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MDM COPIADORA FCHF - UFG Prof. Ad! idott 29 Copias: Paginas,_23°-280 SANTO AGOSTINHO CONFISSOES 9 Edigio LIVRARIA APOSTOLADO DA IMPRENSA Rua da Boavista, 591—Telef, 27875 PORTO 1977 ‘TmADUSKO Do ORIGINAL LATINO por J. OLIVEIRA SANTOS @ A. AMBROSIO DE PINA PRoLoco DE LOCIO CRAVEIRO DA SILVA Ex sedi, expertus sum non esse mi- es rum, quod palato non sano poena est et panis, qui sano suavis est, et oculis fegtis diosa Tux, quae puris amabilis. Santi ¢ experimented ndo ser para admirar que 0 pa, tio saboroso ao pala- day saudével, seja enjoativo ao paladar enfermo, e que a luz, amdvel aos olhos limpidos, seja odiosa aos olhos doentes. . Liv. IV, cap. ey Fecistis nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te. Com todas as licencas Griastes-nos para Vés ¢ 0 nosso coragdo vive inguieto, enquanto néo repoisa em Vos. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Liv. I, cap. 1 _LIVRO DECIMO © ENCONTRO DE DEUS Predominam neste livro, a formosts- sima descri¢Zo da meméria e a andlise as seduces da gula, do perfume, da miisica € das belezas naturals. I—Introdugio & segunda parte: A caminho de Deus (1-7). Ti—Da anflise da meméria a Deus (8-17). IIT — Misérias e tentagdes do homem (18-41), IV-—Cristo & 0 tinico Mediador (42-43) 1. O APELO A VERDADE Fazei que eu Vos conhega, 6 Conhecedor de mim mesmo, sim, que Vos conhega como de’ Vés sou conhecido *. 6 virtude da minha alma, entrai nela, adptai-a a Vés, para a terdes e possuirdes sem mancha nem ruga, ¥ esta a esperanga com que falo, a esperanca em que me alegro quando gozo duma alegria Si, Os outros bens desta vida, tanto menos se deveriam chorar, quanto mais os choramos; e tanto mais se deveriam chorar, quanto menos os choramos. Mas Vés amastes a verdade *, pelo 1 A filosofia de S, Agostinho sintetiza-se na expresso: «Que me conkeca a mim, que Te caer a Tl, Denes (Solddeuion, Liv TL © 1). = Salm L, & 240 CONFISSOES que, quem a pratica alcanga a luz. Quero-a também praticar no meu coragao, confessando-me a Vés, ¢, nos meus escritos, a um grande mimero de testemunhas. 2. DEUS TUDO PENETRA Para Vés, Senhor, a cujos olhos esté patente o abismo da consciéncia humana, que haveria em mim oculto, ainda que Vo-lo no quisesse confessar? Poder-Vos-ia ocultar-me a mim mesmo, ‘mas no poderia esconder-me de Vés. Agora que os meus gemidos so testemunhas de que me desagrado, Vés iluminais-me, agra- dais-me, e eu de tal modo Vos amo e desejo que j4 me enver- gonho de mim. Desprezo-me e escolho-Vos. Sé por Vosso amor desejo agradar-Vos a Vés e a mim, Senhor, conheceis-me tal como sou. Ja Vos disse com que fruto me vou confessando a Vés. Nao Vos faco esta confissao com palavras e vozes da carne, mas com palavras da alma ¢ gritos do pensamento, que Voss0s ouvidos ja conhecem. Quando Sou mau, 0 confessar-me a Vés é 0 mesmo que desagradar-me a mim proprio; porém, quando sou bom, o confessar-me a Vés 86 significa que nfo atribuo nada a mim, porque abencoais, Senhor, o justo e o justificais ‘, Assim, 6 meu Deus, a confissaio que faco na Vossa presenca ¢ € nfo é em siléncio. & em siléncia quanto as palavras; mas é em clamor quanto aos afectos. Nenh ma verdade digo aos homers que Vés j4 antes ma nfo tenhais ouvido. Nem me ouvis nada que j4 antes mo nio tivésseis dito. 3. CONFESSAR-ME AOS HOMENS?! Que tenho eu que ver com os homens, para que me oigam as Confisses, como se houvessem de me curar das minhas enfermidades? Que gente curiosa para conhecer a vida alheia e que indolente para corrigir a sual Porque pretendem que thes declare quem sou, se no desejam também ouvir de Vés quem * Jo, MI, 21. + Rom. IV, 5. LIVRO X 241 eles so? Ouvindo-me falar de mim, como hio-de saber que Shes declaro a verdade, se ninguém sabe o que se passa num homem, a no ser o espirito desse homem que nele habita? *. Se, poréim, Vos ouvem falar a seu respeito, nfo poderdo dizer: «Nosso Senhor mente». Com efeito, 0 ouvirem-Vos falar a set respeito, que € seno conhecerem-se a si mesmos? E quem hé que, conhecendo-se, diga sem mentir: «é falso»? A caridade tudo cré®, sobretudo entre os que ela unifica, ligando-se entre si. Por isso também eu, Senhor, me confesso a Vés, para que os homens, a quem nfo posso provar que falo verdade me oicam. ‘Mas aqueles a quem a caridade abre em meu proveito os ouvidos, acreditam em mim. Vés que sois 0 Médico do men interior, esclarecei-me sobre © fruto com que faco esta confisso. Na verdade as confissdes dos meus males passados, — que perdoastes e esquecestes para me tornardes feliz em Vés, transformando-me a alma com a fé'¢ com o Vosso sacramento—, quando se Iéem ou ouvem, despertam o coragio para que nfo durma no desespero nem diga: — «nfo posso». Despertam-na para que vigie no amor da Vossa misericérdia e na dogura da Vossa graca, com a qual se tosna poderoso o fraco que, por ela, toma consciéncia da sua fraqueza, Consolam-se, além disso, os bons ao ouvirem os males passados daqueles que j4 no sofrem. Deleitam-se no por serem males, mas porque o foram e agora 0 néo sio, 6 Senhor meu —a quem a minha consciéncia quotidiana- mente se confessa, mais confiada na esperanga da Vossa mise- rieérdia do que na sua inocéncia — mostrai-me, eu Vo-lo pego—, que proveito, sim, que proveito haverd em confessar, neste livro, também aos homens, diante de Vés, no quem fui, mas quem sou? Ja vie recordei o fruto que dai se tira, Ha muitos, porém, que desejam saber quem eu sou no momento actual em que escrevo as Confissdes. Desses, uns conhecem-me, outros néo; ou, simplesmente ouviram de mim ou de outros, a meu respeito, alguma coisa, Mas os seus ouvidos nfo me auscultam 0 coracio, onde eu sou o que sou. Querem, pois, ouvir-me confessar quem 8 1 Cor. I, 11. © I Cor, XII, 7. 242 CONFISSOES sou no interior, para onde no podem lancar o olhar, 0 ouvido ou a mente, Querem-no contudo, dispostos a acreditar, Poder- -me-Zo conhecer? A caridade, porém, que os torna justos, diz~ -lhes que eu, a0 confessar-me, no minto, % ela quem os faz acreditar em mim. 4. O FRUTO DAS «CONFISSGES» Querem ouvir-me; mas com que fruto? Desejarfo congra- tular-se comigo, ouvindo quanto a Vossa graga me aproximou de Vés? Desejario orar por mim, sabendo quanto o peso dos meus pecados me faz atrasar (na virtude)? Bem, mostrar-lhes-ci quem sou. Ja nfo é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que muitos Vos rendam gragas por mim ¢ que numerosas pessoas Vos implorem em met favor. Oxalé que 0 coragio dos meus irmdos ame, em mim, 0 que ensinais a amar e igualmente aborreca o que ensinais a aborrecer! Que isto brote dum coracéo fratemo, nfo dum coracéo estranho, nem de. files espirios *. Faca isto um coracio fraterno que se alegre comigo quando me aprova e se entristeca quando me desaprova, porque igualmente me ama quer me aprove quer me desaprove. A estes € que me revelarei: respirem eles nas minhas acces boas, e suspirem nas mds. As accBes boas sio obras e dons Vossos; as més sfo delito meu e juizos Vossos. Respirem nas acodes boas e suspirem nas mis, Subam A Vossa presenca hinos e légrimas destes coragées fraternos que so . E exclamaram com alarido: — «Foi Ele quem nos criou»*®, ‘A minha pergunta consistia em contempli-las; a sua res- posta era a sua beleza**, Dirigi-me, entéo, a mim mesmo, e perguntei-me: —«E tu quem és»?