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CHORA CAVACO... GEME CAVAQUINHO!!!' Alberto IKEDA? ™ RESUMO: Trazido ao Brasil pelos portugueses, ainda nos tempos coloniais, o cavaquinho ver alcangando nos tiltimos tempos novo grau de valorizacao na musica brasileira, Através do samba transformado em espetaculo nacional e internacional na época do Carnaval, o pequeno cavaco tem chegado a varios paises (até no Japao) como instrumento genuinamente brasileiro. © UNITERMOS: Musica brasileira; cavaquinho; ukelelé; instrumento musical popular; samba; chorinho. Chora cavaco! Geme cavaquinho! ou Fala cavaco! Sim, é bem algum destes clamores que os brasileiros ja se acostumaram a ouvir todos os anos pela televisao, No inicio do desfile de Carnaval de cada Escola de Samba do Rio de Janeiro, na voz dos ‘‘puxadores’’ (cantores) dos sambas-enredo. No atendimento aos entusiasmados apelos, séo os cavaquinistas que dao, através do minusculo instrumento, o tom (tonalidade) e o ritmo (andamento) dos sambas, nao s6 aos puxadores, mas também. aos membros da bateria — em torno de 300 a 500 pessoas — e a todos os componentes da escola - comumente entre 4 e 5 mil elementos. Além disso, quando o ptblico assistente ‘‘ao vivo’ se entusiasma e canta o samba conjuntamente, esse numero aumenta para muitos milhares mais... e 14 esta 0 pequeno instrumento, s6 ou acompanhado de outro cavaco e mais um ou dois violdes. Assim, sao quatro cordas apenas ‘‘contra’’ milhares de vozes e um batalhao de instrumentos de percussao. E Tealmente algo unico na historia da musica. 1. Texto originalmente preparado como palestra, proferida na cidade de Colénia ~ Republica Federal da Alemanha, em 9,9.1989, promovido pelo Instituto de Estudos de Cultura Musical no Mundo da Lingua Portuguesa. 2. Departamento de Expresso e Comunicagao ~ Instituto de Artes - UNESP ~ 04266 ~ Sao Paulo ~ SP. ARTEunesp, So Paulo, 8: 151-160, 1992 151 Apesar da presenga historica do cavaquinho no Brasil, trazido pelos portugueses, apés a década de 60 (principalmente pela década de 80), através do samba transfor- mado em espetaculo turistico-televisivo nacional e internacional, o instrumento alcangou novo patamar de prestigio na musica brasileira, chegando a paises europeus, EUA e até no Japao como genuinamente brasileiro. A forma geral do instrumento é a mesma do violao ou das violas caipiras. Uma espécie de violdo diminuto. Suas dimensées so variadas, dependendo do artesao ou fabricante. No geral nao vao além de 59 cm de comprimento total por 23 cm de largura, na parte mais larga do bojo. A altura média do bojo é de 7,5 cm, sendo o comprimento do mesmo de 27,5 cm.? Tem comumente 17 ou 18 trastos e é executado com “palheta”’ (plectro). De uso mais geral 6 o de quatro cordas, na afinagao: 1€;, Sols, Sis @ 164.4 embora mais raramente se use 0 instrumento com cinco cordas, com acréscimo de corda mais grave afinada em la). A extens4o comum com quatro cordas é de duas citavas, alcangando mais cinco semitons nos trastos do bojo do instrumento (sol, quarta linha suplementar superior). Em Portugal, onde se originou, o instrumento tem varias designa¢des, como: machete, machetinho, braguinha, braguinho, braga, machim, machinho, machete, machete de Braga e naturalmente cavaquinho e cavaco. No Brasil é mais usual apenas as duas Ultimas nomenclaturas. Etimologicamente, o nome cavaquinho se relaciona com cavaco, que é lasca de madeira, por aproximagao as suas pequenas dimensées. O mesmo ocorre com as denominagées machete e machim, que vém do espanhol e se Ielacionam com machado. Quanto ao termo braga e braguinha, é facil de se supor a simplificagao da nomenclatura machete de Braga. A origem do instrumento em Portugal € controvertida, havendo autores que o consideram vindo de regides espanholas (onde existe o ‘‘requinto’’) e aqueles que o afirmam originado na Ilha da Madeira. O pesquisador Emesto Veiga de Oliveira explica: "Em Guimaraes, ja no século XVI, se construiram estes instrumentos, e o Regimento de 1719, para 0 oficio de violeiro, menciona entre as espécies entao fabricadas machinhos, de quatro, e outros de cinco cordas’’.