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Organizagio Joko Cezar pe Casta Roca Contos de MACHADO ASéis VoLuME a] Musica e literatura EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO + SAO PAULO 2008 O MACHETE" Inkcto Rawos cowrava arexas p22 ax0s quando manifestou decidida vocagio musical. Seu pai, misico da imperial capela, censinou-Ihe os primeiros rudimentos da sua arte, de envolta ‘com os da gramatica de que pouco sabia. Era um pobre artista ceujotinico mérito estava na yorde tenor enaarte com que exe cutava a misica sacra. Inicio conseguintemente, aprendeu melhor amisica do quealingua, e aos quinze anos sabia mais ddos beméis que dos verbos. Ainda assim sabia quanto bastava para ler a historia da misica e dos grandes mestres. Aleitura ‘seduziu-o ainda mais; atirou-se o rapaz com todasasforasda alma arte do seu coragio, e ficou dentro de poueo tempo um rabequista de primeira categoria, Arrabeca foi o primeiro instrumento escolhido por ele, ‘como o que melhor podia corresponder as eensagdes de eua alma, Nao o satisfazia, entretanto,e ele sonhava alguma coisa ‘melhor. Um dia veio ao Rio de Janciro um velho alemao, que arrebatou 0 piiblico tocando violoneelo. Inicio foi ouvi-lo, Seu entusiasmo foi imenso; nio somente a alma do artista 1 Publicado es jomal das Folia feverir, margode 18) 55, + CONTOS DE MACHADO DE ASSIS © ‘comunicava com a sua como Ihe dera a chave do segredo que ele procurara. Inicio nascera para o violoncelo. Daquele dia em diante, o violoncelo foi o sonho do artista fluminense, Aproveitando a passagem do artista germanico, Inicio recebeu dele algumasigdes, que maistarde aproveitou ‘quando, mediante economias de longo tempo, conseguiu pos- suir o sonhado instrumento. Jaa esse tempo eeu pai era morto, —Restava-Ihe sua mie, boae santa senhora, cujaalma parecia superior condigioem «que nascera, tio clevada tinha a concepgio do belo. Inicio con~ tava vinte anos, uma figura atistica, uns olhos cheios de vida ‘ede fururo, Viviade algumas ligdes que dava ede alguns meios que lhe advinham das circunstincias, tocando ora num teatro, oranum salio, ora numa igreja. Restavam-Ihe algumas horas, aque cle empregava a0 estudo do violoncelo. Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feicio ‘melanedliea esevera que casavam comaalma de Inacio Ramos. ‘Arabeca, que ele ainda amava como o primeiro veiculo de seus, sentimentos de artista, nlo Ihe inspirava mais o entusiasmo antigo. Passara aserum simples meiode vida; nloatocava com ‘alma, mas com as mos; nfo eraa sua arte, mas o seu ofico. 0 violoncelo sim: para esse guardava Inacio as melhores das suas aspiragdes intimas, os sentimentos mais puros, aimagi- nagio, o fervor, o entusiasmo. Tocavaa rabeca para 0s outros, o violoneelo para si, quando muito para sua velha mie. Moravam ambos em lugarafastado, emumdos recantos da, cidade, alheios sociedade que os cercavae que os nio enten- dia, Nas horas de lazer, tratava Indcio do querido instramento ¢ fazia vibrar todas as cordas do coragio, derramando as suas hharmonias interiores, e fazendo chorara hoa velha de melan- 56 +o macuere © colia e gosto, que ambos estes sentimentos the inspirava a iiisica do filho. Os serdes caseiros quando Inicio nio tinha de cumprir nenhuma obrigacio fora de casa, eram assim pas- sados: sés 0s dois, com o instrumenta eo céu de permeio Aboa velha adocceu e morreu. Inicio sentiu o vicuo que Ihe ficava na vida. Quando o caixao, levado por meia dizia de artistas seus colegas, saiu da casa, Inicio viu irali dentro todo o passado, e presente, e mio sabia ce também todo o futuro. Acreditou que 0 fosse. A noite do enterro foi pouca para o re- ‘pouso que o corpo Ihe