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DUT HAUDIO FF CRIME E JOTIDIA NO A CRIMINALIDADE EM SAO PAULO (1880-1924) BORIS FAUSTO O que se retrata nesse livro 6 um periodo de mudancas profundas para o Brasil. Foi nessa fase que se sentiram as conseqiiéncias da abolicdo da escraviddo, da imigragao estrangeira, do nascimento das fabricas e do surgimento da massa operéri especialmente numa pequena cidade de pouco mais de 35.000 habitantes: Sao Paulo. Ela se transformaria, em 40 anos, no segundo centro urbano do pais, em tamanho @ portancia econdmica. Boris Fausto examina o fenémeno da criminalidade nessa fase, nsando o 10 de mudangas sociais da cidade. Sua preocupaciio + do se limita a criminalidade envolvendo aqueles que estéio & margem dessas mudangas, mas tenta compreender também 0 cédigo de ética social da época, a ideologia que move a sociedade para a condenagiio ou absolvico dos homicidas, prostitutas, assaltantes e criminosos sexuais. Crime e Cotidiano assume importéncia particular nos dias de hoje, para a compreensio de uma realidade semelhante aquela do comego do século e que voltamos a presenciar. editora brasiliense _WATURAS = «+ Arqueologia da Violéncia — Enssios de Antropologia Politica = Pierre Clastres # A“Conciliaglo" e outras Estratégias — Michel M. Debrun Crime, Violéncia e Poder — Paulo Sérgio Pinheiro (org.) ireitos Civis no Brasil, Existem? — Hélio Bicudo + Economia Politica da Urbanizagao — Paul Singer * Escritos Indignados"— Policia, Pris6es e Politica no Estado Autoritério — Paulo Sérgio Pinheiro Que Crise ¢ Esta? — Marcel Bursztyn/ Arnaldo Chain Pedro Leitéo (orgs.) 1+ Os Pobres na Literatura Brasileira — Diversos Autores ® Sociedade e Politica no Brasil Pos-64 — Maria Herminia T. de Almeida (org.) + Violancia, Povo e Pol ja — Maria Vietbria Benevides / CEDEC Coleco Primeiros Passos = O que é Direito — Roberto Lyra Filho + 0 que so Direitos da Pessoa — Dalmo de Abreu Dallari + O que 6 Justica — Jdlio C. Tadeu Barbosa + O que ¢ Poder — Gérard Lebrun + O que é Violencia — Nilo Odélia # O que é Violéncia Urbana — Régis de Morais Coleco Tudo 6 Historia ‘+ 0s Crimes da Paixio ~ Mariza Correia Boris Fausto Biblioteca Mo-Puc/sp OT 100134807 Crime e cotidiano A criminalidade em Sao Paulo (1880-1924) F_ppRiol tout wos Syos? 1984 Copyright © Boris Fausto Capa: Moema Cavaleanti Revisdo: José W.S. Moraes Vyomso 49.524 woe 5 editora brasiliense s. 01223 — r. general jardim, 160 so paulo — brasil Indice Agradecimentos 7 Introdugao ... : 9 Criminalidade e controle social . 30 Homicidio . 92 Furtos e roubos . 126 Crimes sexuais 173 Julgamento 226 Inconclusio 260 Textos .. 263 Nota sobre o procedimento 285 Fontes utilizadas .. 288 Para o Ruyeo Gordo Lopez ) Agradecimentos Minha lista de agradecimentos a pessoas que tornaram este livro possivel & bastante grande. Incorrendo em omissdes, lembro alguns nomes. Meu velho amigo hoje desembargador Fabio Moretzsohn de Castro me proporcionou os contatos para que pudesse examinar processos existentes no Arquivo do Tribunal de Justica do Estado. Os funcionarios do Arqui- vo me atenderam com extrema atengdo e amenizaram a minha estada na poeira ena umidade, que para eles permanente, com discussdes t4o variadas como os resultados dos jogos de domingo ou o precario aumento dos servidores piblicos. Arakcy e Leéncio Martins Rodrigues discutiram as pri- meiras opcdes da pesquisa. Reginaldo Prandi me orientou na claboragao do programa de computacdo, gastando varias horas de seu tempo. Cynira Stocco Fausto nao precisou ter paciéncia, nao datilografou nada e me ajudou enormemente em um certo modo de ver que espero seja uma das linhas de coeréncia deste trabalho. Carlos e Ser presentes na critica do texto. Os comentarios de Ligia Silva, Mariza Corréa e Barbara Weinstein a uma primeira versdo de parte do Capitulo I abriram caminho para uma reformula- 40. Peter Fry leu o manuscrito final, Nao pude assinalar a cada passo 0 quanto devo a sua critica sem concessdes, cuida- 5 BORIS FAUSTO dosa e estimulante, Em muitos pontos do livro ha sugestdes que so dele e algumas discordancias com Peter me permiti- ram tentar sustentar meu argumento. Por outro lado, lembro que dtimas condigdes de traba- Iho me foram proporcionadas por bolsas da ‘Guggenheim Foundation”, do ‘Social Science Research Council” ¢ da Associagao Nacional de Pés-Graduagao e Pesquisa em Cién- cias Sociais (ANPOCS). Foi de grande importancia para 0 contato com outra realidade a minha estada por 9 meses no ‘Woodrow Wilson International Center for Scholars” (Washington), entre outubro de 1980 e junho de 1981. Perso- nifico os agradecimentos as muitas atengdes recebidas do pes- soal do Centro, em seu diretor dr. James H. Billington. Introdu¢ao ESSE Este ¢ um estudo sobre criminalidade e crimes na cidade de Sao Paulo, entre 1880 ¢ 1924. As duas expressdes t@m sentido especifico: “‘criminalidade’” se refere ao fendmeno social na sua dimensio mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrdes através da constatagéo de regularidades cortes; “‘crime’’ diz respeito ao fendmeno na sua singularidade cuja riqueza em certos casos nao se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepgdes. A escolha do periodo ¢ a fixacdo das datas-limite nao acidental. Como se sabe, naqueles anos, ao lado e como parte integrante de processos sociais de émbito nacional, Sao Paulo experimentou um intenso crescimento econdmico e demogra- fico, onde a imigracéo desempenhou um papel de primeira grandeza. Por varias razdes — algumas de ordem geral, outras ligadas a condigdes peculiares —, a cidade converteu-se na- quele periodo em um campo fértil para o estudo da delin- qiiéncia, atualizando desafiadoramente questdes classicas como as das correlacdes entre criminalidade ¢ crescimento urbano, criminalidade e cor, criminalidade e populagao imi grante, para ficar em uns poucos exemplos. A rigor, duas cidades aparecem nas pontas deste traba. Iho. Em 1880, nao obstante 0 processo de crescimento ja 10 BORIS FAUSTO estar delineado, Sao Paulo ¢ ainda um micleo de pequena expresso, como pouco mais de 3000 habitantes, menor do que o Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belém. Apos atra- vessar alguns periodos de espetacular crescimento demografi- co, a cidade se convertera em 1924 em um importante centro urbano, com mais de 600000 habitantes, o segundo maior do pais desde 0 comeco deste século. A onda imigratoria, inicia- da em meados dos anos oitenta, chegara ao apogeu no ultimo decénio do século XIX para a seguir reduzir seu impeto. Enquanto em 1893 a maioria da populagdo de Sao Paulo (55%) era constituida de estrangeiros, estes em 1920 tinham- se convertido em uma minoria (36%), embora ponderdvel, da populacdo. Nos anos vinte, a vida de muitos imigrantes que haviam desembarcado jovens em terra estranha nos iiltimos anos do século, para “fazer a América”, se definira para bem ou para mal. Na luta pela sobrevivéncia e pela ascensdo social, familias se desigualaram, convivéncias se romperam no espa- 0 urbano. Os sonhos se realizaram para alguns ¢ as ilusdes se desfizeram para muitos. A tematica da imigragao se combina com o seu reverso: a tematica dos nacionais que viveram a “‘invasao”” de Sio Paulo, em uma experiéncia comparavel em certos aspectos & das pessoas de minha gerago que viram se transformar a cidade da oligarquia e dos filhos de imigrantes, em conse- giiéncia das migracGes internas. A nova onda de “‘invasores”” ocupou alguns dos velhos bairros proletarios ou acampou na periferia da cidade em ‘vilas”” e “‘parques”” cadticos, com nomes ironicamente apraziveis, meros letreiros de dnibus portadores de uma carga cinzenta e malcheirosa, aos olhos da gente mais favorecida. ‘Nos velhos tempos, cada grupo social reagiu a seu modo ou sofreu as conseqiléncias da onda imigratéria: a oligarquia que indiretamente a promovera, na busca de bragos para o campo, tratou de conté-la dentro das fronteiras da ordem, reservando para si as areas que institucionalmente podia blo- quear — os postos mais altos da administracao do Estado ¢ 0 comando politico; a reduzida pequena burguesia comercial e industrial sofreu 0 impacto de uma concorréncia ativa que produziu ressentimentos; os negros e mulatos foram cristali- zados em sua maioria no subemprego ou nos empregos infe- riores, nao obstante sua convivéncia fisica com os brancos pobres, em locais como os cortigos do Bexiga. ’ CRIME E COTIDIANO u A década de 1890-1900, caracterizada pelo crescimento populacional a uma taxa geométrica de quase 14% ao ano, pode ser vista como momento dramatico de passagem de Sio Paulo a maioridade, quando alguns problemas novos surgem € outros ganham intensidade. Em diferentes niveis, aparece a preocupagao de controlar, de classificar, ligada ao objetivo das elites de instituir uma ordem urbana. Propésito de clas- sificar, de entender, revelado na elaboragao de estatisticas criminais para a Capital, com um minimo de confiabilidade, a partir de 1892, ou na realizacao de um dos melhores censos da cidade em 1893.' Propésito de controlar segmentos da populacdo como as prostitutas, os menores vadios ou os pri- meiros organizadores do incipiente movimento operario, facetas diversas reunidas em um caleidoscopio regulador. A primeira noticia sobre a regulamentagdo do meretricio data de 1879, quando o chefe de Policia Augusto de Padua Fleury elaborou um projeto a respeito que ndo teve sequéncia. Em outubro de 1893, O Estado de S. Paulo voltou a levantar a questo, considerando os bordéis antros de jogo ¢ roubo. Poucos anos depois, em 1896, foi baixado o ‘*Regulamento Provisorio da Policia de Costumes”, sob inspiragao de Can- dido Motta, objeto aliés de muitas criticas. As campanhas contra os ‘“‘menores arruaceiros’’ ou abandonados, dos wi! ‘mos anos do século, resultaram na criag4o do Instituto Disci- plinar em 1902. Por ultimo, as primeiras prisdes de organiza- dores do movimento operario — socialistas e anarquistas que pretendiam comemorar 0 1° de maio — se deram em 1894. Por alguns anos, a partir desta data, as estatisticas de prisdes 0 maior cuidado ne elaboracso de estatisticas criminais 6 por si 36 ovelador, nas condigdes da época, Observando 0 cuidado com a mensuraglo ‘na Comédia humana de Balzac, Louis Chevalier assinala que isto no se deve ‘apenas a caracteristicas especificas da criacdo literéria, mas & conjuntura Social, conducente & preacupagao com @ medida @ & ampliacho das estatist. ‘cas. Chevalier contrasta a relative pobreza documental do Segundo Império ‘com a riqueza co material acumulada durante a Monarquia de Julho, lembrando lade’ do orimeiro em confronto com "as doentias condictes sociais tradas em inquietantes estatisticas. Cf. Louis , Classes laborieuses et classes dangereuses & Paris pendent la pre- ‘miere moitié du XIX siecle, 1958. 