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Clifford Geertz ax]X tae Bhs a Interpretacéio das Culturas VVAAS (Os autores ¢ 08 editores empenharam-se para citar adequadamente e da odevido crédito 2 todos. detentores dos direitos autorais de qualquer malecil uilizado nest livro, dispondo- se a possives acertos caso, inadvertidamente, a identficagto de algun deles fenha sido [Nilo ¢ responsabiidade da editora nem dos autores eventuais danos ou perdas a pessoas ou ‘bens que teaham origem no uso desta publicagio. ‘THE INTERPRETATION OF CULTURES ‘Copyright © 1973 Basie Books, a Member ofthe Perseus Books Group AMURights Reserved ‘Authorized taoslation from the English Tanguage edition (Chapeers1,2.3,4,5.8, LL, Mand 15. Direitos exelusivos para a lingua portuguesa Copyright © 1989 by LTC — Livros Técnicos e Clentificos Baitora S.A. ‘Uma editora integrante do GEN ! Grupo Editorist Nacional Reservados ids os direitos. # proibida a duplicaglo ou reprodusio deste volume, no todo ‘ouem pare, cb quaisquer formas ou por qualsquer meios (eletGnico, meena, gravagio, {otocdpis, distribigho na intemel 03 outros), sem pennissZo expressa da Editora. ‘Travessa do Ouvidor, 11 ‘io de Janeiro, RS — CEP 20040.040 Tes 1-3970-9480 Fax: 21-2221-3002 Me@grpogencom br sywueheediorz.com.br CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA- FONTE ‘SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, RJ. 62685 Geertz, Clifford, 1926- A interpretaglo das cultures /Ciiford Geer, - 2d, 13.reimpr, - Rio de J LTC, 2008. 3239. ‘Tradugdo de: The interpretation of cultures ISBN 978-85.216-1333-6, 1. Emologia. 2, Cultura, L Titulo, 08-0869, indice Prefécio vii PARTE! 1, Uma Descrigio Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Culoura 3 PARTE DL 2. Olimpacto do Conceito de Cultura sobre 0 Conceito de Homem 25 3. OCrescimento da Cultura e a Evolugdo da Mente 41 PARTE IL 4, AReligido como Sistema Cultural 65 5. “Ethos”, Visio do Mundo e a Anslise de Simbolos Sagrados 93 PARTE IV 6 Alideotogia como Sistema Cultural 197 7. Politica do Signifieado 135 PARTE V 8. Pessoa, Tempo. Conduta em Bali 149 9. Um Jogo Absorvente: Notas sobre a Briga de Galos Balinesa 185 Agradecimentos 215 Prefacio Quando um antropSiogo, incitado por um editor arencioso, come= gaareunir alguns de seus ensaios para uma espécie de expasigfo rerospectiva do que vemn fazendo, ov tentando fazer, no periodo decuinze anos desde que terminou a pés-graduaco, ele enfrenta das decisdesdilacerantes: © que incluire como talac respeitosa~ iene aquilo que é inclufdo. Todos nbs que eserevemos artigos soi cigncias sociais, ¢ cada vez € maior 0 mtimero dos que os yeti, temos conosco uma espécie de registro negativo: ima- snanlos poder sprimorar o que jé publicamos mo passado e esta- ‘posprontes a introdezir methoramentos em nosso préprio raba- bho que no tolereriamos por parte de qualquer revisor. Tentar extol 0 desenho cero na tapegaria de seus propos escritos ok ser tio desanimador como tentarencontré-to na propria vida, Finer tecélo post facto — “isto € exetamente 0 que eu pretendia duer'— & uma verdadeira tentagao. Enfrentl a primeira dessas decisées incluindo nesta colets- P oeaapenas aqueles dentre-os meus ensaios que tém relagio dire- ‘ae explleita com o conceito da cultura. De fato, em sua maio- ‘iyesses ensaiossfo mais estudos empiticos do que indagegoes erica, pois sinto-me pouco & vontade quando me distancio das ‘nedagSes da vida social, Mas todos eles preocupam-se, basi- ‘mente, em levar adiante, em cada caso imediato, uo visto cular, que alguns chamariam peculiar, do que sejaa cultura, dopopel que ela desempenha na vida social, e como deve ser de- £vidamente estudada, Embora esta redefinigao da cultura tenha sit, talvez,o meu iteresse petsistente como antropélogo, tam- ‘én venbo trabathando extensivamente nas Areas do desenvol- vinento econdimicas, da organizagio social, da hist6ria compa ‘irae daecologia cultural — preocupaydes essas que, todavia, os efleter aqui, ando ser de modo tangencial, Assim, o que éesensivamente um conjunto de ensaios aparece mais, seguin- doespero, como algo semelhante a umn tatado — um tatado de teria cultural, desenvelvido através de uma série de anélises coneretas. Nao se tratando apenas da revisio de uma earreira profissional um tanto erante do tipo “e entdo eu escrevi live tem uma posigdo a apresentas. A segunda decisto foi mais dificil de tomar. De uma forma eral, eu tenho a opinido stare decisis sobre as coisas publiea- ds: se necessitam de muita revisio, provavelmente nfo deveriam ser eimpressas ¢ sim substituidas por algo inteiramente novo. Além disso, corrigit uma fatha de julgamento acrescentando opinides diferentes atrebalhos anteriores ndo me parece inteira~ mente honesto, pois, em primeiro lugar, isso obscurece 0 desen- volvimento das idéias que alguém esté supostamente tentando demonstrar a0 coligir os ensaios. io obstante, parecehaver alguma justificativa paraumacerta ‘quantidade de revistes retroativas nos casos em que a substin- ia do argumento no éseriamente afetada; entretanto, deixar as coisas exatamente como foram escritas originalmente seria a0 ‘mesmo tempo fornecer informagoes jé ultrapassadas eesvaziar ‘uma discussdo ainda vélida ligando-a muito estretamente a urn conjunto particular de acontecimentos jé superados. [Nos ensaios abaixo, hd dois lugares em que essas considera ‘gdes me pareceram relovantes € nos quis fiz, portano, algumas modificagBes no que havia escrito originalmente. O primeiroé nos ensaios da Parte IL sobre cultura e evolugio biologics, onde a datagdo dos fésseis nos ensaios originals foram definitivamente superadas. De uma forma geral, as datas foram situadas mais lon- geno tempo ¢, como essa mudanga deixa meus argumentes cen- tuais esencialmente intactos, no vejo qualquer prejufzo em in- troduzic as noves estimativas. Nao hi qualquer sentido em conti- ‘ara dizer a0 mundo que os Australopitecfneos remontam aum milhdo de anos, quando agora os arqueslogos esto encontrando {6sstis de quatro a cinco milhées de anos. O segundo tem ligaco ‘comoCapitulo 10, naParte TV,* “A RevolugSo Integradora" nde ‘© flaxo— se assim pode ser chamado — da hist6ria do nove Es- ‘ado, uma vez que oattgo foi escrito no nfeio dos anos 1960.torna aleitura de algummas passagens realmente esquisita. ComoNasser esti morto, o Paquistio se dividiu, a Nigéria foi desfederaizada € ‘Partido Comunista desapareceu do cenirio indongsio, eserever ‘como se essas coisas nko tivessem ocorrido & dar um sentio de imealidade a discussdo, uma discusso que, rept, continnoaachar vlida mesmo que sejaa filha de Nehru ¢ no ele préprio quem irjaafndia, e que a Repsiblica da Malésia se venha expandido na Federagdo da Malésis. Assim, fi dois pos de modificasio na- quele ensaio. Principalmente, tmudei o tempo do verbo, ineoduzi laisulas, acrescentei uma ou duas nolase assim por diane no "Base copitale no consta dents coltfnen (N. 6077) viii PREFACIO corpo do texto, para que se possall-loumpouco melhore nfo fiear com a nogo de que os sities dez-anos nao se passaram. Entre- ‘tanto, nada madel de substancial, de forma a melborar minha ar- gumentagao, Segundo, acrescentei a cada um desses casos hist6- ‘os — claramente & parte deles — um pardgrafo resumindo os acontecimentos relevantes desde que 0 ensaio foi eserito, de for ‘mac indicar que, quando mais no seja,esses acontecimentos de- ‘onstram a relevancia continuada dos assuntos que o enscio trata em termos de acontecimentos anteriores e, ainda, para dissipar 0 feito de “Rip Van Winkle”. Com a exeegio de insignificantes corregbes tipogrificas e gramaticais (e modificagbes no estilo re- {erencial, para salvaguarda da consisténcia),o restante do lvro 30 {i alterado no essonc ‘Todavia, acrescentei um novo capitulo, o primeiro, numa ten- tativa de afirmar minha posigo atuat da forma mais geral que pude, Como as minhas opinides sobre 0s assuntos que 0s capitu- Jos discutem evoluiram neste intervalo de quinze anos, hé na verdade algumas diferengas na forma como algumas coisas $30 colocadas no capt introdut6rio ea forma em que sG0 coloca- das em algumas das reimpressbes. Certas das minhas preocups- gées anteriores — com 0 funcionalismo, por exemplo — t&m {agora menos importincia para mim algumas das mais recentes como a semistica— sio mais importantes. Mas a linha de ‘pensamento nos ensaios — que esto numa ordem ldgica ¢ nfio ‘cronolégica — parece-me relativamente consistente, 20 capitu- Jo introdutrio representa um esforgo para afirmar mais explici- teesistematicamenle o que é essa linha de pensamento:em suma, ‘uma tentativa de dizer © que venho dizendo. Eliminei todos os agradecimentos que os ensaios originals continbam. Aqueles que me ajudaram sabem que o fizeram e quanto. Espero que agora eles saibam que ev o reconhego. Em vez de implicd-los novamente nas minhas confusdes, £ melhor ‘queeeu siga o caminho um tanto peculiar de agradecer atr8s no- tveis instituigdes académicas, as quais ofereceram condigSes para meu trabalho que, estou convencido, nfo poderiam ter sido ssuperadas em nenhum outro lugar do mundo: © Departamento de RelagSes Sociais da Universidade Harvard, onde fui treina- do; 0 Departamento de Antropotogia da Universidade de Chica- g0, onde ensinei durante uma década, ¢ © Instituto de Estudos Avangados, em Princeton, onde trabalho agora. Numa ocasifio lem que o sistema universitaric norte-americano esté sendo ata- ado como irrelevente, ou pior, posso apenas dizer que para mim cle foi um presente redentor. Clifford Geertz Princeton 1973 I Em seu livro Philosophy ina New Key, Susanne Langer observa que certas idéias surgem com tremendo inpeto no panorama intelectual. Blas solucionam imediatemente tantos problemas fundamentais que pare- cem prometer também resolver rodos os problemas fandamentais, esclarecer todos os pontos obscuros. Todos se agarram a elas como um “abre-te sésamo” de alguma nova cigncia positiva, 0 ponto central em termos conceituais em torno do gual pode ser consteufdo um sistema de andlise abrangente, A moda repen- tina de tal grande idée, que exclvi praticamente tado o mais por um momento, deve-se, diz ela, “ao fato de todas as mentes sens{veis € ativas se voltarem logo para explor4-Ja. Utilizamo-la em cada conekdo, para {odos os propésitos, experimentamos cada extensio possivel de seu significado preciso, com generalizagdes derivatives.” Entretanto, 20 nos familiarizarmos com a nova idéia, ap6s ela se tornar parte do nosso suprimento geral de conceitos teéricos, nossas expectativas sZo levadas a um maior equilibrio quanto As suas reais utilizagées, ¢ termina a sna popularidade excessiva. Alguns fanéticos persistem em sua opiniio anterior sobre ela, a “cha- ‘ve para ouniverso”, mas pensadores menos bitolados, depois de algum tempo, fixam-se nos problemas que F idéia gerou efetivamente. Tentam aplicé-la e amplig-la onde ela realmente se aplica e onde & possfvel expandi-ta, desistindo quando ela nao pode ser aplicada ou ampliada. Se foi verdade uma idéia seminal, ela se toma, em primeiro luges, parte permanente ¢ duradoura do nosso arsenal intelectual. Mas nio tem mais 0 «scopo grandioso, promissor, a versatilidade infinita de aplicaco aparente que um dia teve. A segunda lei da ‘ermodindmica ou principio da selego natural, a nogdo da motivagdo inconsciente ou a organizagao dos } meios de produgao nao explicam tudo, nem mesmo tudo o que é humano, mas ainda assim explicam alguna coisa, Nossa atengo procura isolar justamente esse algo, para nos desvencilbar de uma quantidade de pseudocitneia & qual ele também dew origem, no primeiro fluxo da sua celebridade, Nio sci se &exatamente dessa forma que todos os conceitos cientificos basicamente importantes se desen- jvolvem. Todavia, esse padrdo se confirma no caso do conceito de cultura, em tomo do qual surgiu todo o fcsudo da antropologia ¢ cujo ambito essa matéria tem se preocupado cada vez mais em limitar, especificar, enfocar¢ conte. E justamente @ essa redugto do conceito de cultura « uma dimensio justa, que realmente assegure a sua importéncia continuada em vez de debilité-lo, que os ensaios abaixo so dedicados, em suas diferentes formas © diregses. Todos eles argumentam, as vezes de forma explicita, muitas vezes simples- f mente através da andlise particular que desenvolvem, em prol de um conceito de cultura mais limitado, mais especializado ¢, imagino, teoricamente mais poderoso, para substituir 0 famoso “o todo mais complexo” de .B. Tylor, o.qual, embora eu no conteste sua forga ctiadora, parece-me ter chegado ao ponto em que confunde muito mais do que esclarece. 4 camo Un O pantanal conceptual para o qual pode conduzir a espécie de teorizagao por-au-feu tyloriana sobre cultu- ra éevidente naquela que ainda é uma das melhores introdugSes gerais 4 antropologia, 0 Mirror for Man. de Clyde Kiuckhohn, Em cerca de vinte e sete pAginas do seu capftulo sobre o conceito, Kluckhohn conseguiu definira cultura como: (1) Yo modo de vida global de um povo"; (2) “o legado social que o individue adquire do seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir e acreditar”; (4) “uma abstrag4o do comportamento”; (5) “uma teoria, elaborada pelo antropélogo, sobre a forma pela qual um grupo de pessoas se comporta real- mente”; (6) “um celeiro de aprendizagem em comunr”; (7) “um conjunto de orientagdes padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comportamento aprendido”; (9) “um mecanismo para a regulamentagio normativa do comportamento”, (10) “um conjunto de técnicas para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relago aos outros homens”; (11) “um precipitado da histéria”, e voltando-se, talvez.em desespero, para as comparagdes, como um mapa, como uma peneira e como uma matriz. Diante dessa espécie de difusio tedrica, mesmo um conceito de cultura um tanto comprimido ¢ nio totalmente padronizado, que pelo menos seja intemamente coerente ¢, o que é mais importante, que tenha um argumento definido a propor, representa um progresso (como, para ser honesto, o proprio Kluckhohn perspicazmente compreen- deu). O ecletismo é uma autofrustragdo, no porque haja somente uma direcio a percorrer com proveito, mas porque h4 muitas: é necessério escolher, O conceito de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, & essencial- mente semiético. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significa- dos que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua andlise; portanto, no como uma cigncia experimental em busca de leis, mas como uma ciéncia interpretativa, 4 procura do significado. & justamente uma explicago que eu procuro, ao consiruir expressdes sociais enigmaticas na sua superficie. Todavia, essa afirmativa, uma doutrina numa cléusula, requer por si mesma uma explicagio. II O operacionismo como dogma metodolégico nunca fez muito sentido no que concerne as ciéncias sociais e, anioser por alguns cantos j4 bem varridos — o “behavorismo” skinneriano, os testes de inteligéncia, etc, — esté agora praticamente morto. Todavia, e apesar disso, ela teve um papel importante e ainda tem uma certa forga, qualquer que seja a forga que sintamos ao tentarmos defini o carisma ou a alienagao em termos de operagées: se voc quer compreender o que & a cigncia, vocé deve olhar, em primeiro lugar, ndo para as suas teorias ou as suas descobertas, ¢ certamente ndo para © que seus apologistas dizem sobre ela; voce deve ver ‘© que os praticantes da ciéncia fazem. Emantropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem 6. etnografia. E 6 justamente ao compreender 0 que € a etnografia, ou mais exatamente, o que & a pratica da etnografia, € que se pode comegar a entender o que representa a andlise antropoldgica como forma de conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa nao é uma questo de métodos. Segundo a opiniao dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relagGes, sclecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogies, mapear campos, manter um diério, e assim por diante. Mas ndo so essas coisas, as técnicas e os proces- sos determinados, que definem o empreendimento, O que o define € 0 tipo de esforgo intelectual que ele fepresenta: um risco elaborado para uma “descrigao densa”, (omando emprestada uma nogio de Gilbert Ryle. ‘Una DEscricho DsusA: POR UMA TEORIA INTERDRETATIVA DACLLTURA S: A discussio de Ryle. sobre “descrigdo densa” aparece em dois recentes ensaios de sua autoria (ora reimpressos no segundo volume de seus Collected Papers) ditigida ao tema genético sobre o que, comoele diz, o“Le Penseur” esté fazendo: “Pensando ¢ Refletindo”’ e “O Pensar dos Pensamentos”. Varnos conside- rar, diz ele, dois garotos piscando rapidamente 0 olho direito. Num deles, esse € um tique involuntério; no outro, éuma piscadela conspiratéria a um amigo. Como movimentos, os dois so idénticos; observando os dois sozinhos, como se fosse uma cémara, numa observagao “fenomenalista”, ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou, na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora nao retratdvel, a diferenca entre um tique nervoso e uma piscadela é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela segunda, O piscador esti se comunicando «, defato, comunicando de uma forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em particular, @) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um eddigo socialmente estabelecido ¢ (5) sem o conhecimento dos demais companheiros, Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas agbes — contsir a palpebra e piscar — enquanto o que tem um tique nervoso apenas executou uma — contraiu a pilpebra. Contrair as pélpebras de propésito, quando existe um c6digo ptiblico no qual agit assim significa um sisal conspirat6rio, é piscar. E tudo que hé a respeito: uma particula de comportamento, um sinal de culturae — voild!—um. gesto. Bree ‘Todavia, isso & apenas 0 principio. Suponhamos, continua ele, que haja um terceiro garoto que, “para divenir maliciosamente seus companheiros”, imita o piscar do primeiro garoto de uma forma propositada, grosseira, Obvia, etc. Naturalmente, ele o faz da mesma maneira que o segundo garoto piscou e com o tique aervoso do pririeiro: contraindo sua palpebra direita. Ocorre, porém, que esse garoto nfo esté piscando nem tem um tique nervoso, ele esta imitando alguém que, na sua opinio, tenta piscar. Aqui também existe um cbdigo socialmente estabelecido (ele iré “piscar” laboriosamente, superobviamente, talvez fazendo uma careta — os artificios habituais do mimico), e 0 mesmo ocorre com a mensagem. S6 que agora no se trata 4deuma conspiracao, mas de ridicularizar. Se os outros pensarem que ele esté realmente piscando, todo o seu propésito vai por égua abaixo, embora com resultados um tanto diferentes do que se eles pensassem que ele ‘inha um tique nervoso. Pode ir-se mais além: em divida sobre sua capacidade de mimica, 0 imitador pode praticar em casa, diante de um espelho, e nesse caso ele no est com um tique nervoso, nem piscando ov imitando — ele esté ensaiando. Entretanto, para a céimara, um behavorista radical ou um crente em senten- 48 protocolares, o que ficaria registrado € que ele est contraindo rapidamente sua palpebra dircita, como os dois outros. As complexidades so poss{veis, se no praticamente infindaveis, pelo menos do ponto de vista da bgica. O piscador original poderia, por exemplo, estar apenas fingindo, para levar outros a pensarem que havia uma conspiragio, quando de fato nada havia, e nesse caso nossas descrigSes do que o imitador esté © 0 ensaiador ensaiando mudam completamente. O.caso & que, entre o que Ryle chama de “descri- io superficial” do que o ensaiador (imitador, piscador, aquele que tem o tique nervoso...) esté fazendo (contraindo rapidamente sua pélpebra direita”) e a “descrigdo densa” do que ele esté fazendo (““praticando a farsade um amigo imitando uma piscadela para levar um inocente a pensar que existe uma conspiragioem, andamento”) esté 0 objeto da etnografia: uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos ‘bas quais 0s tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitagdes, os ensaios das imitagdes si0 produzidos, percebidos e interpretados, ¢ sem as quais eles de fato nao existiriam (nem mesmo as formas 2210 de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, sio tanto ndo-piscadelas como as piscadelas so ‘tiques), no importa 0 que alguém fizesse ou no com sua propria pélpebra. Como tantas historietas que os fil6sofos de Oxford gostam de inventar para eles mesmos, todo esse piscar, f aimitagio de piscar, a farsa da imitacao do piscar, o ensaio da farsa da imitagio de piscar, pode parecer um. f lanto artificial. Para aerescentar uma nota mais empftica, deixem-me dar, sem precedé-lo deliberadamente 6 crrirn0 lw de qualquer comentério explicativo, um excerto nfo pouco tpico do meu proprio didrio de campo, para demonstrar que, mesmo aplainado para propésitos didéticos, 0 exemplo de Ryle apresenta uma imagem extremamente correta do tipo de esttuturas superpostas de inferéncias ¢ implicagdes através das quais 0 etnégrafo tem que procurar o seu caminho continuamente: 0s franceses (disse o informante) acabavam de chegar. Eles construfram cerca de vinte pequenos fortes entre este local, a cidade e a rea de Marmusha, no meio das montanhas, colocando-os em promontérios de forma a paderem pesquisar o campo. Todavia, apesar disso eles nfo podem garantir a seguranga, especialmente durante a noite, ¢ assim, a despeito do mezrag, 0 pacto comercial, ter sido supostamente abolido do ponto de vista legal, na verdade tudo continua como antes. ‘Uma noite, quando Cohen (que fala berbere fluemtemente) estava 