maior parte dos problemas conjugais resultam de problemas nao resolvidos com as familias de origem (Stanton, 1981). Em casos onde ha um corte radical com a familia de origem, ha um excesso de pressio sobre 6s cénjuges. Quanto maior for a separaciio com a familia, maior a responsabilidade do conjuge em suprir 0s papéis de mae, pai, irmo ou irma. Este actimulo de intensidade certamente sera nocivo ao sistema, Uma vez que um conjuge torna-se excessivamente envolvido na resposta do outro, ambos se enroscam numa teia de fusio que os deixa incapazes de funcionar independentemente. Por outro lado, ha casos em que ha um excesso de envolvimento, ou uma fusio com a familia de origem impedindo acriagio de fronteiras conjugais de intimidade. Ha casais que transferem as brigas que tinham com os pais diretamente para o cOnjuge. Outros escolhem parceiros para com suas familias por eles. Outros, onde os lidar Filha X esposa: Quando escolher & impossivel membros de uma familia tinham uma fungio central na vida de seus pais, ou na preservacio do equilibrio conjugal dos pais, nao se sentem com permissio para casarem bem, com sucesso, Estes sio os casos que examinaremos mais detalhadamente. Padrées de contato intergeneracionais £ indiscutivel o papel que as familias de origem desempenham na vida de cada nova milia. A maioria das familias, apesar de rem numa sociedade industrial urbana, m um contato extenso com sua rede de ntesco € estes participam ativamente na waco das identidades mituas (Leichter e itchell, 1978). A familia nuclear como lade no pode operar independentemente outros sistemas externos, A familia extensa iribui de forma decisiva para a identidade familia e o apoio familiar é importante para \cionamento desta familia. Mas, os lacos de tesco sio também uma fonte de tensio ¢ lito. Eles podem ajudar o casal, ao defini- como essencial, on podem empurrar os iges em diregdes opostas. esquisas sobre o relacionamento entre as Ges na sociedade americana mostram is dados importantes [Na maior parte das familias, a prioridade es familiares é dada aos lacos maritais, comparacio com os lacos filiais; as faces com a famil ja nuclear sio mais a7 importantes, apesar de que nem sempre é facil manter estas prioridades; 2. Ha um maior grau de concordancia de valores € atitudes entre as familias da classe trabalhadora que entre as familias da classe média; 3. A fonte mais importante de concordancia familiar é 0 laco unindo mie e filha, especialmente nas classes trabalhadoras (Cohler & Geyer, 1982). Nas pesquisas realizadas sobre a freqiiéncia de interagdes entre familiares, as categorias mais, mencionadas sempre colocam a mulher e seus parentes em primeiro lugar, Os maridos tendem a ser mais chegados aos parentes da mulher do que a mulher aos do marido. Estas pesquisas mostram que a freqiiéncia de contato entre estas mulheres e suas maes é maior durante os sete primeiros anos de casamento, declinando em seguida. Apesar de normalmente os filhosadultose seus pais viverem separados, nao é raro encontrar geragSes compartindo residéncias, especialmente durante 0 periodo imediatamente posterior ao casamento, quando os jovens casais ainda nac atingiram a independéncia econémica, ou mais, tarde, quando os pais nao sio mais capazes de morar sozinhos. Estas convivéncias sio tipicamente assimétricas, Quando duas ou mais geragdes dividem uma casa, na maior parte das vezes isto se dé com os parentes da mulher € nio com os do marido. Isto se deve basicamente a dois motivos: em primeiro lugar é muito mais provavel haver 48 conflitos entre a mulher e os parentes do marido do que entre a mulher e seus préprios parentes. Em segundo lugar, as mulheres sio socializadas desde muito cedo para cumprirem, papéis de protetoras e mantenedoras das relagdes familiares. A dependéncia da mulher em relagio 4 sua propria familia é estimulada cultural ¢ socialmente. Espera-se das filhas que elas sejam mais disponiveis do que os filhos para as obrigacées domésticas € para ajudar outros