'Nao se code porém converter esta observagio em regra geral, Na S8o Paulo dos ltimos anos, quando a criminalidade assumiu 80 que tudo indica grandes propor;bes, as estatisticas s8o precérias @ defeituosas. Isto pode ser atribuido tanto’a deficitncia do funcionamento de 6rg8os piblicas como 20 ‘objetivo de maripular @ informacao, 2 BORIS FAUSTO incluiram 0 item ‘‘anarquistas’’, ao lado de outros como caf- tens, ‘‘gatunos” etc.? A referéncia a ultima década do século XIX como mo- mento dramatico na vida da cidade nao pressupde um corte brusco. Em primeiro lugar, seria erréneo pensar que Sao Paulo tenha sido alguma vez algo semelhante a um lugar idili- co. Desde os tempos coloniais, ha referéncias esparsas 4 pra- tica de delitos, a existéncia de gente pobre, doente, mendi- gando nas ruas. Afora isto, € certo que o interesse pelo tema da criminalidade, assim como as noticias de crimes, vinham em um crescendo desde os anos setenta. Mas 0 Ultimo decénio do século — ressalvado certo arti- ficialismo inevitavel em qualquer periodizacdo — representa uma inflexdo. Na imprensa, descontada a nota folhetinesca, reflete-se a desconfianga pelo novo, o temor indefinido do crime, 0 desejo de ordem, como transparece neste texto do Diério Popular, a propésito da morte de um comerciante: “Sao Paulo, que ha muito tempo nao fornecia aos jornais sendo fatos insignificantes, encaixados em duas linhas insipi das de gazetilha, sem 0 relevo de um comentario; Sao Paulo, na semana finda elevou-se, em relacdo a assaltos ¢ agressoes, a.uma altura a que nunca chegaram o pinhal de Azambuja ¢ 08 bosques da Calabri assassinato de Paulista (nome da vitima) que causou sério sobressalto nesta popula¢do despreocupada, ou antes preocu- pada com as incorporages quand méme de companhias, assassinato cometido friamente com uma sanguinaria brutali- dade inqualificavel, fez percorrer pelo dorso da populacdo o calafrio do medo e fez-lhe erigar os cabelos de terror. © local, a hora, 0s meios, os fins do barbaro assassinato, tudo premeditado com firmeza e tudo consumado com uma pericia digna da guilhotina, se ela existisse em nosso pais € fossem presos os miserdveis, fizeram com que 0 povo que perambula de noite se munisse de armas, pouco confiante na solicitude e eficdcia de nossa deficiente policia, 2 Sobre 0 toma da prostituigBo ver olivro pioneiro de Guido Fone io em So Paulo, 1982. A defesa do Regulamento da Poll ncontra em Candido Mota, Prostituiéo. Policia de costu brio apresentado a0 Exmo, Dr. Chefe de Policia, S80 Paulo, 1897 Sobre a questo do menor ver Candido Mota, Os menores delinquentes @ 0 seu tratamento no Estado de Séo Paulo, 1903, CRIME E COTIDIANO B Realmente, nao era das mais agradaveis a perspectiva. Pensar que ao regressar ao lar, tranquilamente, podia o cidadao ser abafado por dois ou trés homens possantes, sedentos de san- gue e famintos de dinheiro, que nao tém coragem de ganhar a vida pelo machado do trabalho ¢ sim coragem para ganha-la pelo trabalho da machadinha, pensar tudo isso era simples- mente horroroso! Entretanto, ¢ a crdnica aplaude-a, a policia fez um belo movi- mento de atividade, saiu a campo com zelo desusado e louva- vel; e, embora diga 0 povo que ela se parece com aquele que trancou as portas depois de ser roubado, a crénica reconhece que ela tem feito o possivel para descobrir 0 paradeiro dos ferozes assassinos de Paulista, e também tem feito bem em chamar a sua presenca os individuos que por ai andam e que a gente no sabe 0 que querem, de onde vieram ¢ para onde Vio, cinicos, calmos, ociosos. Nao desanime a policia, seja a policia forte, e mesmo que seja violenta as vezes, que importa? — afim de restabelecer os cré- ditos de Sao Paulo gravemente comprometidos por celerados sem nome, prendendo-os, ¢ de assegurar 0 sossego de todos, detendo os viciosos, desocupados e mendigos, cogumelos nacionais ¢ importados que vivem a sombra do trabalho alheio”.” Na medida em que a violaco das normas penais vinha associada a recente presenga macica de estrangeiros, o pre- conceito contra estes e a sua associagao com a criminalidade ganhou nitido contorno naqueles anos. Aparece aqui a outra face da imigragao, a dos fracassados, dos aventureiros, dos fugitivos da justica, que nao se enquadra nos moldes do abne- gado trabalhador, da gente ativa que estava suplantando os nacionais na pequena indistria e no comércio. Relatérios policiais responsabilizam os estrangeiros pelo avanco da cri: minalidade, teme-se que o Brasil comece a receber alienigenas de “etnias indesejaveis”.* A propria associagdo profunda 3 Didrio Popular, 29.1.1892. * Um dos mais curiosos artigos acerca das ‘etnias indesejéveis” diz res peito aos judeus, especialmente os judeus russos. Trata-se de um artigo assina {do por “Um Paulista” cujas consideracdes ‘nfo sio ditadas por qualquer pr Cconceito anti-semitico, mas pura e simplesmente sio filhas do muito amor qu dedicamos a nessa pétria". A inconveniéncia da admissao de judeus funde-se 6 BORIS FAUSTO entre 0 negro ¢ 0 crime ou simplesmente 0 écio cedeu no pe- riodo algum terreno, Para nossos ouvidos acostumados a ligar a figura do imigrante a disciplina ¢ ao trabalho soa estra- nho ouvir por exemplo a acusagdo de que os mendigos que infestam as ruas do Centro nao sao pretos, mas sobretudo imigrantes ociosos.’ Alguns textos oficiais daqueles anos vin- culam também o crescimento da mendicdncia ao influxo de estrangeiros. O relatério do chefe de Policia de 1895 faz esta vinculagao € pondera que conseguiu entretanto reduzir em muito a presenca de mendigos alienigenas no centro da cida- de, local por eles preferido. O objetivo foi alcancado vedan- do simplesmente a entrada destes elementos na zona central e em outros pontos concorridos.* Em suma, na ultima década do século XIX, Sao Paulo parece perder sua inocéncia, sacudida pela tensdo entre na- cionais e estrangeiros — de que o episodio do Protocolo Ita- liano é a demonstragdo mais evidente —, pelo crescimento desmesurado, pela ameaca de uma completa desfigurago em que a criminalidade, na consciéncia dos contemporaneos, é um elemento relevante. Depois, os tragos mais radicais deste periodo parecem desaparecer, como se a virada do século viesse anunciar novos tempos. Obviamente, os focos de tensao nao se extinguiram e, em alguns casos, como o das reivindicagdes operarias, ganharam mesmo maior impeto. Mas, 0 refluxo da imigra- ‘em argumentas de ordem sdcio-econdmica @ bioldgice. Inicisimente, o articu "a5 culturais e climaticas entre o Brasil e a Russia para de descontentes ieo8, of quais ou te transtormi bando de pedintes e quie4 de criminosos impelidos pela nect ‘a contradi¢ao no importa — acusa os judeus de monopoliz Gas 8 uma perseveranca mal compreendida, pois é posta a servico da seita, {da famiia ou do individu porque eles no tém patra. Afinal, associa doenca e {cae malditas, a partir das opinides de um corto professor Wuna, alemio judeu de origem, um dos mais acatados especialistas do mundo em doenga da ppele. Segundo 0 professor Wuna, os judeus 580 atacados pela mortéia com uma preferaneia assustadora, conclusso cientifica confirmatéria da modesta ‘observacdo do autor que jé notara ter 0 morfético em nosso pals, quase sem pre, um tipo acentuado de judeu. Diario Popular, 29.1.1 892 ® Didrio Popular, 30.8, 1892. Para a frequente associacao entre gatuno fe estrangeiro, ver Diério Popular, 31.3.1891, ¢ 23.5.1892 ° Releténio apresentado a0 Secretério dos Negocios da Justica do Estado de Sio Paulo pelo Chefe de Policia Bento Pereira Barreto (Ano de 1895), S80 Paulo, 1896. ‘CRIME E COTIDIANO 1s Gao, refletido no crescimento da cidade em ritmo mais mode- rado, permitiu entre outros fatores uma rpida acomodagao. A perda da inocéncia nao se tornava catastréfica. Afinal, era possivel a convivéncia entre as diferentes “etnias”, assim como era possivel lidar com 0 movimento operario, toleran- do-o ou reprimindo de acordo com as circunstancias. No terreno especifico da criminalidade, a sensagao de inseguranga refletida na imprensa deu lugar a uma “‘naturali- zacao” do crime, fendmeno inevitavel como os cortigos — que se presume constituir um de seus focos — ou as inunda- goes. Aqui e ali, nas criticas as autoridades policiais, fala-se de S40 Paulo como uma cidade perigosa. O tom geral porém nao é assustador, e a impressdo mais duradoura que se vei- cula é de uma cidade relativamente trangaila, em contraste com a Capical da Republica. A importagdo temivel parece ser sobretudo « proveniente do Rio de Janeiro, quer se trate de estrangeiros ou nao. Com certa frequiéncia, a imprensa consi- dera alguns assaltos inusitados obra de ladrdes cariocas, per- seguidos pela policia. Ja em 1898, embora ainda estabelecesse correlagdes entre a condigdo de alienigena e a criminalidade, 0 jornal A Nagao assinalava o contraste entre Sao Paulo e 0 Rio de Janeiro, em um artigo intitulado ‘“Emigragao Perigo- sa””: uma leva de ladrdes est sendo premida a sair do Rio, “‘valhacouto natural da malandragem, que la tem seus nicleos constitutivos e quase, por bem dizer, sua escola primaria de vicio’’, buscando Sao Paulo pelas muitas atragdes de ganho, dada a existéncia de uma populagao abastada.” A “naturalizagao”” do crime nao implica 0 desinteresse. Pelo contrario, ele se torna componente integrante do dia-a- dia como alimento cotidiano de uma parte do publico letra do, especialmente apés o surgimento de uma imprensa sensa- cionalista nos anos dez." Vai-se operando entretanto uma hi ? A Necéo, 14.12.1898. A percepcdo das diferencas, apesar da lingua gem, naoe selina provavelmente ds distincdes da estrutura social das 6 dizer muito. O tema se abre a pesquisas cheias de No interior de um mesmo Contexto amp, hotérias. Basta pensar na amplitude do fendmeno do jogo do bicho, na correlacao entre a marginalidade, ola de samba @ os clubes de futebol no Rio de Janeiro, ou mesma na cif: posture de certas autoridades polciais o judicirias dos dois centros, ® Em tomo da ultima década do século XIX, o noticiério criminal ganha dostaque nos jcrnsis respeitéveis como O Estado de S. Paulo e 0 Correio Pauls: possi 6 BORIS FAUSTO. rarquizagdo mais clara dos delitos, segundo o prestigio dos envolvidos, as circunstancias em que ocorrem ou os objetivos visados: “‘Depois de uma calmaria de longos meses, a policia registrou ontem um fato de sangue que, por algumas horas chegou a impressionar a populagao desta Capital, ja esquecida das tre- mendas tragédias desenroladas nos primeiros meses deste ano. Durante algumas horas, a noticia da terrivel cena de que foi teatro um campo existente ao lado da estrada da Boiada impressionou a populacdo, impressdo que foi-se desfazendo logo que soube serem 0 protagonista ¢ a vitima pessoas des- classificadas. E, de fato, o drama sangrento de ontem pouco interesse pode despertar: é um crime de terceira classe, como se diz na giria da reportagem... O caso é simples: um pardo bogal, julgando-se ludibriado pela amante, mata-a desfechan- do horas depois um tiro no ouvido™.