14 em cima, em Marmusha, dois outros judeus {que negociavam com uma tribo vizinha apareceram para comprar dele algumas mercadorias. Alguns berberes, de ‘uma outratribo vizinha, tentaram penetrar na casa de Cohen, mas ele deu uns tiros para o ar com seu rifle. (Tradici ‘onalmente, no exa permitido aos judeus portarem armas, mas a situago era tio insegura na época que alguns as adquiriam.) Isso atraiu aatengo dos franceses e 0s invasores fugiram, Nanoite seguinte, porém, eles voltaram, e um deles, disfargado de mulher, beteu na porta, contando uma hist6ria Cohen desconfiou e nio quis deix4-"” entrar, mas os outros judeus disseram, “ora, estétudo bem, € 6 uma mulher” Bles abriram a porta e todo o bando entrou; mataram os dois judeus visitantes, mas Cohen conseguiu entrincheirar-se no aposento contiguo. Ble onvin os ladrées planejarem queimé-to vivo na loja, depois de retirarem suas mercadorias; abriu a porta e, manobrando um cacete, como um louco, conseguiu escapar por uma janela. Foi entio até o forte, para tratar seus ferimentos, e queixou-se ao comandante local, um certo Capito Dumari dizendo que queria ser ‘ar-, isto €, quatro ou cinco vezeso valor da mercadoria que Ihe fora roubada, Os adres eram de uma tribo ainda ni submetida As autoridades francesas e estavam em rebeliao aberta contra elas, portanto cle pedia uma autorizagio para ir com o seu portador-mezrag, o Xeque tribal Marmusha, cobrar a indenizagio a que tinke diseito, segundo os regulamentos tradicionais, O Capito Dumari no podia dar-the uma permissio oficial para fazé- Jo, uma vez que havia uma proibigdo francesa para a relago mezrag, mss ele Ihe deu uma autorizacao verbal dizendo: “Se vocé for morto, o problema & seu.” Assim, o xeque, 0 judeu ¢ um pequeno grupo de Marmusha, armados, percorreram dez ou quinze quilémetros até a drea rebelde, onde naturalmente nio havia franceses, ¢ furtivamente capturaram o pastor da tribo dos ladroes ¢ roubaram seus rebanhos. A outta tribo prontamente veio em sua perseguigo, montados a cavalo, armados de rifles ¢ prontos a atacar, Mas quando viram quem ecam os “ladies de cameiros”, pensaram melhor ¢ disseram, “muito bem ‘vamos conversar”. les no podiam negar efetivamente o que acontecera — que alguns dos seus homens haviam roubado Cohen ¢ matado os dois visitentes — e nao estavam preparados para comegar uma briga séria com os ‘Masmushas, o que a Iuta com os invasores acarretaria, Assim, os dois grupos felaram, falaram, falaram, ali na planf- ie, entre os milhares de carneiros, ¢ finalmente decidiram ressarcir os danos com quinhentos cameiros. Os dois grupos berberes armados alinharam-se em seus cavalos, nos pontos opostos da planicie, com o rebanho de carneiro: entze eles, e Cohen, com seu traje negro, chapéu-coce e chinetos batendo, percorreu sozinho o rebanko, escolhende ‘um por um e, inteiramente & vontade, os que ele achava melhor como pagamento. Assim Cohen conseguiu seus cameiros € levou-os de volta a Manmusha, Os tranceses, f no seu forte, escutaram- no chegar ainda a alguma distancia. (“Ba, ba, ba”, dizia Coben, muito feliz, relembrando o acontecido) e se pergun- taram: “Que diabo ¢ isso?” E Cohen responden: “Isto é o meu ‘ar Os franceses nfo podiam acreditar que ele fizere ‘que dzia e acusaram-no de ser espio dos berberes rebeldes, pondo-o na prisiio e apossancio-se do seu rebanho. cidade, sua familia, ndo tendo noticias dele durante tanto tempo, 0 julgeva morto, Apés algum tempo os franceses -g, Soltarama-no ¢ ele voltou para casa, porém sem o rebanho. Dirigiu-se, entio, ao coronel da cidade, um francés encar- Una Descrtcho Dessa: POR UMA TEORIA INTERFRETATIVA DA CULTURA 7 , para queixarse, Todavia, o coronel respondeu: “Nada posso fazer a respeito, Néo & meu Citada literalmente, como um recado numa garrafa, essa passagem indica, como qualquer outra seme- Ihante o facia, um sentido correto do muito que existe na descrigao etnogrdfica da espécie mais clementar— como ela é extraordinariamente “densa”. Nos escritos etnogréficos acabados, inclusive os aqui seleciona- dos: esse fato.— de que 0 que chamamos de noss0s dados-sio realmente nossa prépria construgao das construgdes de outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propdem —esté obscurecido, pois a maior parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um costume, uma idéia, ‘ov o que quer que seja esté insinuado como informagio de fundo antes da coisa em si mesma ser examinada diretamente. (Mesmo revelar que esse pequeno drama ocorreu nas montanhas do Marrocos central em 1912 —e foi novamente contado aqui em 1968 — é determinar muito da nossa compreensdo dele.) Nada ha de errado nisso ¢, de qualquer forma, ¢ inevitavel. Todavia, isso leva & visio da pesquisa antropolégica como ‘uma atividade mais observadora e menos interpretativa do que ela realmente é, Bem no fundo da base fatual, arocha dura, se € que existe uma, de todo 0 empreendimento, nés ja estamos explicando e, o que & pior, explicando explicagbes. Piscadelas de piscadelas de piscadelas. A anflise & portanto, escolher entre as estruturas de significagio — 0 que Ryle chamou de cédigos estabelecidos, uma expressio um tanto mistificadora, pois ela faz com que o empreendimento soe muito parecido com a tarefa de um decifrador de cédigos, quando na verdade ele muito mais parecido com ado ctiticg literério — ¢ determinar sua base social e sua importancia. Aqui em nosso texto, tal escolha comeca- tia com o diferengar os trés quadros desiguais de interpretagio, ingredientes da situagZo — o judeu, 0 berbere e o francés — e passaria entio a mostrar como (e por que), naquela ocasidio, naquele Jugar, sua co- presenca produziu uma situagao na qual um desentendimento sistemético reduziu uma forma tradici uma farsa social. O que levou Cohen a fracassar, ¢ com ele todo o antigo padrao de relagGes soci econGmicas dentro do qual cle funcionava, foi uma confusio de idiomas. Voliarei a este aforistwo demasiado compacto mais tarde, bem como aos detalhes sobre o proprio texto. 0 ponto a enfocar agora é somente que a etnografia é uma descrigdo densa. O que o etndgrafo enfrenta, de fato —anio ser quando (como deve fazer, naturalmente) esté seguindo as rotinas mais automatizadas de coletar dados —é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas tumas ds outras, que sao simultaneamente estranhuas, iregulares ¢ inexplicitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro aprender ¢ depois apresentar. E isso é verdade em todos os niveis de atividade do seu trabalho de campo, mesmo © mais rotineiro: entrevistar informantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, tragar as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu didrio. Fazer a etnografia €como tentar ler (no sentido de “construir wma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado. cheio de elipses, incoeréncias, emendas suspeitas e comentirios tendenciosos, escrito no com os sinais convencio- nais do som, mas com exemplos transit6rios de comportamento modelado. 