pedia depois do profundo abalo; a se- {guinte porém foi a data da sua primeira composigéo musical. Esereveu para o violoncelo uma elegia que nto seria sublime ‘como perfeigdo de arte, mas que o era sem divida como ins- ‘Piraglo pessoal. Compo-Iaparaci; durante dois anos ninguém ‘ ouviu nem sequer soube dela Aprimeiravez que ele troou aquele suspiro finebre foioito dias depoisde casado, um dia em que se achavaa sos coma mu- Ther, na mesma casa em que morrera sua mie, na mesma sala ‘emaqueambos costumavam passar algumas horasda noite, Era ‘primeira vex que a mulher o owvia tocar violoncelo, Ele quis que a lembranga da mie se casasse aquela revelagio que ele fania i esposa do seu coragao: vinculava de alguim modo o pas sado a0 presente = Toca um pouco de violoncelo, tinka-Ihe dito a mulher dduas vezes depois do cons6reio; tua me me diaia que tocavas ‘to bem! ~ Bem, nao sei, respondia Inicio; mas tenho satisfagio emtoci-lo, — Pois sim, desejo ouvir-te! ~ Porhora, nio, deixa-me contemplar-te primeiro a + CONTOS DE MACHADO DE ASSIS + Aocabodecit day, Inkinisfrodveo de Calta Eade de, umatrd ae delice, Oita tavn do fevrumeate,empunhow o aro ca corasgerera wt pul da no prada. Nova mulher, nem ohga nemo fnstumento equen via imagem dae eebeblaae todo mum mundo dcharmosia elena, Aeeculo duro vite tne: Quand tims nota expr ns cordas dvi Ioncloobrage doanisatombon, lode aig, mas porque todo corpocedianosblo moral ques recordgioeacbralbe rediam . — Oh! lindo! lindo! exclamou Carlotinha levantando-see Indotercomomaid. Inicio etemeoeneclhou peemado para aber, Aque- Incrclamaindecausame desea Ie, cm primero gst orgs otrecho qusediva de erestar ao ers lind, como adiinmanscyreemslancdllone depois pores emverde tmaplasorldoo, cle pefera er outro mals coouenneo coma niarra da cba, ~daslgszan que fer, — dua, tverpimias door comoae quem momeitolhe pitoms Seu primeiro movimento foi de dept, — deepeto de arin, quate dominara ad, Peon aenciono no nt mento fi po-loa um canto, Amora vl exo ig tn comorea-eeeestenex- Iho ran Talc specs wee. Gotan enton-teentecomele ap dane don- deviamcurdi no cfu arlacprimeine evel Era dia de dees aoe, paezendo dexenove tas ala que tla. roioamorennd,clhosnegrs etree, eer clon txpresso fil dal de Caro, contetavam som ella Sando evelado do mario, Ox movientor da moga ram 58 vivos eripidos, a voz argentina, apalavrafécilecorrentia, oda ela uma indole, mundana e jovial. Inécio gostava de ouvi-lae vyé-la;amava-a muito e,além disso, como que precisavais ve- zes daquela expressio de vida exterior para entregar-se todo as especulagdes do seu espirito, Carlota era filha de um negociante de pequena eseala, ho- ‘mem que trabalhow a vida toda como um mouro para morrer pobre, porque a pouca fazenda que deixou, mal pode chegar para satisfazer alguns empenhos, Toda a riqueza da filha era a ‘beleza, que a tinha, ainda que sem poesia nem ideal. Indeio, ‘conbecera-a ainda em vida do pai, quando ela ia com este vi- sitar sua velha mie; mas s6aamou deveras, depois que ela fi- cou 6rfi e quando alma Ihe pediu um afeto para suprir o que amorte lhe levara. Amoga aceitou com prazera mio que Inicio Ihe oferecia, Casaram-sea aprazimento dos parentes da moga edas pessoas que 05 conheciam a ambos. O vicuo fora preenchido. Apesar do episédio acima narrado, os dias, as semanas ¢ 03 ‘meses correram tecidos de ouro para 0 eeposo artista Carloti- ‘ha eranaturalmentefaceiraeamigade brilhar,mas contentava~ se com pouco, ¢ nlo se mostrava exigente nem extravagante. Asposses de Inicio Ramos eram poucas; ainda assim ele sabia dirigira vida de modo que nem o necessério Ihe faltava nem Aeixava de satisfazer algum dos desejos mais modestos da ‘moga. Asociedade deles nlo era certamente dispendiosa nem. vivia de ostentagio; mas qualquer que seja o centro social hi nee exigéncias aque nio podem chegartodasas bolsas. Carlo- ‘inha vivera de festase passatempos; vida conjugal exigiadela /abitos menos frivolos, cela soube curvar~se lei que de co- Tagio aceitara, 59 + CONTOS DE MACHADO DE ASSIS » Demais, que bi ai que verdadeiramente resista a0 amor? Os dois amavam-se; por maior que fosse o contraste entre a {indole de um e outro, ligava-os ¢ irmanava-os oafeto verda~ deiro que os aproximara. O primeiro milagre do amor fora a aceitagio por parte da moca do famoso violoncelo. Carlotinha nio experimentava decertoas censagdes que o violoncelo pro- duzia no marido, e estava longe daquela paixio silenciosa ¢ profunda que vineulava Inicio Ramos ao instrumento; mas acostumara-sea ouvi-lo, apreciava-o, e chegara aentendé-lo alguma vez, ‘A.csposa concebeu. No dia em que o marido ouviu esta noti- ‘ia tentiu um abalo profundo; seu amor cresceu de intensidade. = Quando o nosso filho nascer, disse ele, eu comporei o ‘meu segundo canto. — Oterceiro seré quando eu morrer, no? perguntou a ‘moga com um leve tom de despeito, — Obi nio digas isso! Inacio Ramos compreendeu a censura da mulher: reco- Theu-se durante algumas horas, e trouxe uma composigio no- va,asegunda quelhe sata da alma, dedicada esposa. Amnisica ‘entusiaemou Carlotinha, antes por vaidade satisfeita do que porque verdadeiramente a penetrasse. Carlotinha abragou 0 ‘marido com todas as forgas de que podia dispor, eum besjo fot 0 prémio da inspiraglo. A felicidade de Inicio nio podia ser ‘maior, ele tinha tido o que ambicionava: vida de arte, paz © ventura doméstica,e enfim esperancas de paternidade. = Seformenino, dizi cle mulher, aprenderé violoncelo; se for menina, aprenders harpa. Sio os tinicos instrumentos capazee de traduzir as impressbes mais sublimes do espirito. ‘Nasceu um menino, Esta nova eriatura dew uma feigdo nova aolar doméstico. A felicidade do artista era imensa;sentiu-se o so wacuete + com mais forga para o trabalho, ¢ao mesmo tempo como que se lhe apurou a inspiragao, Aprometida composicio ao naseimento do filho foi reali- zadae executada, mio jé entre ele ea mulher, mas em presenga dealgumas pessoas de amizade. Inicio Ramos recusou a prin~ cipio faz8-Io; mas a mulher alcangou dele que repartisse com estranhos aquela nova produgio de um talento. Inicio sabia ‘queasociedade nto chegariatalvez acompreendé-lo como cle desejava ser compreendido; todavia cedeu, Se acertaraaos seus reeeios nio 0 soube ele, porque dessavez, como das outras, nio viu ninguém; viu-se e ouviu-se a si proprio, sendo cada nota um eco das harmonias santas e elevadas que a paternidade acordara nele Avvida correria assim monotonamente bela, ¢ nlo valeria 4 pena escrevé-Ia, a nlo ser um incidente, ocorrido naquela ‘mesma ocasizo, Acasaem que eles moravam erabaina, aindaqueassazlarga © airosa. Dois transeuntes, atraidos pelos sons do violoncelo, aproximaram-se dasjanclas entrefechadas,e ouviram do lado de fora cerca de metade da composigdo. Um deles, entusias- ‘mado com a composigio e a execucio, rompeu em aplausos ‘uidosos quando Inicio acabou, abriu violentamente as por- tas da janela e curvou-se para dentro gritando, — Bravo, artista divino! Acexclamagtio inesperada chamou a atengio dos que esta- vam na sala; voltaram-se todos os olhos e viram duas figuras dehomem, um tranguilo, outro alvorogado de prazer. A porta fojabertaaos dois estranhos. O mais entusiasmado deles cor- Feu a abragaro artista ~ Ob! alma de anjo! exclamavacle. Como é que um artista ‘estes esté aqui escondido dos olhos do mundo? a + CONTOS DE MACHADO