— «Um homem», — respondi. Servem-me um corpo e uma alma; 0 primeiro & exterior, a outra inferior. Destas duas substincias, a qual deveria cu perguntar quem & 0 meu Deus, gue ja tinha procurado com o corpo, desde a terra ao céu, até 34 Fil6sofo do séeulo VI antes de Cristo, Era natural de Mileto, na Jénia, provincia da Asia Menor. Supunha ele que a matéria era dotada essencilmente de vida. Por isso, nfo admitia um Ser supremo que estivesse para além do mundo. Vendo a evolugde constante @ que estavam sujeitos os seres, procusou indagar qual o principio que presi- dia a estas transformagées, Notando que o ar restaurava, pela respira- do, a vida animal, e que o espirito, na hora derradeita, era exalado como uin sopra, escolheu ar como’ principio de tudo. Do ar vivo € infinite, por dilatacSes © contrsccGes provinham todos os seres. A Agua era, pata a Anaximenes, o ar condensado; e o fogo era o ar rarefeito. Anaximenes, Tales, Anaximandro, Empédocles e Anaxigoras constituem, na Historia ‘da Filosofia Gregs, a Escola Jénica, 36° Salm, XCIX, 3. 28 Em S. Agostinho, o artista & uma das facetas do seu génio complexo que ultrapassou as teorias platénicas e plotinianas e soube solicioner originalmente 0. dificil problema das ideias estéticas. Nio sentiu apenas a Beleza, nfo revelou apenas na sua arte literiria ¢ na sua teologia tio profunda e exuberante, mas foi também o filésofo que investigou ¢ admirou. no mundo as imagens coloridas do Supremo Ser. 246 CONFISSOES onde pude enviar, como mensageiros, os raios dos meus olhos? —A parte interior, que € a melhor. Na verdade, a ela € que os mensageiros do corpo remetiam como a um presidente ou juiz, as respostas do céu, da terra e de todas as coisas que neles existem, que diziam: — «Nao somos Deus; mas foi Ele quem os criou». O homem interior conheceu esta verdade pelo minis- tétio do homem exterior. Ora eu, homem interior —alma—, eu conheci-a também pelos sentides do corpo. Perguntei pelo meu Deus massa do Universo, e respondeu-me: — «Nao sou eu; mas foi Ele que me criou». ‘Mas, no se manifesta esta beleza a todos 0s que possuem sentidos perfeitos? Porque no fala a todos do mesmo modo? Os animais, pequenos ou grandes, véem, a beleza, mas nfo a podem interrogar. Nao ihes foi dada a razio,— juiz que julga ‘© gue os sentidos Ihe anunciam. Os homens, pelo contririo, na interrogar, para verem as perfcigdes invisiveis de Deus, considerando-as nas obras criadas *". Submetem-se todavia a estas pelo amor, ¢ assim j4 no as podem julgar. Nem a todos ‘08 que as interrogam, respondem as criaturas, mas, s6 aos que as julgam. Nao mudam a voz, isto é a beleza, se um a vé simplesmente, enquanto outro a vé e a interroga. Nao aparecem a um duma maneira e a outro doutra... Mas aparecendo a ambos do mesmo modo, para um é muda e para outro fala. Ou antes, fala a todos, ‘mas somente a entendem aqueles que comparam a voz vinda de fora com a verdade interior. Ora, a verdade diz-me: —«O teu Deus nfo & 0 céu, nem a terra, nem corpo algumy, E a natureza deles exclama: «repara que a matéria menor na parte que no todo». Por isso, te digo, 6 minha alma, que é superior ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo, dando-lhe vida, o que mentum corpo pode fazer a outro corpo**. Além disso o teu Deus & também para ti vida da tua vida 11 Rom. 1, 20, 18 A alma dé vida a0 corpo porque ¢ a sua forma substancial. ‘Sem esta unidade intima e profunda, o corpo seria apenas um instru- mento da alma que a seu talante poderia deixar de vivificar, quando ‘bem Ihe patecesse. LIVRO X 247, 7. ULTRAPASSANDO A FORGA CORPOREA... Que amo entiio quando amo o meu Deus? Quem é Aquele que esté no cimo da minha alma? Pela minha propria alma hei-de subir até Ele, Ultrapassarei a forga com que me prende a0 corpo e com que encho de vida o meu organismo. Mas nfo & com essa vida que encontro o meu Deus, porque (nesse caso) também Eis o que exclamo dentro de mim. Ao dizer isto, tenho presentes as imagens de tudo o que exprimo, hauridas do tesoiro da meméria, pois se faltassem, absolutamente nada disto poderia dizer. & grande esta fora da memeéria, imensamente grande, grande, 6 meu Deus. & um santuirio infinitamente amplo. Quem © pode sondar até ao profundo? Ora esta poténcia é propria do ‘meu espirito ¢ pertence & minha natureza. Nao chego, porém, a aprender todo o meu ser, Seré porque o espfrito é demasiado estreito para se conter a si mesmo? Entio onde esti o que de si mesmo néo encerra? Estar fora ¢ nfo dentro dele? Mas como é que 0 nfo contém? Este ponto faz brotar em mim um admiragéo sem limites que me subjuga, Os homens vo admirar os pincaros dos montes, as ondas alterosas, as largas correntes dos rios, a amplidio do Oceano, as Orbitas dos astros: e mem pensam em si mesmos! Nao se 250 CONFISSOES admiram de eu ter falado (agora) de todas estas coisas num tempo em que as no via com os olhos! Ora, nao poderia falar delas se, dentro da minha meméria, nos espasos to vastos como se fora de mim os visse, nfo observasse os montes, as ondas, 08 rios, 08 astros que contemplei eo Oceano em que acredito or testemunho alheio®. Mas, ao presencié-lo com os olhos, ho os absorvi com a vista: residem em mim, no os préprios objectos mas as suas imagens. Conhego com que sentido do corpo me foi impressa cada imagem. A MEMORIA INTELECTUAL Nio é s6 isto, o que a capacidade imensa da minha memé- ria encerra, Também li se encontra tudo o que néo esqueci, aprendido nas artes liberais, _ Estes conhecimentos serio como que retirados oum lugar mais intimo, que no é lugar. Ora, eu néo trago comigo as suas imagens mas as préprias realidades. As nogées de literatura, de dialéctica, as diferentes espécies de questées € todos os conhe- ‘cimentos que tenho a este respeito, existem também na minha meméria, mas de tal modo que, se nfo retivesse a imagem, deixaria fora 0 objecto *. Neste caso sucederia como & voz que essoa_e logo passa, deixando nos ouvidos a impressio dum asto que no-la faz recordar, como se continuasse a ressoar quando na realidade ja no ressoa. Sucederia como ao perfume que ao passar ¢ desvanecer-se nos ares, afecta o olfacto, donde transmite Para a meméria a sua imagem que se reproduz com a lembranga; como ao alimento que no estémago perde o sabor, mas parece 3 © Oceano era para os antigos romanos o mar que cercava toda a terra. Era particularmente o Atlantic que recebia este nome. Cicero, por exemplo, no Sonko de Cipidor ea terra esté rodeada daquele ‘mar que se chama “Atlintico, 0 Grande, 0 Oceano ...». Santo Agos= tinho apenas sulcou as ondas do Mediterraneo e nar’ Tirreno onde no hi marés, Porém o seu diseipulo Paulo Orésio, natural de Braga, poder-Ihe-ia descrever as marés do Atléntice nas praias Tusitana 3 Distingue S, Agostinho entre cifncia e imagens de objectos A ciéncia esti em nds sem imagens, os objectos estio em nbs. pelas suas imagens. LIVRO X - ash conservé-lo na meméria;. finalmente como acontece a qualquer ‘objecto que 0 corpo sente pelo tacto e que a meméria imagina, mesmo quando afastado de nés, De facto, todas estas realidades nfo nos penetram na me- méria, Sé as suas imagens ¢ que sao recolhidas com espantosa rapidez e dispostas, por assim dizer, em células admirdveis, donde admiravelmente so tiradas pela lembranca. 10. 4 MEMORIA E OS SENTIDOS Quando oigo dizer que hé trés espécies de questies, a saber: «se uma coisa existe (an sit)? qual a sua natureza (quid sit)? qual a sua qualidade (quale sit)?