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O PODER CENTRAL E O PODER LOCAL: MODOS DE CONVERGENCIA E DE CONFLITO NOS SECULOS XIV E XV ‘Por Humberto Baquero Moreno 0s dois tltimos séculos da Idade Média portuguesa caracterizam-se por uma acentuada indeterminacdo no que concerne as relagées entre 0 estado e os orgios do poder local situados na sua directa dependéncia. Apesar dos progressos verificados na definicéo da estrutura do poder central ao longo dos séculos XII e XIII em que a pessoa do rei detem as principais atribuicées que consistem na condugao da vida politica da nagio, na proteccéo dispensada aos stibditos ¢ na-aplicagao da justica, temos que nem sempre se observa uma perteita articulacao entre as diversas instancias dependentes da soberania. Maltiplos so os entraves que obstam a uma correcta articulacéo entre as esteras do poder, em que 6 caracter absoluto da monarquia se apresenta mais no plano teérico do que propriamente no dominio do real. A auséncia duma efectiva centralizagio, que resulta da existéncia de escassos recursos materiais colocados ao servigo da coroa, em particular 0 estabelecimento de canais de circulagao entre as directrizes dimanadas da estrutura do estado e a sua transmissdo janto dos sectores que a ele se encontravam directamente subordinedos. [Nao obstante as dificuldades existentes nas relagdes entre 0 monarca, € 0s sibditos, este detinha um poder indiscutivel, que derivava directa mente de Deus, Esta doutrina sobre o direito divino dos reis obtivera entre nés particular aceitacao sobretudo desde finais do século XII, intitulando-se o soberano no protocolo das cartas, rei de Portugal «pela graca de Deus», do mesmo modo que governava e legislava invocando a sua infalibilidade ao proclamar a sua «certa ciéncia» e 0 seu «poder absoluto» Toda esta afirmacdo de poder, apesar das lacunas do sistema jé ficeltou 53 apontadas, traduz-se na ampla riqueza patrimonial de que dispunha a coroa. Além do rei possuir imensas terras, eram eno:mes os direitos reais cohrados sabre todas as actividades econdmicas dos seus sibditos. Possuindo 0 exclusivo da cunhagem de moeda, recebia impostos provenientes de bens fundiarios ou méveis e ainda multas resultantes de Infracgées praticadas na esfera do econémico e do judicial. Um dos principais atributos da realeza consistia na pratica da justiga, subordinando a sua aplicacdo as regras contidas no direito natural. Proteger os seus stibditos e defender os seus bens era uma das obrigagdes que recaiam sobre 0 rei Um dos primeiros regulamentos que se conhecem cerca do desem- bargo dos assuntos ligados ao reino deve-se ao rei D. Fedro Te data de 1361'. No seu governo o rei via-se auxiliado por altos funcionérios encarregados de superintender sobre as diferentes reas do poder, além de possuir com cardcter permanente um conselho consultivo que a partir do século XIV passou a designar-se por «conselho de el-reir. Dum modo nitido vai ser durante o curto reinado de D. Pedro 1 (1357-1367) que o escrivao da puridade iré ultrapassar na hierarquia do estado 0 chanceler do reino, o qual ocupava o primeiro lugar desde 0 reinado de D. Dinis, altura em que suplantava nas suas prerrogativas 0 mordomo da corte (majordomus curiae) que durante o reinado de D. Afonso Ill como principal administrador da casa real se encontrava a frente da administragao civil”, 0 escrivdo da puridade passou a ser a pessoa da confianca do rei, ‘uma espécie de primeiro ministro, que despachava os assuntos do reino Girectamente com aquele. Se 0 monarca queria