membros da familia, Enquanto os pais estimulam os filhos a buscar a independéncia da familia, eles estimulam as filhas a permanecerem dependentes, Estas diferencas podem prejudicar a capacidade das jovens de desenvolver vidas independentes fora da familia e se adaptarem, mais tarde, a seus papéis de esposa e mae. Assim, quando as jovens enfrentam problemas para aprender a lidar com os desafios da maternidade, é para as maes que elas sempre se voltam, Este padrao de contato excessivo entre a mulher e sua mie pode causar tensdes na familia (Cohler ¢ Geyer, 1982). Filha x esposa - quando escolher é impossivel Como vimos, 0 desafio de formar uma nova unidade familiar mantendo 0 equilibrio das lealdades com a familia de origem favorece 0 aparecimento de dificuldades, Ha varias formas de familias que desenvolvem tipos diferentes de relacionamento. Os relacionamentos intergeneracionais também sio fortemente Cadernos IPUB/16 influenciados pelas diferengas socio-culturais (Meyerstein, 1996). Em qualquer sistema de parentesco existe um grande némero de relacdes de papéis entre diferentes pares de individuos, isto é, entre diferentes pares de status tais como mae - filho, neto - av, irmio - irma. A relagdo que é considerada como sendo a principal fonte de apoio emocional para o individuo varia de um sistema de parentesco para outro. Na nossa sociedade o laco conjugal € normalmente considerado como o principal lago do adults. No entanto, isto pode variar, de acordo com o contexto cultural (Leichter, 1978). Muitas familias sio excessivamente envolvidas com suas familias de origem, Este envolvimento gera tensio € uma série de conflitos. Uma estrutura social determinada tendera a provocar tensio relacionada a organizacio de papéis. Esta tensio vem da dificuldade de cumprir as obrigagdes determinadas para um determinado papel. Ela pode surgir quando as obrigacdes de um determinado papel implicam na escolha de como despender © tempo ¢ os recursos entre dois pdlos de demanda competitivos. Por exemplo, uma mie que trabalha fora que deve escolher entre dedicar seu tempo ao trabalho eA familia; ou a familia que precisa escolher com quem vai passar determinada data importante, Como vimos, ha lacos naturalmente mai fortes entre filhas casadas e seus pais, especialmente a mae. E permitido e esperado. que a esposa conte com sua mie e irmis para Filha X esposa: Quando escolher € impossivel fazerIhe companhia, dar conselhos ¢ ajud: em suas tarefas como dona de casa e mie. Este foco matrilinear provoca tensio no casal. Ha sempre um conflito potencial entre 0s lacos conjugais e os lagos de descendéncia. Se os lacos matrimoniais sio maximizados em ‘oposi¢ao aos lacos de descendéncia, isto ignifica que, em qualquer situacao de conflito le lealdades, é mais provavel que os lagos mnjugais sejam mantidos do que os lagos de endéncia. Contrariamente, quando 0s lagos descendéncia sio maximizados, sobram ites estreitos para o desenvolvimento de s conjugais (Schneider, 1961). ‘As pesquisas demonstra que as filhas se muito mais com as mies. Espera-se € ite-se que a mulher conte com sua mie e suas irmas como companheiras, conselheiras 10 ajuda em suas tarefas de esposa e mie. entanto, ha casosem que este relacionamento -acanisa dle muitos conflitos, Noscasosem que de interacio é caracterizado por um excesso io entre os membros, os casais nao yem estabelecer fronteiras claras ¢ firmes les ¢ suas familias de origem. iderando que, naturalmente, a maioria Bes se di entre a mulher e sua familia a dependéncia das filhas em relagio as dies ¢ estimulada social e culturalmente, (grandee miimero de casos em que as filhas eguem se desprender de suas familias um novo niicleo familiar. Ha uma ibilidade da mulher em cumprir a 49 contento as obrigagées que sio esperadas dela nestes dois papéis, de esposa e de filha, Surgem os conflitos entre maridos ¢ esposas que envolvem freqiientemente a exclusio do marido das estreitas relagdes entre mie e filha. Eles incluem sentimentos de rejei¢do ou abandono por parte do marido ¢ ressentimento em relacao a interferéncia manifestada através de critica € intromissio real nos assuntos da familia nuclear, Uma das conseqiiéncias deste excesso de ligacdo entre a mulher ¢ sua familia é 0 enfraquecimento da solidariedade conjugal. 