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FOLHA DE S.PAULO Alta da maré em ilha no litoral de SP expulsa pescadores de vila centenaria LEANDRO MACHADO. ENVIADO ESPECIAL A ILHA DO CARDOSO (SP) 11/12/2016 02h00 De manh, um barquinho a motor sai de Cananéia, litoral sul de Sao Paulo. A esquerda esta a Ilha do Cardoso e, do outro lado, o mar. Na voadeira, a cientista social Tatiana Cardoso, 34, coloca um plastico na frente do corpo para se proteger da chuva. "Vocé viu os golfinhos? Nao? Eles pularam ai do seu lado”, ela aponta, Uma hora e meia depois, o barco chega a Enseada da Baleia, vila de pescadores na Iha do Cardoso, na divisa com o Parana © povoado de 170 anos, um dos sete da ilha de 13.500 mil hectares, fica numa restinga, bem na frente de uma rota de baleias. Mas essas s4o como os golfinhos: é preciso ter sorte para ver alguma. Hoje, vivem 28 pessoas na Enseada, todos da mesma familia, os Cardoso, Ha mais de um més, os pescadores convivem com uma tristeza: terdo deixar a area onde nasceram e pretendiam morrer. A vila esta entre um rio e o mar. A 500 metros das casas, a terra sofre um processo natural de erosdo: ha sé 90 centimetros entre as "duas 4guas". Quando este ponto se romper, elas irao se encontrar, e a vila pode ficar submersa. Em 29 de outubro, elas entraram na Enseada depois de uma ressaca atingir 0 litoral, O nivel do rio caiu pouco apés aquele dia, ¢ a Defesa Civil proibiu a vila de receber turistas -uma das suas fontes de renda. Mais de 280 pessoas iriam para o Réveillon. "Nos perdemos o ganhar. Tive de devolver o dinheiro das reservas", diz Maria Cardoso, 57, ao lado de um receptor de energia solar que finalmente levou eletricidade para a ilha, em 2015. A erosao foi detectada por pesquisadores da Universidade Federal do Parana em 2008. O governo do Estado de SP foi avisado na época, mas até essa semana nada havia feito para diminuir os riscos. Para se mudaram, os moradores escolheram uma area na ilha que tem as mesmas condigées da atual. Este ponto, porém, também corre risco de erosao —mas ela pode demorar algumas décadas. © governo Geraldo Alckmin (PSDB) cogitou levar os pescadores para Maruja, vila na propria ilha, mas a mais de 10 km. Nessa area nao existe o majuba, principal peixe pescado por eles. "Disseram que nés teriamos de ir para Maruja, que nao estd interessada em nos receber. Se nao aceitassemos, teriamos de ir para a cidade", explica Tatiana. Ir para 0 continente é o grande medo dos pescadores. Na frente da praia, Antonio Mendonga, 61, explica que a ilha significa liberdade. "Nao conseguiria sair. Na cidade me sinto preso", diz, enquanto, na areia, trés urubus comem a carcaga de uma arraia. Nesta quarta-feira (7), 0 governo tucano finalmente decidiu manter os pescadores na area em que eles haviam escolhido. "Saiu a autorizagao, estamos muito felizes”, escreveu Tatiana, em mensagem pelo celular. CONCESSAO Outro medo dos moradores da iha ¢ ter de trabalhar para uma empresa que pode assumir a administragao do parque estadual que existe ali desde 1962 Um projeto do governo Alckmin pretende conceder 25 parques a empresas privadas por 30 anos. A Ilha do Cardoso, unidade de conservagao ambiental, esta entre eles. O govemo fara uma avaliago econémica-financeira dos parques e do que pode ser explorado em cada um deles (como estacionamento, restaurante, acesso a trilhas, moritoria e bilheteria). Moradores dizem que ja foram visitados por empresas interessadas em explorar 0 potencial turistico do local “Para uma empresa assumir a ilha, vai