DE ASSIS + (catropersonagemferiguslmentecumprimentos delowvor aomectre do voloncel mas, como ficou dito, seus aplausot tram menos entusiistico; eno era dificil ackaraexplicagio dafrieca ma vulgaridade de expressio do osto, Estes dois personagens assim entradosna sala eram dots amigos que oacac ali condurira. Bram ambos estudantes de dlieito,em feria; oentusiasta, todo arte e literatura, tiabaa Sma chcade misicaalemae poesiaromantica,cerauadame- ros que um exemplar daquelafalange académica fervorosa€ toga animada de todas as paxdes, sonhos, deliroseefusdes da geraglo moderna, o companheiro era apenas um espirito ‘mediere, avesso a todas esta coisas, nto menos que a0 di- reito que als frcejava por meternacabesa “Aquele chamava-ee Amaral, este Barbosa. ‘Amaral peda Inicio Ramos paralévoltarmasvezes,Vol- tou; artista de coragio gastava otempo a ouvir ode profiseto fazer falara cords do natrumento.Eramcinco pessoa: le, Barbosa, Carlotinha, acrianga, ofaturovioloncelista Udi, menos deuma semana depois, Amaral descobriu Inicio que seu companbeiro era misico. — Também!exclamou o artista — fhyerdade; mas um pouco menos sublime do que 0 8e- hor, aerescentou ele sorrindo, Que instrumento toca? — Adivinbe — Talverpiano.. = Nao = Flats? — Qual! = instrumento de cordas? -# = Niosendo rabeca.. disse Indcio olhando como a espe- raruma confirmagio. — Nao érabeca:é machete Infeio sorru;eeststltimas palavras chegaram aos ouvi- dos de Barbosa, que confirmoua noticia do amigo. = Deixe estar, disse este baixo a neio, que eu o hei de fazer tocar um dia. £ outro gtnero.. — Quando queira Eraefetivamente outro género, como o leitorfacilmente compreenderd. Ali posts o: quatro, numa noite da seguinte semana, sentou-se Barbosa nocentrodasala,afinowo machete pds emexecugdo toda asua pericia.Apericiaera,naverdade grande; instrumento éque era pequeno. Oque eletovou nfo eraWebernem Mozart erauma cantigadotempo e daria, obra de ocasiao. Barbosa tocou-a, nto dizer com alma, mas com nerves. Todo ele acompanhavaa gradagio evariagdes das no- tas; inclinava-se sobre o instrumento,retesava o corpo, pen- diaa eabega ora aum lado, ora a outro, algavaa perna, sorria, derretia os olhos ou fechava~os nos lugares que le pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era 0 menos; vé-lo era o mais. Quem somente o ouvise nfo poderia compreendé-Lo, Foium sucesso, —um sucesso de outro género, mas peri- £080, porque, tio depressa Barbosa ouviu os cumprimentos de Cerlotinha e Inicio, eomegou segunda execugio, e ria ater- ceira se Amaral no interviesse,dizendo: = Agora o violonceo. O machete de Barbosa nto ficou escontido entre as quatro Daredes da sala de Incio Ramos; dentro em poucoeracouhe- ‘ida a forma dele no bairzo em que morava o artista, e toda a ociedade deste ansiava por ouvi-lo. 6 + CONTOS DE MACHADO DE Assis + Carlotinha foi a denunciadora; ela achara infinita graca e vida naquela outra misiea, e nto cessava de o elogiar em toda parte, As familias do lugar tinham ainda saudades de um cé- lebre machete que ali tocara anos antes o atual subdelegado, cujas fungbes clevadas nio lhe permitiram cultivar aarte, Ou- vir o machete de Barbosa era reviver uma pagina do passado. — Pois eu farei com que © ougam, dizia a moca, Nio foi dificil Houve dali a pouco reunito em casa de uma familia da tinhanga, Barbosa acedeu 20 couvite que Ihe foi feito e I foi ‘com o ¢eu instrumento. Amaral acompanhow-0. — Note lastimes, meu divino artista; dizia ele a Indcio;¢| ajuda-me no sucesso do machete. Riam-cce os dois, e mais do que eles se ria Barbosa, riso de triunfo e satisfagio porque o sucesso nio podia ser mais completo, = Magnifico! — Bravo! = Soberbo! — Bravissimo! (0 