® 3. Medidas com base no cavaquinho de fabricagao da Del Vecchio, de Sao Paulo, Ernesto Veiga de OLIVEIRA, Instrumentos Musicais Populares Portugueses (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1966), p. 139, traz varias dimensoes do cavaquinho em Portugal e explica: “As dimensdes do instrumento séo fundamentalmente sempre as mesmas, com pequenas variagdes: cerca de 52cm de comprimento por 16 de largura maxima, com a parte vibrante das cordas da pestana ao cavalete de cerca de 33 cm. A altura da caixa ¢ menos regular, aparecendo por vezes cavaquinhos muito baixos, que tém um som mais gritante, e a que, em terras de Bastoe outras aldeias minhotas, ‘chamam ‘machinhos””’. . No Brasil usa-se também a afinacao: 1, sol, si, mi (do grave para o agudo), da mesma forma que as quatro cordas mais agudas do violéo. Veiga de OLIVEIRA, op. cit., p. 140,141, aponta varias outras afinacdes utilizadas em Portugal: sol, sol, si, ré; 18,14, d6 sustenido, mi; sol, é, mi, la; sol, d6, mi, la etc Ibidem, p. 140, José Ramos TINHORAO, Histéria Social da Musica Popular Brasileira (Lisboa: Caminho, 1990), . 27, com base no Auto da Natural Invencdo de Antonio Ribeito Chiado, surgido “entre 1545-1557", supoe @ ‘e@isténcia do cavaquinho ja no século xvi, pelo seguinte trecho:"Dono: Mandat-Ihe vir um discante (grifo ‘meu}/que isto hei d'experimentar./Negro: Nam, que et trago aqui guitarra/Dono: Isto é lancar a barramais Jonge do que eu culdava’’. ‘Tinhoréo anota: “o discante (como era entdo chamado o machete ou cavaquinho).." ee ARTEunesp, Sao Paulo, 8: 151-160, 1992 Além de Portugal e Brasil, o cavaquinho se faz presente tradicionalmente nas Ilhas Havaianas, sob o nome Ukelelé, para onde foi levado por imigrantes lusitanos, por volta de 1880, alcangando dai os EUA, pela segunda década deste século.6 O mesmo autor cita o uso do instrumento ainda nas Ilhas Sandwich, Barbados, Demerara e Trinidad,’ apontando inclusive a existéncia de cavaquinhos de fabricagao inglesa. Para nés, brasileiros, tudo é mais simples, pois sabemos que o recebemos de Portugal, provavelmente via ilhéus da Madeira. Luis da Camara Cascudo da a seguinte explicagao: ‘Desde 1676 que os madeirenses vém para o Brasil. E a saudade da ilha inesquecivel emigra no bojo ressonador dos cavaquinhos..."’.2 A presenga do cavaquinho no Brasil no século XVII pode ser inferida também por alguns versos do poeta baiano Gregorio de Matos Guerra (1633-1696), referindo-se a maneira de criagao dos filhos na Bahia: ‘*.../Pois no modo de criat/aos filhos parecem simios,/causa por que os nao respeitam,/depois que se véem cresci- dos./Criam-nos com liberdade/nos jogos, como nos vicios,/persuadindo-lhes, que saibam/tanger guitarra, e machinho. (grifo meu) ...."’.° De fato, sendo instrumento popular, é realmente certa a presenga do cavaco entre nds, pelas maos de Pportugueses imigrantes das camadas populares, pelo menos desde aquele século. O instrumento consagrou-se como um dos mais importantes na musica brasileira, tanto no ambiente rural quanto no urbano. Pelo primeiro quarto do século XIX, ha um registro do pintor francés Jean-Baptiste Debret (1768-1848) que — integrando a ‘‘Missao Artistica de 1816", contratada por D. Joao VI, para atuar no Corte transferida para o Rio de Janeiro — aqui ficou entre 1816 e 1831, e refere-se a popularidade do cavaquinho, anotando: “E certo que no Brasil a cabana eo palacio so o bergo comum da musica. Por isso ouve-se dia e noite o som da marimba do escravo africano, do violao ou do cavaquinho (grifo meu) do homem do povo, ea harmonia mais sabida do piano do homem rico"’."