* O crime excepcional continua a ser cantado seja nos jornais seja através dos folhetins. Exemplo dos exemplos, o folhetim intitulado “*O crime da mala ou um criminoso inocente”, narrando 0 assassinato do comerciante Elias Farah, ocorrido em setembro de 1908. Pela categoria social dos envolvidos, pelo mistério dos motives encerrando um possivel mas nao comprovado adultério da mulher da vitima com o acusado Miguel Trad, pelos ziguezagues desnorteantes da palavra do réu, pela forma inusitada de livrar-se do cadaver que dé ao delito seu rotulo distintivo, o crime de Trad sensibiliza como nenhum outro a sociedade da época."” No senso comum, a histéria da criminalidade — dificil de ser pensada como um tema “digno’? — nao poderia ‘ocupar-se de outra coisa sendo do acontecimento excepcional ‘ou dos grandes personagens, convertendo-se em uma historia or um certo est Crimes misteriosos. A aparicBo da imprer Capital, « mesmo © Combate) vem radicalizer estes tracos. 8 0 Comércio de Sio Paulo, 17.8.1910. 10 Um andincio detalhado da vends do folhetim se encontra em O Comér- io de Sé0 Paulo, 31.10.1908. CRIME E COTIDIANO 7 dos crimes. Os meus dedicados amigos do Arquivo Judiciario do Estado, por exemplo, talvez nunca chegaram a entender que eu me preocupasse com pilhas de pacotes empoeirados, onde se amontoam dados repetidos sobre imigrantes obscu- ros ¢ ladrdes ‘pé-de-chinelo”’. O importante para eles era localizar o primeiro crime da mala, as facanhas de Meneghet- ti, equivalences aos fastos comemorativos ¢ aos personagens ilustres da historiografia nobre. Entretanto, uma de minhas preocupagdes consiste em apreender regularidades que permitam perceber valores, representagdes € comportamentos sociais, através da trans- gressdo da norma penal. Isto pressupde uma opcao prévia, como resposia a uma questo freqiente em estudos sobre cri- minalidade. Ao lidarmos com 0 crime estariamos lidando com uma relacdo individual aberrante, pouco expressiva dos padrdes de conduta ou das tenses reais de uma determinada sociedade? A historia da criminalidade seria quando muito uma historia do desvio, daquilo que a sociedade repele inten- samente? Parto de outro ponto de vista, ou seja, de que, se apreendida em nivel mais profundo, a criminalidade expressa a. um tempo uma relagao individual e uma relagao social indi- cativa de padrdes de comportamento, de representagdes € va- lores sociais. Varios comportamentos, definidos como crime = do incesto ao homicidio — nao so muitas vezes outra coi sa sendo a expresso de desejos ou de um potencial de agres- sividade reprimidos que se explicitam. A preocupagao com as. regularidades nao significa porém 0 abandono do excepcio- nal ou daquilo que na aparéncia é apenas pitoresco. No s6 fatos desta ordem podem ser o sal de uma demonstracdo, como podem ser reveladores de dimensdes nao apreendidas de outra forma. O texto aborda a tematica a partir de dois niveis distin- tos: um deles, de espectro mais amplo, procura estabelecer quantitativamente as grandes linhas da criminalidade do pe- riodo, expressas no niimero de infracdes, na sua distribuicao por tipos de delito, na correlagdo entre nacionalidade, idade, sexo, cor etc. e quebra da norma penal; o outro, de uma pers pectiva que pretende ganhar em profundidade o que perde em extensdo, empreende a anilise de trés tipos de delito — os homicidios, 0s furtos/roubos ¢ os chamados crimes contra os costumes — abrindo-se para os temas da vida e da morte, da propriedade ¢ do sexo. 18 BORIS FAUSTO Em cada um dos niveis indicados, utilizei preferencial- mente materiais com caracteristicas peculiares que acho signi- ficativo ressaltar. No primeiro caso, as estatisticas sao a fonte predominante. Na literatura internacional sobre criminalida- de ha uma longa discussao acerca dos problemas conceituais metodoldgicos suscitados pelas estatisticas criminais, que tomou as vezes a forma de uma mengao ritual aos problemas, a ponto de um autor como Hindus ter-se recusado, em um ensaio, a repetir a litania acerca das dificuldades e utilidade do material estatistico."" As dividas em torno do significado das estatisticas criminais vao desde a negag&o de seu valor para certos periodos historicos até a questo mais complexa de quanto ¢ 0 que elas medem." De fato, as estatisticas refe- rentes a prisdes, ou a processos criminais, correspondem ao nivel da atividade policial e judiciaria, variével em fungdo da eficacia. A questdo da eficacia nao é apenas técnica, mas esta ligada a discriminagao social e as opgdes da politica repres- siva, sobretudo no campo das contravengdes. Certas condu: tas passiveis abstratamente de sangdo s6 se tornam puniveis, quando se referem aos pobres. Basta pensar na embriaguez, contravengao aplicavel apenas aos individuos pouco respeita- veis, pois os demais ndo séo bébados mas pessoas “‘tocadas””, ‘ou ‘‘um pouco altas’’. Ao mesmo tempo, o aumento ou a queda de prisdes por algumas infragdes (a vadiagem ¢ 0 exemplo mais flagrante) pode refletir nao uma “alteragdo da realidade"” mas apenas maior ou menor preocupacdo repres- siva com relagao a determinados comportamentos. Além dis- so ha comportamentos considerados legalmente delituosos que em regra nao sao levados ao conhecimento da policia ou pelos quais ela ndo demonstra interesse, como € 0 caso do espancamento da mulher pelo marido; outros dependem da ' Michael Stephen Hindus — “"The Contours of Crime and Justice in Massachusetts and South Caroling: 1767-1878", in The American Journal of Legal History, 1977. *2 JL. Tobias, escrevendo sobre o caso da inglat industrial society in the nineteenth century, 1967, abandt tion”, em E. A. Wrigley (ed.), Nineteenth century society: Essays in the use of quantitative method for the study of social deta, 1972 CRIME E COTIDIANO, » Auto manuscrito de qualificagao de Antonio Caputo, acusado de homicidio (1906). 20 BORIS FAUSTO iniciativa da vitima ou de seu representante legal, como ocor- re em alguns crimes sexuais. A relatividade das estatisticas de prisdes representa sob certos aspectos uma limitaco. Mas aquilo que aparece a pri- meira vista apenas como lacuna tem virtualidades capazes de abrir caminho para outros nives de conhecimento. As estatis- ticas refletem bem ou mal uma pratica repressiva que tem uma relagdo complexa com a “‘criminalidade real”” ou mesmo com o crime tal como definido nos cddigos. Exemplificando, nao s6 a pratica repressiva até certo ponto seleciona e indivi- dualiza a seu critério 0 conjunto de agdes criminosas como criminaliza condutas indiferentes do ponto de vista penal — a priso de homossexuais sob variados pretextos é um exemplo claro. O estudo das infragdes especificas baseia-se fundamen talmente na analise de processos penais, uma fonte cheia de peculiaridades que merecem uma referéncia mais detida. Na sua materialidade, cada processo € no periodo considerado um produto artesanal, com fisionomia propria, revelada no rosto dos autos, na letra caprichada ou indecifravel do escri- vao, na forma de tragar uma linha que inutiliza paginas em branco. Nao por acaso, as resisténcias a introdugao da datilo- grafia de depoimentos articularam-se historicamente, nos meios forenses, em torno dos riscos da perda de autenticidade do processo. A peca artesanal contém uma rede de signos que se impdem a primeira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso. Distingdes espaciais expressam-se nos erros de grafia, na transcrigao em conjunto dos depoimentos de varias testemunhas, indicando que um proceso foi instau- rado em um bairro distante, com marcas fortemente rurais. Pobreza ¢ riqueza deixam por vezes nitidas pegadas distinti- vas. Em um extremo, a relativa uniformidade resultante da sucesso de declaragdes, que nao é cortada pelas peti¢des de advogado; os requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, onde os requerentes esclarecem que deixam de selar Por falta de recursos. No outro, as transcrigdes dos diferentes atos processuais entremeados de petigdes de advogado, em Papel linho timbrado; os memoriais impressos, distribuidos aos desembargadores; a peca de defesa datilografada que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestigio do pro- prio defensor. Isoladamente, talvez 0 texto mais carregado de ‘CRIME E COTIDIANO. a significagdes seja 0 documento de antecedentes, juntado em regra pelo réu, valendo-se de sua rede de relacdes — vizinhos, patrdes, colegas, compatriotas, conterraneos, fregueses. Ele serve para demonstrar, conforme o caso, a conformidade do acusado com 0 modelo sécio-familiar, sua origem respeitavel etc. Toda uma gradagdo da eficacia do documento se insinua, segundo quem o emite, a forga de seu conteiido ver- bal, os signos formais de que esta revestido. ““Papeluchos de favor", escritos a mao, em papel ordinario, onde se enfilei- ram frageis assinaturas anénimas contrastam com documen- tos na solene expressdo do termo, em papel timbrado, da grafados, contendo a assinatura de pessoas influentes ou representantes de grandes empresas. Que importancia dar aos garranchos de gente humilde do Bras, afirmando que um jovem indiciado por roubo é um mogo de bom comporta- mento? Como negar valor a declaragao de um deputado fede- ral, atestando que um rapaz — acusado de furtar centenas de campainhas de casas ricas — “‘sempre teve excelente proce mento em Taubaté, onde mora, sendo neto do barao de Serra Negra, sobrinho do antigo arcebispo do Rio de Janeiro e de dois membros ja falecidos da magistratura paulista’ Na sua materialidade, 0 processo penal como documen- to diz respeito a dois “‘acontecimentos”” diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuacao do aparelho repressivo. Este Gltimo tem ‘como movel aparente reconstituir um acontecimento origina- rio, com o objetivo de estabelecer a ‘‘verdade” da qual resul- tard a punicao ou a absolvi¢ao de alguém. Entretanto, a rela- 40 entre o processa penal, entendido como atividade do apa- relho policial-judicidrio e dos diferentes atores, e 0 fato con- siderado delituoso nao é linear, nem