0 marido nao se sente apoiado pela esposa e ressente este fato, Desencadeiase um ciclo de interacdes que contribuem cada vez mais para a consolidagio da situagio que se configura como problema: quanto mais desprestigiado © marido se sente, mais ele age de forma a afastar aesposa de sie atrair a desconfianga da familia, fortalecendo ainda mais os lacos entre a esposa ¢ sua familia, Por exemplo, ha casos em que a mulher tem uma relagio de dependéncia hostil com sua mie, mas incorpora a forca matriarcal da mie; © marido se vé, assim, submergido por uma mulher forte e por uma forte ligacio mie - filha. Uma circunstancia agravante, mas cada vez mais frequente, é a conjuntura econdmica que impele os filhos casados a morar com os pais, ‘ou na mesma casa, on em uma casa construida no terreno da casa paterna, Os efeitos que a habitago conjunta exerce sobre as relages familiares sio tio insidiosos e complexos que sio dificeis de estimar, O casal se torna prisioneiro da ajuda que recebe da familia, tanto no campo econdmico quanto na ajuda com as criangas ou no manejo da casa. A pressio pela lealdade é muito maisintensa e aimpossbilidade de escolha se manifesta concretamente: a filha no saiu efetivamente da casa paterna, Nestes casos, as crises se sucedem, o marido se sente cada vez mais isolado, sozinho contra todos. A ruptura entre o casal é quase inevitavel. A dificuldade, ou impossibilidade, de algumas familias em promover a individuac de seus membros, principalmente de suas filhas que sio socializadas desde a infincia para cumprirem um papel de interdependéncia, coloca-as em muitos casos diante da impossibilidade em formar um novo niicleo familiar independente € auténomo. Tustracées clinicas CASO 1 M. era filha tinica, Seus pais eram imigrantes judeus que chegaram ao Brasil da Europa Oriental depois da Segunda Guerra Mundial. Com dezessete anos casou-se com um homem dez anos mais velho, contra a vontade dos pais, © homem também era judeu, mas de origens, tradigdes e sistemas de valor diferentes. Logo depois da lua de mel, M. descobriu que seu marido queria prendé-la em casa e em desespero pediu ajuda a seus pais, Os pais, avidamente “salvaram-na” de seu “horroroso” marido. Dez anos mais tarde ela casou-se de novo, desta vez. com a plena aprovacio dos pais, especialmente da mie, com quem o marido se dava muito bem. Passados dois meses do casamento, o pai ficou doente e chamoua filha de volta para casa para cuidar dele. Ele morreu um ano e meio depois. Aquela altura, M. j4 estava divorciada, com uma filha de nove meses. © marido nao conseguia suportar a critica constante de sua sogra que de repente tinha descoberto que sua filha tinha casado com um “idiota”. A filha viveu com a vitiva por mais treze anos antes de decidir se mudar para viver com © prépria filha. CASO 2 V. era a filha velha de uma familia com trés filhos. No caminho da igreja no dia de seu casamento, seu pai perguntowlhe se estava realmente segura do que ela estava fazendo. Respondeu que estava. Quatro meses mais tarde seu marido, que era alcoélatra, conseguiu um trabalho numa cidade ha aproximadamente setecentos quilémetros de distancia. V. madou- se com ele, mas nao gostou do lugar ¢ logo voltou & casa dos pais, Seu marido fazia breves viagens de fim de semana para ver sua esposa, que engravidou. Depois de perder seu trabalho, © marido voltou ¢ decidiram que seria melhor para todos se permanecessem na casa dos pais (0 pai de V. tinha morrido neste interim). Daf em diante, 0 alcoolismo do marido piorou, ele Filha X esposa: Quando escolher é impossivel nio conseguia se manter em trabalho nenhum ¢, consequentemente, nao se podia contar com ele para prover e sustentar sua esposa e sua