querer ter grandes lucros com turismo, construir hotéis e fazer os caigaras trabalharem para eles", diz a cientista social Tatiana Cardoso, 34, nascida na vila Enseada da Baleia. Para 0 gedgrafo da USP Mauricio de Alcantara Marinho, 50, que fez doutorado sobre a Ilha do Cardoso, a regido nao deve ser explorada com turismo de massa, pois seu principal objetivo deve ser a conservagao ambiental "A ilha é uma regido de mata atlantica com flora, fauna e uma diversidade de espécies de peixes riquissima. Vocé tem de criar um limite de visitagao para nao causar impacto. Nao da para colocar 20 mil pessoas para verem golfinhos. A concessao pode até ser boa, se feita bem, mas uma empresa que visa lucro vai aceitar esse limite?”, diz. “As populagées caigaras jd fazem a conservacao melhor que ninguém, Sao eles que monitoram a area, que retiram os lixos que vém do mar, que avisam a seguranga quando entra palmiteiro”, explica. "Eles sao fundamentais para a conservagao’, diz. Hoje, a praia deserta da ilha recebe enorme quantidade de lixo vinda dos grandes barcos de pesca que navegam pela costa. Na areia, ha lampadas, redes, garrafas e sapatos velhos. Os moradores é quem recolhem esse lixo diariamente —até fazem artesanato com os residuos. parque estadual tem dez funcionérios, segundo o préprio governo. Apenas quatro vigilantes fazem a seguranga de uma area equivalente ao centro expandido de So Paulo —a regiao ¢ vitima constante de palmiteiros e de pesca ilegal. BALEIAS E GOLFINHOS Duas semanas antes da decisao do governo, o sol se punha enquanto Erci Cardoso, 77, matriarca da vila, observava os passaros sobre o rio: ela esté na ilha ha 75 anos e ndo se enxerga longe dali. Aos dois anos, foi adotada por uma familia que vivia na vila. Conheceu Anténio Cardoso, também adotado. Qs dois viveram como irmaos, mas seus pais abandonaram a ilha. Erci e Anténio ficaram, se casaram e tiveram filhos, Ele morreu em 2010. “Nunca quis sair", diz ela, Ao seu lado, ha uma arvore apelidada de Jorge —nome de um dos seus filhos. Na Enseada, uma arvore é plantada toda vez que nasce um bebé. Em 2015, um grande barco de turismo tentou ancorar no povoado. A fora dos motores dissolveu a terra, e quatro casas desabaram no rio. Uma arvore plantada por Erci também caiu. Ela quis se jogar nas Aguas para se afogar com a drvore, mas foi contida. No jantar (peixe parati, pescado horas antes), Tatiana conta que foi a primeira a sair para se formar na faculdade: fez ciéncias sociais, na Unesp. Quando crianga, ela esperava na areia os brinquedos que o mar levava. "Ficava tao feliz quando chegava uma boneca. Depois descobri que os brinquedos vinham das enchentes de Santa Catarina, Que loucura pensar nisso, né?", Pela manha, Jaqueline Cardoso, 30, anda pelo povoado. Conta que ha um ano uma baleia de 17 metros morreu na praia, "Nés enterremos os ossos bem aqui, Vocé ja viu uma baleia? ", diz. Um pedago de osso esta para fora da terra. Da vontade de toca-lo. As 8h, 0 pescador Anténio Mendonga liga o motor da voadeira: mais uma hora e meia de volta até Cananéia. No caminho, ele para o barco: trés golfinhos pulam da agua Enderego da pagina: btto:/mww 1 folha,uol.com_br/cotidiano/20 pescadores-de-vila-centenaria, shi 12/1839958-alta-da-mare-em-Iha-no-ltoral-de-sp-expulsa- Copytight Foa de S. Paulo. Todos os deltos reservados. probida a reprodugo do conteido desta pagina ‘em quelquer melo de comuricaceo, slaverico au Impresso, sem eutorizerdo enctia da Folha de 8. Paulo

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