pode ser compreendida através de critérios de verdade. Por sua vez, 0s autos, expri- mindo a materializacao do processo penal, constituem uma transcrigéio/elaboragéo do processo, como acontecimento vivido no cenario policial ou judiciario. Os autos traduzem a scu modo dois fatos; o crime ¢ a batallia que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver. processo constitui o elemento dindmico na relagao fato criminoso-processo-transcrigao material (autos). Como observou Mariza Corréa, 0 processo é de certo modo uma invengao, uma obra de ficeao social, Reproduzindo suas pa- lavras, ‘‘no momento em que os atos se transformam em n BORIS FAUSTO autos, 0s fatos em versdes, 0 concreto perde quase toda a sua importancia e o debate se da entre os atores juridicos, cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce o seu ponto de vista. Neste sentido é o real que é processado, moi- do até que se possa extrair dele um esquema elementar sobre © qual se construiré um modelo de culpa e um modelo de ino- céncia’’."” Este modelo de culpa e de inocéncia apresentado aos julgadores nao se constréi arbitrariamente, mas segundo uma légica ordenadora constituida por um conjunto de nor- mas sociais. Tais normas abrangem tanto aquelas cuja viola- ¢&o acarreta uma sano penal como outras que dizem respei- to a conformidade com identidades sociais — a conduta ade- quada segundo 0 sexo, segundo o papel a ser exercido na fa- milia etc. Se 0 comportamento desviante destas identidades nao implica de per si a aplicagdo de pena, é trazido a baila quando as normas do primeiro tipo sao transgredidas, transformando-se nesta atualizacao em “preceito penal”. Ou seja, o comportamento inadequado pode importar em condenacdo ou em exasperacdo da pena, produzindo o com- portamento oposto 0 resultado inverso, O processo se corporifica através de uma série de proce- dimentos dentre os quais se destaca um conjunto de falas de personagens diversos. A emissdo destas falas ¢ a forma de capta-las ndo ¢ indiferente & construgdo do proceso. Tome- mos 0 caso das testemunhas e do acusado. Se é certo que qualquer discurso desfigura mecanismos e contetidos interna- lizados, ainda quando se procura torna-lo 0 mais livre pos- sivel, isto tanto mais verdadeiro no caso especifico, onde a intencdo é oposta. As condi¢des em que se produz a fala das testemunhas dificultam a emissdo; o objetivo dos que aparen- temente a liberam conduzem, pelo contrario, a sua captura. Para uma pessoa das classes populares sobretudo, 0 aparelho policial e judiciario representa uma perigosa maquina, movi mentada segundo regras que Ihe so estranhas. E bastante ini- bidor falar diante dela; falar o menos possivel pode parecer a tatica mais adequada para fugir as suas garras.'* Condicio- Morte em familia (19831, p. 40. ‘0 Languedoc frances de fins do sécu se apr motivago dos CRIME E COTIDIANO 2 Lit M rit Ib Ga thy ce elie lb SMe wil edhoviels rpetig 0 ee } the wtpaere sh Mite OW See? tl, ee a0 0 pes had whe sabith d tobe te te hermd, ot 8 00 nacinied wale i te Soe eC eee Benin Cork Miss Us brsucl dot 6M de Pars oon Vo algae bu oat po 0 donwernenle: ibe: cal nerve rmalednded tyrpedas fine thse des pons pabe cS trae torveth oases o rere fix sallar carr » dalle deste Vite pond ted belived Urcsios he Fhranal sm Srrelaga 00/ th Ramhe ae eg “fan Cork Declaragao de bons antecedentes enviada por autoridade espanho- Ja, em favor de um acusado de homicidio (1904). 2m BORIS FAUSTO. nada por estes elementos, a fala da testemunha é também rigida pelos manipuladores técnicos, na feliz expresso de Mariza Corréa, Em regra, ela s6 discorre sobre aquilo que Ihe € perguntado, sua palavra é cortada quando a narrativa, a critério das autoridades, nao é pertinente para o esclareci- mento dos fatos. Seu discurso deve ajustar-se ao padrao de identidades sociais vigentes, atestando a correspondéncia ou ndo correspondéncia das partes envolvidas, a este padrao. ‘Além disso, ao ser transcrito, o discurso eventualmente complexo da testemunha é remetido a um conjunto de regras altamente formalizadas (as normas do processo penal, 0 Co- digo Penal). Um depoimento cheio de veredas, de nuangas ¢ contradigdes pode ser traduzido como comprovagao de que 0 réu agiu por motivo frivolo, ou sob perturbagao dos sentidos etc, etc. Em um procedimento analogo ao da imprensa, os manipuladores técnicos — cada um com suas variantes espe- cificas — encerram as diferentes falas em uma camisa-de- forca padronizada, tecida segundo os cénones do jargao judi- cidrio e da linguagem erudita. Apagam-se os tracos da emo- do mais auténtica — ja de si impossivel de ser transcrita — a linguagem “‘pesada’” das classes populares, 0 macarronico dos imigrantes."* As declaragdes se convertem em misto de depoimento e noticia, ao passar na transcric4o da primeira pessoa para a terceira. A nova vestimenta do discurso coloca na boca de criangas de cinco ou seis anos descrigdes de rela- ges sexuais em linguagem médico-legal, transforma pobres mogas em ventriloquos que descrevem seu “‘desvirginamento”” ou seus “‘contatos carnais”. Ha porém outra voz limitada ou suprimida no processo: a voz do acusado. O padrao consiste em um progressivo apa- gamento de sua fala, ao longo do processo: presta declara- ges mais ou menos extensas no inquérito policial, reduz o seu discurso ao ser interrogado pelo juiz na fase judicial e iso, de observacdo. Yves Casta TrAncien Regime dans le ressort du Parlement de Toulouse /Mentalités rurale et urbaine 8 la fin de ‘aprés les sacs 8 proces criminels (1730-1790)"", p. 116, in Crimes et criminalité en France respostas monossilabicas de certos acusados ov lenérgicas, as blasfémias exclamatorias d8o ritmo a linguagem popular, que, forgada & decéncia judicisria, morre de enemia, Castan, op. cit, p. 117. CRIME E COTIDIANO, 2s perante o Tribunal do Jiri. A fala do acusado é ainda menos livre do que a das testemunhas. Ela é parcialmente liberada para servir a determinados fins. No inquérito policial, 0 obje- tivo maior — quando a intengao é acusatoria — consiste em extrait a confissao; em juizo, 0 réu s6 responde sobre 0 que Ihe é perguntado e’as suas respostas, inclusive por influéncia do advogado, devem ajustar-se nao & sua verdade mas a ver- sto da defesa, Uma armadilha espreita a fala do acusado: em principio, tudo o que disser em seu favor nao constituira prova em seu beneficio, mas o que disser em contrario podera levar & condenagao ou ao agravamento da pena. Desta regra ndo decorre porém a consequéncia de que a melhor estratégia ¢ calar-se. Pelo contrario, os Codigos condenam o siléncio: se © acusado nao fala, o siléncio — tanto quanto as declaragdes incriminatorias — pode reverter em seu desfavor. E preciso pois falar, mas falar de modo conveniente, o que nao signiti- ca apenas expressar-se verbalmente. O acusado deve cons- truir uma imagem que se ajuste ao modelo de sua identidade social, ao temor reverencial devido a justiga. Isto se traduz ndo s6 pelas palavras, mas pelo gesto, pelo modo de sentar- se, de responcer as perguntas, de colocar-se diante do corpo de jurados. ‘As peculiaridades do processo penal apontadas até aqui impdem limites e desafios mas nao chegam a representar uma lacuna. Esta consiste no fato de que os processos nao contém a transcrigdo dos debates perante o Tribunal do Jiri, por oca- sido do julgamento, reduzidos a uma breve formula estereoti- pada, A lacuna é considerdvel por varias razdes. Os discursos de acusagao e defesa representam uma fonte importante para a apreensao ce valores e representagdes sociais, permitindo localizar pontos sensiveis, capazes de determinar as opgdes do corpo de jurados. No por acaso, a metafora teatral nos vem sempre & mente na referéncia aos debates do Jiri: um espetaculo onde dois atores basicos dramatizam versoes diver- sas de um fato reelaborado no proceso, utilizando os recur- sos de expressfo (a rcpulsa, a comiscragao, a ironia ctc.) ade- quados 20 momento. Por outro lado, no tempo a que se refere este texto, a cena do jéri pode ser encarada também como um espetaculo em sentido estrito que alcanga um piiblico presente e um pii- blico mais amplo através da comunicacdo escrita. Nos gran- des dias, os personagens se paramentam para um aconteci- 6 BORIS FAUSTO mento brilhante da vida mundana. Em um rumoroso julga- mento de 1910, 0 advogado de defesa “‘compareceu trajando bem talhado ‘frack’, calcas de xadrez, colete de fantasia, botinas de verniz, tendo constantemente na mao um lengo de seda roxo".'* A presenga do pitblico — elemento de reforgo ideol6gico do qualificativo ‘popular’ atribuido ao jari —, € parte componente da encenacdo, e seu comportamento esta de antemao previsto. As emogdes que 0 espetaculo provoca nfo podem ser exteriorizadas: as campainhas do presidente poem fim as palmas, aos sussurros crescentes, aos esbogos de vaias. Apesar dos limites, 0 que atraia este piiblico? O plena- rio do juri concorria com o teatro, o drama circense, como arena onde se encenavam as grandes paixOes, os rasgos de he- roismo, as perversidades humanas. E bem verdade que a mu- Iher adiiltera, o marido traido, o parricida, o sedutor de don- zelas nao eram simbolizados diretamente mas trazidos a cena por duas ou trés figuras masculinas. O final compensatorio nao estava também assegurado. Em troca, o fato de que o desfecho ficava em aberto dentro de certos limites agucava a expectativa, sobretudo porque ele se convertia em momento da vida real, corporificando-se em uma figura muda, quase alheia na aparéncia ao espetculo. Toda uma mitologia se criava em torno dos grandes atores: o promotor imbativel, 0 advogado amargurado e bébado que tinha melhores condi- ges para viver a infelicidade do réu e alcancava absolvigdes impossiveis. A cena de julgamento de um homicidio, em 1896, ndo era incomum: “‘o povo que enchia o Tribunal manifestava-se por alguns apartes ou aplausos e era chamado a ordem. Mas, ao ser lida a sentenca, condenando o réu a 30 anos de prisdo, uma manifestagao de regozijo deixou-se pa- tentear ¢ ouviu-se uma estrepitosa salva de palmas. A multi- dio que assistira aquela condenacao, ao sair, ergueu vivas a0 Jari e & Sustiga”."” Hoje, a fungao dramatica do jari desapareceu, sob 0 impacto das transformagdes sociais e do conseqliente surg mento de produtas simbdlicos adaptados As caracteristicas da sociedade de massas. E claro que hoje como ontem o julga- "8 0 Comércio de Séo Paulo, 27.1.10. Trat tina Barbosa, acusade de m the mais adiante 17 0 Estedo de S. Paulo, 26.4.1896. 4o julgamento de Alber- {80U sedutor, a0 qual me refiro com maior deta- CRIME E COTIDIANO Café e bilhar ““Reptiblica’’, na praca da Repiiblica, cena de um crime de homicidio (1923). 