° Assim como em diversos grupos Porém, o discante poderia ndo ser obrigatoriamente o cavaquinho, podendo significar mesmo um acompanhador, até com viola. Os termos “machete” e “machinho” aparecem como “viola pequena"” em Raphael Bluteau, Vocabulério Portugués e Latino (v., 1716, p. 234), apud Paulo Augusto CASTAGNA, Fontes Bibliogrdficas para a Pesquisa da Pratica Musical no Brasil nos séculos XVI e XVI (3 v.. Dissertagao de Mestrado: Escola de Comunicacdes e Artes, USP, 1991), p. 535, nota 381 6. Luis HENRIQUE, Instrumentos Musicais (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987), p. 163, explica: “O cavaquinho e ‘o machete, instrumentos correspondentes da Ilha da Madeira, foram levados para o Havai, onde deram origem. 0 Ukulele (sic.), instrumento que se tornou muito popular nos Estados Unidos neste século”’. Ver também: The ‘New Grove - Dictionary of Music and Musicians (v. 19, London: McMillan, 1980), p. 323,324. 7. Veiga de OLIVEIRA, op. cit., p. 143 ‘Apud Renato ALMEIDA, Histdria da Musica Brasileira (2. ed., Rio de Janeito: F. Briguiet, 1942), p. 310, nota 253, 9, Gregorio DE MATOS GUERRA, Obras Completas de Gregério de Matos: sacra, lirica, satirica, burlesca (v.1, Salvador: Janaina, 1969), p. 20. Apud José Ramos TINHORAO, op. cit. p. 46. 10. Apud Mario de ANDRADE, Dicionério Musical Brasileiro (Belo Horizonte: ltatiaia/MEC/USP-IEB, 1988), p. 123, com base em Jean-Baptiste DEBRET, Viagem piloresca ¢ histdrica ao Brasil(v. 2, 1940, p, 108). Vicente SALLES, A Musica € 0 Tempo no Gréo-Paré (Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1980), p. 86, documenta: “Em 1796, 0 Maranhéo Importava da metrépole, entre outros diversos artigas, os seguintes instruments musicals com os respectivos valores: 6 rabeoas a 38200; 1 rabecio a 32S000; 1.123 violas a $600 e 989 violas pequenas a $300 réis". E poasivel que as ARTEunesp, Sao Paulo, 8: 151-160, 1992 153 (ranchos) folcloricos portugueses, no Brasil 0 cavaco ha muito era utilizado como instrumento ritmico-harménico ou solista de reforgo das melodias vocais e nas introdugées e interlidios solistas, como por exemplo, nos grupos precatdrios catdlico-populares chamados Folias de Reis ou nas Folias do Divino,"' das regides Sudeste e Centro-Oeste, e em intmeras dangas e folguedos (reisados, pastoris etc.)!? destas e de outras regides do Pais, notadamente aqueles trazidos pelos portugueses. Muitas dessas manifestagdes folcléricas remontam ao Brasil Colonia. No ambiente tipicamente urbano, é integrado nas atividades seresteiras,"? nas “bandas de pau e corda”’ (grupos de choro), nos bailes populares (maxixes) e nos tanchos e blocos carnavalescos em diversas cidades, principalmente as mais antigas como Salvador, Rio de Janeiro e Recife/Olinda, desde a segunda metade do século XIX, e mais ainda no samba, a partir das primeiras décadas deste século, notadamente, é que o instrumento passou a ter uso marcante. O pesquisador Vicente Salles, historiando as atividades musicais no Para, por volta de 1866, explica: ''Comegam também a surgir grupos musicais amadores e, no Para, como em quase todo 0 extremo Norte e Nordeste, organizam-se pequenas orquestras populares que adquirem 0 pitoresco nome de pau-e-corda, constituindo-se numa réplica quase perfeita dos gmupos chorées cariocas. Apareciam em bailes e em serestas, sem um modelo de organizagao fixa... Ao que parece, a formago mais usual constava de 2 violées, 1 0u 2 guitars portuguesas, 1 cavaquinho, 2 violinos, 2 clarinetas e 2 flautas, os dois Ultimos podendo se subdividir em clarineta e requinta e em flauta e flautim’’.