mandar eserever uma carta ou transmitir uma ordem era ao escrivio da puridade que recorria, que assim mandava lavrar cartas que néo passavam muitas vezes pela chancelaria e que eram autenticadas com o sélo do anel de camafeu do uso pessoal do marca. (O chanceler, por seu turno, passa a ter uma fungao mais burocratica a partir do reinado de D. Pedro I, contrériamente ao que sucedia nos reinados anteriores em que nos aparece a par dessas lunges mais ligado as decisoes do executivo. Este alto funcionario tinha emseu poder 0 sélo real e mandava lavrar os diplomas régios, sendo considerado 0 homem hancolarias Portuguesas.D. Pedro I,ed INIC, Lisboa, 1984, doe. 574, pp, 260262. 2 Acerca desta materia consulte-eo estado de Armando Luk de Carvalho Homari, Subsidios para 0 Estudo da Administracdo Central durante 0 veinado de D. Pedho I, it ‘Revista de Historian, Porto, 1978; pp. 39-87. 54 mais versado em assuntos varios e geralmente pessoa de bom conselho, a0 qual o rei solicitava pareceres, constituindo assim um precioso auniliar da covoa nas miltiplas tarefas de natroza juridiea ¢ adminis- trativa, Ao servigo da chancelaria encontravam-se uma série de notaries, escrivaos ¢ guarda- Nos primeiros tempos da monarquia em Portugal ndo havia uma capital fixa, sendo a corte ambulante e o chanceler um acompanhante do rei. Por isso mesmo havia apenas uma chancelaria embrionéria, nao ficando dos documentos mais do que uns meros registos, alguns dos ‘quais chegaram aos nossos dias. Somente mais tarde, durante oreinado D. Afonso II, é que a chancelaria real passou a ter uma secretaria e um arquivo fixo em Lisboa, De notar, contudo, que a sedentarizagao da chancelaria na capital do reino néo significava que o chanceler permanecesse fixamen:e na primeiea cidade do pais e que deixasse totalmente de acompankar 0 monarca nas suas deambulagies pelo territério. Esta situacio de itineriincia do chanceler observa-se para além do aparecimento do ‘escrivao da puridade no reinado de D. Afonso IV, sendo de referir caso ‘exemplar de Lourengo Anes Fogaca que no periodo que se estende de 1374 a 1399 acompanha os reis D. Fernando e D. Joao I com uma estrema regularidade'. No decurso do século XV verifica-se uma acentuada tendéncia para © chanceler do reino permanecer com maior regularidade na chancelaria sediada em Lisboa, conforme se depreende a partir de inumeras cartas régias mandadas lavrar por este funcionario desde a capital, © que revela uma tendéncia para uma maior burocratizacao no exercicio da sua actividade profissional. Ainda no ambito da administracao central temos o corregedor da corte que de igual modo acompanhava 0 rei nas suas deslocagces pelo pais e exercia nos locais de visita competéncias semelhantes as que possuiam os corregedores. A sua accdo além de fiscalizadora sobre os juizes © meirinhos fazia-se sentir igualmente sobre os fidalgos que praticavam malfeitorias e desmandos. Nas suas atribuicdes cabie-lhes proceder ao provimento dos corregedores das comarcas, & apreciagéo los". 3” Assume importéncia fundamental a obra de Armando Luis de Carvalho omem, (0 Deserbargo Rigi, (1320-1433), volumes Il, Fort, 1985, determinacao dacsirutura do orgdo central do poder. Vejese,sobretudo, ovo. p. 127 e seguintes, ‘velo de Jesus Costa, La Chancalere Royale Portgaie Jusqu au milion de XI Sigel, in sRevista Portuguesa da Historias, tomo XV, Coimbra, 1975, pp, 152157. 