>, retenho as imagens dos sons de que se formaram estas palavras, ¢ vejo que eles passaram com ruido através do ar, ¢ ja nfo existem. Nao foi por nenhum dos sentidos do corpo, que atingi essas coisas significadas nestes sons, nem as vi em parte nenhuma a ndo ser no meu espirito, Escondi na meméria nfo as suas imagens, mas os préprios objectos. Que digam, se podem, por onde entraram em mim. Percor- rendo todas as portas do corpo no consigo saber, por qual entraram. Os olhos dizem: — «se eram coloridas, fomos nés que anunciémos». Replicam os ouvidos: — «ressoaram foram por nés comunicadas». Declara o olfacto: —«se tinham cheiro, passa- ram por mim». Afirma ainda o sentido do gosto: — «se nio tinham sabor, nada me perguntess. E o tacto: — «se nfo eram sensiveis, nfo as apalpei; se as apalpei, nfo as pude indicar». Donde ¢ por que parte me entraram na meméria? Ignoro-0, porgue, quando as aprendi nfo acreditei, nelas fiado num parecer alheio, mas reconheci-as existentes em mim admitindo-as como verdadeiras. Entreguei-as ao meu espirito, como quem as depo- sita, para depois as tirar quando quiser. Estavam 1é, portanto, mesmo anies de as aprender, mas nao estavam na minha memé- ria, Onde estavam entio? Porque as conheci, quando disse: — «Sim, verdadeo, senfo porque ja existiam na minha meméria? ‘Mas tio retiradas © escondidas em concavidades secretissimas estavam que ndo poderia talvez pensar nelas, se dali nio fossem arrancadas por alguém que me advertise, i 0 CONFISSOES 1. 4 MEMORIA E AS IDEIAS INATAS Por esta razio, aprender estas nogdes —de que nfo hauri- ‘mos as imagens pelos sentidos, mas que sem imagens vemos no nosso interior tais como séo em si mesmas— achamos que consiste apenas em coligir pelo pensamento aquelas coisas que a meméria encerrava dispersas ¢ desordenadas e em obrigé-las pela forca da atengio, a estarem sempre como que & mio ¢ a apresentarem-se com facilidade ao esforgo costumado do nosso espirito. Quantas destas espécies nos traz a nossa meméria as quais ja antes haviamos encontrado e, —como jd me exprimi— as tivemos como que 4 mio! Nés somos de parecer que jé em tempos aprendemos e.conhecemos estas coisas **, Mas se deixar de as recordar, ainda que seja por pequeno espago de tempo, de novo imergem e como que se escapam para esconderijos mais profundos. E assim como se fossem novos, & necessério, pensar segunda vez, nesses conhecimentos existentes na meméria — pois nao tém outra habitagio— e junté-los (cogenda) nova- mente, para que se possam saber. Quer dizer, precisamos de os coligir (colligenda), subtraindo-os a uma espécie de. dispersio. E daqui (cogenda, cogo) & que vem cogitare; pois cogo ¢ cogito so como ago e agito, facio e facito. Porém a inteligéncia reivin- dicou como proprio este verbo (cogito), de tal maneira que sé a0 acto de coligir (colligere) isto é ao acto de juntar (cogere) no espirito e néo em qualquer parte, € que propriamente se chama «pensar» (cogitare). 2 Alusio & teoria augustiniana da reminiscéncia, Segundo esta, ‘Deus, iluminando a nossa mente, deporia em nés muitos conhecimentos Que viriam depois a ser utilizados pela alma, & medida que os recor- dasse. Santo Agostinho adoptou assim em parte a teoria Platénica das Ideias, segundo a qual a alma, ao encarnar rum corpo, trazia do outro mundo a§ imagens das coisas. Aprender seria, portanto, recordar o que vira noutros tempos. . LIVRO X 253, 12, 4 MEMORIA DAS MATEMATICAS Do mesmo modo a meméria contém as nogées ¢ as regras inumeraveis dos nimeros ¢ das dimensées. Nao foram os sen- tidos que nos gravou estas ideias, porque estas nfo tém cor, nem som, nem cheiro, nem gosto, nem sio ticteis. Quando delas se fala, oico os sons das palavras que as significam. Mas os nimeros soam diferentemente em grego ¢ em latim, Porém es ideias nem sfo gregas nem latinas, nem de nenhuma outra lingua, ‘Vi linhas tracadas por artistas, tio adelgacadas como um fio de aranha, Mas estas linhas materiais sio diferentes das imagens que os olhos carnais me anunciaram. Quem quer as pode conhecer ¢ representar interiormente, sem ter necessidade de pensar num corpo. Por todos os sentidos corporais & que cheguei também ao conhecimento dos mimeros. Mas esses ni- meros com que contamos sio bem diferentes: no sfo as ima- gens dos mimeros sensiveis. Por conseguinte, sfo mais re Ria-se de mim quem no compreender estas coisas que exponho. Eu terei compaixio de quem escarnega de mim. 13, «4 MEMORIA LEMBRA-SE DE SE LEMBRAR> Conservo tudo isto na meméria e, bem assim, 0 modo por que o aprendi. Retenho na meméria as muitas disputas que ouvi, cheias de erros contra estas verdades. Ainda que falsas, no é falso lembrar-me delas. Recordo-me também ter sabido, nessas disputas, discernir as verdades das falsidades. ‘Agora vejo que as distingo dum modo inteiramente diferente daquele com que as distingui tantas vezes, quando, com fre~ quéncia as considerava, Recordo-me, portanto, de muitas vezes ter compreendido isto. E 0 que agora entendo e distingo, con serve-o na meméria para depois me lembrar que agora o entendi, Por isso lembro-me de qué me lembrei, E assim, se mais tarde me lembrar que agora pude recordar estus coisas, seri pela forga da meméria! 254 CONFISSOES 14. A LEMBRANGA DOS AFECTOS DA ALMA Encerro também na meméria os afectos da minha alma, no da maneita como os sente a propria alma, quando os expe- rimenta, mas de outra muito diferente, segundo o exige a fora da meméria. Nao é isto para admirar tratando-se do corpo: porque 0 espirito € uma coisa e 0 corpo é outra. Por isso se recordo, cheio de gozo, as dores passadas do corpo, nfo é de admirar. Porém, aqui o espitito £ 2 meméria *, Efectivamente, quando confiamos a alguém qualquer negécio, para que se Ihe grave na meméria, dizemos-Ihe: «vé lé, grava-o bem no teu espirito». E quando nos esquecemos, exclamamos: «nfo 0 conservei no espirites ou entiio «escapou-se-me do espiritos; portanto chamamos espirito 4 prépria meméria, Sendo assim, porque ser que ao evocar com alegria as ‘minhas tristezas passadas, a alma contém a alegria, e a meméria a tristeza, de modo que a minha alma se regozija com a alegria que em si tem, e a meméria se no entristece com a tristeza que em si possui? Seré porque nfo faz parte da alma? Quem se atreveré a afirmé-lo? Nao hi diivida que a meméria & como o ventre da alma. ‘A alegria, porém, e a tristeza sfo o seu alimento, doce ou amargo. Quando tais emagées se confiam & memeéria, podem ali encerrar-se depois de terem passado, por assim dizer, para esse estémago; mas nfo podem ter sabor. & ridiculo, considerar estas coisas como idénticas. Contudo, também: nfo so inteira- mente dissemelhantes, Reparai que me apoio na meméria, quando afirmo que sio quatro as perturbagées da alma: 0 desejo, a alegria, o medo e a tristeza **, Qualquer que seja o raciocinio que possa fazer, dividindo cada uma delas pelas espécies dos seus géneros ¢ definindo-as, af encontro que dizer e declaro-o depois. Mas no % Traduzimos 0 vocibulo animus ordinariamente por esplrito, mas também tem o sentido de alma (anima) ou mente (mens). 2 Estas perturbagSes so 0 que a psicologia modema chama paises fundamentsis. Cicero também as denomina perturbagses (Tus- calanas, IV, 6). LIVRO X 255 ‘me altero com nenhuma daquelas perturbagées," quando as relembro com a meméria, Ainda antes de eu as recordar ¢ revolver, jé Id estavam. Por isso consegui, mediante a lembranga, arranci-las dali, Assim como a comida, gracas & ruminagdo, sai do estémago, assim também elas saem da meméria, devido 4 lembrang Entio porque € que o disputador, ou aquele que se vai reco dando, no sente, na boca do pensamento, a docura da alegria, nem a amargura da tristeza? Porventura nisto é dissemelhante © que no é semelhante em todos os seus aspectos? Quem de nés falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fOssemos obrigados a entristecer-nos € a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor? Contudo no os trariamos & con- versa se nfio encontréssemos na nossa meméria, néo s6 os sons destas patavras, conforme as imagens gravadas em nés pelos sentimentos corporais, mas também a nocdo desses mesmos sen- timentos. As nogles nfo as alcangémos por nenhuma porta da carne, mas foi o espitito que, pela experiéncia das proprias emogées, as sentiu confiou a meméria; ou entio foi a propria memeéria que as reteve sem que ninguém thas entregasse. 