“ Realmente, a impressdo que se tem é que pelo menos até a primeira metade do século XIX 0 cavaco teve uso mais restrito a alguns tipos de atividades (como as Folias), passando a se consagrar a partir das formacées das "‘pau-e-corda”’ Como elemento de divulgagdo dessas ‘‘bandas’’ podemos nos lembrar das ativi- dades teatrais, principalmente os espetaculos do tipo das ‘“‘revistas’’ que se dinamizaram no Rio de Janeiro nos finais do século XIX, onde a musica regional ‘violas pequenas” fossem cavaquinhos, ou pelo menos entre elas se incluisse esse instrumento. José Ramos TINHORAO, Miisica popular de Indios, Negros e Mesticos (2. ed., Pettopolis: Vozes, 1975). p. 104, transcreve um trecho do folhetim Memérias de um Sargento de Milicias, de Manuel Antonio de ALMEIDA. ublicado originalmente no suplemento do Jomal Diério Mercantil, do Rio de Janeito, entre 1852 e 1853, onde 0 ‘autor desoreve uma Folia do Divino: "... Cada umn destes meninos levava um instrumentoppastoril em que tocavam, pandeiro, machete (grifo meu) e tambori!” Ver Rossini Tavares de LIMA, Folguedos Populares do Brasil (S80 Paulo: Ricordi, 1962) e Luis da Camara CASCUDO, Dicionario do folclore brasileiro (Sao Paulo: Melhoramentos, 1980). 18. M. Conceigao REZENDE, A Musica na Historia de Minas Colonial (Belo Horizonte: Itatiaia/MinC-INL, 1989), . 655, explica sobre a seresta: “O “Triunfo Eucaristico’, de 1743, refere-se A seresta como difundida entre 0 ovo, Deste fato, Affonso Avila... faz um comentario, dizendo que esta seria a primeira referencia as serenatas nesta parte da colonia, costume que se fixaria na sociedade mineradora, concorrendo ao mesmo tempo para @ definiggo de um estilo de mtisica popular, caracterizado pela tematica de teor romantica e pelo tom langoraso da melodia’* 14. Vicente SALES, op. cit, p. 279,280, 15. Ver: José Ramos TINHORAO, Musica Popular: Teatro & Cinema (Petropolis: Vozes, 1972), e Neyde VENEZIANO, 0 Teatro de Revista no Brasil: dramaturgia e convengdes (Campinas: Pontes/Editora UNICAMP, 1991), as 12 154 ARTEunesp, Séo Paulo, 8: 151-160, 1992 (‘‘sertaneja”’, “‘nortista" etc.) teve acolhida, passando a ser divulgada em varios pontos do Pais. Além disso, desde as primeiras décadas deste século, grupos ‘‘de choro”’ cariocas também excursionaram pelo Brasil, como se vé na presenga da “Troupe de Joao Pernambuco’ em Sao Paulo, em 29.12.1916, em espetaculo no Teatro Sao José, complementando a Palestra Caipira do escritor e folclorista paulista Cornélio Pires (1884-1958).® O jornal O Estado de S.Paulo, edigao noturna, anunciava no dia: "A troupe de Joao Pernambuco, a melhor que se organizou até hoje nesse género, composta de Joao Pernambuco e Octavio Lessa (violdes); Juvenal Fontes (canto e cavaquinho), Luiz Pinto Silva (bandola); Joao Martins e José Alves Lima (bandolim)..."’.'7 Embora o cavaquinho se fizesse presente na maioria das regiées do Pais pelas maos dos portugueses, as atividades artisticas praticadas na entao Capital Federal constituiam realmente exemplos de imitagao. Assim, também os “Qito Batutas’’, liderados por Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho, 1898- 1973), excursionaram por varias cidades do Brasil, a partir de 1919.'8 Ainda, a partir de 1902, com a implantagdo das gravagdes em disco no Brasil, 6 novamente através destes que os grupos regionais cariocas, acompanhando os cantores solistas, passam a se constituirem em modelos de instrumentagao, conforme se percebe na gravagao de um dos pioneiros do género samba: Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, gravado em 1917, onde o cavaquinho pode ser ouvido com nitidez.’