8 BORIS FAUSTO. mento excepcional suscita paixdes, difundidas e transforma- das em uma escala outrora inimaginavel. Mas 0 cinema, a novela radiofOnica e, sobretudo, a novela televisada tornaram obsoleta a funcdo do jiiri como género assemelhado ao teatro e ao drama circense. Deixei deliberadamente para o fim desta introdugdo a descrigéo de sensagdes que quase sempre s&o censuradas no produto intelectual. Nao sei se conseguirei transmitir ao leitor um pouco do impacto produzido pelo contato com milhares de processos penais. As hipoteses prévias sfo arrastadas por uma enxurrada emotiva, neste contato com coagulos de senti- mentos, tensdes, relagdes humanas — vestigios esparsos de um tecido de vida aparentemente desdenhavel para 0 recorte dos fatos sociais que merecem ter lugar no repositério da His- toria, Apelos de aldedes de uma vila italiana em favor de um indiciado; cartas plebéias trocadas por namorados, no verso da propaganda dos produtos de uma fabrica; vitimas e réus que nos olham na virada de uma pagina, com 0 olhar gelado, triste ou desafiante. Além disto, para quem sempre viveu em Sto Paulo, 0 mergulho no passado reconstitui um espaco fantastico, reconhecivel apenas pelo mesmo nome. Cenario e personagens sao outros, sob a aparéncia de um idéntico lugar fisico. Algumas cenas parecem fixas: 0 bar ¢ restaurante da Praga da Replica, com suas mesinhas compostas, os espe- Ihos, os aniincios de cigarro Iolanda; o quarto da prostituta estrangulada do largo do Paissandu, garrafas viradas, um gramofone ¢ um papagaio emudecidos. Outras entram em movimento, deixando entrever as aventuras amorosas da Vila Nina ou da Ponte Grande; os passageiros assustados que na escura Varzea do Carmo perderam o iiltimo bonde para 0 Bras; a luta mortal entre “*turcos” ¢ italianos em um caminho de terra, apés sairem de uma venda na Vila dos Pinheiros. A tendéncia inicial é de imergir na controvérsia do pro- cesso, procurar encontrar verdades, ziguezaguear ao sabor desta ou daquela versdo. As alterndncias de julgamentos sucessivos despertam a atengdo para um jogo com muitas sai- das que desembocam no tudo ou nada: dez anos de prisau — absolvi¢ao — quinze anos; combinagdes em sentido inverso ete. Depois, as emogdes despertadas pelos materiais pro- vocam ansiedade, acompanhada do desejo de dar racionali- dade as imagens. O desejo nao se realiza inteiramente pois as CRIME E COTIDIANO » impressOes iniciais sao muito fortes e ndo nos abandonam nunca. Além disso, ao tentar introduzir uma ordem nos do- cumentos acabamos por perceber que eles proprios sao em grande medida obra de ficgao, aberta a imaginacdo de quem os Ié. Seu sopro vital nos acompanha, ao longo de todo 0 esforgo racionalizador. ‘Apés ter vivido esta experiéncia, encontrei-a tao bem descrita por Philippe Ariés que nao hesito em cité-lo literal- mente: ‘ostuma-se dizer que a arvore impede a visdo da floresta, ‘mas o tempo maravilhoso da pesquisa ¢ sempre aquele em que © historiador mal comega a imaginar a visdo de conjunto, enquanto a bruma que encobre os horizontes longinquos ainda nao se dissipou totalmente, enquanto ele ainda ndo tomou muita distincia do detalhe dos documentos brutos, ¢ estes ainda conservam todo 0 seu frescor. Seu maior mérito talvez seja menos defender uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta, torna-los sensiveis — como ele prd- prio 0 foi — as cores ¢ aos odores das coisas desconhecidas. Mas ele também tem a ambigao de organizar todos esses deta- thes concretos numa estrutura abstrata, e € sempre dificil para le (felizmente!) desprender-se do emaranhado das impres- ses que 0 solicitaram em sua busca aventurosa, é sempre di ficil conforma-las imediatamente a algebra no entanto neces- sdria de uma teoria’."* Por ultimo, lembro que um texto desta natureza ndo se situa apenas nos marcos disciplinares (alias discutiveis) da Historia, abrindo-se para a antropologia, a psicologia ou mesmo a psicandlise, areas em que penetrei muito pouco, com as cautelas do novigo. Trabalhei em uma zona de fron teira ao mesmo tempo cheia de atrativos e de riscos que deixa- ram suas marcas nas conclusdes e nas incertezas do produto. A experigncia valeu a pena; a leitura, o leitor dira. 8 Philippe Aries, storia social da crianca e do familia, 1978, p. 9. Criminalidade e controle social Uma aproximacao geral A tentativa de apresentar uma visdo geral da criminalidade esbarra com os problemas indicados na Introducao. Os dados imprecisos que chegam até nés tendem a mesclar pelo menos dois elementos de dificil separacdo: a criminalidade real, entendida na sua acepcdo simples de infrac4o as normas do Cédigo Penal, e a atividade policial, que vai muito além da prisdo de eventuais criminosos, exercendo uma atividade de amplo controle social. Por sua vez, a op¢ao por certo tipo de documento e a forma de trata-lo revela pressupostos de orientagdio do pes- quisador eo alcance de seu trabalho. Em regra, acredita-se na maior validade dos dados que se encontram mais proximos da quebra da norma, expressos no nimero de prisdes ou de infracdes registradas pela policia, considerando-se gradativa- mente menos confiavcis as informagéecs cada vez mais distan tes do fato considerado delituoso, como denuncias, julga- mentos etc.' Convém notar que este critério, verdadeiro de 1 tic H. Monkkonen, Police in urban America, 1860-1920, 1981 p. 69. ‘CRIME E COTIDIANO u um modo geral, nao prevalece em certos crimes. O nimero de Prisdes nos delitos sexuais é inferior ao de inquéritos por nao ser frequente a pristo dos acusados. Neste balango inicial, optei por duas fontes basicas que, com todas as suas deficiéncias, permitem uma aproximacao diferenciada co tema: as estatisticas de prisdes e as de inqué- ritos. A primeira fonte da uma visdo ampla da atividade poli- cial que vai muito além dos marcos da criminalidade, sobres- saindo 0 papel da policia como agente de controle social. A segunda permite uma aproximacdo do fenémeno da delin- qiiéncia, através da responsabilizacao de pessoas, por quebra dos preceitos do Cédigo Penal. A enorme defasagem entre 0 numero de pessoas presas € pessoas Processadas, em alguns anos onde a comparacao € possivel, revela claramente a signi ficacdo das prisées como instrumento de controle social, mes- mo tendo-se presente que muitas detengdes decorrem efetiva- mente de delitos que deixam de ser objeto de inquérito pela sua pouca importancia, ineficiéncia ou corrupcao do apare- Iho policial, acordos ete. Para ficar apenas em uns poucos exemplos, em 1893, sdo presas 3466 pessoas na Capital, regis- trando-se a abertura de 329 inquéritos; em 1905, os presos sio 11036 e os processados 794; em 1907 ha 9361 presos, abrindo-se 1441 inquéritos.’ A Tabela 1 mostra que 0 coeficiente médio de prisdes anuais esteve em torno de 310 por 10000 habitantes da cida- de, no periodo 1892-1916. Este coeficiente se aproxima de um dado contemporaneo, dizendo respeito ao registro de ocor. réncias policiais, que ficou em torno de 338 por 10000 habi- tantes do municipio de So Paulo em 1979.’ Uma compara- 40 com outras cidades brasileiras no periodo estudado ainda nao é possivel. No plano internacional, Sa0 Paulo se situa acima de Londres, onde as prisdes anuais oscilaram entre 100 € 180 pessoas por 10000 nos anos de 1890-1920, ¢ abaixo de um conjunto de cidades americanas com um coeficiente entre 460 e 630 nos anos referidos.* dente do Estado, Anko ‘er quendo foi necessério individualzar a fonte, no menciono texto relatérios especifices. 3 Dados manuscritos da Fundac8o SEADE. 2 BORIS FAUSTO TABELAI Conficiente de pisses por 10000 habitants, 1892-1916 Periodot Coefcientes “1992-1896 339,92 1896-1900 358,90 1900-1904 418.95, 1904-1908 32743 1908-1912 naar 1912-1916 248330 Total 31049 Fonte: RSICP, 1892-1923. Censos nacionais de 1890, 1900 e 1920. Censo da cidade de So Paulo, 1893. Para 0 procedimento metodolégico ver Apén- dice. A partir do marco inicial (1892), a Tabela 1 espelha uma atividade policial repressiva crescente, invertendo-se a ten- déncia a partir de meados da primeira década deste século. Infelizmente, nao é possivel comparar o iiltimo decénio do século XIX com periodos anteriores, embora dados esparsos sugiram que na década tenha ocorrido uma brusca inflexao para cima, hipotese compativel com a maior sensibilidade em torno do tema da criminalidade. E dificil explicar a tendéncia decrescente da atividade policial repressiva entre 1905-1916 em comparagao com 0 periodo 1892-1905. Estes uiltimos anos podem ser considera- dos como sendo socialmente ‘mais problematicos’, mas encerram problemas de natureza bem diversa. Entre 1892 1898, ocorrem profundas transformagdes na cidade decor- rentes do fim do sistema escravista e, sobretudo, da imigra- 40 em massa com o conseqiiente acentuado crescimento de- mografico. Os anos 1898-1905 caractcrizam-se grosso modo pela recesso econ6mica, a partir da crise cafeeira, refletindo- * 0s dedos de Londres @ das cidades americanes s80 respectivamente do Ted Robert Gurr @ outros, The politics of crime and conflict. A comparative history of four cities, 1977, p. 112; Monkkonen, op cit... 72. CRIME E COTIDIANO 3 se em menores indices de crescimento demografico e na redu- ‘s40 do nivel de emprego. Ao que tudo indica, a aco policial cresce proporcionalmente ao longo destes anos. Convém observar porém que a distribuigdo de prisdes segundo 0 tipo de delito nao revela muita congruéncia com o ciclo recessivo, como é 0 caso da ‘‘gatunagem’?, que comega a cair propor- cionalmente ja no inicio deste século (Tabela 10). Por sua vez, seria apressado atribuir sem ressalvas a que- da da atividade repressiva ao periodo mais estavel decorrente da retomada do crescimento econdmico a partir de 1905, para se fixar uma data, ausentes agora os problemas de ajusta- mento social provocados pela imigracao em massa. Assim, anos como 1914 e 1915, marcados pelas dificuldades decor- rentes da Guerra Mundial (queda de nivel da atividade econd- mica, desemprego etc.) ndo perturbam a tendéncia decres- cente do coeficiente de prisoes. Este exercicio de aproximagdes, cheio de incertezas, leva- me a sugerir que talvez o periodo considerado seja demasiado curto para se estabelecer correlagdes seguras entre a atividade Policial — como indicador das preocupagdes repressivas da lite dirigente — ¢ a conjuntura social em seus diferentes aspectos. Penso também que as dificuldades expressam a ine- xisténcia de um ajustamento automatico entre o nivel da ati- vidade policial e as alterndncias da conjuntura. AAs prisées contravencionais, bem como as efetuadas para “‘averiguagdes”, revelam uma estrita preocupagtio com a ordem piblica, aparentemente ameacada por infratores das normas do trabalho, do bem viver, ou simplesmente pela indefinida figura dos “suspeitos’”. No periodo 1892-1916, com lacunas nos anos 1899, 1901 e 1903, dentre 178 120 pes- soas presas na cidade, 149245 (83,8%) foram detidas pela pratica de contravencdes ou para averiguades ¢ 28875 (16,2%) sob a acusagdo de crimes. Convém observar que um grande numero destes é constituido de delitos de reduzida im- ortancia, pequenos furtos que em sua imensa maioria nao dao origem a abertura de um inquérito policial. ‘As prisdes por contravengdes so majoritarias em quase todas as partes do mundo. A proporcionalidade constatada em Sao Paulo, no periodo considerado, mostra uma intensa Preocupacao policial com a ordem piblica. Com as ressalvas da comparagzo heterogénea, observe-se que, em 1880, apenas 62,5% das prisdes em dezoito das maiores cidades dos Esta- 34 BORIS FAUSTO dos Unidos corresponderam as contravencdes de embriaguez, desordens, vadiagem ¢ a averiguacoes.’ Monkkonen acen- tuou como as prisdes pelos chamados crimes sem vitima cai- 1m persistentemente nos Estados Unidos, em nimeros rela~ tivos, entre 1860 ¢ 1920, indicando nas condigdes daquele pais um crescente interesse pelo ‘‘controle do crime’’ em des favor do controle das ‘classes perigosas”.* Meus dados abrangem um periodo menor e apresentam descontinuidades. De qualquer forma, tomando-se as duas faixas extremas de cinco anos passiveis de comparacdo, verifica-se uma tendén- cia inversa da acima apontada (Tabela 2).”_ : ‘As diferentes rubricas contravencionais permitem espe- cificar aproximadamente a natureza das preocupagdes poli- ciais com a ordem publica, apesar das davidas que muitas ‘opsdes classificatorias introduzem. Por exemplo, chama a TABELA2 Proporcio de piss por crimes contravengBes em dois periodos ‘Motive 1892-1896 19121916 7 * % Ccimes 534 (49) 7459 4a) Contravengées 16397 C7) 44492 (858) Total 7 21.721 (100.0) 51951 (100.0) Fonte: RSICP, 1892-1923. Eric H, Monkkonen, op. cit, p. 103. ‘sho enganosas ¢ se prestar ‘Segundo os nimeros oficia Seat? arc se Ste enue, vaesctwnmar am 1380 6 scum tapeto a conwrovencoes pores. i Fundogdo sistema Es Sraite Ge Dados (SEADE), Anuéro Eetatstico do Estado de S40 Paulo, Ho pi 3o2 yp, 855.586. Oa no se pade daduzt odesiteresse do aparolho vvezave poe contol dae “lates proses deduct ue ia Cone 0 PRlenelne Go ela-odia; Muto provavelmente, os rabies pare aveiguardes, seeccans, embraguet, vaciagem ate. so trnerem operacbes rotnaras Par eeseiradas non boletins do ocorénciae ou, om alguns casos, mudaram de rete CRIME E COTIDIANO 3s ateng4o 0 nimero muito reduzido de prises por mendican- cia, uma contravenc&o ideologicamente desconfortavel, na medida em que invoca de itnediato a desigualdade social e a critica a represstio em favor do assistencialismo.* Certamente, muitos mendigos entraram na categoria inclusia de vadios, até porque a mendicancia era considerada pelas autoridades policiais e alguns juristas como simples modalidade de vadia- ‘gem, Mesmo tendo-se em conta a precariedade da categoriza- G40, € possivel estabelecer distingdes entre as trés contraven- G0es principais. A vadiagem representa o receptaculo maior, onde se enquadra o “‘viveiro natural da delingiléncia”” na lin guagem dos relatérios policiais. O proprio sistema repressivo constitui este viveiro, formado por uns poucos grandes “‘ma- landros”” © a massa de pequenos marginais ou desemprega- dos, a beira da indigéncia; a desardem vincula-se ao compor- tamento episodico das pessoas em piblico, sem fixar uma conduta criminosa; a embriaguez se aproxima da desordem, na medida em que reflete como esta uma preocupagio com 0 comportamento das pessoas em piiblico, mas é indicativa de atitudes que combinam autodestruicao e agressividade. No Cédigo Penal de 1890, prevé-se apenas a punicao de um certo tipo de ‘‘desordem”, assimilada a vadiagem através de uma identificagdo aparentemente estranha, levando-se em conta a distingao que foi feita. Trata-se, no caso, de um claro exemplo de criminalizacdo de um comportamento com o pro- posito de reprimir uma camada social especifica, discrimina- da pela cor. A preocupacdo com a “‘capoeiragem”” esta ligada uma conjuntura historica e em particular a uma cidade — 0 Rio de Janeiro do periodo imediatamente posterior 4 Aboli 40. Nao por acaso, muito embora ja fosse objeto de censu- Ta, a pratica nao figurou como delito especifico no Codigo Criminal do Império de 1830. O artigo 402 e pardgrafo iinico do Cédigo Penal, inserido no capitulo que trata dos vadios e capoeiras, considera criminoso “fazer nas ruas e pracas pibli- cas exercicio de agilidade e destreza corporal conhecido pela denominagao de capoeiragem” ou ainda ‘andar em corre- rias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma * As informacbes sobre pristes entre 1892 e 1916 registram apenas ‘um total de 995 pessoas. Raramente, entre 1892 @ 1910 constam prisdes sob ‘esta rubrica, 0 que ocorre somente om 1893, 1895, 1898 ¢ 1908, 36 BORIS FAUSTO lesdo corporal, provocando tumulto ou desordens, ameacan- do pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal”, sendo circunstancia agravante pertencer 0 capoeira a alguma banda ou malta. Foi esta a base legal para a conheci- dda perseguigdo aos capoeiras realizada pela policia do Rio de Janeiro, nos primeiros anos que se seguiram @ proclamac&o da Repiblica. Em um artigo sobre o tema, Assis Cintra dis- tingue entre os capoeiras profissionais ¢ os amadores. Os pro- fissionais s4o definidos como capangas politicos, que viviam A custa dos cabos eleitorais ou como desordeiros e ladrdes, que atacavam os transeuntes. Os amadores eram meninos bo- nitos avalentoados, filhos de gente rica ¢ importante, ou mes- mo rapazes de boas familias, que praticavam ¢ aprendiam a capoeiragem por simples esporte. O articulista assinala que 0 bardo do Rio Branco, quando estudante, aprendera a arte € que Floriano Peixoto fora um dos mais habeis capoeiras da Escola Militar. Segundo ele, a campanha do primeiro chefe de policia da Republica, Sampaio Ferraz, acabou com os capoeiras, fossem profissionais ou meninos bonitos.” E certo porém que os capociras profissionais — alvo principal da repressio — formaram desde sua origem verdadeiras organi- zagdes de escravos ¢ libertos, com uma dupla face a um tem- po ameacadora ¢ instrumental para a elite branca do Rio de Janeiro." Entretanto, no contexto da cidade de Sa0 Paulo, tendo- se em conta a menor importancia da populacao negra e alguns dados de reparticdo das contravengdes por nacionalidade, tudo indica que a prisdo por desordens se aproxima da descri- 40 que fiz — comportamento episodico de pessoas em pibl Co —, sendo problematico consideré-la um instrumento repressivo a faixas da populagao discriminadas pela cor. Dentre as trés contravengdes principais — embriaguez, desordens, vadiagem — a primeira aparece como motivadora do maior nimero de prisdes (Tabela 3). 1.3.1948. Citado por Otavio Goulart de Camargo, ‘investigeges, 1949. Uma andlise dos inci ‘dentes provocados pela aco de Sampaio Ferraz, “0 cavanhaque de aco", se fencontra em Gizlene Neder e outros, policia na Corte e no Distrito Federal, 1831-1930, 1981, p. 238. TO Neder, op. cit, @ Patricia Ann Aufderheide, “Order and violence: social deviance and social control in Brazil, 1780:1840". 1976. ° Assis Cintra, ‘CRIME E COTIDIANO ” TABELA 3 Contravengber ‘Embriaguez 49713, 425) Desordens 45870 39,2) _Vadingem 21422 a8) Total? 117 005 (200.0) Fonte: RSICP. Faltam dados para os anos 1899, 1901 © 1903. As it pcinepi conavengies ropreencam SLAB das contents em sera. Se considerarmos apenas os anos extremos ¢ continuos do periodo pesquisado, nota-se uma curiosa evolucdo. Na distribuicao proporcional, as rubricas ‘‘vadiagem’” e ‘‘em- briaguez”” crescem claramente, enquanto a rubrica ‘“desor- dens"? apresenta uma tendéncia inversa. A alteracdo mais nitida se dé entre ‘“‘desordens” e “embriaguez”, com uma troca de posi¢des no primeiro lugar (Tabela 4). ‘A que se deve esta iiltima tendéncia? Convém nao afas- tar desde logo a fluidez da distingao, pois com muita frequén- cia 08 desordeiros estéo bébados. Ainda assim, admitida a ressalva, subsiste a pergunta: por que preferir gradativamente TABELA 4 Proporso de prishes segundo as principis contravenes em ois periods eae 1892-1896 19121916 ‘Mimero % ‘Mimero % Embriaguer 3734 G55) | 14081 Gon Desordens 8163 se | n76 G26) Vadiagem 279 87) 9239 Qs. Total | 14626 | 00m | 34594 | coo.) Fonte: RSI 2 BORIS FAUSTO mesmo nestas situagdes 0 rotulo de ‘“bébado’” endo o de “‘desordeiro"”? A categoria ‘‘desordens”’ € heterogénea, mas no acredito que tenha abrigado em nimero significativo anarquistas, socialistas, trabalhadores em greve. Para estes havia outras figuras penais e ndo ha razdes para supor, por exemplo, que as greves preocupassem mais as autoridades policiais em fins do século XIX do que nos anos 1912-1916. Penso que a grande incidéncia proporcional das desor- dens nas prisdes efetuadas entre 1892 ¢ 1896 se liga a presenca ‘em massa de novas levas de imigrantes na cidade. Seu com- portamento deve ter atraido a atengdo da policia, preocupada com a manutencao da ‘‘ordem publica’’. De um lado, os novos padrdes de convivéncia, as novas formas de lazer intro- duzidas pelos imigrantes representavam uma quebra dos padrdes do bom comportamento, na dtica da ‘‘sociedade res- peitavel”” e de seus quadros dirigentes. De outro, nao ha por que negar que surgissem de fato muitos conflitos entre gente apinhada nos cortigos, precariamente liberada aos domingos das normas do trabalho. Afinal de contas, as alegrias do do- mingo eram muitas vezes a outra face das tensOes a que esta- va submetida a populacdo imigrante, na luta por adaptar-se € ascender socialmente na nova terra, Com o correr do tempo, @ razoavel supor que o comportamento desta populacdo nao s6 se tornou menos “explosivo”” como passou a ser visto como “normal” pelas autoridades policiais. Ganham entao prefe- réncia as prisdes por embriaguez, nao vinculadas a nacionali- dade, reprimindo-se em maior nimero uma conduta indi dual perturbadora dos ‘‘bons costumes’’, quando assumida por gente pobre. Entretanto, seria erréneo deduzir do numero de prises ‘a importdncia atribuida pela elite governante a cada uma das contravengdes. A desordem e a embriaguez nao so objeto de especial preocupago, insistindo-se apenas em muitos rela- t6rios oficiais em se lembrar o papel do alcool como agente potenciador