15, A MEMORIA DAS COISAS AUSENTES Quem poderé facilmente explicar, se esta recordagéo se produz por meio de imagens ou no? Pronuncio o nome, por exemplo de «pedra>, ou de «sol>, quando tais objectos me nio estio presentes aos sentidos, & claro que as suas imagens estio-me presentes na meméria, Evoco a dor corporal: se nada me doi, nfo a posso ter presente, Contudo, se a sua imagem me nio estivesse presente na meméria, eu nao sabia o que dizia, e, 20 raciocinar, no a distinguiria do prazer. Profiro o nome de «saiides corporal. quando estou bom de satide, Agui ja tenho presente 0 préprio objecto. Porém, se a sua imagem nao residisse na minha meméria, de modo nenhum poderia recordar a signi- ficagio que tem o som desta palavra. Os doentes, ao ouvirem © nome até aparecer 0 que buscava. Se jd me nko recordasse desse objecto, fosse cle qual fosse, poder-mo-iam apresentar, que eu no o descobriria, por nfo 0 poder reconhecer, % sempre o que sucede quando procuramos ¢ encontramos alguma coisa perdida. Se, por acaso, um objecto —por exemplo, um corpo qualquer visivel — nos deseparece dos olhos e no da meméria, conservamos a sua imagem ld dentro, e procuramo-lo, até se nos oferecer a vista, Quando for encontrado, reconhecemo-lo pela imagem que ficara dentro, Nao dizemos ter achado uma coisa que se perdera, se a fio conhecemos, nem a podemos conhecer, se dela nos nfo Jembramos. Esse objecto, desaparecera para os olhos que a meméria conservara *, 19. O QUE & A REMINISCENCIA? Quando a prépria meméria perde qualquer lembranga, como sucede quando nos esquecemos e procuramos lembrar-nos, onde é que, afinal, a procuramos, senfio na mesa memsria? E, se esta, casualmente nos apresenta uma coisa por outra, repe- limo-la, até nos ocorrer 0 que buscamos. Apenas nos ocorre, exclamamos: — «ii isto!» Ora, nfo soltarlamos tal exclamagio, Se nfo conhecéssemos esse objecto, nem o reconheceriamos, se dele nos nfo lembrassemos. # certo, portanto, que o tinhamos esquecido. Poder-se-ia também dizer que esse objecto nao fugira 21 Luc. XV, 8. : 2X meméria sensitiva conserva a imagem do objecto perdido ¢ a meméria intelectual guarda a sua ideia, 260 CONFISSOES totalmente, mas que nés, por meio da parte que nos ficou impressa, procurdvamos a outra? Com efeito, a meméria sentia que j4 nfo podia revolver em conjunto, 0 que conjuntamente costumava, ¢ truncada no seu hébito e a coxear, exigia a entrega da parte que Ihe faltava. © mesmo sucede quando uma pessoa conhecida se nos depara vista ou ao pensamento e, esquecidos do seu nome, 0 procuramos. Ao ocorrer-nos outro nome, nao o ligamos (a tal Pessoa), Porque nunca nos acostumamos a associd-los no nosso pensamente. Por isso afastamos esse nome até se nos apresentar aquele que simultinea e perfeitamente concorde com 0 conhe- cimento habitual, Donde nos vem esse nome senfio da prépria meméria? Suponho que 0 conhecemos por adverténcia doutrem, ainda é dela que nos vem, porque nfo o reconhecemos como um novo conhecimento, sendo que, recordando-o, aprovamos ser esse, 0 nome-que nos disseram, Se se apagou completamente do espirito no nos lembramas dele, ainda que nos avisem, Mas aquilo de que nos lembramos ter esquecido, ainda o no esquecemos intei- ramente, Por isso, nfo pademos procurar um objecto perdido, se dele nos esquecemos totalmente. 20, COMO PROCURAR A FELICIDADE Entio, como Vos hei-de procurar, Senhor? Quando Vos procuro, meu Deus, busco a vida eterna. Procurar-Vos-ei, para que a minha alma viva. 0 meu corpo vive da minha alma e esta viva de Vés. Como procurar entio, a vida feliz? Nao a alcangarei en- quanto nfo exclamar — «Basta, ci-lay. Mas onde poderei dizer estas palavras? Como procurar essa felicidade? Como? Pela embranca, como se a tivesse esquecido, ¢ como se agora me recordasse que a esqueci? Pelo desejo de travar conhecimento com uma vida, para mim incégnita, ou porque nunca a cheguei a conhecer, ou porque j4 a esqueci tio completamente, que nem ssequer me lembro de a ter esquecido? Entio, nfo é feliz aquela vida que todos desejam sem haver absolutamente ninguém que a nfo queira? Onde a conheceram para assim a’ desejarem? LIVRO X 261 4 Onde a viram para a amarem? Que a possuimos, é certo. Agora, o’ moda, € que eu nfo sei. Ha uma maneira diferente de ser feliz, quando cada um possui a felicidede em concreto. H4 quem seja feliz simples- mente em esperanga. Estes possuem a felicidade dum modo inferior a0 daqueles que j4 sfo realmente felizes, Mas, ainda assim, estéo muito melhor que aqueles que nao tém nem a -felicidade, nem a sua esperanca. Mesmo antes devem experi- menté-la de qualquer modo, porque, no caso contririo, no desejariam ser felizes. Ora, € absolutamente certo que eles 0 querem. ser. No sei como conheceram a felicidade, nem por que nocio a apreenderam. O que me preocupa é saber se essa nocdo habita na meméria, Se ld existe, é sinal de que alguma vez jé fomos felizes. Eu agora nfo procuro indagar se fomos todos felizes individualmente, ou se fomos somente naquele homem que pirmeiro pecou, em que todos morremos™, e nascemos na infelicidade. que quero saber, é se a vida feliz reside ou nfo na meméria. Se a nfo conhecéssemos, nfo a podfamos amar. ‘Mal ouvimos este nome «felicidade» imediatamente temos de confessar que é isso mesmo o que apetecemos; nfo nos delei- tamos simplesmente com 0 som da palavra. Quando um grego ouve pronunciar esse vocdbulo em latim, nio se deleita, porque ignora o sentido. Mas nds deleitamo-nos; ¢ ele também se deleita, se ouve em grego porque afelicidade real nfo & grega nem latina, mas os gregos, os latinos e os homens de todas as linguas tém um desejo ardente de a alcancar. E assim, se fosse possivel perguntar-lhes a uma s6 voz se , todos, sem hesitacio, responderiam que sim. O que no acon- teceria se a meméria no conservasse a prépria realidade, significada nessa palavra. 21, A LEMBRANGA DA FELICIDADE Quem recorda esta felicidade, recordé-la-A como cidade de Cartago, quem a viu? Nao; a felicidade nfo € um corpo € por isso nfio se vé com os olhos. I Cor, XV, 22. 262 CONFISSOES Lembramo-la, entio, como quem lembra nimeros?. Nii porque a estes, quem ja 0s conhece, no os procura adguin Ora, nés, tendo conhecimento da felicidade, amamo-la. Mais ainda: queremos possui-la, para sermos felizes. Lembramo-la talvez, como 4 eloguéncia? Também nfo, porque muitos, ao ouvirem pronunciar a palavra *? e o meu Deus. Todos desejam esta vida feliz. Oh! todos querem esta vida que é a tinica feliz; sim, todos querem a alegria que provém da verdade. Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas nfo encontrei ninguém que quisesse ser enganado, Onde conheceram cles esta vida feliz senfio onde alcangaram 0 conhecimento da verdade? Amam a verdade, porque ndo querem ser enganados; ¢, a0 amarem a verdade feliz, que no ¢ mais do que a alegcia oriunda da verdade, amam, com certeza, também a verdade, Nao a poderiam amar, se nfo tivessem na meméria qualquer nogio de verdade. Porque nfo encontram nela a sua alegria? Porque nfo sio felizes? Nao séo felizes, porque, entregando-se com demasiado afinco a outras ocupagées que, em vez de ditosos os tornam ainda mais desgracados, recordam, apenas frouxamente, aquela Verdade que os pode fazer felizes. «Por enquanto ainda ha uma Juz entre os homens». Caminhem, caminhem depressa «para que as trevas os nfo surpreendam!