® Também os circos constituiam importantes locais de divulgagao das formas musicais, entre as varias regides brasileiras. Mais adiante, aliando o disco e as. Tadios, a partir da década de 20, os grupos regionais (pau-e-corda) tiveram novas possibilidades de grande divulgagao. Finalmente, pela década de 60, com a transfor- macao dos desfiles das escolas de samba cariocas em espetéculo e com as transmis- ‘s0es via televisao, 0 cavaco alcanga novo patamar de valorizagao entre os instrumen- tos utilizados na musica brasileira 16. O jomnal O Estado de S Paulo, edigao noturna, de 27.12.1916, anunciava: “Espectaculo em beneficio do fundo para a construcao do predio da Soc. de Cultura Artistica’’. A Sociedade iniciou suas atividades em 1912, sendo ‘a mais importante ¢ antiga instituicao civil de promogao de concertos de “"milsica classica", na cidade de Sao Paulo, No entanto, por paradoxal que parega, teve na misica popular uma importante aliada para sua coneretizagao, 17. Joo Pernambuco (Jodo Telxeira Guimaraes, 1883-1947) nasceu em Pernambuco € chegou ao Rio de Janeiro em 1904, Foi grande violonista e compositor prodigo. Em 1914 formou o Grupo Caxanga, do qual participou 0 consagrado compositor Pixinguinha. Ver: José de SOUZA LEAL & Artur Luiz BARBOSA, Jodo Pernambuco: Arte de um povo (Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1982). Antes da apresentacéo de 1916, Jodo Pernambuco jé estivera em Sao Paulo em dezembro de 1915, apresentando-se nada menos que no Teatro Municipal, abrilhantando uma ppalestra sobre temas folcloricos organizada por Affonso Arinos. 18, Ver: Sergio CABRAL, Pixinguinha, vida e obra (Rio de Janeiro: MEC/Funatte, 1978), Marilia T. Barboza da SILVA & Arthur L. de OLIVEIRA FILHO, Filho de Ogum, Bexiguento (Rio de Janeito: MEC/Funarte, 1979), 19. Disco: Monumento da Musica Popular Brasileira: Bahiano, Os Pioneitos, v. 2 (MEC/Funarte/INM, EMl/Odeon BRXLD 18.086). A série consta de seis LPs. com regravagdes de: Pattapio Silva, Bahiano, Eduardo das Neves, Mario Pinhelro, Cadete e outros. ARTEunesp, S40 Paulo, 8: 151-160, 1992 155 Por ter funcao central nos conjuntos instrumentais regionais e por causa das suas pequenas dimensées, o cavaquinho é tratado entre nés com reveréncia especial, de forma lirica, pode-se afirmar. E comum dizer-se que é a ‘alma’, o “‘centro”’ nos conjuntos de choro ou nas rodas de samba, sugerindo-se que tem a capacidade de chorar e gemer. Assim é mencionado nas letras e titulos de inimeras musicas do cancioneiro popular, como nas consagradas composi¢ées: Apanhei-te, cavaquinho! e Cavaquinho, por que choras?, de Emesto Nazareth (1863-1934). Alem dos desfiles das escolas de samba, nos pagodes (reuniao de sambistas), pode-se afirmar que (alem da percussao) 0 cavaquinho ocupa lugar fundamental, até mais que o violao. Isto em fungao da sua melhor audibilidade para grande numero de pessoas. Até muitos musicos tém “‘nomes”’ relacionados ao instrumento, como: Nelson Cavaquinho (1910-1986), Ari do Cavaco etc. De fato, tecnicamente 0 cavaco se coloca como base de sustentagao ritmi- co-harménica para solistas instrumentais ou vocais. O termo ‘centro’, além do carater valorativo, tem o significado de centro harménico, na mesma regido da melodia-solo (no choro), completando a grade harménica, por exemplo, dos violées e outros instrumentos ‘‘baixos’’. Significa também centro ritmico, para o qual se ajusta de forma bastante eficaz, notadamente nos géneros marcadamente ritrmados (sincopados) da musica brasileira. Em ritmos como o samba, o choro, o maxixe, e outros, o “‘repicar’’ do cavaquinho é elemento expressivo insubstituivel, fato esse possivel