8 carom TI A cultura, esse.documento de atuago, & portanto publica, como uma piscadela burlesea ott uma incur: fracassada aos cameiros. Embora uma ideagao, nao existe na cabega de alguém; embora ndo-fisica, ni uma identidade oculta. O debate intermindvel, porque n‘io-termindvel, dentro da antropologia, sobre s cultura é “subjetiva” ou “objetiva”, ao lado da troca maitua de insultos intelectuais (“idealista!” — “mate alistal”; “mentalistal” — “behavorista!”; “impressionista!” — “positivista!") que 0 acompanha, é conce do de forma totalmente errénea, Uma vez que 0 comportamento humano, é visto como ago simbélica | maioria das vezes; hd duas contrages) — uma agio que significa, como a fonagao na fala, o pigmento pintura, a linha na escrita ou a tessondincia na misica, —o problema se a cultura é uma conduta padonize ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de alguma forma perde o sentido. O que se de perguntar a respeito de uma piscadela burlesca ou de uma incursio fracassada aos carneiros nao € qual of status ontolégico. Representa o mesmo que pediras de um lado e.sonhos do outro — so coisas deste mun: 0 que devemos indagar é qual € a sua importincia: o que esté sendo transmitido com a sua ocorrénci através da sua agéncia, seja ela win ridiculo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um deboche out orgulho. Isso pode parecer uma verdade ébvia, mas hd intimeras formas de obscurecé-la, Uma delas é imaginar¢ acultura é uma realidade “superorgénica” autocontida, com forgas e propésitos em si mesma, isto &, reifi Ja. Outra € alegar que cla consiste no padrdo bruto de acontecimentos comportamentais que de fato obser Mos ocorrer em uma Ou outra comunidade identificdvel — isso significa reduzi-la. Todavia, embora es duas confusées ainda existam, e sempre continuardo conosco, sem diivida, a fonte principal de desord te6rica na antropologia contempordinea é uma opinidio que se desenvolveu em reaco a elas e que hoj Jargamente difundida — a saber, “a cultura (esté localizada) na mente e no coragdio dos homens”, parac Ward Goodenough, talvez seu proponente mais famoso. Chamada diversamente de etnociéncia, andlise componencial ou antropologia cognitiva (hesita terminol6gica que reflete uma incerteza profunda), essa escola de pensamento firma que’a cultura é c« posta de estruturas psicolégicas por meio das quais os individuos ou grupos de individuos guiam seu cc portamento. “A cultura de uma sociedade”, para citar novamente Goodenough, desta vez numa passag que se tornou o locus classicus de todo 0 movimento, “consiste no que quer que seja que alguém tem: saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita pelos seus membros.” A partir dessa visto do que cultura, segue-se outra visdo, igualmente segura, do que seja descrevé-la — a elaboragiio de regras sister ticas, um algoritmo einogréfico que, se seguido, tornaria possivel operi-lo dessa maneira, passar por nativo (deixando de lado a aparéncie fisica). Desta forma, um subjetivismo extremo 6 casado a um formalis extreiid, Com 0 resultado jé esperado: uma explosio de debates sobre se as anflises particulares (que sury sob a forma de taxonomias, paradigmas, tabelas, genealogies ¢ outras inventivas) refletem o que os nati Pensam “realmente” ou se séo apenas simulagées inteligentes, equivalentes logicos, mas substantivamt diferentes do que eles pensam. Jéque, num primeiro relance, essa abordagem pode parecer suficientemente proxima da que esti se desenvolvida aqui para ser tomada por ela, € itil ser bem explicito quanto ao que as separa. Deixand: lado, por um momento, nossas piscadelas e cameiros, se tomamos, por exemplo, um quarteto de Bethe como uma amostza de cultura, muito especial, mas suficientemente ilustrativa para estes propésitos, acre que ninguém 0 identificaria com 08 seus arranjos musicais, com a habilidade eo conhecimento necess \Ust DeSCRICRO DENSA: POR UMtA TEORIAIXTERERETATIVA BA CULTURA 9 para tocé-lo, com # compreenstio dele que tm seus instrementistas ou ouvintes, nem, para evar em conta en passant 0s reducionistas ¢ 0s reificadores, com uma execugao particular do quarteto ou com alguma entida- de misteriosa que transcende sua cxisténcia materiel. Talvéz a expresso “ninguém” aqui utilizada seja demasiado forte, pois sempre hd os incorrigtveis.Todavia, o fato de um quarteto de Beethoven ser uma estruturd tonal desenvolvida temporalmente, uma seqiigncia coerente de sons modulados — em suma, uma imisica— e no o conhecimento ou a crenga de qualquer pessoa em algo, inclusive como executé-la, é uma proposigtio com a qual, apés refletir, concordard a maioria das pessoas. Para tocar violino é necessério possuir certos h4bitos, habilidades, conhecimento e talento, estar com disposigio de tocar ¢ (como piada) ter um violino. Mas tocar violino nao nem o hibito, a habilidade, 0 “conhecimentoe assim por diante, nem a disposigo ou (a nogo que os crentes na “cultura material” aparen- lemente seguem) 0 préprio violino. Para fazer um tratado comercial em Marrocos vocé tem que fazer certas coisas, de uma certa maneira (entre outras, enquanto canta em érabe Quranic, cortar a garganta de um cordeiro ante os membros masculinos adultos, ndo-aleijados, de sua tribo reunidos) e possuir certas caracte- risticas psicolégicas (entre outras, um desejo de coisas distantes). Mas um pacto comercial nifo é nem cortar a garganta nem o desejo, embora este seja bastante teal, conforme descobriram sete parentes do nosso “xeque” Marmusha quando, numa ocasifo anterior, foram por ele executados em seguida ao roubo de uma pele de cameiro esfarrapada e praticamente sem valor pertencente a Cohen. A cultura é puiblica porque o significado 0 6. Vocé aio pode piscar (ou caricaturar a piscadela) sem saber ‘ogue & considerado uma piscadela ou como contrair, fisicamente, suas palpebras, e vocé nao pode fazer uma incurso aos cirneiros (ou imité-la) sem saber o que € roubar um cameixo e como fazé-lo na pritica. Mas tirar de tais verdades a conclusao de que saber como piscar é piscar e saber como roubar um cameiro é fazer uma incurséo aos cameiros é revelar uma confusao to grande como, assumindo as descrigées superficiais por densas, identificar as piscadelas com contragées de pélpebras ou incursiio aos cameiros com a caga aos animais lanigeros fora dos pastos. A falécia cognitivista — de que a cultura consiste (para citar um outro porta-voz do movimento, Stephen Tyler) “em fenémenos mentais que podem (ele quer dizer “poderiam”) ser analisados através de métodos formais similares aos da‘matemética e da Iégica” — € to destrutiva do uso efetivo do conceito como o sao as falécias “behavorista” e “idealista”, para as quais ele 6 uma corregio ‘mal concluida: Como seus ertos so mais sofisticados e suas distorgdes mais sutis, talvez seja ainda mais do ue isso, Oatagie generalizado as teorias de significado constitui, desde Husserl, chegando a Wittgenstein, parte tio integrante do pensamento moderno que nao € necessario desenvolvé-lo aqui mais uma vez. O que é& necessério & verificar se as noticias a respeito chegam & antropologia; e em particular esclarecer que dizer que acultura consiste em estruturas de significado socialmente estabelecidas, nos termos das quais as pesso- as fazem certas coisas como sinais de conspiragdo e se aliam ou percebem os insultos ¢ respondem a eles, io é mais do que dizer que esse ¢ um fendmeno psicolégico, uma caracterfstica da