de delitos graves. Pelo contrario, a vadiagem Tecebe continuas referéncias por nao constituir uma quebra ~ acidental da ordem, ou um vicio com consequéncias sobretu- do pessoais, mas um modo de ser delinquente que investe contra ‘‘a lei suprema do trabalho”’. Como lembrou o secre- tario da Justiga ¢ Seguranca Publica Washington Luiz, em 1906, ‘‘vadios s40 nao s6 os vagabundos, como os mendigos validos, os jogadores de profissdo, os caftens, os ratonei- CRIME E COTIDIANO 9 tos, tic. enfim todos os héspedes do artigo 399 do Codigo enal”’."" A estigmatizacao de camadas sociais destituidas com 0 rotulo de “‘vadios’” & um dado que percorre a historia brasi- leira desde 0 periodo colonial. Brevemente, lembro como a reduzida diversificagdo das atividades econdmicas ¢ a utiliza do em larga escala da mao-de-obra escrava na agricultura de exportag4o deixou poucas possibilidades de emprego estavel para os homens livres sem recursos. Estes seguiram diversos destinos, as vezes combinados, na historia de vida individual: precarios agricultores de subsisténcia, 4 margem do que se costuma chamar de centro dinamico da economia; agregados das grandes fazendas; gente que vem depositar-se nas cida- des, expulsa do setor agricola nos momentos de crise etc. Em seu estudo sobre a pobreza mineira do século XVIII, Laura de Mello ¢ Souza mostrou como o Estado alternativamente reprimia ou tirava partido desta camada social. O elemento ocioso que s6 servia para consumir viveres ¢ contrabandear podia se metamorfosear no sertanista corajoso e atrevido, bom para povoar lugares longinquos infestados de indios, para descobrir veeiros perdidos na distancias, para rechacar 0 castelhano belicoso que pressionava a fronteira.”* Caio Prado Junior refere-se ao segmento de pobres livres ow libertos constituidos pelos desocupados permanentes. Demonstrando pouca ou nenhuma simpatia por esta ‘“‘casta numerosa de vadios”’, define-a como “a parte mais degradada, incomoda e nociva da populacdo vegetativa da Coldnia, vagando de leu em leu a cata do que se manter, ¢ que, apresentando-se a oca- sido, envereda francamente pelo crime”. Até que ponto a preocupacdo oficial com a vadiagem abrangeu a regido de Sdo Paulo até meados do século XIX € uma pergunta que fica em aberto. Minha hipétese € de que a questdo nao teve maior importancia, em uma 4rea por muito tempo secundaria do ponto de vista econémico e escassamen- "' Relotério epresentado 20 Dr. Jorge Tibiricd, Presidente do Estado, pelo Secretério oa Justica e Seguranca Publica, Washington Luiz Pereira de ‘Sousa (Ano de 1906), S80 Paulo, 1907. iain 7 12 Laura de Moilo @ Sous 1n0 século XVIll, "982, p. 140. "3 Caio Prado Janior, Formagdo do Brasil contemportneo, 1983, p. Desclassificados do ouro, A pobreza mineira 281 “0 BORIS FAUSTO te urbanizada. Mesmo ao longo dos anos 1870-1890 — um periodo j4 caracterizado por profundas transformagdes estru- Prvais—- o tema raramente ocupa as paginas dos relatOrios de Chefes de Policia e presidentes da Provincia e, quando surge, © tom condenat6rio é entremeado por notas de comiseracao. O quadro se altera a partir da éltima década do século XIX, quando a vadiagem vem a merecer destaque especial. Os va- Gigs passam a representar uma categoria A parte de contra- Jenteres, o viveiro da delingdéncia, seres dotados de atrevi- fnento, astiicia e maldade, verberados nas infindaveis frases dos relat6rios oficiais: “Quanto aos vagabundos, ou insaciaveis parasitas de todas as, sociedades, as imprudentes sanguessugas que se desenvolvem ‘ese alastram nas cidades populosas, o mal ainda é pior, pois due, tendo comumente 0s radicados defeitos dos que se d8o fo vicio de embriaguez e dos que habitualmente usam armas proibidas, sdo os principais autores, os mais salientes Prota- gonistas, no unicamente dos ja referidos crimes, como tam Bem dos ataques a propriedade alheia, 0 furto, 0 roubo, 0 assalto, que muitas vezes produzem as mais sanguindrias tra- ‘gédias que eles concebem, urdem e praticam jé com to cinica femeridade, com descaro to atrevido com que parece escar- necerem ¢ desafiarem as proprias autoridades, j4 com uma fasticia to sutil, com uma to sagaz destreza que procuram apagar cuidadosamente 0 menor vestigio, © mais leve rastro Gue possa encaminhar a mais ativa, a mais desvelada, a mais Vigilante das autoridades em suas escrupulosas diligéncias”. © controle social dos vadios foi feito em especial através das prisdes, n&o havendo em regra muito empenho das auto- ridades em processa-los (Tabela 5). ‘De qualquer forma, o processo é mais freqtiente na rubrica de “‘vadiagem” do que em ‘“desordens”” ou ‘‘embria- guez””. Nos anos indicados na Tabela 5, hd apenas 20 proces- bs por desordens e quatro por embriaguez. Chama a atencdo a tendéncia ao aumento da responsabilidade penal nos anos 1905-1907, que viria a decrescer em anos posteriores. O perio- 1 pelatério‘epresentado ao Secretério da Justica pelo Chefe de Policia da Capital (Ano de 1892), SBo Paulo, 1893. CRIME E COTIDIANO 4 Prindes e processos por vadiagem = ad ‘Processor igs 2 P s ‘579 1902 1030 7 ae 1138 20 1907 795 105 7 1073 1s Fonte: RSICP. doc do correspond a uma alteragdo de crtrosrepressivos feta » ric ‘ashington Luiz, que, sobre Partir dos dtimos meses de 1906, moveu uma evince same nha conte avadiagem sob o lem “no prener sem motivo, no prender sem processar™. A construgdo do estabelecimen- 19 sorreional para adultos na ha dos Pores atu Anchie , bem como a ampliagao do Insti - 201 stituto na para menores faiitou a responsabilizagto e preho de , até entdo apenas mi ii 0 vadios, até enas multados por infragao de posturas onde ees oe rsd efetuadas na Capital eno Interior, onde predominavam as éreasrurais © as pequenas cidades, revel, nos anos comparaveis, que até mesmo em termos r numero de i i absoluosti Prisdes por vadiagem na Capi- singale Our 3 ve eta desproporsdo? Aaui é necesiro di tingut entre a preocupasdo oficial com a vadiagem como fendmeno coletivo, caracteristca de varios momentos da his- Loria bras, repressio individualzada consistene no enguadrameno de pessoas consderadas vadias em normas legais aque extou me eferindo, Sob oprimeizo aspect. nao , sobretudo no mei ime ats ; o rural, de arregimenta- glo, presses de odo tipo, expulsfo de determinadas areas de segmentos da populagdo rotulados de vadios,abrangendo até mesmo prodatores independentes, No caso espesifico do 1 le fins do século XIX e das primei décadas deste século, as condigdes socio-politicas vigentes no 2 BORIS FAUSTO TABELA' sb or vag — Capita e nr, 18951903 ‘ror coe intron 263 5 m9 Bo: 1030 5 1308 Lino BH Bos be as 190s is sea 1308 oe oot 1909 ” m Ta ow 3701 Tie EEE voy eonicaon gue + on Os mean so tanto mals nes Fontes RIC. O* nm yn Copal coeopona em 1900# 105% vert dodo oP. campo nao eram propicias a formagao de grandes contingen- fer de ‘‘desocupados”. Ao mesmo tempo, haviam cessa¢ cortas necessidades da utilizacdo de pessoas pobres, como ¢ 0 caso do recrutamento forgado para as guerras de frontcira. Os grupos de populagdo instavel parecem ter-se concentrago nas majores cidades — 0 que corresponde em grande medids 4 Capital — em conseqéncia de amplos processos sociais com destaque para 0 deslocamento de ex-escravos provenien- tes do campo e a ocupasdo dos melhores empregos pels lev de imigrantes. Isto ndo quer dizer que entre os desocupades urbanos nao se encontrasse gente fracassada na tentatva de “ "América", aventureiros cosmo} : fee al 2 razao do varidvel empenho das autoridades em exercer controle sobre esta gente? Pelo menos em Sao Paulo, indo ha indicios de que os vadios fossem vistos como um estra- to socialmente perigoso, capaz de engrossar movimenios de rebeldia contra o poder constituido, embora as autoric ed {enham aproveitado em certas ocasides a adocdo de mediie, repressivas no plano politico para “‘limpar”” a cidade. ‘ 4.0 polcia do Rio de ‘5.0 comércio de So Paulo, do 412.1904, citi 9 po eee oe sproveando-v do dacetagho do stado de dane ae ja chomeda revolts do vacine na Capital da Repubice passov CRIME E COTIDIANO 48 possivel também ligar a pressdo sobre os vadios a razdes eco- nOmicas, considerando-a um instrumento necessario para garantir a oferta de mao-de-obra, pois, de um modo geral, no havia este problema na cidade. Os desocupados permanentes ou mesmo transitérios eram perseguidos (e muitas vezes tolerados) porque consti- tuiam nao um perigo mas um inconveniente social, tanto ‘quanto 0s delingentes com os quais quase sempre se confun- dem. Os relatérios das autoridades, assim como os projetos de “regeneracao” dos vadios refratarios, revelam uma visio da vadiagem como desvio comportamental endo como decor- réncia de contingéncias sociais, um indicador adicional de que 0s vadios ndo eram encarados como uma ameaca a ordem piblica. Lembro por tiltimo que, em uma regido caracteriza- da pelo rapido crescimento das atividades econdmicas, 0 “‘desamor ao trabalho” representava um procedimento alta- mente condenavel, uma opcao individual perversa em um meio bafejado pelo progresso onde, segundo se acreditava, havia oportunidades para todos. Esta ética se perturbava ¢ dava lugar a comiseracao para com os desempregados nos momentos de crise, como ocorreu por exemplo nos dois pri- meiros anos da Primeira Guerra Mundial. Mas, afinal de contas, isto ndo nos soa familiar? Nos dltimos anos da vida da cidade, 4 medida que a crise econdmica se instalou, tornou-se cada vez menos aceitavel socialmente estigmatizar supostos vadios, mendigos ou trabalhadores sem emprego a0 grito de “vai trabalhar, vagabundo”’. a efetuar a prisdo indiscriminada de pessoas tidas como vagabundas e caftens, algumas das quais estavam sendo enviadas para o Acre. Alguns relatos de mo Vimentos socials em Sao Paulo e no Rio permiter sugerir uma insercao diversa dos “ destituldos sociais"” em cada uma destas cidades. Veja-se, a proposito da revolta da vacina”, esta descricio de um choque entre numeroso grupo de amotinades do bairro da Saude e forcas da policia » do Exército: "A luta fol we ‘menda e, no mia dos turbulentos, avultava em denddo, numa bravura de ver dadeira fera, um crioulo alto © Fee individuo ampunhava um revéiver em eada mBo v dos mente sobre a forca, e quando esta pds 0 grupo em debendad lutar, em resisténcia aos soldados, dos quais prostou um morto @ dois grave: ‘mente feridos.. Afinal, ao cabo de tena2 e cega resisténcia, foi sinistro criou lo preso... Esse crioulo tem a alcunha de 'Prata Preta’ e, pela sua conhecida bra ‘ura como famoso desordeivo, fora proclamado chete dos sublevados da Saude, [Nos embates alitravados foi sempre visto nos