gracas a ‘‘palheta’’ pressionando as cordas de curta amplitude (aproxima- damente 35 cm). Nesta ultima fungdo, o cavaco corresponde aos repeniques e tamborins das “paterias’’ de samba. Nesses géneros, os cavaquinistas, entre as seqliéncias (células) ritmicas-padrées, realizam ainda verdadeiros prodigios ritmicos variantes. Executam incisos ritmicos bastante distintos o tempo todo, sobretudo nas termi- nag6es das frases solistas, quando 0 cavaco aproveita ‘‘para ser notado’’. Qualquer espago minimo nao preenchido nas seqliéncias sonoras é motivo para o instrumen- to sobressair-se. Os cavaquinhos executam determinados padrées ritmicos tradi- cionais, dependendo do estilo do samba: Beaeanom: .. (enn, Porém nao se restringem aos padrées, principalmente quando existem outros instrumentos que garantam a manutengao ritmica no conjunto. Podem ser anotadas dezenas de variagdes ritmicas (células e incisos) no decorrer de cada misica, dependendo do cavaquinista, da forma de composicao instrumental do grupo ou da musica em execugdo. As variagdes se fazem usando recursos da “palheta” (subir, descer, trinar), da mao que forma os acordes (preso, solto, Pizzicato), e das seqiiéncias harménicas de acompanhamento. Alguns exemplos (base binaria): 156 ARTEunesp, Sdo Paulo, 8: 151-160, 1992 — mm 5 a ia) “fl; Oa mA Bld ah (al Pagal’ 3 Ail . [DO > An lini Por sua vez, também como instrumento solista, apesar da sua curta escala sonora, 0 cavaquinho teve éxito através de musicos notorios, como Waldir Azevedo (1923-1980), autor de célebres choros: Brasileirinho e Pedacinhos de Céu, que tiveram sucesso também em ambito internacional A importancia do cavaco se deu, assim, pela diversidade de fungées que seu ‘uso permite, seja: a) como solista; b) como instrumento harménico; e c) juntando-se as fungdes harménica-ritmica. Tais possibilidades fizeram com que o instrumento se adequasse de forma especial a musica popular brasileira, mais até que em Portugal. Naquele pais, ainda de acordo com o estudioso Veiga de Oliveira, o instrumento, apesar do uso predominante nas zonas rurais, chegou a ter acesso nas camadas altas de comuni- dades urbanas, como Funchal, Lisboa e Algarve,” fato esse que nao se registrou no Brasil. Aqui, o cavaco sempre esteve ligado as camadas populares, diferentemente de outros instrumentos como o bandolim, violao, flauta e acordedo, que tiveram ou tém também uso e repertério "classic Quanto 4 produgao do cavaquinho no Brasil, ha de se supor que desde tempos coloniais artesdos portugueses tivessem se fixado em varias regiGes do pais, além da Ppossibilidade da importagao de Portugal. Atualmente, além da produgao artesanal em varias regides, existem também fabricas que os produzem em escala industrial ou semi-industrial, como a Del Vecchio, Ao Rei dos Violdes (Itupeva) e Giannini (Barueri) em Sao Paulo e a Bandolim de Ouro, no Rio de Janeiro. Alguns outros fabricantes tém produgao irregular, como a Jnstrumentos Gope, de Sao Paulo. Segundo alguns dos fabricantes, a maior demanda do instrumento ocorre entre o Rio de Janeiro, Sao Paulo e Minas Gerais, tendo o primeiro Estado como maior consumidor, embora se os 20, Emesto Veiga de OLIVEIRA, op. cit., p. 143. ARTEunesp, Sao Paulo, 8: 151-160, 1992 157 comercializem por todo o Pais.?! A produgao predominante ainda é o do sistema acistico, porquanto também se os confeccionem no sistema elétrico e até sem 0 bojo sacustico, 4 maneira das guitarras elétricas, confcrme utilizado em ‘Trios Elétricos”’ da Bahia. Ainda, produz-se no Brasil o banjo-cavaco (com bojo do banjo afro-americano”), que, embora de uso pelo menos desde a década de 20, passou a ter uso no samba mais recentemente, desde inicios da década de 80, aps os sucessos do grupo carioca de samba Fundo de Quintal, além de Almir Guineto ¢ Zeca Pagodinho, que incluem o instrumento em suas apresentages e gravagées, juntamente com o cavaquinho convencional. A diferenga entre os dois instrumentos fica por conta da maior sonoridade do banjo-cavaco e do timbre caracteristico deste, resultado da sua forma arredondada do bojo e das cordas ressoando sobre ‘‘tampo"’ de couro.”