>, Porque ¢ que a verdade gera o édio? “, Porque é que os ‘homens tém como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz que nfo é mais que a alegria vinda da verdade? Talvez por amarem de tal modo a verdade que todos os que amam outra coisa, querem que o que amam seja verdade. Como nfo querem ser enganados, nfo se querem convencer de que estio em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa do que amam em vez da verdade, Amam-na quando os ilumina, ¢ odeiam-na quando os repreende *®*, Nao querendo ser enganados © desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta ¢ odeiam-na quando os descobre. Porém a verdade castigé-los- denunciando todos os que no quiserem ser manifestados por ela, Mas nem por isso ela se Ihes hi-de mostrar. £ assim, é asssim, € assim também a alma humana: cega, Vinguida, torpe e indecente, procura ocultar-se ¢ nfo quer que %2 Fo. XIV, 6; Salm. XXVI, 1 ¢ XLI, 12. Fo, XII, 35. % Teréncio, Andria, 68. 3 Jo, V, 355 IIL, 20. LIVRO X 265 nada Ihe seja oculto, Em castigo, nao se pode ociltar 4 verdade, mas esta oculta-se-Ihe. Apesar de ser tio infeliz, antes quer encontrar a alegria nas coisas verdadeiras do que nas falsas. Sera feliz quando, liberta de todos as moléstias, se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que € verdadeiro. 24. DEUS NA MEMORIA Eis 0 espago que percorri através da meméria para Vos buscar, Senhor, e nfo Vos encontrei fora dela, Nada encontrei que se referisse a Vés, que no me lembrasse, pois desde que Vos conheci, nunca me esqueci de Vés. Onde encontrei a verdade, ai encontrei o meu Deus, 2 mesma Verdade, Desde que a conheci, nunca mais a deixei esquecer. Por isso, desde que Vos conheci, permaneceis na minha meméria, onde Vos encontro sempre que de Vés me lembro ¢ em Vés me deleito. Sio estas as minhas santas delicias que, por Vossa misericérdia, me destes, ao olhardes para a minha’ pobreza. 25. ONDE?... Onde residis, Senhor, na minha meméria? Em que lugar ai estais? Que esconderijo fabricastes dentro dela para Vés? Que santuério edificastes? Dignastes-Vos tributar esta honra & minha meméria, mas o que eu pretendo saber é em que parte habitais. Ao recordar-Vos, ultrapassei todas aquelas partes da memé- ria que os animais também possuem, porque no Vos encontrava entre as imagens dos seres corpéreos. Cheguei aquelas regides onde tinha depositado os afectos da alma. Nem mesmo l Vos encontrei, Entrei na sede da propria alma, na morada que ela tem na meméria — pois o espirito também se recorda de si mesmo — e nem af estiveis. Assim como no sois nem imagem corpérea nem afecto de ser vivo, qual & a alegria, a tristeza, © desejo, o temor, a lembranga, o esquecimento e outras paixées semelhantes, assim também nfo podeis ser 0 meu espirito, por- que sois o seu Senhor e o seu Deus. Tudo isto muda. Vés, 266 CONFISSOES porém, permaneceis imutdvel sobre todas as coisas e, apesar disso, dignastes-Vos habitar na minha meméria, desde que Vos conheci, Porque procuro eu o lugar onde habitais, como se na mem tia houvesse compartimentos? & fora de divida que’ residis dentro dela porque me lembro de Vés, desde que Vos conheci, € encontro-Vos 1a dentro, sempre que de Vés me lembro%* 26. O ENCONTRO DE DEUS ‘Mas onde Vos encontrei para Vos poder conhecer? Vés no habitaveis na minh meméria quando ainda Vos nfo conhe- cia. Onde Vos encontrei, para Vos conhecer, senfio em Vis mesmo que estais acima de mim? Nessa regio no hé espaco aboslutamente nenhum. Quer retrocedamos, quer nos aproxi- memos de Vés, ai nio existe espaco, 6 Verdade, Vés em toda a parte assistis a todos os que Vos consultam e ao mesmo tempo respondeis aos que Vos inter- rogam sobre os mais variados assuntos. Respondeis com clareza, mas nem todos Vos ouvem com a mesma lucidez. Todos Vos consultam sobre 0 que desejam, mas nem sempre ouvem 0 que queremn, © Vosso servo mais fiel € aquele que no espera nem prefere ouvir aquilo que quer, mas se propée aceitar, antes de tudo, a resposta que de Vés ouviu. 27. TARDE VOS AMEI Tarde Vos amei, 6 Beleza tio antiga e to nova, tarde Vos amei! *". Eis que habitéveis dentro de mim, e eu lé fora a procurar-Vos! Disforme, langava-me sobre estas formosuras que criastes, Estéveis comigo, e eu nfo estava convosco! se na meméria como faculdade espirtusl, que © homem depare com Deus e 0 descobre como Ser Transcendente, at Este clamor de prédigo ¢ de esteta converten a elegante Melle Lionne 20 éscuti-lo da boca do orador P. Claudio La Colom- biére que a Igreja depois beatificou. LIVRO X 267 Retinha-me longe de Vés aquilo que no @xistiria se nao existisse em Vés. Porém chamastes-me com uma voz tao forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirci-o suspirando por Vés, Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vés. Tocastes-me ¢ ardi no desejo da Vossa paz. 28. MISERIA DA VIDA HUMANA... Quando estiver unido a Vés com todo o meu ser, em parte nenhuma sentirei dor ¢ trabalho. A minha vida sera entio ver- dadeiramente viva, porque estard toda cheia de Vés, Libertais do seu peso aqueles que encheis. Porque no estou cheio de Vés, sou ainda peso para mim. ‘As minhas alegrias, que deviam ser choradas, futam com as tristezas que me deviam incutir jblio. Ignoro de que lado esté a vitdria, Ai de mim! 6 Senhor, tende piedade de mim! As tristezas do meu mal pelejam com os contentamentos bons, ¢ . no sei de que parte esté o triunfo. Ai de mim! 6 Senhor tende compaixio de mim! Othai, eu no escondo as minhas feridas, Vés sois o médico, ¢ eu o en- fermo; sois misericordioso e eu miservel. Nao é a vida do homem, sobre a terra, uma continua tentagio? Quem deseja trabalhos preocupagées? Ordenais aos homens que as suportem e nfo que as amem. Ninguém ama o que lhe custa, ainda quando goste de o suportar, porque, apesar de se alegrar com 0 softi- mento, prefere nfo ter nada que sofrer. Nos reveses anseio pela prosperidade, ¢ nas coisas présperas temo a adversidade. Entre estes dois extremos, qual seré o termo médio onde a vida humana nfo seja tentago? Ai das prosperidades do mundo, repito, ai das prosperidades do mundo por causa do receio da desgrace ¢ da corrupgio da alegia! Ai das adversidades do mundo, uma, duas ¢ trés vezes, por causa do desejo da pros- peridade, por ser a desgraca dura ¢ ameacar destruir a pacitncia! No é a vida humana sobre a terra uma tentagio continua? ‘88 Este pequeno capitulo ¢ um dos mais impressionantes © comovedores das «ConfissSes». O drama interior de Agostinho provo- cara-o a sedugio da formosura que o afastara da Beleza Suprema. 268 CONFISSOES 29. TODA A ESPERANGA ESTA EM DEUS $6 na grandeza da Vossa misericérdia coloco toda a minha espranga, Dai-me 0 que me ordenais, e ordenai-me 0 que qui- serdes *, Ordensis-nos a continéncia, Ora, afirmou um sibio: «Ao conhecer, que ninguém pode ser casto sem o dom de Deus, € jd um efeito da sabedoria o saber de quem provém este dom» *, Pela continéncia, reunimo-nos e reduzimo-nos & unidade, da qual nos afastémos ao derramarmo-nos por inumerdveis criaturas, Pouco Vos ama aquele que ama, ao mesmo tempo, outra cria tura, e nunca Vos extinguis! 6 caridade, 6 meu Deus, inflamai -me! Ordenais-me a continéncia? Dai-me o que me ordenais ordenai-me 0 que quiserdes! 30. TRIPLICE TENTACAO * Mandais-me, sem diivida, que me abstenha da concupiscén- cia da carne, da concupiscéncia dos olhos ¢ da ambigio do mundo, Ordenastes-me que me abstivesse das relagdes. luxu- riosas. Quanto ao matriménio, apesar de o permitirdes, ensi nastes-me que havia outro estado melhor. E porque mo conce- destes, abracei-o antes de ser nomeado dispensador do Vosso Sacramento *. 39 um dos pensamentos mais belos das «Confissies», ¢ um dos mais profundos de Santo Agostinho. Da quod iubes et iube quod ‘vis, Contra estas palavras insurgiu-se Peligio, quando, em Roma, um bispo, amigo do Santo Doutor, as recordou aquele herege. Através das ‘suas obras, 0 Bispo de Hipona’parafraseia-as, a cada passo, com novos € profundissimos conceitos. No tratado De Bono perseverantiae, por extmplo, diz: Quid vero nobis primitus et maxime Deus iubet, nisi ut credamus in Eum? Et hoc ergo ipse dat. Que nos ordena Deus em primeito lugar e com mais insisténcia, sento que acieditemos n’Ele? Ora & precisamente esta graga que Ele nos concede. Da quod iubes, et iube quod vis aparece quatro vezes neste Livro X. «0 ‘Sab. 8 21. 