mente, da personalidade, da estrutura cognitiva de alguém, ou 0 que quer que seja, ou dizer ainda o que ¢ tantrismo, a genética, a forma progressiva do verbo, a classificago dos vinhos, a Common Lavy ou a nogio de “uma praga condici- onal” (como Westermarck definiu o conceito do ‘ar em cujos termos Cohen apresentou sua queixa de da- 105). O que impede a nés, que crescemos piscando outras piscadélas ou cuidando de outros cameiros, de , entender corretamente, num Jugar como Marrocos, que o que pretendem as pessoas nao é a ignorancia sobre como atua a cognigo (mas principalmente porque, presume-se, ela atua da mesma maneira que entre nds, € seria bem melhor se pudéssemos passar também sobre isso) como a falta de familiaridade com o universo imaginativo dentro do qual os seus atos so marcos determinados. Como jé invocamos Wittgenstein, pode- ‘mos muito bem transcrevé-lo: | { i i | | | | cea 10 Cwinao Um Falamos... de algumas pessoas que sio trensparentes para nés. Todavia, é importante no tocante a essa observagiic que um ser humano possa ser um enigma completo para outro ser humano, Aprendemos isso quando chegamos a um pais estranho, com tradigGes inteiramente estranlhas e, o que & mais, mesmo que se tena um dominio total do idiome do pais. Nés nao compreendenas 0 povo (e no por néo compreender o que eles falam entre si). Nao nos podemos situar entre cles, IV Situar-nos, um negécio enervante que s6 € bem-sucedido parcialmente, eis no que consiste a pesquisa (oa como experiéacia pessoal. Tentar formular a base na gual s¢ imagina, sempre excessivamente, cestar-se situado, eis no que consiste 9 texto antropolégico como empreendimento cientifico. Nao estamos procirando, pélo menoseu nio estou, tornar-nos nativos (em qualquer caso, eis uma palavra comprometida) ou copid-los. Somente os roménticos ou os espides podem achar isso bom. O que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito mais do que simplesmente falar, € conversar com eles/o que € muito mais dificil, ¢ néo apenas com estranhos, do que se reconhece habitualmente, “Se falar por alguém parece ser um processo misterioso”, observou Stanley Cavell, “isso pode ser devido ao fato de falar a al- ‘guém ndo parecer de maneira alguma misterioso.” Visto sob esse ngulo, 0 objetivo da antropologia ¢ o alargamento do universo do diseurso humano. De fato, esse ndo € seu tinico objetivo — a instrugao, a diversdo, o conselho pritico, o avango moral e a desco- berta da ordem natural no comportamento humano sio outros, ¢ a antropologia ndo é a tinica disciplina a persegui-los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semistico se adapta especialmente bem. Como sistemas entrelagados de signos interpretveis (a que eu chamaria simbolos, ignorando as utili zagies provinciais), a cultura nfo é um poder, algo ao qual podem ser atribuidos casualmente os aconteci- ‘mentos sociais, os comportamentos, as instituigdes ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligivel — isto é, deseritos com densidade. A famosa absorgéo antropolégica com o exético (para nds) — os cavaleiros berberes, os negociantes Judeus, os legionérios franceses — 6, assim, praticamente um attificio para deslocar o senso de familiarida- de embotador com o qual o mistério da nossa prdpria habilidade em relacioné-los compreensivelmente uns 208 outros se esconde de nés. Procurar 0 comum em locais onde existem formas nfo-usuais ressalta nao, como se alega tantas vezes, a arbitrariedade do comportamento humano (nao hé nada especialmente arbitré- rio em tomar 0 roubo de cameiros como insoléncia no Marrocos), mas 0 grau no qual o seu significado varia de acordo com o padréo de vida através do qual ele é informado. Compreender a cultura de um povo expée sua normalidade sem reduzir sua particularidade. (Quanto mais eu tento seguir o que fazem os marroquinos, mais l6gicos e singulares eles me parecer.) Isso os toma acessiveis: colocé-los no quadro de suas proprias banalidades dissolve sua opacidade. # essa manobra, a que se referem habitualmente, com uma casualidade excessiva, como “ver as coisas do Ponto de vista de ator”, ou muito livrescamente como “a abordagem verstehen", ou muito tecnicamente como “andlise émica”, que tantas vezes leva & nogdo de que a antropologia é uma variedade de leitura da mente a longa distancia ou uma fantasia da ilha dos canibais e que, para alguém ansioso em navegat por sobre 0 naulrégio de uma diizia de filosofias, deve ser executada com 0 maximo de cuidados, Nada mais, necessério para compreender o que é a interpretagdo antropoldgica, ¢ em que grau ela é uma interpretaco, ‘Una Descrucao Drs: PoR visa Teoma Inrenrnetaniva pa Cutruma 11 do que a compreensao exata do que ela se propée dizer — ou ni se prope — de que nossas formulag6es dos sistemas simb6licos de outros povos devem ser otientadas pelos atos, Isso significa que as descrigdes das culturas berbere, judaica ou francesa devem ser calculadas em termos das constragdes que imaginamos que os berberes, os judleus ou os franceses colocam através da vida que levam, a f6rmula que eles usam para definir 0 que Ihes acontece. O que isso nao significa € que tais descri- s6es sfo elas mesmas berbere, judia ou francesa — isto é, parte da realidade que elas descrevem ostensiva- mente; elas so antropoldgicas — isto é, partem de um sistema em desenvolvimento de anilise cientifica. Elas devem ser encaradas em termos das imerpretagdes as quais pessoas de uma denominagio particular submetem sua experiéncia, uma vez que isso é o que elas professam como descrighes. Sao antropolégicas porque, de fato, sao os antropélogos que as professam. Normalmente, nfo é necessdrio ressaltar de forma tio hbotiosa que 0 objeto de estudo é uma coisa o estudo é uma outra, Esté bastante claro que o mundo fisico aio € a fisicaeque A Skeleton Key to Finnegan's Wake nvio € o Finnegan's Wake. Todavia, como no estudo da cultura a andlise penetra no préprio corpo do objeto — isto é, comecamos com as nossas préprias interpre- ‘agdes do que pretendem nossos informantes, ou 0 que achamos que eles pretendem, e depois passamos a “sistematicd-las —, a Sinha entre cultura (marroguina) como um fato natural e cultura (marroquina) como catidade tedrica tende a ser obscurecida. Isso ocorre ainda mais na medida em que a diltima é apresentada sob a forma de uma descricao do ator das concepges (marroquinas) de todas as coisas, desde a violencia, a honra, a divindade e a justica, até a tribo, a propriedade, a patronagem e a chefia. Resumindo, os textos antropolégicos sdo eles mesmos interpretagdes e, na verdade, de segunda e terceira mio, (Por definicao, somente um “nativo” faz a interpretagdo em primeira mao: é a sua cultura.) Trata-se, portanto, de ficgdes; ficgdes no sentido de que so “algo construfdo”, “algo modelado” —o sentido original de fictio — nao que sejam falsas, ndo-fatuais ou apenas experimentos de pensamento, Construir descrigdes orientadas pelo ator dos envolvimentos de um chefe berbere, um mercador judeu e um soldado francés uns com os outros no Marrocos de 1912 e claramente um ato de imaginagio, nao muito diferente da construgio. de descrigdes semelhantes de, digamos, os envolvimentos uns com os outros de um médico francés