* Em fungao do seu maior volume sonoro, o banjo-cavaco — também chamado apenas de banjo — nao se integrou nos conjuntos tradicionais de choro, pois ‘‘cobre os demais instru- mentos”’, conforme depoimentos de alguns “‘chorées'’.4 O banjo-cavaco é bastante usual nos grupos musicais do norte do Brasil (Para, Amazonas). Assim, embora de origem portuguesa, o cavaquinho se indentificou de tal maneira musica brasileira, que tem sido levado pelos artistas populares, notadamen- te no samba, a diversos paises do mundo como instrumento-“‘alma’’ da nossa musicalidade, despertando também novos interesses internamente. 21. Alguns dados sobre produgao mensal e custos dos cavaquinhos, segundo dados dos fabricantes Marca Produgo Mensal Custo (Média/dependem dos pedidos) (em US comercial) Del Vechio 120 a 180 unidades 89,00 a 152,00 (entre cavaquinho aciistico © elétrico) Ao Rei das Violdes 800 unidades 40,00 Gentil Instrumentos (SP) néo fornecido 183,00 a 205,00 (Amtesanal) Al. Eduardo Prado, 251 22. Ver: The New Grove .., v.2, p. 118-121. 23. Medidas do banjo-cavaco da Del Vecchio: comprimento ~ 60 cm; bojo tedondo, diametro ~ 30 cm e larguta ~ (espessura) 6 cm. 24, Enuievistas: Evandro do Bandolim (Josevandro Pires de Carvalho), nascido em 1932, bandolinista, miisico Consagrado da miisica popular. Toninho Gallani, nascido em 1927, cavaquinisia e misico ‘“da noite”. Roberto ‘Barbosa, miisico consagrado na MPB, ex-integrante dos Demdnios da Garoa, cavaquinista 158 ARTEunesp, Sao Paulo, 8: 151-160, 1992 Folia de Reis, Govdnia ~Goias, janeiro de 1988 V es, violas, cavaquinho (segundo em pé, a direita), sanfona, caixa Evandro do Bandolim em apresentagao com misicos japoneses (Mitsuro, cavaco; Toshima, violéo, e Kuryama, Pandeiro), em Osaka ~ Japao, marco de 1991. Evandro tem se apresentado no Japao anualmente, desde 1990, tendo J@ és CDs gravados com 0 grupo acima, Mitsuro {oi aluno do cavaquinista carioca Henrique Cazes. ARTEunesp, Sao Paulo, 8: 161-160, 1992 169 IKEDA, A. Cry cavaco... Cry cavaquinho!!! ARTEunesp, Sao Paulo, v. 8, p. 151-160, 1992. = ABSTRACT: Brought by the Portuguese during Brasil's Colonial Period, the musical instrument known as cavaquinho has recently reached a new role in the context of Brazilian Music. It is an important element of the Brazilian “Mardi Gras” Samba and although it is not an original Brazilian musical instrument it has been accepted as such in several countries. = KEYWORDS: Brazilian music; cavaquinho; ukelelé; popular musical instrument, samba, chorinho. Bibliografia consultada ALVARENGA, O. Musica Popular Brasileira. Porto Alegre: Globo, 1950. ANDRADE, M. de. Pequena historia da musica. 7. ed. Sao Paulo: Martins/INL, 1976. ARAUJO, A. M. Documentario folclorico paulista e instrumentos musicais ¢ implementos. Revista do Arquivo Municipal, Sao Paulo, v. 157, jul./dez., 1953. ARAUJO, M. de. A Modinha e o Lundu no século XVIII. Sao Paulo: Ricordi, 1963. ATAIDE, J. Olinda, Camaval do povo: 1900-1981. Olinda: Fundago Centro de Preservagao dos Sitios Historicos de Olinda, 1982. BRANCO, J. de F. Histéria da musica portuguesa. Lisboa: Europa-Ameérica, 1959. CAMARA, J. M. B. da. Musica tradicional agoriana. s.1.: Venda Nova-Amadora, 1980. ENCICLOPEDIA da musica brasileira. 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