41. Com eéte capitulo $. Agostinho principia a descrever as mais pequenas e actuais imperfeicSes que procura aniquilar, Todos os santos tém faltas involuntirias © padecem tentagbes. «Jo, IL, 16. 4 Santo Agostino abragou a Vida Religiosa antes de ser orde- nado sacerdote, LIVRO X 269 Mas na minha meméria, de que longamente falei, vivem ainda as ‘imagens de obscenidades que o hébito inveterado 1d fixou. Quando, acordado, me vém 4 mente, nfo tém forca. Porém, durante 0 sono, néo s6 me arrastam ao deleite, mas até & aparéncia do consentimento e da acco. A ilusio da imagem possui tanto poder na minha alma ¢ na minha came, que, enquanto durmo, falsos fastasmas me persuadem a accdes a que, acordado, nem sequer as realidades me podem persuadir. Meu Deus ¢ Senhor, nfo sou eu 0 mesmo nessas ocasides? Apesar disso, que diferenca tio grande vai de mim a mim mesmo, desde 0 momento em que ingresso no sono até aquele tempo em que de 14 volto! Onde esté nesse momento a razio que resiste a tais suges- tes quando estou acordado e permanece inabalivel, quando. as ptéprias realidades se the introduzem? Fecha-se, quando cerro os olhos? Dorme simultaneamente com os sentidos corporais? E porque & que muitas vezes, mesmo no sono, resistimos, lem- brados do nosso propésito, ¢ nele permanecemos castos, nao dando nenhum consentimento a tais enganos? Contudo, a dife- renga é to grande, que, quando no sono nos sucede nfo resistir, ao acordar voltamos ao descanso da consciéncia. Por essa mesma diferenca € que vemos que no praticamos voluntariamente essas acgées, dado 0 facto de sentirmos pena de que tais actos se tivessem passado em nés. Nao é poderosa a Vossa mio, 6 Deus triunfante, para me sarar todas as enfermidades da alma e para extinguir, com graca mais abundante, os movimentos lascivos mesmo durante © sono? Aumentareis, Senhor, em mim, cada vez mais as Vossas dadivas, para que a minha alma, liberta do visco da concupis- céncia, siga até Vés. Para que ndo seja rebelde, nem sequer no sono; para que nfo cometa tais torpezas e depravagies sob a acco de imagens animalescas, descerdo até 2 lascivia carnal; para que, enfim, de modo nenhum, relas consinta. Nao é muito para Vés, —6 Omnipotente, que podeis fazer ainda mais do que aquilo que pedimos e compreendemos — impedir nfo s6 nesta vida mas também nesta idade, que alguma das tentagdes me deleite, mesmo que seja tio pequena como a ‘que posso vencer logo, ao primeiro esforgo da vontade, quando adormeso em pensamentos castos, Agora, porém, exultando em- 270 CONFISSOES bora com tremor perante 0 bem que me concedestes, e lamen- tando-me diante do que ainda nao obtive, disse ao meu Senhor que ainda me encontrava neste género de mal. Espero que aperfeigoareis em mim as Vossas misericérdias até 4 paz plena, que os sentidos imteriores e exteriores terZo convosco, quando a morte for substituida pela vitéria. 31. A GULA **, Por beneficio Vosso, prestei ouvidos ainda a outra frase de que muito gostei: — ®, Donde se conclui claraménte, 6 Deus Santo, que sois ‘Vés que concedeis a graca, quando fazemos o que mandais. Ensinastes-me, Pai bondoso, que «tudo € puro para os Pures», e que «o comer com escindalo dos outros é mau para © homem>; que — pois s6 os olhos 0 podem sentir, — mas também: «vé como ressoa, vé como cheira, vé como sabe bem, vé como é duro». & por isso, como ja disse, que se chama concupiscéncia dos olhos & total experiéncia que nos vem pelos sentidos. Apesar do oficio da vista pertencer primariamente aos olhos, contudo os restantes sentidos usurpam-no por analogia, quando procuram um conhecimento qualquer. Daqui se vé claramente quanto a volipia e curiosidade agem em nés pelo sentidos: 0 prazer corre atriés do belo, do harmonioso, do suave, do saboroso, do brandos a curiosidade, porém, gosta as vezes de experimentar 0 contricio dessas sen- sages, no para se sujeitar a enfados dolorosos, mas para satisfazer.a paixio de tudo examinar e conhecer. Que gosto hé em ver um cadéver dilacerado, a que se tem horror? Apesar disso, onde quer que esteja, toda a gente ld acorre ainda que, vendo-o, se entristeca e empalideca. Depois, até em sonhos temem vé-lo, como se alguém os tivesse obrigado a ir % 1 ¥o. Mi, 16. LIVRO X 279 ‘ examind-lo, quando estavam acordados, ou como’ se qualquer amincio de beleza os tivesse persuadido a 1é irem . © mesmo se dé com os outros sentidos, Iriamos longe se 0s percorréssemos a todos. Por causa desta doenga da curiosidade, exibem-se no teatro cenas monstruosas de supersticio. Dela nasce o desejo de perscrutar os segredos preternaturais que afinal nada nos aproveita conhecer, e que os homens anseiam saber, 6 por saber, # ainda a curiosidade que, com o mesmo intuito de alcangar uma ciéncia perversa, faz recorrer « homem as artes magicas. Enfim é ela que, até na religifo, nos arrasta a tentar a Deus, pedindo-Lhe milagres e prodigios, nfo porque os exija a salva- Gio das almas, mas s6 porque se deseja fazer a experiéncia, Neste bosque imenso, repleto de tantas insidias e perigos, cortei ¢ expulsei da minha alma muitos males. Vés assim mo concedestes, 6 Deus da minha salvacio, Mas quando no-meio de tantas tentagdes desta espécie, que por todos os lados me circundam a vida quotidiana, ousarei afirmar que nenhuma delas me hi-de prender a atengio? Quando poderei afirmar que no hei-de ver, nem me hei-de deixar arrastar por nenhuma curiosi- dade va? Os teatros, & certo, j me nfo arrebatam nem procuro conhecer © curso dos astros, nem nunca a minha alma espero as respostas das sombras de que se vale a magia para as suas espostas. Detesto todos estes ritos sacrilegos. Mas, 6 Senhor meu Deus, a quem devo servir na humilhacio ¢ simplicidade, com quantas maquinacées me incita o inimigo a pedir-Vos um sinal! Contudo suplico-Vos pelo nosso Chefe e. nossa Pétria —a pura e casta Jerusalém — que assim como até agora esteve Jonge de mim este consentimento, assim continue a estar ca vez mais. Quando Vos peco a salvacdo de alguém, o fim do meu intento & muito diferente. Concedei-me agora e no futuro a graca de Vos servir jubilosamente fazendo Vés o que quiserdes. Contudo, quem poder contar as insignificantes e despre- ziveis misérias que todos os dias tentam a nossa curiosidade, e © miimero de vezes em que escorregamos? Quantas e quantas vezes no ouvimos contar banalidades! Av principio tolerdmo-las, 86 para no ofender os fracos; mas depois ouvimo-las com gosto sempre crescente! 