pontos mais perigosos, atirando contra a forga’’. Jornal do Comércio, 17.2.1904, transerito por Edgard Caro- ne, A Republica Velha. Evolucéo politica, 1971, p. 212 4 BORIS FAUSTO ‘Algumas informagdes permitem uma aproximagao um pouco mais concreta das pessoas presas ou processadas sob a Acusagdo de vadiagem. Os relatorios do Secretario da Justica dos anos 1904 e 1906 — dinicos a estabelecer um cruzamento entre presos por contravencao e nacionalidade — mostram como os brasileiros so amplamente majoritérios na rubrica “vadiagem’”, enquanto 0s estrangeiros predominam em ‘‘em- briaguez’”? e mais ainda em ‘“desordens”” (Tabela 7). ‘TABELAT Distribuigdo das prisBes pelas principas contravengdes segundo a nacionalidade, 1904-1906 Vadiagem | __Embriaguez_ | __Desordent ‘Nimeo| © |Namero| % | Nimero| % ‘Nacionalidade ‘emus | 2a2e | cay] ss7e| a72)| 2868 | om ees | 7525 | Gsm] asi | 2H) 4298 | 600) 7166 | (100.0) Total 3403 | (100,0) | 11829 | (100.0)) d Fonte: RSICP. Por sua vez, as indicacdes referentes a pessoas processadas por vadiagem nos anos 1907 ¢ 1908 indicam como os nacio- hais continuam sendo majoritarios, mas em propor¢éo bem menor (Tabela 8). TABELAS roca por adigen pando a aon ue 8 Pater Garageror Nadonaee i wa a ; 26 oe 7 ‘s Saree 7 ioe Tea ey ra) Fonte. RSICP. CRIME E COTIDIANO, 45 Estes dados dao alguma consisténcia a hipdtese de que a mas- sa de vadios era formada por uma populacao destituida pre- dominantemente nacional, onde talvez fosse possivel encon- trar um niimero signifiativo de pretos e mulatos, marginaliza- dos de atividades econémicas atraentes nos anos pré e pos- Aboligdo."*O crescimento do niimero de estrangeiros quando se trata de pessoas incriminadas é indicativo de que estes cor- respondem menos a uma **pobre gente deserdada’” e mais aos contornos da criminalidade. No que diz respeito ao sexo, as mulheres constituem 3,8% dos processados, percentagem bastante inferior a encon- trada tomando-se o niimero global de prisdes, nos anos dis- poniveis. Ha alias indicios de que as autoridades policiais, depois de uma primeira investida indiscriminada, passaram a evitar a responsabilizagao penal das mulheres por vadiagem, pois as 35 processadas concentram-se quase todas no primei- ro semestre de 1907, havendo um iinico processo em 1908, A distribuigdo das prisdes segundo a natureza dos mes indica a dominancia dos crimes contra a propriedade (Tabela 9). TABELA 9 Prisdes segundo a natureza dos crimes, 189219161 Crimes ‘Nimero * ‘Sangue 11397 39.5) Propriedade 15786 (54,6) ude 982 Ga) Sexo 16 Qs) Total 28829 (400.0) Fonte: RSICP. 4 Faltam dados para os anos 1899, 1901 e 1903. ° Infelznente, as fontes impressas no trazem informacBes sobre a cor dos vadios. Aufderheide, op. cit, mostrou como as autoridades sempre fizeram ‘uma aproximacio entre a vadiagem e @ populacao negra. Por exemplo, a "par tes de semana’, feitas pelos juizes de paz de Salvador (1834.18.36) reteriam se com muita frequéncia, em suas descricdes, a “crioulo forre, negro, pardo, cabra vadio, ou preto vadio 6 BORIS FAUSTO. A especificagao ao longo dos anos demonstra a tendéncia ja apontada 4 queda proporcional destes delitos no conjunto das infragdes penais, a partir do inicio do século XX (Tabela 10). E possivel que existam ai alguns problemas classificatd- rios, tendo-se em conta que a vaga rubrica ‘‘gatunagem’” foi substituida pela mais precisa ‘“furtos e roubos"” a partir de 1907. A tendéncia a queda é porém anterior a este ano, embo- ra.a mudanca de critério através de uma melhor discrimina- ‘cao possa ter-se refletido em nimeros mais reduzidos. Veja- Se que tal tendéncia se confirma quando so considerados os inquéritos abertos, tomando-se dois periodos extremos (Ta- bela 11). Por outro lado, salta aos olhos 0 avanco da responsat lizacdo por crimes sexuais, apenas esbocada quando se lida is pn pe ne DIS [em] Rr | Homeco® | mee | Vege | Emirs | Dom ao | een 55" es” | Oe | a ane |e] a | 8 SM me ca u tot a ra 3 Fe 1906 03 | as ter 3 8 r ° & oe 3 8 on 2 ° a | os 3 Bis | ea oo a | 3 3 mse oa 1 5 Ad'Do fade at Stn nr hemes sn «retin, pr 11008 ‘even eon Resa rns mona CRIME E COTIDIANO. 0 TABELA 11 Inquéritos segundo a natureza dos crimes em dois periodos Gol 1893-1895 1921-1923 Nimero| % | Nimeo| % Sangue 354 | (59,9| 1203 | (505) Propriedade | 264 | (286)| 428 | (17.9) Fraude 7 | @s| 23 | @s» Sexo 28 | Go| se | G2 Total 825 [doom] 2381 | (1009 Fonte: RSICP. com os dados de prisdes abrangendo todas as infracdes pe- nais. A inclinagao imediata para dar conta deste avango con- 1¢ em vincula-lo a urbanizagao, na linha do argumento sus- varios autores. Louis Chevalier afirma vagamen- za¢do urbana ¢ erética, “por desenvolver de um lado as necessidades sexuais e por receber, de outro, um est mulo da sexualidade que se reflete nas esferas econdmica, social e cultural.” Com maior preciso, Edward Shorter procurou mostrar como na Europa ocidental, a partir do século XVIII, 0 fenémeno urbano provocou concomitante- mente a maior libera¢4o e a menor responsabilidade sexual, tomando como base a taxa de gravidez pré-matriménio das *noivas urbanas”’ e de nascimento de filhos sem pai em algu- mas cidades francesas. Ele liga a maior irresponsabilidade sexual nas grandes cidades ao afrouxamento do controle social. Esquematizando suas afirmativas, a grande cidade tenderia a favorecer 0 contato entre estranhos em varias situa- es, como os encontros solitdrios ou as festas publicas, onde, segundo a descrigaio dos contempordneos, ‘‘a ordem moral entrava em colapso””. Em contraste, a pequena comunidade podia controlar com maior rigor os passos de seus membros mais jovens, seja no lazer coletivo, seja através dos namoros Oficiais previamente arranjados pelas familias."* ite p21 The making of the modern family, 1977, pp. 137 48 BORIS FAUSTO Voltando a Sao Paulo, caberia indagar até que ponto os nameros, j4 de si limitados no tempo, refletiriam apenas maior procura das autoridades policiais por parte das ofendi- das e suas familias para o registro de ofensas sexuais, sem que isto representasse um efetivo aumento de incidéncia dessas ofensas. No terreno da correlagdo entre vida urbana e crime sexual, pelo menos duas sugestdes sdo significativas: 1°) nao hd na cidade de Sao Paulo um automatismo entre o simples crescimento populacional e o registro de delitos sexuais, pois ‘a maior representatividade destes sO se torna clara a partir de 1918; 2°) ha indicios de que também no interior do Estado ocorre a tendéncia & maior representatividade, sendo impos- sivel afirmar porém se isto se deve as cidades maiores.” ‘Como 0s indicios referentes ao Interior sao bastante fra- geis, deixo de lado a hipétese de um movimento geral de cres- cimento de queixas por delito sexual, em razao de fatores que categorias como ‘rural’ e “urbano” pouco teriam a ver. De qualquer modo, vale a pena notar que o interior brasileiro tao diverso em suas varias regides — & obviamente bem dis- tinto da comunidade européia referida por Shorter. 'No caso especifico da cidade de S40 Paulo, minha hipo- tese & de que o crescimento do registro de crimes sexuais refle- te dois fendmenos nao excludentes. De um lado, um cresci mento real — sobretudo do defloramento (hoje denominado sedug0) — decorrente da maior liberdade relativa dos jovens, na linha do argumento desenvolvido por Shorter. De outro, uma alteragao do papel da instituigao familiar ¢ das relagdes entre as esferas do piblico e do privado. Nao se trata ainda da profunda transformacdo dos costumes que levaria a quase obsolescéncia dos crimes de seducdo. Pelo contrario, as quei- xas crescem, indicando que a “‘honra’” continua a ser um bem precioso, cuja perda deve ser objeto de algum tipo de repara- 40. Mas, a quebra da norma conduz ao maior apelo a inter- vengao do Estado, sugerindo uma crescente dificuldade de dar solugdo aos problemas decorrentes da ofensa 4 honra na 13 Em 1911, 08 crimes sexuais corresponderam 2 6,7% dos inauerites, discriminados segundo a natureza da infrac8o penal, na cidade do S80 Paulo: infelzmente, as informacdes seguintes se referem @ 1918 e 1920, quando Ccorresponderam 2 pouco mais de 22%. Quanto ao Interior, a porcentagem de Grimes sexuais toi de apenas 0,7% em 1907, alcancando 14.4% em 1918, fano seguinte para o qual ha dados. CRIME E COTIDIANO ” esfera privada. Por certo, nao é apenas a urbanizaco, tom: da em sentido genérico, a responsavel pela alteragdo. Criti cando este ponto de vista, Barbara Weinstein observou que a transigdo para a vida urbana nao cria automaticamente novas atitudes em direcdo a esfera pablica. Lembra 0 exemplo dos falianos do sul nas cidades americanas, que criaram comu- nidades homogéneas fortemente unidas e mantiveram com algum sucesso elementos da estrutura da autoridade infor- mal." Mas, nas condigdes de vida de uma grande cidade ¢ em face da crescente insergao dos estratos imigrantes em seu meio — como é o caso sobretudo dos italianos de S40 Paulo — € razoavel supor o crescente apelo ao longo dos anos as instituigdes pablicas, quando eram impossiveis ou fracassa- vam as tentativas de arranjo na esfera privada, Como vere- mos adiante, esta observacao se compatibiliza com os indi- cios de restrigao do papel da familia em outras situacdes, ‘como “grupo de vinganca’” ou coletivo mobilizado nas agres- ses fisicas. E possivel sugerir ainda, embora meus dados nao permitam discriminar a respeito, que os “‘amores ilicitos”” ‘ocorressem cada vez mais entre “‘estranhos’’, impossibili- tando a conciliagao através da familia ou mesmo através da autoridade policial. _ Se na distribuigao das prisdes segundo a natureza dos delitos os crimes contra a propriedade sio dominantes, 0 mesmo nao ocorre quando se toma por base os inquéritos. Por eles se verifica que, no campo da responsabilizacdo penal, os delitos de sangue — representados em sua esmagadora maioria pelos ferimentos — figuram em primeiro lugar (Ta- bela 12). Uma comparacao com anos mais recentes é bastante elu- cidativa (Tabela 13). A aparente proximidade da proporgdo de crimes de san- gue nos dois periodos se revela enganosa, quando é excluida a avalanche contemporanea dos acidentes de transito. Verifica- se ento que no confronto entre os trés delitos os crimes con- tra a propriedade nao mantiveram a tendéncia A queda, assu- 2 Tavs do coment de Barbara Weinstein go may texto Contato social e criminalidade em Sdo Paulo: um apanhado geral (1 880-1924)", em Paulo Sérgio Pinheiro (org.), Crime, violéncia e poder, 1983, p. 222. Ahipéte jcitas’” entre estranhos, inh ‘me foi sugerida por Weinstein,

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