de provincia, com a mulher frivola e addltera e seu amante incapaz, na Franga do século XIX. Neste dltimo 130, 08 atores so representados como hipotéticos e os acontecimentos como se nao tivessem ocorrido, enquanto no primeito caso éles so representados como verdadeiros, ou pelo menos como aparentemente verdadeiros, Essa nao é uma diferenga de pequena jmportincia: & precisamente a que Madame Bovary teve dificuldade em apreender. Mas a importancia nao reside no fato da hist6ria dela ter sido inventada enquanto ade Cohen foi apenas anotada. As condigdes de sua criagio e 6 seu enfoque (para nfo falar da maneira e da qualidade) diferem, todavia uma € tanto uma fictio — “uma fabricagao” — quanto a outra. Nem sempre os antrop6logos tém plena consciéneia desse fato: que embora a cultura exista no posto comercial, no forte da colina ou no pastoreio de cameiros, a antropologia existe no livro, no artigo, na conferéncia, ns exposigao do museu ou, como ocorre hoje, nos filmes. Convencer-se disso é compreender 'Nio apenas outros povos: a antzopologia pode ser tteinada no exame da cultura da qual ela prépria & parte —e 0 € de maneira tvescente. Esse 6 um fato de profunda importéncia, mas, como dé orizem a alguns problemas especiais de ordem secundéria ¢ um ‘ano complicades, deix4-lo-ei parte no momento, “Oproblema daordem, novamente, écomplexo. Trabalhos antropolégicos baseados em outras obras antopol6gicas (Lévi-Strauss, por exemplo) podem ser até de quarta miio ou mais, e mesmo os informantes fregiientemente, até mesmo habitualmente, fazem ‘nterpretagtes de segunida mao — o que passou a ser conhecido como “modelos natives”. Nas culturas mais adiantadas, onde a iecpretagto “nativa” pode alcangar niveis mais elevados — com referencia ao Maghreb, temos que pensar apenas em Ton ‘Khalduns quanto aos Estados Unidos, em Margeret Mead — esses tomas se tomam, na verdade, muito intrincados. 12 ceinnoum que alinha entre 0 modo de representagdo ¢ 0 contetido substantivo € to intrag4vel na andlise cultural come na pintura. E este fato, por sua vez, parece ameagar 0 status objetive do conhecimento antropolégico, sugerindo que sua fonte nao é a realidade social, mas um artificio erudito. Essa ameaga existe, na verdade, mas ela é superficial. A exigéncia de atengio de um relai6rio etogrifice nfo repousa tanto na capacidade do autor em captar os fatos primitivos em lugares distantes ¢ levé-tos part casa como uma méscara ou um entalho, mas no grau em que ele € capaz de esclarecer o que ocorre em tait lugares, para reduzir a perplexidade — que tipos de homens sao esses? — a que naturalmente dio origem o: atos niio-familiares que surgem de ambientes desconhecidos. Isso naturalmente levanta alguns problema s6rios de verificagio — ou, se “verificagdo” & uma palavra muito forte para uma ciéncia to sofi* (por min cu preferiria “avaliagao”) — de que maneira diferengar um celato melhor de um pior. Todavia, essa & tam bém a sua melhor virtude. Se a etnografia é uma descrigio densa e os etnégrafos sao aqueles que faze descrig&o, ento a questo determinante para qualquer exemplo dado, seja um diério de campo sarcAstico o uma monografia aleiitida, ‘do tipo Malinowski, é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos € as pisca delas verdadeiras das imitadas. Nio precisamos medir a irrefutabilidade de nossas explicagées contra ur corpo de documentacao naio-interpretada, descrigdes radicalmente superficisis, mas contra o poder da ime ginagéo cientifica que nos leva a0 contato com as vidas dos estranhos. Conforme disse Thoreau, néo vale pena correr o mundo para contar os gatos de Zanzibar, Vv Ora, essa proposiggo, de que nfo € do nosso interesse retirar do comportamento humano justament propriedades que nos interessam antes de comecar a examiné-lo, tem sido, por vezes, dimensionada aun grande alegagao: a saber, de que uma vez que sio apenas essas propricdades que nos interessam, no prec amos nos preocupar com o comportamento, a nZo ser superficialmente, A cultura é tratada de modo ma efetivo, prossegue o argument, puramente como sistema simbélico (a expressio-chave é, “em seus prop 08 termos”), pelo isolamento dos seus elementos, especificando as relagGes internas entre esses elemento: passando entio a caracterizar todo o sistema de uma forma gera! — de acordo com os simbolos bisicos ¢ torno dos quais ela é organizada, as estruturas subordinadas das quais é uma expressio superficial, 0x principios ideolégicos nos quais ela se baseia. Embora se trate j4 de uma melhoria acentuada em relagio nogées de “comportameato aprendigs” €"Tavomeno mental” do que é a cultura e fonte de algumas ¢ idéias te6ricas mais poderosas da antropologia contempordnea, essa abordagem hermeética das coisas pay cce-mne correr o perigo de fechar (e de ser superada cada vez mais por ela) a anélise cultural Jonge do s objetivo correto, a légica informal da vida real. Hé pouca vantagemi em se extrair um conceito dos defeit do psicologismo apenas para merguthé-to, imediatamente, nos do esquematismo. Deve atentar-se para o comportamento, e com exatidiio, pois é através do fluxo do comportamento — mais precisamente, da ago social — que as formas culturais encontcam articulagdo. Elas encontram- também, certamente, em varias espécies de artefatos e, varios estados de consciéncia. Todavia, nestes ca o significado emerge do papel que desempenham (Wittgenstein diria seu “'vso”) no padrao de vida decom "No original, soft science, em oposigio’s hard selences, de base matemética, consideradas mais exatas. ‘Usa Desenscto Dans: Pon UMA Teowa INTGIURETATIVA DA CULTURA 13 te, ndo de quaisquer relagdes intrinsecas que mantenham umas com as outras. E 0 que Cohen, o “xeque” eo “Capito Dumari” estavam fazendo quando tropecavam nos objetivos uns dos outros — fazendo o comér- cio, defendendo a honra, estabelecendo a dominago— que criou nesse drama pastoral, € é “sobre” isso que ‘drama surgiu, portanto, Quaisquer que sejam, ou onde quer que estejam esses sistemas de simbolos “em seus pr6prios termos”, gafanos ‘agesso empirico aeles inspecionando os acontecimentos ¢ no arrumando entidades abstratas emipadre3 unificados. Outra implicagio é que a coeréncia nao pode ser o principal teste de validade de uma descrig&o cultural. Os sistemas culturais tém que ter um grau mfnimo de coeréncia, do contrério nto os chamariamos sistemas, e atrdvés da observagio vemos que normalmente eles tém muito mais do que isso, Mas nfo ha nada téo coerente como a ilusto de um parandico ou a est6ria de um trapaceiro. A forga de nossas interpretagBes néo pode repousar, como acontece hoje em dia com tanta freqiéncia, na rigidez.com que elas se mantém ou na seguranga com que sio argumentadas, Creio que nada contribuiu mais para desacreditar a andlise cultural do que a construgo de representagées impecdveis de ordem formal, em cuja exist@ncia verdadeira praticamen- te ninguém pode acreditar. « Se.ainterpretagHo antropolégica esté construindo uma leitura do que acontece, entio divoreié-la do que acontece — do que, nessa ocasifo ou naquele lugar, pessoas especificas dizem, o que elas fazem, 0 que é feito elas, a partir de todo 0 vasto negécio do mundo — é divorci-Ia das suas aplicagGes ¢ torné-la