machete foi o her6i da noite. Carlota repetia as pessoas, que a cercavam: — Nao lhes dizia eu? € um portento. — Realmente, dizia um critico do lugar, assim nem 0 Fagundes. Fagundes era o subdelegado. Pode-se dizer que Inicio e Amaral foramos inicos alheios a0 entusiasmo do machete. Conversavam eles, a0 pé de uma janela, dos grandes mestres e das grandes obras da arte. — Voce por que nio dum concerto? perguntou Amaral ao artista “ so wacuere + — Oh! nao, — Porque? = Tenhomedo... = Ora, medo! — Medo de nto agradar... — Ha de agradar por forgal — Além disso, o violoncelo esté tio ligado aos sucessos ‘ais intimos da minha vida, que eu considero antes como a minha arte doméstia, Amaral combatia estas objegées de Inicio Ramos; e este {fazia-se cada vex mais forte nelas. Aconversa foi prolongada, repetiu-se dat a dois dias, até que no fim de uma semana, Inicio deixou-se veneer. — Vocé vera, dizia-Ihe o estudante, e verd como todo 0 pliblico vai ficar delirante Assentou-se que oconcerto seria dalia dois meses, Inicio tocariauma das pecas jécompostas porele, eduas de dois mes~ tes que escolheu dentre as muitas, Barbosa nio foi dos menos entusiastas da idéia do con- ‘certo, Ele parecia tomar agora mais interesse nos sucessos do artista, ouvia com prazer, a0 menos aparente, os ¢erbes de vio~ loncelo, que eram duas vezes por semana. Carlotinha propos que os serdes fossem ts; mas Inacio nada concedeuwalém dos dois. Aquelas noites eram passadas comente et familia; ¢ 0 ‘machete acabava muita vez 0 que o violoncelo comegava, Era uma condescendéncia para coma dona da casa eo artista! —o artista do machete ‘Um dia Amaral olhow Indcio preocupado e triste. Nio quis Perguntar-Ihe nada; mas como apreocupaglo continuasse nos dias subsequentes, nose pode tereinterrogou-o, Inicio res~ Pondeu-Ihe com evasivas. “ + conTOS DE MACHADO DE ASSIS + = Nio, diziaoestudante; vocé tem alguma coisa que oin- comoda certamente. = Coisa nenhuma! E depois deum instante de silencio: = Ogue tenho é que estou arrependido do violoncelo; se ceutivesse estudado 0 machete! ‘Amaral ouvin admirado estas palavras; depois sorriue aba~ nou acabega, Set entusiasmo reccberaumgrandeabalo. Aque vvinha aquele citime por causa do efeito diferente que os dois, instramentos tinham produzido? Que rivalidade era aquela entre aarte eo passatempo? = Nao podias ser perfeito, dizia Amaral consigo; tinhas por forga um ponto fraco; infelizmente para ti o ponto é ridiculo. Dat em diante os serdes foram menos amiudados. Apreo- cupagio de Inicio Ramos continuava; Amaral sentia que 0 set centusiasmo ia cada vez a menos, o entusiasmo em relaglo 30 hhomem, porque bastava ouvi-lo tocar para acordarem-se-Ihe as primeiras impressoes, “Atelancolia de Indcio era cada ver maior. Sua mulher 66 reparou nela quando absolutamente se Ihe meteu pelos olhos. = Que tens? perguntou-Ihe Carlotinha. = Nada, respondia Inicio. = Aposto que est pensandoem alguma composigio nova, Aisse Barbosa que dessas ocasides estava presente. — Talver, respondeu Inicio; penso em fazeruma coisa in~ teiramente nova; um concerto para violoncelo e machete. = Por que nao? disse Barbosa com simplicidade, Faga isso, veremoso eleito que hi de ser deicioso. — Euereio que sim, murmurou Inicio, “6 Nao houve concerto no teatro, como se havia assentado; porque Inicio Ramos de todo se recusou. Acabaram-se as f¢- ras € 0s dois estudantes voltaram para S. Paulo, — Vireive-lo daquiapouco, disse Amaral. Virei até cé so. mente para ouvi-lo. Efetivamente vieram 0s dois, sendo a viagem anunciada por carta de ambos. Inicio dew a noticia a mulher, que a recebeu com alegria, = Vem ficar muitos dias? disse ela, ~ Parece que somente