3 Armando Luis de Carvalho Homem, ob cit, p- 150 : 5S das sentengas dos agravos dos feitos crimes que transitavam até ao tuibunal da corte © ainda ao exame das contas e rendas que eram apresentadas pels monicipios a0 rei. Criado o corregedor da corte por D. Afonso IV apenas vamos encontrar este cargo provide pela primeira vez em 1357 durante 0 reinado de seu filho D. Pedro I° Situados na esfera do estritamente judicial, muito embora ocupando ‘um segundo plano, temos dois clérigos e dois leigos com 2 designacio de sobrejuizes que possuiam jurisdigao sobre os pleitos civeis, havendo outros tantos ouvidores do crime que tinham sob a sua akada os pleiios crimes. A somar a esses oito magistrados devemos acrescentat trés ouvidores dos feitos del-rei ou ouvidores da portaria, que se encon- travam ocupados com os pleitos relativos a fazenda real e ainda dois, ouvidores do civel que se integravam na comitiva régia nas suas andan¢as pelo pais’. Os ouvidores da portaria integravam um tribunal superior designado por Audiéncia da Portaria. Outros orgios dlo poder judicial eram a casa da justica da corte que em meados do século XV passou a deno minar-se Casa da Suplicagéo, cujos juizes acompanhavam o rei nas suas deslocagées a quem pertencia julgar as apelagies dos iitos civeis no local onde o ret permanecesse, o mesmo sucedendo com os feitos crime com excepgdo da cidade de Lisboa © o seu termo, Por seulado a Casa do Civel, sediada inicialmente em Santarém © mais tarde em Lisboa procedia a0 julgamento das apelagées dos feitos crimes provenientes da Cidade de Lisboa e do seu termo e ainda as apelagdes das feitos civeis ‘com excepgio daquelas que provinham do local em que se encontrava 0 monarca’. Conforme ja foi bem sublinhado por Armando Carvalho Homem a administragao da fazenda régia foi da superintendéncia, durante © século Xllf principios do século XIV, do porteiro-mor especializado em financas e a quem competia a cobranca dos impostos que revertiam a favor da coroa. A partir deste cargo piiblico surge o tesoureiro mor a quem pertencia a guarda e a contagem do dinheiro. Transita-se daquele alto funciondrio no reinado de D. Afonso IV para o dos ouvidores da portaria, que por seu lado dao origem a0 aparecimento dos vedores da © Idem, Zidem, pp. 143-148 7 AL de Oliveira Marques, Portugal na crise dos stados XIV @ XV, Lisboa, 1987, p29 8 Marcelos Cactano, Historia do Dirito Portugués, (1140-1455), Lisbo pp. 309.311 © 482-486, at, 56 fazenda durante o reinado de D. Fernando, Sé que 0 surgimento destes funciondrios, em mimero de trés, encontra-se ligado a causas mais que dizees que a hordenacom que ElRey meu senhor e padre que Deus aja fez andar que 0s coudes, comegedores e ouuldores nom o sejam mais de gimco anno, E os alenides pequenos tres. E que ors nos damos or ditos ofisos por mais tempo, Eos queos tom por se serntiee perpetuadese & hordenagom manda que seus eros de coudees =m seus figios pom posam ponir nossa justias salu que 0 notiquem a nos © elles por moor parte fazem gramde destroicam. Pidimdonos por mereee que 19s ‘guardemos tal hordenagom. E mamdemes que passades os dictos tempos nom husem ras de laaesoigios sem embarguo de hos teermos dados perpetuus ou por malor tempo. Eos eseripusaes de aes allardos nom sejam salu de tres em tres anos. Ca tases of de coudees amtjgamente nom sohijam a ser nos gramdes senhores. Segumdo ora sam ‘mais porsojugarem a tera que por outro seraigo nos fazerem. E.a mudamca qu os pis ‘que se feca em taaes coudees essa se faza nos anadees dos beesteires do comto ome ha {amto erro como nos outros. F esses aque taaes coudelarias demos nom as ajam nas terms lomde ter jurdicooes. _Respomdemos que nos praz daguy