280 CONFISSOES Ja no contemplo um cio a correr aerés duma lebre quando isso sucede no circo. Mas se a cagada for no campo, que eu casualmente atravesso, talvez ela me distraia dum pensamente importante ¢, se me no obriga a mudar de caminho para a seguir a cavalo, sigo-a ao menos com um desejo de coracio. Se imediatamente por meio da minha jé tio conhecida fraqueza, me nao avisardes que me liberte desse especticulo, e se eu me nfo clevar até Vés com alguma consideragéo, ou desprezando-o Por completo ou passando adiante, ficarei loucamente absorvido, Quando estou sentado em casa nio me prende também, muitas vezes a atengo, um esteliéo° a cacar moscas, ou uma aranha enredando as que se atiram as suas teias? Acaso, por sgtem anlmals pequenos, a curiosidade deixard de ser a mesma? Certo que disto me aproveito para Vos louvar, 8 Cri admirdvel e Coordenador de todas as covets, Mas alo ¢ has que primeiro me desperta a atencao. Uma coisa é levantar-me apés a queda, e outra coisa é nao cair nunca, De tais misérias esta repleta a minha vida. A minha tnica esperanca é a Vossa infinita misericétdia. Como 0 nosso coragio é recipiente de todas estas misérias ¢ porque traz essa imensa multidio de vaidades, muitas vezes as nossas oragdes inter- rompem-Se e perturbam-se, _ Enquanto na Vossa presenca elevamos até junto de Vossos ouvides a voz da nossa alma, nfo sei donde provém tantos pen- samentos fiiteis, que se despenham sobre nés ¢ ii0s cortam a atengio em coisa to importante, 36. O ORGULHO Teremos estas misérias na conta de despreziveis? Haverd qualquer coisa que me restime 2 esperanga, a nfo ser a Vossa conhecida misericérdia que principiou a obra da minha conver- sio? Vés sabeis quanto me transformastes 4. Curastesine a paixio da vinganca, para depois me perdoardes todas as minhas maldades, para me curardes todas as fraquezas, para me res- *% Espécie de lagartixa do Norte de Africa que no d tem senta manchas parecidas a estrelas, iets LIVRO X 281 gatardes da morte a vida, para me coroardes com 4 Vossa graca © misericérdia, e enfim, para saciardes com os Vossos bens, os meus desejos. Depois, rebatestes 0 meu orgulho com 0 Vosso temor e amansastes a miaha cerviz sob o Vosso jugo. Trago-o agora ¢ sinto-me leve, porque assim prometestes € 0 cumpristes. Ele era, na verdade, leve, mas eu nfo sabia, quando receava tomé-lo, ‘Acaso, 6 Senhor, —iinico Senhor que nfo reina com orgu- Tho, porque sois 0 tinico Senhor verdadeiro, 0 tnicy que nio tem senhor— acaso cesssou em mim, ou poderd jamais cessar em toda a minha vida, este terceiro género de tentagies, que consiste em querer ser temido e amado dos homens sé com 0 fim exclusive de encontrar uma alegria que nfo é alegria? Oh! que vida miserdvel! Que repugnante arrogincia! Tal € 0 motivo Porque nio Vos amamos, nem santamente Vos tememos, Por isso, resistis aos soberbos e dais a Vossa graca aos humildes! Trovejais sobre as ambigies do século, fazendo abalar até as raizes das montanhas. Em face dos deveres exigidos pela sociedade, precisamos de ser amados e temidos dos homens. Mas o inimigo da nossa felicidade espalha lagos por toda a parte ¢ insta connosco, gri- tando: «Vamos, coragem!>, para que ao procurarmos com avider estas lisonjas, nos deixemos prender incautamente e desli- guemos a nossa alegria da Vossa verdade, colocando-a na mentira humana. © inimigo, incita-nos a que gostemos de ser amados e temidos, no por amor de Vés, mas em vez de Vés; para que assim, assemelhando-nos a ele, vivamos na sua companhia, asso- ciados 2os seus suplicios, e nfo unidos na concérdia ‘da caridade. Determinou ele «estabelecer a sua morada no aquilio» para que naquelas obscuras ¢ geladas regides 0 servissemos como Vosso sinuoso perverso imitador, ‘Mas olhai, Senhor! Nés somos 0 Vosso pequenino rebanho! Sede 0 nosso possuidor! Estendei as Vossas asas, para nos refu- giarmo debaixo delas. Sede a nossa gloria! Fazei que sejamos amados s6 por amor de Vés e que a Vossa palavra ache em nés acatamento. Reprovais aquele que deseja ser louvado pelos homens. Por isso nfo seri defendido pelos homens quando o julgardes, nem 282 CONFISSOES liberto quando 0 condenardes. «Nao louvamos 0 pecador nos desejos da sua alma, nem é bem-aventurado o que faz iniqui- dade» **. Se um homem glorificado por qualquer dom que Vos, 6 meu Deus, the concedestes, se compraz mais em louvar-se do que em possuir esse dom que Ihe atrai o louvor —Vés reprovai-lo, apesar de louvado pelos homens. E nesse caso, aquele que 0 louvou é melhor que aquele que foi louvado; porque o primeiro comprazeu-se com o dom de Deus dado ao homem, e o segundo alegrou-se mais com o dom do homem do que com o dom de Deus. 37. A TENTAGAO DO LOUVOR Todos os dias nos vemos investidos por estas tentagies, 6 Senhor! Somos tentados sem interrupgio! Os louvores humanos sio a fornalha onde quotidianamente somos postos 4 prova. Também nesta miséria nos ordenais a continéncia. Concedei-nos © que nos ordenais e ordenai-nos 0 que quiserdes. Conhecei 0s. gemidos que, a este respeito, se evolam do meu coragio para Vés, Conheceis os rios de lagrimas que rebentam dos meus olhos! An! dificilmente entrevejo até que ponto estou limpo desta peste. Receio muito as minhas venialidades ocultas que Vossos olhos conhecem, e os meus néo véem. Nos outros géneros de tentagées, posso examinar-me sem dificuldade; mas neste, quase nada. A facilidade que alcancei em refrear a alma quanto aos prazeres da carne e quanto & va curiosidade, reconhego-a quando me abstenho dessas paixdes, quer seja voluntariamente quer Porque as nfo tenha diante de mim, Nestes casos, pergunto a mim mesmo se me causa maior ou menor pena, 0 nfo té-las. Quanto as riquezas que se ambicionam para satisfazer uma ou duas ou mesmo trés concupiscéncias, se acaso a alma, a0 possui-las, nfo pode sentir se as despreza, ainda pode afasti-las para provar o seu desapego, Mas para carecer de louvores ¢ experimentarmos se podemos passar sem eles, precisaremos nés de entregar-nos a uma vida pecaminosa tio perdida e brutal _ Salim X, 3. LIVRO X 283 4 que ninguém nos conhesa sem nos detestar? Que maior loucura se pode dizer ou imaginar? Se o louvor deve ser habitualmente companheiro da vida sie das boas obras, nesse caso nfo nos podemos abster do convivio do louvor que acompanha a vida santa, A verdade, porém, é que nio distinguimos se a privacio dum bem nos é indiferente ou molesta, senfio na auséncia desse bem. Que Vos hei-de eu, Senhor, confessar, neste género de ten- tagdes? Que me deleito muito com os louvores? Mas ainda me deleito mais com a verdade do que com os louvores! Pois, se me dessem & escolha ou ser um doido que se engana em todas as coisas, mas que é louvado por todos, ou ser um homem segurissimo da verdade, mas por toda a gente escarnecido, bem sei o que escolheria. Portanto, néo quereria que 0 louvor saido duns labios alheios aumentasse o gosto que experimento pela boa obra, seja ela qual for. Porém tenho de confessar que no 360 louvor Ihe aumenta o deleite, mas também que o vitupério Tho diminui, Quando me perturbo com esta minha miséria, penetra-me na mente uma desculpa, cuja natureza Vés conheceis, meu Deus. Torno-me duvidoso e perplexo ante ela. Essa desculpa & que Vés, nao s6 nos ordenastes a conti- néncia que nos ensina que coisas devemos afastar da nossa afei- cio, mas também preceituastes a justica que nos ensina para onde havemos de dirigir o nosso amor. N&o quisestes que n0s améssemos somente a nés, mas também, ao préximo, Ora, muitas vezes, quando rectamente me deleito no louvor que & dado por uma pessoa inteligente, parece que me comprazo no aproveita- ‘mento e nas esperancas de que d& mostras. E, pelo contririo, entristego-me com a sua maldade, quando a oico censurar que ignoro ou o que é bom. Algumas vezes também me contristo com os louvores que ‘me dirigem, quando enaltecem em mim coisas que me desagra- dam, ou quando apreciam bens somenos e transitérios, com maior estima do que merecem, Mas, repito de novo, como hei-de eu saber se este sentimento me aflige por causa de eu nfio querer que o meu admirador pense a meu respeito de modo diverso do que eu penso? 