filha, YV. tornow-se, assim, cada vez mais dependente de sua mac para ajudé-la na criagio da filha, O padrao de interagio estava fortemente estabelecido: quanto mais o comportamento de seu marido suscitava sua desconfianga, mais ela se tornava dependente de seus pais ¢ mais 0 marido se sentia expulso se comportava mal, assim por diante. Quando a filha tinha dez anos eles decidiram se divorciar. Um fator agravante, muito freqiente hoje dia, sio dificuldades financeiras que forcam filhos casados a viver com seus pais, seja sob mesmo teto ou em casas juntas. Os efeitos da habitacdo nos relacionamentos familiares tio pervasivos e complexos, que sio dificeis avaliar, O casal se torna dependente da ajuda familia, tanto financeiramente como para 0 jidado com os filhos ¢ a manutenco da casa. apelo pela lealdade é muito mais intenso ¢ a jpossibilidade da escolha é manifesta: a filha sain efetivamente da casa dos pais. Em tais $08 as crises se sucedem, 0 marido sente-se is € mais isolado, Iutando s6 contra todos. O jpimento do casal é quase inevitavel. CASO 3 . (34 anos) € GC. (38 anos) sao casados ha ¢ anos, Tém dois filhos, um menino de 10s e uma menina de 12. Vivem numa casa truida no terreno da casa dos pais da josa. As casas so construidas de forma que a parede do quarto do casal é adjacente ao quarto da sogra. Eles atualmente esto separados, pela segunda vez. A razio desta crise € oenvolvimento do marido com outra mulher. Ele tem intimeras queixas sobre sua vida conjugal, e, em particular, sobre sua vida sexual. Acima de tudo, ele se ressente da dependéncia excessiva da mulher em relacio A sua familia, especialmente sua mae e sua irma. Ela, por sua vez, queixa-se de sua arrogancia ¢ agressividade. Ela afirma ter medo dele ¢ ter perdido a confianca nele. Ela acredita que, s6 pode contar com sua familia. Eles estio atualmente num impasse: ele s6 voltara se mudarem-se da casa dos pais, mas ela sente- se extremamente insegura para fazer tal mudanga, SEGUEM-SE ALGUNS EXTRATOS DE ALGUMAS. SESSOES COM O CASAL Marido: Eu a conheci, gostei dela, quis viver com cla, Desde o inicio ela causou um impacto em mim, Eu tive que desistir de meus estudos. A vida deveria ter melhorado, mas no melhorou. ‘Naquele tempo, eu queria dar uma vida melhor para os filhos, viver na minha prépria casa, sem sentir que todo o mundo estava observando, me olhando com desconfianga. ‘Terapeuta: Onde vocés moram? Esposa: Eu moro no terreno da minha mae. M.; Sua mie dividiu um pedago de terra deu uma parte para ela. E.: Eu moro na minha parte. Minha mae me deu a terra, mas nés construimos a casa M: Vivemos em casas conjuntas. Depois de um certo tempo, eu comecei a sentir que até nossa vida sexual estava travada porque ela tinha medo, porque parecia que alguém estava nos observando... sua mie estava bem do lado. T: Sua mie era contra seu casamento? E: Nao. M: Ela me di vezes que ela queria sair de la, que ela nao queria ficar, que ela sentia e varia que era como se ela ainda estivesse vivendo com sua mae ¢ sua irma, Isso é 0 que eu também queria, Mas entio, ela engravidou do primeiro filho, eu fiquei preocupado ¢ entao pense: isto vai ser um problema... (os) M: Eu tenho que ter certeza de que ela quer ficar comigo. Eu nao voltarei para aquele lugar onde ela esti morando. Eu nao volto para la. Eualugo ¢ vou para outro lugar. Eu jé falei para cla E: Eu nao me sinto segura para viver com ele. M: Eu ja estou procurando uma casa... T: O que é que tanto te incomoda? M: Eu nao gosto, niio me sinto bem. Quero fazer coisas mas nao consigo; comego a fazer as coisas e deixo tudo por fazer. : Mas é por causa da casa ou de onde ela esta localizada, com a familia dela? nao M: A maneira que eles me tratam, quero brigar com a sua familia, Pretendo ir a, explicar tudo a eles... T: O que vocé podia fazer para sua esposa se sentir mais segura com vocé? Cadernos IPUB/I6 M: Ela tem que acreditar em mim e vi comigo. Agora, ela nao me tem, Eu nunca tive a intengio de ter outra mulher, o) M: “Nosso quarto da para os fundos da casa da mie. Na casa da mie dela eles ouvem tudo que acontece no nosso quarto ¢ nés podemos ouvir tudo que eles falam. Eu ja tentei mudar de quarto mas ela nao deixa, Nunca teve uma solucio (...) M: Eu vivo pedindo para a gente se mudar eu sempre digo para ela que a doenca da familia dela esta invadindo a nossa casa ¢ é isso exatamente 0 que eu quero evitar. A maneira como os parentes dela interferem dentro da minha casa... Eu quero ter um lugar com ela ¢ os meus filhos. Sera que ela nao entende isso? Sera que ela no vé que eu dependo da ajuda dela? Ha casos onde o relacionamento da esposa com sua mie é de dependéncia hostil, mas a esposa expressa a forca de sua mae em seu relacionamento com seu marido. O marido é, entdo, submergido por uma mulher forte e por uma forte conexio de mae - filha, CASO 4 J. (45 anos) e R. (40 anos) sao casados ha dezessetes anos. Tém dois filhos, L. (16 anos) € A. (14 anos). O menino mais velho tem sérios problemas neurolégicos e psicologicos ¢ tem sido tratado h4 muitos anos por varios profissionais. A familia vive numa casa que eles construiram, no terreno da casa dos pais da Ailha X esposa: Quando escolher é impossivel esposa. O casal esta separado ha alguns anos apesar de viverem juntos. De acordo com 0 marido, esta separagio foi cansada pela atitude altamente autoritiria da esposa ¢ por sua recusa em escutar suas opinides. A esposa s6 ouve seus pais, e, particularmente, sua mie. Ele decidiu entio se retirar, para evitar maiores brigas. A esposa, por sua ve: pressionada demais por sua mae, que cuidou de seu filho durante alguns anos até que, incapaz de continuar a suportar as repreensées da mie, ela decidiu largar seu trabalho, Até hoje ela se ressente profundamente desta decisio. também se sente Embora saiba que sua mae interfere jemais em sua vida, ela nio sabe como lidar ‘com a situagao. SEGUEM-SE ALGUNS EXTRATOS DE UMA SESSAO COM O CASAL, M.: Ela tem um carater muito forte, no (0, € muito foritaria, Conversamos demais, mas nunca vemos nada. Viver ao lado de seus pais ¢ ito dificil. Desde que nés construimos uma no terreno deles, ela vive a vida deles e eles a... A gente vive como estranhos na casa nés mesmos construimos. E muito duro... te nunca imagina que as coisas vao sair ste jeito... A gente diz: ... “se isto acontece! 105 isto ou aquilo”, mas quando realmente .ce a gente nao faz... Ela tem uma opiniio mho outra... Ela faz de acordo com o que sua familia pensam que é melhor e acabo . lutando contra todo mundo. £ muito ff aceitar as coisas como elas s dificil. Como podemos ter um didlogo nestas condigées? As coisas acontecem, elas yao se amontoando. Ninguém presta atengao ao que eu digo. Sou bom s6 para cumprir com minhas obrigagdes; para qualquer coisa com a familia e as criangas ela sempre segue 0 conselho da familia (...) T: Mas por que acontece isso ? Por que vocé sente que sua opiniao no é importante? M: Ela nunca realmente deixou sua mae ¢ seu pai. Ela esta amarrada no cordao umbilical e munca largon... T: E 0s pais dela nunca estiveram do teu lado? M: A mie dela sempre discordou de mim e como eu nao quero brigar, eu nao tomo conhecimento, eu nio digo nada, muito pelo contrario, escuto muito, Vocé vai engolindo as coisas que no gosta e entio, um dia, vocé diz coisas que 0s outros no querem ouvir... Estes exemplos mostram que, para algumas mulheres, a escolha entre permanecer fiel 4 familia de origem ou constituir uma nova familia propria é As vezes dolorosa, se no impossivel. E muito dificil para algumas familias liberar suas filhas para que formem uma nova familia, auténoma e independente. As filhas sio cnsinadas a ser dependentes, a proteger e a cuidar dos membros da familia. Algumas permanecem excessivamente preocupadas em sup’ incapazes - ou impedidas - de explora proprios caminhos (Bush, 1993). Muitas familias nio conseguem viver sem estes as necessidades de sua familia € sio ros 54 cuidados, compelindo suas filhas a voltar para o seu