ts, — Tres! — E pouco, disse Inacio; mas nas férias que vém, desejo aprender o machete, Carlotinha sorriu, mas de um sorriso acanhado, queoma- ido vin e guardou consigo, Osdois estudantes foram recebidos como-e fossem de ca- 42. Inicio e Carlotinha desfaziam-se em obséquios. Na noite domesmo dia, houve serio musical; 56 violoncelo,ainstincias de Amaral, que dizia: = Nio profanemos aarte! ‘Trés dias vinham cles demorar-se, ma nfo se retiraram no fim deles. = Vamos daquia dois dia, — Omelhor é completara semana, observou Carlotinka. ~ Pode ser, No fim de uma semana, Amaral despediu-se e voltou a S. Paulo; Barbosa to voltou; ficara doente. Adoenga durouo- ‘mente dois dias, no fim dos quais ele foivistar o violoncelista. — Vaiagora? perguntow este. — Nio, disse o académico; recebi uma carta que me obri- g2aficar algum tempo o Carlotinha ouvira alegre a noticia 0 rosto de Inacio mio tina nenhuma expressio. Tnécio mio quis prosseguir nos serSes musica apesar de Tho pedir algumas vezes Barbosa, e nao quis porque, dizia ele, rio queria ficar mal com Amaral, do mesmo modo que nio quereria ficar mal com Barbosa, se fosse este o ausente. — Nada impede, porém, concluiu o artista, que ougamos sen machete, (Que tempo duraram aqueles serbes de machete? Nao che~ ou tal noticia ao conhecimento do escritor destas linhas. O aqueelesabe apenas é que omachete deve serinstrumentotris- ‘tc, porque a melancoliade Inacio tornou-se cada ver mais pro- funda. Seus companheiros nunca tinham visto imensamente alegre, eontudo a diferenga entre o que tinba sido ¢ era agora centrava pelos olhos dentro, Amudanga manifestava-se até no trajar, que era deleixado, a0 contrério do que sempre foraan- tes, Inicio tinha grandes siléncios, durante os quais era initil falar-Ihe, porque ele a nada respondia, ou respondia sem compreender. — Ovioloncelo hé deleva-loaohhospicio, diziaum vizinho ‘compadecido e filésofo. Nas férias seguintes, Amaral foi visitar oseu amigo Inécio, Jogo no dia seguinte aquele em que desembarcou. Chegou al- vvorogado a casa dele; uma preta veio abri-Ia. — Onde esté ele? Onde esté ele? perguntou alegre e em altas voues 0 estudante. ‘Apreta desatoua chorar. “Amaral interrogow-a, mas nao obtendo resposta, ovobten~ do-a intercortada de solugos, correu para o interior da casa com a familiaridade do amigo e a liberdade que Ihe dava a oe so wacuere + Nasala do concerto, que era nos fundos, hou ele Inicio Ramos, de pé, com ovioloncelonas mos preparando-se para Bears dlc ores cx sing or ae ‘Amaral paou sem compreender nada, Inicio no oviuen- ‘rary empunhara o arco tocou, ~tocou como munea, — uma elegiaplangente, que estudanteouvincom ligrimas nos olhos ‘Arians dominada a0 que parece pela masia, olhava queta panaojinstrumento, Durou cena cere de vinte minutos. (Quando a misicaacabou, Amaral correua Into = Oh! meu dvino artista excamou ele. Inicio apertou-o nos brago; mas logo odeixou fai sen- tar-se numa adeira com osolhot no chio, Amaral nada com- preendia;sentia porém que algum abalo moral ce devanele ~ Que tens? disse. ~ Nada, espondeu Inicio, Eengueu-setocou de novo ovilonceo, Nao acabou poréms nomelode uma reads, iterrompeamisia, disse «Amaral — Ebonito, mio? ~ Sublime! rexpondeno outro. Nioc machete € melhor. Eeixou ovioloneelo,e conreuaabrasarofilho. ~ Sim, meu iho, exclamava ele, hide aprender mache- te; machete é muito melhor. = Mas que ha? aticulowo estudante ~ Oh! mada, disse Iniio, ela foi-seembora foi-se como ‘machete, Nio quis ovioloneclo, que € grave demais. Tem ra- io; machete é melhor. ‘Alma do maridochorava masos olhosestavamsecos. Uma hora depois enlougueceu o

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