234 CONFISSOES Serd, nfo porque me deixe arrastar pelo valor e utilidade desse meu admirador, mas porque aqueles bens que em mim me agradam, me so mais saborosos, quando agradam também aos outros? De certo modo, nfo sou louvado quado a minha opinifo, a meu respeito, nfo é elogiada, porque, ou enchem de encémios as coisas que me desagradam, ou louvam ainda mais as coisas que menos me comprazem. Sobre este ponto nfo sou eu um enigma para comigo mesmo? Em Vés, 6 Verdade, vejo que nfo € por causa de mim, ‘mas por utilidade do préximo que me devo sensibilizar com 0s Touvores que me dirigem. Se é este ou nfo, o meu caso, ignoro-o, Nesta questio, conheco-Vos melhor a Vés do que a mim mesmo. Pego-Vos, meu Deus, que me mostreis as feridas que em mim encontrava para que as manifeste aos meus irmios, dispostos a orar por mim. Fazei que me examine ainda mais’ diligente- mente. Se nos louvores que me tributam, tenho em vista a utilidade do proximo, que é a razéo por que ao ser outro injustamente vituperado, me sensibilizo menos do que se essa injéria me fosse dirigida a mim? Porque ¢ que a mordedura dum ultraje que me fere, me & mais sensivel do que a injiria igualmente injusta, arremessada a outro, na minha presenga? Ignoro eu isto? Deduzirei ainda que me engano a mim mesmo e corrompo a verdade diante de Vés no meu coragio e na minha lingua? Afastai, Senhor, para longe de mim esta loucura, para que as minhas palavras no sejam azeite de pecador a ungit a minha cabega *, 38. A VANGLORIA Sou necessitado e pobre eo melhor que hé em mim, é aborrecer-me a mim mesmo, entre os secretos gemidos do meu coragao, buscando eu a Vossa misericérdia até ver a minha indi- géncia reparada, e aperfeicoada com a paz desconhecida aos olhos do soberbo. Porém, as nossas palavras, saidas da boca e as nossas accées conhecidas dos homens, escondem uma tentacéo *t Salm, CXL, 5. LIVRO X 285 muito perigosa, originada da estima do louvor, a ual recolhe e mendiga votos e pareceres alheios. A vangléria tenta-me até mesmo quando a critico em mim. Mas eu repreendo-a dese mesmo desejo de louvar. O homem muitas vezes gloria-se vimente no desprezo da vangloria, Mas, de facto, jé nfo se pode gloriar nese desprezo de gléria, porque quando se gloria, j4 nfo despreza a gléria! °. 39. O AMOR PROPRIO Existe dentro, bem dentro de nés, outro mal, oriundo do mesmo género de tentagéo, que faz vios todos os que se com- prazem em si, ainda quando nfo agradam aos outros —e até Ihes desagradam— ou mesmo quando nem sequer procuram agradar-Ihes. Ora, os que assim se comprazem em si mesmos, desagradam-Vos muito, 6 meu Deus, no s6 quando se gloriam dos males como se fossem bens, mas sobretudo quando se gloriam dos Vossos bens como se fossem seus; ou quando, reconhecendo- -0s como provenientes de Vés, os atribuem A Vossa graca, nao se alegram amigavelmente de que os outros também os possuam, tendo-lhes ainda, por isso mesmo, inveja. Em todos estes perigos ¢ trabalhos Vés vedes claramente quanto teme o meu coracéo. Eu sinto que, no entanto, sois mais diligente em me curar do que eu em me no infligit novas feridas. 49. A BUSCA DE DEUS Quando é que Vés, 6 Verdade, me nfo acompanhastes para me ensinardes 0 que havia de evitar e 0 que devia desejar, todas fas vezes que Vos consultei? Por mim quanto possivel, foi-Vos manifestado tudo 0 que pude observar no meu interior. Percorri o melhor possivel, com os sentidos, o mundo exte- rior. Observei em mim a vida do corpo e os préprios sentidos. Passei depois as profundezas da meméria, a essas ampliddes 08 Os fildsofos antigos Antistenes e Diégenes vangloriavam-se de desprezar a vangléria! 286 CONFISSOES sucessivas. Observei-as, estupefacto, Mas, sem Vés, nada pude distinguir. Contudo, reconheci que Vés nada disto ércis. ‘Néo era eu quem descobria estas maravilhas. & certo que as percorri a todas e tentei distingui-las e avalié-las no seu justo valor tomando ¢ interrogando 0s seres que traziam mensa- gens aos meus sentidos. Analisei outros seres que sentia unidos a mim e examinei as suas informacées. Revolvia nos grandes tesoiros da meméria varias impresses, ora percorrendo umas, ‘ora manifestando outras. Mas nfo era eu quem fazia tudo isto, nem era a forga com que eu agia, a qual nfo éreis Vis, porque sois a luz imutivel, que eu consultava acerca da existéncia, da qualidade e do valor de todas estas coisas. Eu ouvia os Vossos ensinamentos ¢ as Vossas Ordens. Costumo fazé-lo muitas vezes, porque sinto nisso grande alegria. Sempre que, nos meus tra- ‘balhos de obrigacdo, posso dispor de algum descanso, refugio-me nestes prazeres, Entre todas.estas coisas que percorro, depois de Vos consultar, s6 em Vés encontro um reduto para a minha alma. Nele se retinem os meus pensamentos dispersos, e nada de mim se-afasta de Vés, Algumas vezes, submergis-me em devocio interior deveras extraordinéria, que me transporta a uma inexplicdvel docura, a qual, se em mim atingisse o fastigio, alcancaria uma nota misteriosa que {4 nfo pertence a esta vida ‘*. Mas caio em bai- xezas cujo peso me acabrunha, Deixo-me absorver e dominar pelas imperfeicées habituais. Choro muito por isso, mas sinto-me ainda muito preso. To pesado é 0 fardo do costume! Nao quero estar onde posso, nem posso estar onde quero, de ambos os modos sou miserével! 41, A TRIPLICE CONCUPISCENCIA ’ Considerei, portanto, as fraquezas dos meus pecados na triplice concupiscéncia, e invoquei a Vossa dextra para me 89 Santo Agostinho teve gragas misticas de oragio ¢ parece ter alcangado o grau supremo. A traducio literal daquela frase €: a qual isse 0 fastigio, nfo sei o que ser&, porque esta vida ‘Texto latino: quae si perficiatur in me nescio quid erit quod vita ista non erit, LIVRO X 287 salvar. Com efeito, apesar de ter 0 coragio ferido} ainda pude ver o Vosso esplendor. Mas obrigado a recuar, exclamei: —aquem pode 1é chegar? «Fui expulso dos Voss0s olhos» ®, Vs sois a verdade que preside a tudo, e eu, na minha avareza, no Vos queria perder. Mas, além ‘de Vés, desejava possuir também a mentira, Nisto parecia-me com aqueles que néo querem mentir muito, com receio de perder a nogéo da verdade. Foi assim que Vos perdi, porque Vés nfo permitis que Vos possuamos juntamente com a mentira. 42. FALSOS MEDIADORES .. Poderia encontrar alguém que me teconciliasse convosco? Deveria eu recorre aos anjos? Mas com que oragies? Com que ritos? Ouvia dizer que muitos, querendo voltar para Vés, ten- taram meter-se por este caminho, j4 que o nao podiam fazer por si mesmos, Mas cairam no desejo de presenciar visdes curiosas, merecendo, por isso, ficar entregues as ilusdes. Esses saberbos procuravam-Vos, levados mais pelo intento de ostentar 0 fausto da ciéncia, do que pelo desejo de bater no peito, Por isso, dada a analogia dos seus coragSes com os demé- nios aéreos, por cujo poder niigico se deixaram iludir, atrairam a si os espiritos maus como cimplices e companheiros da sua soberba. Procuravam um mediador que os purificasse e nfo 0 acharam, O deménio tinha-se transfigurado em anjo de luz. Ele seduziu-thes fortemente a carne orgulhosa, precisamente pela prerrogativa de nie possuir corpo carnal”. Eles eram mortais e pecadores. E Vés Senhor, com quem soberbamente procuravam seconciliar-se, sois imoral e sem pecado, Convinha que o mediador entre Devs e 0s homens tivesse semelhanga com Deus e os homens; pois se se parecesse 1 Salm, XXX, 23. 11 Alude 0 Santo ace neoplaténicos ¢ aos seus ritos religiosos. Porfirio Apulcio interpunham entre os deuses © os homens, os demé- nios que habitavam na regio do ar (Cir. De Civit, Dei, X, 26 ¢ 29). Estes levavam petigies dos mortais is divindades e traziam favores. Assim o julgavam os neoplaténicos, 288 CONFISSOES ‘com os homens, estaria longe de Deus ¢ se fosse semelhante 6 a Deus, estaria longe dos homens. Assim no haveria mediador! ‘Aquele falso intermediério (0 deménio), que por Vossos ocultos juizos, tem licenga para iludir 2 soberba humana, possui apenas uma coisa de comum com os homens: o pecado. Finge, contudo, assemelhar-se com Deus. Em razio de nfo estar vestido de carne mortal, mostra-se imortal. Mas como «

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