em diame darmes a coudslaras aos cdados 0s cescudeiros moradores e naturases dos lugares omde ouuerem de ser dads de gimeo em ‘imco arnos come se ora custuma. Ese alga fidalgos ou outras psoas team estes oficbs pera compre ou pera mais tempos que os dietes b annos. Mandamos que nom hse elles. Enos os daremos aas peszoss que diszemos, Salvo se algius senhores ou fidalgos ‘Que teem cartas noses per que os deem ou teenhem ou apresemtem em suas (eras. 4s ‘Guanes mandamnoe que se cumpram como em ellas he comthiudo. E quamto he aas ‘scripuaninhas das dicta coudelaras mamdanos que se deem de cimcoem cimquo anos pera meneira gue disemas que se dessemn as dictas condelarias sem embarguo de carts ‘ossas que toonbam ou dos rex que amte nos foram. Arquivo Nacional da Torte de Tombo, Mago 2 de Cones, no 15, fos. 22 66 Documento 1X, Cortes de Lishoa de 1459 (capitulo geral) Tito das sisas que se lem vet ‘Senor © uoso pouco semte muito 2 desordenamea de wossa muy desarezoada despesa que sabercer que os rex amigos soportsuam grandemente seus estados © Gdefemsauam a terra pe 08 deits reaes queer esas regnnos sam comisaaes da coro ddo cregnno. Eaalem dello ijnham gramdes thesouros sem auer hy sisas nem rredizimas {que estas sists nom emraramsaluo quamdo per falegimento delRey dom Fernando @ Raynha dona Lianor com algius poderosos os quiseram dar a Castela, E 05 pouoos _meucos, como seus eetegesores os goamicaram per seu semgue aos moures, sem ajuda de Castella romarem voz com ElRey dom Johan uosoauoo eo leuamtaram por Rey e Senor tecrado ja Castella gmm parte delle © as despesas da guetta eram grammes. Ordenaram estas sists pera sua dalemssam com promissam delRey que acabedes os dicts trabalios ‘nom ouuese hy mais eof trabalhos acabados eas pazesfrmadas levar Devs 0 dicto Seahor pera sy © vono padre acerca delle. quamdo o lamte dom Pedro em woso nome cemtrou ao regimentofoy the requerido que desemearregamdo as almas de seu padre ¢ do tuoso ¢ por nest obrigar » wossa as letzasse. E sua rreposta foy que em elle nom era tall poder ataa uos seerdes em hidade que o a uos requeresemos. E ora Senor véeros que fodallas teas reguerguos, levrase deveytosreaaes ass) per uoso sto e padre como per {uoos sam dadias aos fidalges que woe nom fico saluo esas sisas que leaaaes em gramde ‘yosa obrigacom e comtra woomtade de wosos pousos.E sjmda os dictosfidalgos do que oom nom se ham por comtemtes estas sisas que vossss nom sam, pedem teemeas & ccasamentos.E tamtase tam sem horde the sam dados que nos marauylhamos per que Los soportaaes o que a uoso powoe faz muy gramde dapno, Porquamto por esta cause [pmeade Ihe lamcaaespididos © de tadofazets muytas despesasescutaoiras em gramde ddestroigom da tera, Pedeuos 0 poco como a prtnsipe calico que quciases posr Deus famite uos ¢ por aliufiardes as alas dos rex vosso auoo © pare das penas gue POT eso podem padecer easy. uosa #8 queiraas de todo rar. E noat os prazemdo por dards Elguu remedio © abufllamemto 2 voso pouco uos praza quererdes em elas dar ests hhordem a quall decleramos em esta maneira. Respomde ElRey que ell lea as sisas bem ¢ dereitamente e com boos comeiemeia E que se expanta per no seer tll tocado que bem sabees que o reynnoe sus lazemda 088) por eriagom ¢ casamentos de nosos lis e por outras nogesidades que sobrevieram 20 Pega sam em tam gramde abatiimento que se by sisas nom ouues elle as dewya a poet de now. ‘Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Maco 2 de Cores, n® 15, fol. 24v-25, 67

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