vazia, ._ Uma boa interpretagao de qualquer coisa — um poema, uma pessoa, uma est6ria, um ritual, uma instituiggo, uma sociedade — leva-nos ao cere do que nos propomos interpretar. Quando isso ndio ocorre e nos conduz, 20 contrério, a outra coisa — a uma admiragao da sua prépria elegéncia, da inteligéncia do seu autor ou das belezas da ordem euclidiana —, isso pode ter encantos intrinsecos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temés — exige descobrir o que significa toda a trama com os carneiros. A trama com os carneiros — a tapeagio do roubo, a transferéncia reparadora, 0 confisco politico deles — € (ou foi) essencialmente um discurso social, mesmo que tenha sido feito, como sugeri anteriormente, em diversos idiomas tanto em ago como em palavras, Aoreclamar o seu ‘ar, Cohen invocou 0 pacto comercial; reconhecendo a alegacio, o xeque desafiou a tribo os ofensores; aceitando a responsabilidade, a tribo dos ofensores pagou a indenizacao; ansioso por demons- ttartanto aos xeques como aos negociantes quem estava no poder, o francés mostrou a mio dominadora. Como emqualquer discurso, o c6digo nao determina a conduta, e 0 que foi dito nao precisava sé-lo, na verdade. Dada 4 sua ilegitimidade aos olhos do Protetorado, Cohen nfo precisava ser escolhido para pressionar sua queixa. Por motivos semelhantes, 0 xeque poderia té-la recusado. A tribo dos ofensores, ainda resistentes & autoridade francesa, poderia considerar a incurséo como “verdadeira” e lutar em vez de negociar. Os franceses, se fossem inais habiles © menos durs (como ocorreu de fato, mais tarde, sob a tutelager senhorial do Marechal Lyavtey), pederiam permitir a Cohen conservar seus carneiros, concordando — como dizemos — com a continuagio do paktdo de comércio e suas limitagoes @ autoridade deles. E hé ainda outras possibilidades: os Marmushas podiam ver a atuagtio dos franceses como um insulto muito grande, e entrar em dissidéncia entre eles; os franceses poderiam tentar no apenas apertar Cohen, mas impor medidas mais drdsticas ao proprio xeque; € Cohen poderia ter conclufdo que entre os renegados berberes e 0s soldados “Beau Geste” no valia mais a pena fazer negécio na regio montanhosa do Atlas, ¢ retirarse para o recinto da cidade, melhor govemada, Aliés, foi mais ou menos © que aconteceu, um pouco mais tarde, quando o Protetorado avangou para uma soberani genuina Entretanto, o ponto aqui nfo € descrever 0 que aconteceu ou nfo no Marrocos. (A partir desse simples incidente, pode chegar-se a complexidades enormes de experiéncia social.) Isso € apenas para demons, (cazem que consiste um tipo de interpretago antropolgica: tragar a curva de um discurso social; fixdclo.numns’ ormainspeciondvel. : 7 14 castro us © eindgrafo “inscreve" o discurso social: ele 0 anora. Ao fazé-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu proprio momento de ocorréncia, em um relato, que existe em sua inscri- 80 © que pode ser consultado névamente. O xeque jé esté morto hé muito tempo, assassinado no processo de “pacificagio” como o chamaram os franceses: 0 “Capitio Dumari”, seu pacificador, mora no Sul da Franga, aposentado juntamente com suas lembrangas; e Cohen foi no ano passado para “casa”, para Israel, em parte como refugiado, em parte como peregrino ¢ em parte como patriarca moribundo. Todavia, no meu sentido amplo, 0 que cles “disseram" uns aos outros, hé sessenta anos, nos planaltos do Atlas — embora longe da perfeigdo — esté conservado para estudo. Paul Ricoeur, de quem foi emprestada e um tanto distor- cida toda a idéia da inscrigdo da aco, pergunta, “O que a escrita fixa?” Nao o acontecimento de falar, mas 0 que foi “dito”, onde compreendemos, pelo que foi “dito” no falar, essa exteriorizagio intencional constitutiva do objetivo do discurso gragas a0 qual o sagerr — 0 dito — tomia-se Aus-sage —a enunciagao, o enunciado, Resumindo, o que escrevemos ¢ 0 noenva (“pensamento”, contedido”, “substincia”) do falar. B 0 significado do acontecimento de falar, nfo 0 acontecimento como acontecimento. Isso nio esta muito bem “dito” — se os filésofos de Oxford recorem a historietas, os fenomenolégicos empregam frases longas. De qualquer forma, isso nos leva a uma resposta mais precisa & nossa indagacio: “O que faz o emégrafo?” — ele escreve. Isso também pode parecer uma descoberta um tanto surpreendente e talvez até implaustvel para quem esté familiarizado com a “literatura” corrente. Entretanto, como a respos- ta padrio & nossa questdo tem sido “ele observa, ele registra, ele analisa’’ — uma espécie de concepgao de veni, vidi, vinci do assunto — ela pode ter conseqiiéncias bem mais profundas do que na aparéncia, sendo que talvez a menor delas, a de distinguir essas trés fases da busca de conhecimento, pode no ser normal- mente possivel, na verdade, ¢ de fato, como “operagées” autGnomas elas podem nem sequer existir A situagao ainda mais delicada porque, como jé foi observado, o que inscrevemos (ou tentamos fazé-10) niio € o discurso social bruto ao qual nao somos atores, nfo temos acesso direto a nao ser marginalmente, ou muito especialmente, mas apenas Aquela pequena parte dele que os nossos informantes nos podem levar a compreender- Isso nao & tao fatal como soa, pois, na verdade, nem todos os eretenses so mentirosos, € no énecessério conhecer tudo para poder entender uma coisa, Todavia, isso torna a visto da andlise antropolé- gica como manipulagao conceptual dos fatos descobertos, uma reconstrugdo 16gica de uma simples cealida- de, parecer um tanto incompleta. Apresentar cristais simétricos de significado, purificados da complexidade material nos quais foram localizados, e depois atribuir sua existéncia a principios de ordem autégenos, atributos universais da mente humana ou vastos, a priori, Weltanschauungen, € pretender wma ciéncia que no existe ¢ imaginar uma realidade que nfo pode ser encontrada. A andlise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhagao dos significados, uma avaliagio das conjeturas, um tragar de conclusées explanittrias a partir das melhores conjeturas ¢ nfo a descoberta do Continente dos Significados e 0 mapeamento da sua paisa- gem incorpérea. Qu mais uma vez, mais exatamente, “inscreve”,Aliés, a maior parte da etnografia € encontrada em liveos ¢ artigos, em vez de filmés, discos, exposigdes de museus, ete. Mesmo neles h4, certamente, fotografis, desenhos, iagramas, tabelas ¢ assim por dante. Tem feito falta & antropologia uma auroconscigncia sobze modos de representagio (para aio falar de experimentos com la) ‘Na medida em que reforgou o impulso do antrop6logo em engaja-se com seus informantes como pessoas no invés de objetas,2 ogo de “observacdo participante” foi uma nogio valiosa. Todavia, cla se transforma na fonte mais poderosa de mé f€ quando | leva. antropélogo a bloquear da sva visio a natureza muito especial, culturalmente enquadrada, do eu prprio papel eimaginar- | s¢ algo mais do que um interessado (aos dois senidos da palavra) temporsrio. | | | ‘Una Descnico Dessa: Por UMA TEOMA INTERERETATIVA DACULTURA 15 VI Assim, hé tés caracteristicas da descrigao etnografica: ela é interpretativa; 0 que ela interpreta € 0 fluxo do’

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