lado. Por outro lado, estas filhas nao tém nem a for¢a, nem avontade de resistir a este apelo, colocando em perigo as suas parcerias, Nas familias estudadas aqui, as filhas tiveram, pelo menos uma chance de tentar sair da casa dos pais ¢ criar uma nova familia. A muitas mulheres nem sequer é dada esta chance. Em tais familias qualquer tentativa de saida é considerada como traigao. Nestes casos, a divida para com os pais € to grande que nunca podera ser paga. Bibliogratia BELL, N.W,, “Extended Family Relations of Disturbed and Well Families’, Fumily Process 2, 175-193, 1962. BOSZOMENY- Nagy & ULRICH, D.N., ‘Contextual Family Therapy’, in Handbook of Fumily Therapy, ed. Gurman, A., & Kniskern, D.P,, Brunner/Mazel, N.Y, 1981, BUSH, N., & JACOBVITZ D.B., “The Transition to Young Adulthood: Generational Boubdary Dissolution and Female Identity Development”, in Family Process 32, 87-103, 1993 COHLERBJ., & GEYERS,, ‘Psychological Autonomy and Interdependency within the Familiy’, in Walsh, ¥,, Normal Family Processes, The Guilford Press, N.Y,, 1982 LEICHTER, FLP. & MITCHELL, W.E., Kinship and Casework, Teachers College Press, N.Y., 1978 MCGOLDRICK, Monica - The Joining of Families ‘Through Marriage’: The New Couple” in The Family Life Cicle, eds. Carter, E,and McGoldrick, M.,Gardner Press, N.¥,1980. Gadernos IPUB/16 MEYERSTEIN, I., “Family Therapy with In-laws and Outlaws” in: Journal of Marriage and family Therapy, October, 199 MIERMONT, J., Dictionnaire des Thérapies Familiales, Payot, Paris, 1987 SCHNEIDER, D., ‘Introduction: The Distinticve Features of matrilineal Discent Groups’ in Matrilineal Kinship, ed. by Schneider, D., and Gough, K.,, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1961. pp. 1-29. SPARK, G., “Grandparents and Intergenerational, Family Therapy”, in: Family Process 13. June 1974. STANTON, MD., Marital Therapy Froma Structural/ Strategic Viewpoint’, in Sholevar, G.P., Ed. The Handbook Of Marriage and Marital Therapy, Jamaica, N.Y, 1981. RESUMO: A familia atravessa um cielo de vidaem que cada fase corresponde a tarefas epecificas que devem ser cumpridas. Cada fase requer que familia se adapte ‘amudangas internase externas. No curso do ciclo de vida da familia, uma fase se sobressai pela sua importincia na crise do casamento atual: a fase da formagio de casal, a fase onde cada membro deste novo niicleo tem que equacionar a separacio de sua familia de origem e forjar a identidade de sua nova familia, Na realidade, a maioria dos problemas dos casais derivam de problemas com as, familias de origem. Entre estes problemas, destacase a dificuldade, ou impossibilidade de algumas mulheres em deixara casa dos pais- e das familias em deixar a filha sair para a casa do marido, Circunstancias varias, econdmicas, culturais ¢ étnicas, dificultam esta passagem e revestem de legitimidade a nao-saida de casa. Neste trabalho, examinaremos os varios aspectos, envolvidos nesta “escolha impossivel” © suas consequéncias na estrutura familiar. Mustragdes clinicas. Filha X esposa: Quando escother & impossivel UNITERMOS: casais, lealdade, escolha. SUMMARY: The family goes through a life cycle, with ‘each phase corresponding to specific tasks. Fach phase requires the family to adapt both to internal and to external changes. ‘One of the phases in the family cycle which is particu- Iarly fraught with difficulties is the one in which the ig adults leave their familiesin order toformanew ple. Indeed, most of the problems encountered by 1g couples stem from difficulties in the family of in, ofthe greatest problem facing new couplesis the tance or inability of some young women to leave ir parent’s home and, similarly, the reticence of the nts o let their daughtersgo. The problem is com- \ded by economic, cultural and ethnic aspects. author examines the various aspects involved in “impossible choice” and its impact on the family ie, Clinical illustrations. S: couples, loyalty, choice. 55

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